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O que faz o fígado

curtas histórias de exaltação da ciência e de mentes alumbradas que se distinguiram no combate à doença.

Gostaria de reproduzir uma consulta, isto é, uma conversa entre dois (ou mais) interlocutores em que, além da conversa médico -doente, incidindo em questões e dúvidas sobre a doença, ocorreria conversa coloquial, trivial, sem uma sequência pré -definida, que não é raro acontecer num consultório. Com os doentes não se aprende só medicina, também se aprende muitas outras coisas… Além do mais, a “conversa” teria um propósito científico, embora tão explícita e objetiva que não afaste o leitor menos erudito; as questões abordadas seriam pertinentes e atuais – imbuídas de preocupações pedagógicas, ou seja, um contributo para literacia em saúde.

Não é um livro puramente científico, organizado em capítulos estanques e repleto de termos médicos; também não é um livro temático, que corria o risco de se tornar árido e enfadonho; nem tão -pouco um banal livro de pergunta -resposta. O género que eu pretendia era: uma conversa com o fígado. Mas como? Como dar a palavra aos doentes? Resolvi contar uma história. Uma história clínica de um doente real. Este livro é, deste modo, uma grande história, que aconteceu num hospital, mas que poderia ter ocorrido num consultório. Pelo meio existem muitas outras pequenas histórias, também reais. Um livro que cumpre um dever e uma promessa (não explícita) aos doentes, concretiza um “contrato” tácito com os doentes, seus familiares e o público em geral – uma espécie de manual que lhes permita aceder a um conhecimento mais profundo sobre o fígado e obter respostas a questões que gostariam de ter formulado, mas que, por uma razão ou por outra, não tiveram oportunidade de as enunciar.

Pretendo que seja um complemento explicativo às dúvidas e aflições que o doente traz do consultório, ajudá -lo a conviver com o seu fígado doente, dar -lhe a conhecer a história, as lendas e os mitos que ao logo dos séculos o fígado foi suscitando e o seu papel como inspirador das artes. Como não tenho formação nem, tão -pouco, pretensões a escriba, e sendo o

© Lidel – Edições Técnicas, Lda. meu conhecimento das técnicas narrativas leve e fruto do empirismo e das leituras, não disponho, portanto, de um esteio que me servisse de amparo. Encontrava -me numa encruzilhada! Portanto, quando comecei a escrever faltava -me atar as pontas da longa meada, no que diz respeito à arquitetura da narrativa, não obstante possuir um arremedo de guião e uma clara noção da trajetória que a explanação deveria assumir: complemento da Hepatologia Clínica, sendo que este é um livro eminentemente clínico. Não rejeitando a possibilidade de ser o seu reverso, visto que alguns capítulos versariam a mesma matéria, só que abordadas numa perspetiva diferente: tendo como pano de fundo a resposta aos anseios e incertezas do doente. Ademais, seria a oportunidade para incluir novas temáticas, que não tinham cabimento numa obra de cariz clínico.

Foi necessário proceder a uma pesquisa aturada, já não só de artigos científicos, mas outrossim de livros. E que livros!... Mas assim exigia o fígado, um órgão escolhido pelos Deuses! Diversas fontes foram consultadas, na esperança de encontrar uma descrição, um nome, uma história, uma nota, um sintoma, uma doença, um tratamento, uma morte, uma receita, um poema, um soneto, uma pintura, em que o fígado fosse o protagonista. No imaginário popular, o conceito de fígado não está, felizmente, refém da doença, acolhe outras dimensões, entre as quais se encontra a culinária.

Aventurar -me fora da clínica significa sair da minha área de conforto e entrar num terreno relativamente desconhecido, senão repleto pelo menos de alguns escolhos, quantas vezes à procura de “uma agulha num palheiro”. Um imperativo de rigor intransigente, uma recusa da solução mais fácil, fez com que esta obra se afastasse da ficção e se aproximasse do ensaio ou mesmo da crónica, o que obrigou a confirmar, complementar e a corrigir algumas ideias preconcebidas. O compromisso com o rigor e a exigência em não cometer erros científicos, que considerei um ponto de honra, deixou -me, ocasionalmente em assuntos triviais, suspenso numa frase ou num parágrafo durante horas, quando não dias, enquanto procurava a fundamentação; sim, porque a comprovação podia implicar a leitura de um livro!

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