Vila Maria Zélia: o oásis arquitetônico do século XX

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Vila Maria Zélia O oásis arquitetônico do século XX

Carolina Farias Isabella Jarrusso Vinicius Brilhante

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Carolina Farias Isabella Jarrusso Vinicius Brilhante

Vila Maria Zélia O oásis arquitetônico do século XX

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Para Guilherme Bryan 4


Sumário

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A Vila 7

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Tombamento 45

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Restauração 86

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Projetos culturais 123

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Áreas de lazer 159

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Religiosidade 194

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Futuro 236 5


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A Vila

Aloísio Azevedo descreveu em “O Cortiço” as péssimas condições dos trabalhadores no final do século XIX, no Rio de Janeiro. As denúncias de exploração e má qualidade de vida que o livro mostra é uma realidade não só na cidade carioca, como também em São Paulo. Os trabalhadores rurais sofreram com a ascensão da máquina por conta da Revolução Industrial, tardiamente chegada ao Brasil, e a massiva onda de desemprego no campo, se viram obrigados a migrar para regiões metropolitanas. O foco da obra do movimento literário Realismo-Naturalismo é o retrato da vida urbana. A injustiça de classes sociais. A classe média que usou da mão de obra de imigran7


tes e cidadãos pobres a trabalharem de forma escravizada para o enriquecimento do burguês, ou seja, o trabalho escravo era a base de sustentação da aristocracia urbana. O grande exemplo do livro é o personagem João Romão que quer conquistar uma imagem na alta sociedade, se aproveita do trabalho escravo ao encontrar uma escrava fugida, Bertoleza. O trabalho assalariado no século XIX era visto como uma forma de sobrevivência, mas em condições totalmente precárias representando uma fase de extrema expropriação do trabalhador que era livre e como forma de elevação social a partir de uma apropriação ilegal dos bens de outras pessoas. Em São Paulo a industrialização começou forte em 1890, com a moeda brasileira desvalorizada, a exportação de café cresceu muito, o que possibilitou aos senhores de engenho investir em outras áreas, como a têxtil. Com um investimento relativamente baixo e um retorno rápido, a cidade foi muito beneficiada por essa indústria, por ter grandes áreas de produção de algodão. Para se abrir uma indústria, o empresário precisa de mão de obra. Por conta das empresas têxteis que ofereciam 8


grandes oportunidades de trabalho, o camponês migrou para a cidade em busca de emprego. Grandes partes da população paulistana, junto com imigrantes europeus, se concentraram na área central da cidade, principalmente no Brás, Bom Retiro, Belém e Mooca. Diante desse cenário, os cortiços se empilharam no centro e as condições de vida dos trabalhadores industriais era baixa. Esses funcionários eram mesclados entre os estrangeiros que fugiam da Primeira Guerra Mundial, que tinham experiência em indústria e os recém abolidos escravos africanos. Em julho de 1917, houve uma paralisação geral da indústria e do comércio no Brasil que ficou conhecida como a “Greve Geral de 1917”, resultado de uma onda de organizações operárias comandadas por sindicatos de inspiração anarquista aliada a uma imprensa libertária, que ficou caracterizada pela maior paralisação grevista da história do país e uma das maiores do mundo. O movimento grevista partiu do cotonifício Crespi, em de São Paulo, e logo se espalhou rapidamente e paralisou a cidade inteira por três dias, contando também como a ade9


são dos trabalhadores do serviço público, a greve chegou a somar a mobilização de mais de 100 mil trabalhadores num período onde São Paulo não possuía sequer meio milhão de habitantes. A Greve Geral de 1917 destaca-se por dois grandes motivos: a primeira grande experiência social de organização operária contra a exploração da burguesia que estimulou uma greve geral no Brasil; e por ter em sua estrutura ideológica, novas concepções políticas, que logo após a greve, em 1921, foi criado o Centro Comunista do Rio de Janeiro que deu as bases para a fundação do Partido Comunista Brasileiro em 1922. No dia 9 de Julho, o primeiro dia de mobilizações, os policiais atacaram os manifestantes que se concentravam em frente à fábrica de tecidos Mariângela localizada no bairro do Brás, e assassinaram um grevista espanhol, José Ineguez Martinez, um sapateiro de apenas 21 anos. No dia seguinte, o velório de Ineguez serviu para a organização de milhares de operários, que em uma dos mais emblemáticos momentos das manifestações do movimento operário, foram para as ruas do centro da cidade de São Paulo e ficaram em total silêncio. 10


Esse movimento mostrou que a força trabalhista podia lutar e defender seus direitos de forma livre e com os mesmos objetivos, impactando fortemente a sociedade. Apesar de ser uma industrialização recente, a Greve Geral atingiu o tamanho que teve por conta dos operários imigrantes italianos e espanhóis, que já haviam participado de movimentos trabalhistas na Europa e não concordavam com o regime de trabalho imposto a eles. O fim da greve foi decidido num comício no Brás, em 16 de julho. Todas as reivindicações foram aceitas. Também em 1917, o médico e industrial Jorge Street terminou de construir no Brasil, no bairro do Belenzinho, a fábrica de tecelagem Cia de Tecidos de Juta, que começou a ser construída em 1912. Além da fábrica, Street construiu ao seu redor uma vila operária para seus funcionários, a Vila Maria Zélia. A vila recebeu este nome em homenagem à filha primogênita de Jorge Street que falecera de tuberculose no dia 12 de setembro de 1915, com apenas 16 anos, quando a vila ainda estava sendo construída. Ela está sepultada no túmulo da família localizado no Cemitério da Consolação.

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Jorge Luís Gustavo Street nasceu a 22 de dezembro de 1863, no Rio de Janeiro. Street formou-se em 1886 pela Escola de Medicina do Rio de Janeiro e em seguida fez cursos de aperfeiçoamento em Paris, Berlim e Viena. Quando voltou ao Brasil, exerceu medicina no Rio de Janeiro e em Petrópolis. Até que em 1894 entrou no ramo industrial, recebendo de seu pai as ações da fábrica de sacaria de juta, no Rio de Janeiro.

O médico voltou da Europa com ideias revolucionárias na cabeça. O movimento dos trabalhadores que ele presenciou no começo do século XX na Alemanha e na Espanha, que viriam a ser praticamente as mesmas origens do movimento grevista no Brasil, fez com que suas ideias lhe trouxessem a reputação de socialista, por sempre se preocupar com o proletariado. 12


É interessante analisar que durante um período em que os trabalhadores lutavam por melhores condições de trabalho, se empilhavam em casas improvisadas para baratear a moradia e se viam desamparados pelos seus empregadores, a Vila Maria Zélia ia totalmente ao sentido contrário. O terreno era do Coronel Fortunato Goulart. Ocupava um espaço que ia desde as proximidades da atual Avenida Celso Garcia até às margens do Rio Tietê, uma área com 214.000 metros quadrados. A ideia era construir casas para todos os moradores da fábrica, uma escola feminina e uma masculina, dois armazéns de compras, uma igreja, uma área para eventos, quadra de esportes, salão de festas, uma praça e até um ambulatório. E tudo isso foi feito. É válido dizer que a Vila Maria Zélia foi o primeiro lugar em que operários tiveram tantos recursos em prol dos moradores. Street se preocupava com o bem estar dos seus funcionários, queria para eles uma realidade diferente do que São Paulo oferecia aos trabalhadores industriais. Portanto, importou da França o arquiteto Paul Pedraurrieux. O francês optou por construir casas tipicamente inglesas do século XX, 13


projetando não só as moradias, mas toda a planta da vila.

Planta original da Vila Maria Zélia, por Paul Pedraurrieux

A vila precisava abrigar 2500 funcionários que trabalhariam na filial da Cia de Juta, que já estava construída ao lado das novas edificações. Para isso, foram construídas casas de diferentes tamanhos para abrigar as diversas famílias dos trabalhadores. Contava com 198 casas de seis diferentes tamanhos que variavam entre 75m² e 110m². As famílias mais numerosas e com mais operários ocupavam as casas maiores. Já os administradores da fábrica e os solteiros, ocupavam as casas menores. As moradias eram de boa qualidade, com assoalhos, portas e janelas em pinho de riga, chuveiro 14


elétrico, água encanada e calçamento nas ruas. Uma cinta de concreto percorre todos os imóveis da vila, tão resistente que seria possível construir um prédio de dez andares em cima delas. Na parte superior das fachadas das casas existem a eira e a beira, que segundo Street, as artimanhas arquitetônicas dariam continuidade às famílias dentro das casas. Todos os tijolos que construíram as paredes da vila veem estampados com o desenho de uma chave, que é uma escultura da mesma que abre todas as portas da vila. Mesmo com todas as chaves iguais, nenhum morador jamais entrou numa casa que não fosse a sua. O aluguel das casas era descontado do salário dos trabalhadores, sendo entre 45$00 a 50$00 (casas similares a essas em outros lugares de São Paulo poderiam ser alugadas por 150$00 a 200$00), segundo o arquivo de acervo da vila. Já a água e a luz eram pagas pelos moradores, mas com valores simbólicos. Esse tipo de benefício ao trabalhador era uma novidade ímpar, por não existir leis trabalhistas ainda. Jorge Street era mais do que um patrão para as famílias que moravam na vila. Ele era como um grande pai. Todos os finais de semana, eram levadas frutas e verduras 15


frescas para que os moradores não precisassem sair da vila nem para fazer feira. No final do ano, a família proprietária viajava para a Europa e trazia na volta brinquedos para todas as crianças da vila. Bonecas de porcelana para as meninas e carrinhos de madeira para os meninos. Nos prédios principais localizados na entrada do terreno eram instaladas, de cima para baixo da planta original, um armazém, uma farmácia, a igreja na edificação central, e na última, uma sorveteria, uma doceria, um bar e pequenas fabriquetas que produziam chapéu de feltro e sapatos. No andar de cima do último prédio haviam duas salas, do qual em uma se locava um salão para festas de casamento e batizados, e a outra se encontrava um restaurante para os trabalhadores solteiros da fábrica, já que os casados jantavam em casa. Já a fábrica Cia de Tecidos de Juta era enorme nos números, em suas instalações destinadas a fiação, tecelagem e estamparia de algodão, que possuía no início 2000 teares e 84 mil fusos, além de cerca de 3000 motores elétricos onde o funcionamento tornava a empresa uma das maiores consumidoras de energia elétrica de São Paulo. 16


A festa de inauguração da vila foi feita em presença de políticos, industriais de várias partes da cidade e o Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Duarte Leopoldo e Silva. O cardeal foi responsável pela missa inaugural e abençoou a vila completamente, seguido por uma multidão. A ocupação dos moradores foi feita logo em seguida. Durante uma das grandes greves que a cidade de São Paulo testemunhou, os bancos estavam fechados haviam meses. O dono da fábrica não pode pagar seus funcionários e as dívidas que a vila acumulava por não ter de acesso aos seus depósitos. Então Street decide vender e pagar os débitos que tinha com seus funcionários, por não achar justo que fosse o proletariado a sofrer com as consequências do mercado. Apesar de ser uma das maiores empresas de tecelagem do município, o médico vende os prédios e parte da companhia para a família Scarpa, que comprou todo o terreno em 1924. A vila passa a se chamar Vila Scarpa.

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Logo da Vila Scarpa. Fonte: digitalização do acervo histórico da vila

Revoltados com todas as mudanças que a família Scarpa trouxe para os moradores, principalmente com a mudança de nome de uma identidade daquele local, os trabalhadores decidiram entrar em greve, chamada a Greve do Braço Cruzado. Todos os dias, funcionários iam para a companhia e permaneciam ociosos por todo o dia, até a hora de partir. Durante a posse da família Scarpa, que durou apenas cinco anos, os moradores tinham diversos benefícios que a fábrica garantia, como por exemplo, as mães tinham quatro intervalos de 30 minutos durante o período de trabalho para 18


ir até as creches alimentar seus filhos, segundo prescrição médica dos próprios profissionais da saúde da vila. Mesmo não tendo agradado aos operários o novo nome da vila, ele seria mantido durante todo o período que a família Scarpa ficou como proprietária. Até que em 1929, com a crise financeira que devastou o Brasil e o resto do mundo, a família Scarpa também sofreu com as dificuldades para pagar várias hipotecas. E assim o Grupo Guinle toma posse da vila e reestabelece, o nome original Vila Maria Zélia. O nome voltou graças à amizade que Guinle tinha com a família Street. A mudança para o nome original e a saída do Scarpa foi motivo de uma grande festa da vila. Em 1936, devido a acumulo de dívidas fiscais, a fábrica foi desativada e a vila que era particular passou a ser do Governo Federal. O prédio principal, onde era a fabrica, tornou-se um presidio e ali foram aprisionadas todos os que eram contra o governo, que seriam os comunistas. O historiador, crítico de cinema e militante politico, Paulo Emílio Sales Gomes, e o também historiador e politico, Caio Prado Júnior, foram um dos presos políticos. O local foi apelidado de Universidade Maria Zélia, por ter vários catedráticos e historiadores presos. 19


O presídio permaneceu por oito anos até ser comprada em 1939 e reaberta como a Goodyear, que tombou toda a rua um e metade da rua dois, para aumentar a fábrica de pneus. A partir de 1939 os moradores do local tornaram-se inquilinos, pagando aluguel ao IAPI (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários, atual INSS), até o ano de 1968, quando finalmente os moradores tiveram o direito de comprar os imóveis em que moravam através do Banco Nacional de Habitação. Hoje são poucos os moradores da vila que sabem todo o marco que o lugar tem para a história de direitos trabalhistas. Que é o maior e primeiro exemplo de se criar um ambiente que tenha o trabalho do operário com a importância humanista. Entre várias famílias jovens e recém-chegadas na vila, ainda existe algumas famílias antigas, que guardam em seus lares grandes recordações da época que Vila Maria Zélia era só dos operários. Entre esses personagens, temos Rosaura Amantea do Nascimento, uma simpática mulher de cabelos grisalhos, demostrando a senilidade de seus 82 anos, mas ainda possui uma mente clara de vários acontecimentos e fatos, que viven20


ciou com seus vibrantes olhos verdes, sobre a época de ouro da vila Maria Zélia. Rosaura nasceu na rua 3 (antigamente as ruas da vila eram números, do qual até hoje servem de referência para os moradores), o seu primeiro respiro já foi dentro da vila, que é o lugar que ela mais ama estar até hoje. Sua mãe era uma das operárias de Jorge Street na fábrica Cia de Tecidos de Juta, ela se lembra de ter uma vida confortável com sua família, que teve seus estudos na vila. Na época de sua escola algumas regras já tinham mudado, como meninos e meninas já estudavam no mesmo instituto, mas ainda existia a separação, eram salas só com meninas e outra salas só com meninos, uma grande mudança, já que ela conta que na época de sua mãe, ela estudou em escola apenas para meninas.

Rosaura Amantea do Nascimento há 20 anos

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Mesmo que o ensino era de uma boa qualidade para as crianças da vila e até para crianças que vinham estudar e não moravam por lá, as escolas eram apenas até o fundamental, quando chegavam ao ensino médio, precisavam procurar uma nova escola fora da vila. Hoje, essas históricas construções escolares se encontram em um estado deplorável e quase irrecuperável. Os dois prédios de dois andares construídos um de frente para o outro e que por muitos anos funcionaram como as melhores escolas da região. Sempre preocupado com a qualidade de vida dos moradores, Jorge Street colocou o primeiro sistema de transporte escolar para os estudantes das escolas que ficavam dentro da Vila Maria Zélia. Os avós de Rosaura são uma das famílias que foram trazidas de Sorocaba para trabalhar na fábrica e morar na vila. Quando ela nasceu, a vila já tinha construído parte de sua história, já existiam os comércios, a capela, escola, farmácias, serviços de saúde, e o famoso coreto. Durante os finais de semana, para entreter os moradores, músicas de diversos lugares da cidade se reuniam no coreto da Praça Doutor Street, área de lazer ao ar livre na entrada da vila. 22


As crianças que viveram na época de Street tiveram todos os direitos para crescer de forma saudável e protetora. Ela conta que existiam creches para as mulheres que trabalhavam na fábrica e que tinham filhos crianças e recém-nascidos. Na creche as crianças que ainda dependiam do leite materno eram por suas mães que tinham a liberdade de sair da fábrica quando precisassem amamentar. Quando um casal tinham filhos, automaticamente a família tinha o direito de mudar para uma casa maior com mais quartos, dentro da vila mesmo. “As crianças eram levadas para as escolas com banho tomado, as professoras não precisavam se preocupar com isso”, diz Rosaura, que afirma o bom tratamento que os pequenos recebiam. Ela relembra que sua mãe lhe contava que o casal Jorge Street e sua esposa Zélia eram muito queridos pelo os moradores da vila, pois o casal sempre demostravam preocupação e empatia por seus funcionários, criando um lugar o mais agradável possível para se morar. Rosaura conta que Zélia era vista, na época de sua mãe, como uma grande mulher por todos os moradores, “A Dona Zélia vinha todo dia, ela fazia de tudo na vila”, diz Ro23


saura. “Ela fazia comunhão na igreja, distribuía doces para as crianças, fazia festas comemorativas e até fundou um grupo de teatro. Ela era muito preocupada com os moradores”.

Celina Street (ao centro), filha do casal fundador, numa cerimônia catíólica na capela da vila.

Na época de sua mãe, os problemas com a casa, como as pinturas, encanamentos, arrumar os jardins, todas as necessidades os moradores falavam para Street, que contratava empresas especializadas para arrumar as residências de seus funcionários. Como nessa época o navio transportava o café, para não voltar vazio eles traziam material para 24


construir mais comércios para a cidade. Até chegar a crise e tudo parar, a partir dessa época as coisas na vila começaram a mudar. Já na época que Rosaura que nasceu em 1934, as coisas na vila já funcionavam diferente, pois o Grupo Guinle já havia tomado a posse da vila, e a fábrica já tinha sido desativado devido as dívidas fiscais, e assim a vila é passada para o IAPI. “Eu já peguei a vila diferente, ainda era bom, mas minha mãe que pegou a melhor época da vila, quando Jorge Street ainda estava no comando era muito melhor” conta Rosaura. “Naquela época éramos todos uma grande família, nossos pais trabalhavam juntos, eu e meus amigos estudávamos juntos na escola, tudo funcionava bem entre a gente”. Ela se lembra de sua mãe dizendo que depois da entrada de Scarpa, muitos moradores foram embora por causa da saída de Street, eles não queriam mais estar em um lugar que não tinham mais o fundador da vila, o medo de não ter a mesma garantia de trabalho fez muitos desistirem e irem embora. Mas mesmo com a vila esvaziada, os operários não sofreram com a demissão até a fábrica fechar. Em relação 25


as moradias dos operários, depois do fechamento da fábrica não perderam as suas casas, quando conseguiram o direito em 1969 de virarem suas casas próprias, muitos resolveram vender, alugar ou ficar na casa, o grande exemplo é própria mãe de Rosaura que nunca saiu da Vila Maria Zélia até seu falecimento em 1993. Scintea Ramos Amantea, mãe de Rosaura, era uma das principais personalidades “das antigas”. Durante uma visita de fotografas à vila, indo em busca de fotos para expor num livro sobre os antigos imigrantes da industrialização, com patrocínio da Caixa Econômica Federal, a anciã foi uma das escolhidas pela profissional. Scintea teve uma ideia que mudou o rumo do trabalho feito na casa, e ganhou a capa do livro, que foi sentar nos móveis antigos de seu quarto, com suas rugas e costas curvadas, segurando autoretrato de sua juventude em mãos.

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Foto responsável pela capa do livro de imigrantes da Caixa.

Um ano antes da morte de sua mãe, a vila é tombada como patrimônio histórico pelos órgãos CONDEPHAAT e CONPRESP, sob a justificativa de que a vila possui bens culturais de interesse histórico, arquitetônico e social. E assim ficam tombados o conjunto de imóveis situados na Vila, pela sua representatividade como uma importante vila operária. Mas após o tombamento, não houve preocupação por parte do Estado em restaurar os prédios, pois faltam verbas. Os moradores mais antigos, como Rosaura, não gostaram do tombamento, por não consultaram os moradores antes de tomar uma decisão tão influente no cotidiano das famílias. 27


Os anos sem tombamento pelos órgãos de defensão do patrimônio histórico permitiu que muitos dos moradores descaracterizassem suas residências. Mas mesmo hoje andando pela vila, ainda se encontra algumas casas em obras, algumas com construções bastante próximas ao original, mas são uma minoria dos imóveis que permanecem originais. Os prédios mais originais da vila são, ironicamente, os prédios abandonados pelo INSS que jamais sofreram alterações, e são poucas casas que ainda conservam as características da vila Maria Zélia da época de Jorge Street. A única casa que permanece exatamente como foi construída é a que foi usada no cenário do filme “O Corinthiano”, de Mazzaropi, em 1966.

Maquete da única casa sem alterações, usada nas gravações de “O Corinthiano”, de Mazzaropi em 66.

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Muitos dos moradores antigos guardam em suas casas arquivos como fotografias, recortes de jornal, documentos, folhetos, tudo relacionado à vila Maria Zélia durante as ultimas décadas. A paixão do mais antigos pela vila é algo incrível de observar, todos eles guardam lembranças boas e ruins do lugar que é o seu lar a tantos anos. A portuguesa Maria Gilda Motta veio para o Brasil com 27 anos, conheceu seu marido já falecido há 10 anos, Raul Volpi Motta, que morou na Vila Maria Zélia desde criança e sempre dizia que não trocaria esse lugar por nada. Seu marido foi um morador muito querido e também conhecido por ter um dos mais ricos acervos sobre a história da vila. A sua paixão por esse lugar sempre foi grande, que até apareceu em jornais e revistas dando entrevistas sobre morar em uma vila histórica. A senhora Maria Gilda relembra com alegria como a vila na época que veio morar era unida e faziam muitos projetos, que sente falta do tempo dos primeiros moradores e da energia de seu marido “Na minha época era tudo mais tranquilo, antes um ajudava o outro, era como se fossemos uma família” conta Maria Gilda. Raul Volpi está eternizado junto com outros morado29


res antigos da vila, com um depoimento feito em 2004 para o“Livro Da Memória Vila Maria Zélia” um projeto idealizado pelo Grupo XIX de Teatro. Volpi conta em seu depoimento que veio para vila em 1932 com a sua familia de descedência italiana, quando tinha apenas oito anos, estudou no Grupo Escolar, até seu pai ter um derrame e precisar tomar tanto remedios que acumulou dívidas em uma farmácia na rua Catumbi, que curiosamente era concentrado um grande número de moradores espanhois, italianos e portugueses. Seu pai logo faleceu em 1937, e Raul precisou começar a trabalhar com apenas dez anos para o farmacêutico, até conseguir pagar os débitos de seu pai. Quando já estava mais velho, ele trabalhou em inúmeros lugares na região leste da cidade de São Paulo. Ele relembra as atividades que gostava de fazer durante sua juventude nos arredores da vila “Eu pescava, nadava e andava de barco no rio Tietê” disse Raul para o depoimento.

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Maria Gilda Motta e seu marido Raul Volpi

O Livro Da Memória Vila Maria Zélia também tem um interessante depoimento de uma moradora antiga. Seu nome é Margarida Fusco Kapelli, que há 73 anos mora na vila. Sua historia com a vila é rodeanda de vai e vem. Ela morava na rua Bering, no Brás, e desde muito nova era tecelã como todas as suas irmãs. Ela trabalhou em uma fábrica de tecelagem na Rua Bresser, até se casar em 1942 com seu primeiro marido, que era morador da vila, assim ela se mudou para a rua 4. Seu primeiro marido morreu no campo de futebol, de um ataque fulminante no coração. Depois de sua morte, 31


Margarida foi embora da vila muito abalada e voltou a morar com sua familia. Somente após quatro anos, ela se casou novamente e por coincidência seu marido também morava na vila, e também na rua 4. Ela teve seu primeiro filho, que estudo no Grupo Escolar, como Raul Volpi. Ela relembra que hoje quando seu filho a visita, ele sempre fala de como é triste ver a sua escola tão abandonada. Margarida lembra no relato que morar na vila sempre foi muito bom, mas que antigamente era um lugar mais tranquilo e não tão abandonada como é nos dias de hoje “Nossa vidinha era boa, porque agora, não tá ruim, mas não era como antigamente” conta ela “Antes era melhor, tudo era mais vivo”. Ela lembra de passear quase todo final de semana para fazer piquenique embaixo de uma grande paineira, andava de barco e nadava no rio Tietê e o que ela mais gostava era de ir ao cinema na rua Catumbi. O grupo XIX de teatro faz de tudo para que a vila Maria Zélia volte a ter uma visibilidade. O jeito de fazer isso é criando um acervo sobre a história da vila operária e seus moradores mais antigos, além de focar em atividades voltadas a cultura. O grupo está na vila desde 2004, e mantém em cons32


tante atividade os prédios históricos que estavam completamente abandonados há quase 40 anos. O grupo tem conseguido manter a sua própria pesquisa e repertório somente por meio de editais públicos na área de artes cênicas. O teatro criou uma parceria com a Associação Cultural Vila Maria Zélia, que fazia enormes esforços para chamar atenção, realizando atividades culturais. Com essa parceria iniciou-se o processo de diálogo com os órgãos públicos, desse jeito, tiveram condições práticas e financeiras para, junto com os moradores, reabrir, limpar e conservar estes prédios abandonados e transformá-los em centros de atividades culturais do grupo. Infelizmente, até hoje os prédios ainda estão aguardando restauração. O principal foco do grupo de teatro é a vocação cultural, através de iniciativas de criação desses espaços que possibilitará para os moradores agir e ajudar na discussão com poderes públicos sobre a preservação e revitalização deste patrimônio histórico nacional. O grupo XIX conta como o redescobrimento desses espaços na vila foi também o reencontro da memória e mudou radicalmente a relação dos moradores da vila com os prédios antes abandonados. “Antes o 33


abandono era motivo de vergonha e medo, hoje os moradores vêm espaços como um lugar para abrigar suas atividades sociais”. Atualmente acontecem duas peças semanais na escola de meninas, por estar menos depredada que a escola de meninos. A apresentação “Hygiene” trata da maneira como as mulheres eram vistas na época em que a vila foi construída. Já a outra apresentação, “Hysteria” encena um estupro dentro da destruída escola. Além dessas duas composições, existem diversas outras obras que são apresentadas nos antigos prédios. A Associação Cultural concebeu um museu com a memória da Vila Maria Zélia em parceria com o grupo XIX. Além da parte histórica, o museu também abriga exposições temporárias de artistas que vivem na vila ou que fazem um trabalho que dialoga com o lugar. O museu busca todos os tipos de registros, coletando e organizando um acervo grande e histórico, que vem ganhando forma impressa, iconográfica e audiovisual, quando não, dramatúrgica. Um dos trabalhos expostos na vila foi a planta de promissores arquitetos para a restauração das escolas. Os jovens Bruno Vitorino e Adriana Medeiros receberam menção 34


honrosa entre os projetos premiados pelo 7º Prêmio Jovens Arquitetos de 2005. Para a geração jovem da vila, foi uma grande descoberta esses espaços históricos através de atividades artísticas, sobretudo a partir da realização das temporadas teatrais. Milhares de pessoas começaram a ter mais contato com este patrimônio desconhecido por grande parte dos paulistanos. João Pereira morava num casebre em São Roque, um homem alto que ganhou o apelido de “João Grandão” por conta de seus 1,92 metros de altura. Ele sempre gostou de tear, tanto que um ganhou um tear manual para poder trabalhar. João tinha muita vontade de trabalhar em uma fábrica que tivesse um tear elétrico, pois achava incrível a tecnologia desse tipo de tecelagem. Em 1919, veio à São Paulo atrás dos rumores sobre a nova fábrica que se inaugurava com maquinaria estrangeira, para poder ver de perto os teares que sonhara conhecer. Conheceu o gerente da fábrica Cia de Tecidos de Juta, aproveitou o momento para mostrar seus os seus tecidos que fez no tear manual e pediu para entrar na fábrica para ver, o gerente deixou. Quando entrou na fábrica, logo se apaixonou pelo lugar, ele não perdeu tempo e deixou 35


o seu contato, para que se tivessem interesse em um dia em contratá-lo. Dois anos após a inauguração da vila, João recebeu uma carta. Era o gerente da fábrica de tecelagem, convidando-o para trabalhar. Em 1919, sem pensar duas vezes, ele veio com sua família para a Vila Maria Zélia e morou na Rua 2. Ele ficou por lá até 1928, até se mudar para a Rua 4, da qual nunca saiu. Ele tinha uma verdadeira idolatria por Street, sempre falava que era o melhor patrão. Street todo final de semana distribuía de graça verduras, legumes e frutas para seus funcionários e verduras, para não se preocuparem com a alimentação e na época de natal, trazia muitos brinquedos para as crianças de seus funcionários. Ventura Ferreira Pinto é o filho de João Pereira. Ele era conhecido na vila por sempre estar usando um chapéu. Ventura foi vidreiro a vida toda, trabalhou por 42 anos na Cristaleria Cruzeiro. Em 1933, ele se casou e teve seu filho Edelcio Pinheiro, que até hoje mora e trabalha na vila e é conhecido com Seu Dedé. 36


Seu Dedé é a cara da Vila Maria Zélia. Acumula não menos que 20 entrevista a diferentes revistas no Brasil, já recepcionou estudantes estrangeiros, faz o intermédio de relações política com os interesses dos moradores para a vila e é um eterno militante, em defesa da restauração dos prédios abandonados. Ele faz parte da Associação Cultural Vila Maria Zélia e conta como foi importante o Grupo XIX de Teatro estabelecer um centro cultural na vila “O grupo do teatro foi uma benção de Deus, hoje todo fim de semana é uma festa aqui” disse Seu Dedé “Até de sábado tem uma peça sobre os primeiros anos da Vila Maria Zélia”.

Edelcio Pinheiro (Dedé), zelador da Vila Maria Zélia

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Ele se lembra de ouvir de seu avô quando tinha sete anos “Tu pensa o que rapazinho? Até monarca europeu veio ver se a vila existia mesmo”, por muitos anos ele ficou curioso com isso que tinha ouvido, até descobrir depois de muito tempo que quem visitou a vila foram o Rei Alberto I da Bélgica e Rainha Elizabeth da Bélgica. Ele relembra quando houve uma visita na vila em 1998 de alunos de arquitetura e urbanismo de Bruxelas, do qual Dedé recebeu um presente desses alunos: um álbum de fotos da época que os monarcas que visitaram a vila, isso o fez chorar por lembrar de seu avô lhe contando sobre os monarcas. As conversas de seu avô lhe despertaram tanto interesse que o estudo sobre a história da vila se tornou o maior hobby de sua vida. Consequentemente, os estudos sobre o doutor Jorge Street. Segundo Dedé, houve uma proposta provinda da Clovis Bevilacqua para pedir um empréstimo para pagar todos os funcionários da vila em vez de desfazer-se dela. A resposta do médico foi expulsar Bevilacqua da sala. Edelcio também aprendeu sobre a arquitetura do ponto histórico. As pinhas de riga, por exemplo, madeira usa38


da para fazer os esqueletos das edificações, é um tipo de madeira que não pega cupim, pois é muito amarga para o gosto dos insetos. Por isso, muitos dos móveis que eram usados no armazem e todos os armários da farmácia permanecem intáctos, mesmo depois de quase 100 anos. Lembrada com amor pelo Dedé e também pelos moradores, Éride Albertini foi a fundadora da Associação Cultural da vila. A primeira a defender o patrimônio histórico dos antigos prédios, mesmo antes da atenção recebida pelo CONDEPHAAT. Vítima de um cancêr no sistema digestivo, a moradora morreu com 63 anos. Deixou para a vila, além da associação, diversas atividades culturais elaboradas dentro dos prédios em decadência e um grupo de coral. O sonho de Dedé era poder ver os prédios históricos da vila ganharem vida em outras funções. Para isso, procurou Luiza Erundina para buscar investimento, pois ela havia conseguido o suficiente para restaurar a Casa das Rosas, na Avenida Paulista. Erundina indicou o caminho e Pereira o seguiu com atenção. Entrou em contato com a Comunidade Europeia no Brasil. Após três meses, um carro bonito apareceu um dia na vila procurando seu Dedé, todos estrangeiros, se 39


comunicando pelo tradutor. O zelador contou toda a história dos prédios, indicou para o que servia cada um, as informações que já havia recebido por todos estudiosos que faziam pesquisas pela vila e os europeus se encantaram com as edificações. Aproximadamente em 2000, a Comunidade Europeia entra em contato novamente com o seu Dedé para informar que estava a disposição do governo municipal e estadual uma verba de 17 milhões de euros para a restauração de todos os prédios públicos dentro da vila. O caso foi noticiado por toda a mídia. Edelcio deu entrevista para diversos portais contando de sua mais nova conquista, os moradores se entusiasmaram com a ideia de ter dentro da sua vila um pólo cultural e ponto turístico, o destino das escolas e do armazém já estava certo: iria ser uma escola de culinária do Centro Paula Souza. O lugar onde anteriormente ficavam as fabriquetas e as lojinhas daria espaço a um enorme teatro com 600 lugares levando o nome da vila, com direito a mezanino. O atual presidente, Luis Inácio Lula da Silva enviou seu Ministro da Previdência Social para passar os imóveis às mãos da secretaria do município de São Paulo, para que as 40


obras ocorressem com fiscalização municipal. Paulo Bastos, arquiteto da secretaria, planejava junto com seu Dedé todas as mudanças que poderiam mudar de vez o destino que antes era certamente o desmoronamento dos prédios antigos. Até o cargo de curador de um memorial destinado a vila seria entregue para Edelcio, com promessas de salários altos para a função resignada. “O secretário de cultura, um tal de Kalil, chegou pra mim e falou: seu Dedé, o senhor vai ser o curador e terá proventos”, lembra o zelador. Por meia década o dinheiro ficou estagnado nas contas públicas, pois apenas seria mexido se as obras para restauração da vila fossem aprovadas e enviadas a Comunidade Europeia, que ainda detinha o dinheiro. Os estrangeiros tinham dado o prazo de cinco anos, mas estenderam mais dois anos, na esperança que a vila seria finalmente restaurada. Com a crise na Europa apertada, o dinheiro foi enviado de volta e nenhuma obra na Vila Maria Zélia foi iniciada. “Eu e o Paulo Bastos choramos muito nesses bancos dessa praça olhando para esses prédios abandonados, pensando no que eles poderiam ter sido”, diz Dedé, com olhos cheios de mágoas. Segundo ele, as obras não foram nem iniciadas 41


porque “isso não dá voto”. Em fevereiro de 2012 o arquiteto que ajudava o zelador da vila a tentar novas conquistas para os prédios abandonados morreu, levando com ele a esperança de Edelcio em algum dia ver os prédios como fora lhe prometido. “Menina, essa parte eu quero que você coloque no seu livro. Essa é a janela em que eu nasci, da casa que eu vivi a vida inteira, e aqui vou morrer”, diz Dedé.

Janela da esquerda é o quarto do seu Dedé, da casa em que ele mora desde que nasceu.

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Atualmente, escombros da escola de meninas.

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À esquerda, armários da farmácia intactos. Espaço das fabriquetas à direita.

Carolina Farias 14101303 Isabella Jarrusso 14101002 Vinicius Brilhante 13200412 AN5JN 44


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