CICLOTURISMO
UMA SAGA DE
NORTE A SUL CONSIDERADA UMA DAS MAIORES EXPEDIÇÕES CICLÍSTICAS DO MUNDO, O TOUR D’AFRIQUE CONVIDA SEUS PARTICIPANTES A COMPLETAR UMA JORNADA ÉPICA POR TODO O CONTINENTE AFRICANO Por Paula Ricupero
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CICLOTURISMO
I
Imagine cruzar a África de ponta a ponta, tendo que pedalar por cerca de 12 mil km, atravessar dez países diferentes, viver experiências únicas de contato com a natureza selvagem e com as mais variadas culturas, e ainda ajudar a proporcionar uma vida melhor a muitas pessoas carentes. Esta é a proposta do Tour D’Afrique, uma das maiores expedições ciclísticas do mundo que ocorre anualmente, desde 2003, no continente africano. O desafio consiste em pedalar do Cairo, no Egito, até a Cidade do Cabo, na África do Sul. O percurso, que dura quatro meses, passa por todas as possibilidades de cenários, que vão desde lugares históricos e sagrados a desertos de areia, montanhas, savanas, cidades grandes e populosas e também pequenos vilarejos
marcados pela extrema pobreza. A viagem atrai ciclistas do mundo todo, de todos os gêneros e idades, e com as mais variadas motivações, como o desejo de superar uma depressão ou um trauma, arrecadar dinheiro em prol de uma causa ou até mesmo a simples vontade de viver uma grande aventura. O Tour D’Afrique foi criado com o objetivo de oferecer aos ciclistas um percurso diferente, que fosse aberto a qualquer interessado e que conseguisse tirar a visão negativa que as pessoas têm da África. Para dar algo em retorno ao continente, a organizadora do evento criou também a Fundação TDA, que doa bicicletas para ONGs, instituições de caridade e profissionais da saúde dos países por onde passa o tour.
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A aventura começa muito antes de o ciclista embarcar no avião rumo ao Egito. Além de o trajeto ser muito longo e exigir certa preparação por parte do aventureiro, uma série de detalhes técnicos e burocráticos devem ser levados em conta antes de começar a expedição. De acordo com o jornalista Alexandre Costa Nascimento, 32, primeiro brasileiro e representante sul-americano a participar do Tour D’Afrique, o ideal é começar a se preparar com um ano de antecedência. “Com esse prazo a pessoa pode fazer com tranquilidade sua reserva de participação, solicitar os vistos, tomar todas as vacinas, se preparar fisicamente para o desafio e adquirir todos os equipamentos necessários.” Com relação a essa etapa preparatória, ele explica que os organizadores ajudam os ciclistas em cada processo. “Possuímos, ainda, a vantagem de ter um brasileiro dentro da organização que nos dá o caminho das pedras em cada uma dessas fases.” Importante saber que, dos dez países percorridos durante o trajeto, apenas dois exigem visto de turistas brasileiros, que são a Etiópia e o Sudão, sendo este último um país muito fechado e, portanto, bastante burocrático. “No formulário de solicitação precisei informar até mesmo a minha religião”, comenta Alexandre sobre o rigor do processo. “Nos demais países você consegue o visto no próprio posto de fronteira ao chegar lá.” Com relação ao preparo físico, apesar de o desafio ter um nível de dificuldade elevado, Alexandre explica que a maior exigência é, sem dúvida, psicológica. “É preciso superar muito mais que apenas a alta quilometragem do percurso, então acredito que seja 70% psicológico e apenas 30% físico. Não é fácil acordar sabendo que você vai ter que pedalar 220 km em um dia, como fizemos em Botsuana, ou encarar um frio de 0°C, como o que enfrentamos na Etiópia, ou lidar com um calor de 43°C, que peguei no deserto do Sudão.” Além disso, se o ciclista achar que não consegue encarar os 12 mil km, ele pode escolher fazer apenas um ou outro trecho da travessia.
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Fotos Divulgação/Tour D’Afrique
PREPARATIVOS PARA A VIAGEM
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CICLOTURISMO “A TROCA CULTURAL ENTRE OS PARTICIPANTES É MUITO INTENSA E INTERESSANTE. NA EDIÇÃO DA QUAL PARTICIPEI, POR EXEMPLO, HAVIA CICLISTAS DE 13 NACIONALIDADES DIFERENTES” A ROTINA DA EXPEDIÇÃO
VEJA OUTROS REGISTROS E UMA ENTREVISTA EXCLUSIVA [prologo.ativo.com/mobilidade]
Todos os dias pela manhã, enquanto os ciclistas tomam o café da manhã oferecido pela organização, uma planilha com a rota do dia é passada ao grupo. Os caminhões de apoio recolhem, então, as barracas e a bagagem pesada dos participantes, que seguem carregando em suas bicicletas apenas o necessário. Ao longo do trajeto, os carros vão passando pelos ciclistas para checar se estão todos bem, abastecer sua reserva de água, oferecer uma fruta ou até mesmo dar uma carona até o próximo acampamento caso você precise abandonar o trecho. “A organização é impecável e o nível de profissionalismo é excelente, mesmo diante das maiores dificuldades. Sempre tem um caminhão chamado de sweeper que vem varrendo o pelotão para não deixar nunca ninguém para trás, pois uma das regras da expedição é nunca pedalar depois do pôr do sol”, observa Alexandre. Ele conta que, além da ajuda da equipe organizadora, os próprios ciclistas apoiam uns aos outros. “A troca cultural entre os participantes é muito intensa e interessante. Na edição da qual participei, por exemplo, havia ciclistas de 13 nacionalidades diferentes e era muito interessante conversar sobre suas motivações e ouvir suas histórias. Os laços que você cria ao longo da viagem são muito fortes e ficam para a vida inteira”, comenta. No seu grupo, o mais novo tinha recém-completado 18 anos e o mais velho era um alemão de 70. Nesse intervalo havia pessoas de todos os perfis, como homens, mulheres, jovens, aposentados, casais de noivos que quiseram viver uma aventura antes de casar, entre outros. Uma das integrantes do grupo era a britânica Sue Shuttleworth, 59, que decidiu fazer a expedição após ter que cancelar uma viagem ciclística pela Europa. “Quatro meses antes da viagem meu marido teve pneumonia e precisou voltar para casa. Em busca de alguma outra aventura que eu pudesse fazer sozinha, encontrei um anúncio em uma revista sobre o Tour D’Afrique e resolvi me inscrever”, conta ela, que já fez diversas travessias de bicicleta, carro e até de camelo. “Eu sabia que não era uma ciclista muito rápida e ninguém no grupo esperava que eu conseguisse pedalar tantos quilômetros após minha performance nas primeiras semanas. Nem eu, para ser honesta”, conta ela, que aguentou firme todo o percurso e só precisou recorrer ao caminhão de apoio e pegar uma carona no último dia de viagem.
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DESBRAVANDO SOLO AFRICANO
A maioria das pessoas fala da África como se o continente fosse um único país, quando na verdade são mais de 50 e cada um com uma imensa diversidade. Em cada um dos dez países pelos quais passa a expedição, os ciclistas conseguem vivenciar experiências diversificadas em relação a solo, altimetria, clima e também à cultura local, o que faz com que todos os dias sejam únicos. “Você passa por todas as possibilidades existentes de terreno: asfalto bom e ruim, com ou sem areia, pedras e espinhos; estradas sem pavimento; areia dura, fofa e molhada. Só não pedalamos mesmo na neve”, brinca Alexandre. Na Tanzânia, país extremamente chuvoso, o grupo enfrentou muita lama, a ponto de ter as pernas afundadas até a canela em alguns trechos. Era tanta lama que todos os caminhões de apoio atolaram. Já a Etiópia, por ser uma região montanhosa, abriga um dos trechos mais difíceis da expedição. Em uma das etapas é preciso cruzar o Desfiladeiro do Nilo Azul, em que o ciclista desce 1.200 metros e, em seguida, sobe pedalando a mesma distância e inclinação. “Na semana que pedalamos no país, a altimetria acumulada foi equivalente à altura do Everest. É como se tivéssemos escalado a montanha mais alta do mundo pedalando.” Outro trecho de grande desafio foi o deserto do Sudão, onde o grupo teve de enfrentar uma tempestade de areia de proporções colossais. “Na hora do almoço começou uma ventania que foi se intensificando até que, de repente, formou-se uma cortina de areia e todo o horizonte ficou vermelho. A visibilidade ficou péssima e era muito difícil respirar”, relembra.
INÍCIO DE UMA VIDA NOVA
Quando você preenche o formulário para participar do Tour D’Afrique, a organização logo manda um aviso: uma vez que você vai para a expedição, nunca mais será o mesmo. “E é verdade, pois a África te transforma totalmente. Você ganha muito em cultura, tem um contato muito próximo com a natureza selvagem, visita lugares históricos, presencia fatos marcantes e depara com inúmeras paisagens maravilhosas”, concorda Alexandre, que após a viagem lançou o livro Mais que um Leão por Dia, em que conta cada aventura vivida durante a expedição. Na opinião dele, um dos pontos mais marcantes da expedição é o contato humano que o ciclista faz com a população local. “Conhecemos inúmeras culturas diferentes, porém todas possuem um traço em comum que é a receptividade, o carinho e o calor do povo africano. Quando viam a bandeirinha do Brasil no meu uniforme, todos queriam conversar, saber minha história e falar de futebol. O brasileiro tem um poder simbólico muito forte em todo aquele continente. Teve um momento em um dos acampamentos em que comecei a tocar bola com um menino e, aos poucos, foram aparecendo mais crianças até que, de repente, havia mais de cem meninos e meninas brincando de futebol”, relembra ele emocionado. “Em cada lugar que passava e recebia um sorriso era como se estivesse ganhando um prêmio. Esses momentos faziam valer a pena cada esforço e sacrifício que você enfrentou no dia.”
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