Scholem Aleichem: uma vanguarda pedagógica
Vinte e cinco anos depois de encerrar suas atividades, o pioneiro Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem mantém-se como referência para centenas de ex-alunos e profissionais da educação. Por Lilian Starobinas
Ahistória do Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem é um capítulo ainda pouco estudado na trajetória da comunidade judaica de São Paulo, apesar da riqueza dessa experiência e da influência que exerceu em outras iniciativas pedagógicas no Brasil. Fundado em 1949, o gibsa buscava a d isseminação dos ideais antifascistas e progressistas no cenário social brasileiro, por meio de uma educação pluralista e inovadora, perfil que manteve até encerrar suas atividades, há 25 anos.
Fruto da intensa atividade dos judeus progressistas em São Paulo, a escola surgiu pela necessidade de criar espaços que refletissem seus valores e dialogassem com a sociedade a seu redor. É, portanto, repleta de episódios que apontam para o compromisso com a cultura judaica, em sintonia com a cultura brasileira. Bem definiu num discurso o professor José Sendacz, personagem chave na orientação do perfil judaico da escola, o desafio que tinham pela frente: “Encontrar a síntese, entrelaçar judaísmo e brasilidade na formação da alma juvenil. (...) Essas são as tarefas da escola progressista israelita brasileira neste país”.
Estas palavras resumem, de forma singela, uma proposta educacional de 32 anos de atividade ininterrupta, que deixou marcas inconfundíveis na comunidade judaica de São Paulo, e cujo legado pedagógico ainda se faz presente nas melhores práticas educacionais do país.
Combate ao fascismo O fim da 2ª Guerra Mundial e da ditadura do Estado Novo, em 1945, proporcionou um momento de grande vitalidade para o judaísmo progressista no Brasil, dado o prestígio das forças principais de resistência e combate ao nazismo. A construção do Instituto Cultural Israelita Brasileiro ( icib ), mais conhecido como Casa do Povo, foi a materialização de uma homenagem aos combatentes do fascismo. Ao
Fruto da intensa atividade dos judeus progressistas em São Paulo, escola surgiu pela necessidade de criar espaços que refletissem os seus valores e dialogassem com a sociedade ao seu redor
invés de um memorial estático para contemplação, o icib se estruturou como um centro de produção, reflexão e fruição de idéias e linguagens artísticas. O prédio erigido em 1953, especialmente para esta finalidade, foi projetado pelo arquiteto Ernesto de Carvalho Mange. Milhares de pessoas estiveram na inauguração do
arrojado edifício da rua Três Rios, no bairro paulistano do Bom Retiro.
A cultura ídiche estava presente nas casas e nas ruas do Bom Retiro. Gerações de imigrantes mantinham o idioma na educação de seus filhos, na comunicação com parentes no exterior, nos encontros sociais entre amigos. A partir de 1946, quando foi suspensa a proibição do uso de línguas estrangeiras, o ídiche voltou a circular com mais liberdade em jornais como o Nossa Voz e nos programas de rádio. O esforço de restaurar a vitalidade da língua por meio de suas expressões artísticas –teatro, literatura e música – estava ligado à compreensão de que a destruição na Europa tinha aniquilado milhares de vidas, bem como colocado em risco uma forma de representar e vivenciar o mundo.
“A Casa do Povo e a escola surgiram para reunir a população judaica que não se identificava com uma existência religiosa”, afirma Marcos Ajzenberg, aluno da segunda turma do Scholem e atual presidente do icib. No currículo escolar, a ênfase era dada à história do povo judeu, à literatura ídiche e ao domínio do idioma. As histórias da Lererin Tzipe, a talentosa professora Cecília Althousen, compuseram o repertório de centenas de alunos. A celebração das festas judaicas ressaltava o caráter combativo e os valores de liberdade associados a uma leitura histórica da tradição. Segundo Jacob Frydman, em Nossa Voz, em 1954:
“Precisamos educar as novas gerações judias no Brasil como verdadeiros judeus –
que tenham compreensão e conhecimento da nossa história e tradição, que se estendem como longa corrente das lutas de liberdade, desde os tempos de Judá Macabeu até os heróis do gueto (...). E, ao mesmo tempo, educá-los como verdadeiros cidadãos brasileiros, que tenham alto as aspirações humanitárias do povo brasileiro”.
Como Sendacz, Frydman tinha grande envolvimento com o icuf (Idisher Cultur Farband), o movimento internacional em prol da cultural ídiche. Fundado em 1937, em meio ao I Congresso Internacional de Cultura Judaica em Paris, respondia com medidas práticas ao clima fascista de intimidação cultural. Saiu de lá a determinação de criar um conjunto de instituições onde a cultura ídiche encontrasse condições de florescimento e disseminação: centros de cultura, escolas e clubes para articular os judeus que se identificavam com as causas progressistas e semear nas novas gerações uma mentalidade universalista, a sensibilidade às questões locais e internacionais, a mobilização à luta pela paz e pela igualdade entre os povos.
Universalismo X Sionismo
A glorificação do ídiche e a notável ausência da língua hebraica ajudam a entender, por outro lado, o que levou à fundação de mais uma escola judaica na cidade de São Paulo. Recém criado o Estado de Israel, era intenso o debate sobre a adesão às posições sionistas, e o Scholem diferenciava-se pelo questionamento desse modelo. Há registros de celebração do 29 de Novembro, dia em que se votou na onu a criação do Estado, e o hino de Israel era cantado em várias programações. No entanto, outros conteúdos associados à educação sionista, como conhecimento da geografia e valores patrióticos, história do sionismo e literatura hebraica, não tinham lugar numa escola que tinha por ideal formar judeus universalistas.
O posicionamento da Casa do Povo em relação a Israel oscilou em diversos momentos, ao sabor do contexto político internacional. Em nenhum momento aproximou-se de aprovar a alternativa de um “Lar Nacional Judaico” como único caminho para a vida judaica. As críticas às posturas sionistas reagiam, em parte, à negação do judeu da Diáspora e seu modo
No alto, cena de rua no Bom Retiro, em frente ao prédio do Instituto Cultural Israelita Brasileiro: aplicação à realidade brasileira da tradição judaica de justiça social foi um dos pilares ideológicos do Scholem. Acima, Jacob Frydman em apresentação artística, tendo ao fundo um retrato do escritor Scholem Aleichem, entre as bandeiras de Israel e do Brasil
de vida. O ideal do novo homem judeu, ligado ao trabalho no campo, ao vigor físico, à capacidade de autodefesa, habitante da terra de seus ancestrais bíblicos e falante da língua hebraica, estava distante dos valores e da auto-imagem que os criadores da escola tinham de si. Por outro lado, a Guerra Fria contribuía para intensificar as cisões entre os judeus progressistas e a comunidade, dadas a forte influência soviética neste grupo e a aproximação cada vez mais intensa entre os Estados Unidos e o Estado de Israel. “A
comunidade judaica de São Paulo foi se aproximando cada vez mais da orientação sionista”, afirma Max Altman, presidente da escola entre 1968 e 1980. “A Casa do Povo, com suas posições críticas, tornou-se uma voz isolada na política comunitária. O Scholem não obtinha nenhum apoio material por parte das demais instituições.”
Vanguarda pedagógica
Em meio a esses e outros conflitos, o Scholem destacava-se como espaço de experimentação educacional, inovando
No alto, Dona Ilina Ortega ensaia alunos para a fanfarra e, acima, alunos na aula de artes, em foto de 1969: diversidade e criatividade na educação infantil derivaram de uma proposta pedagógica que consistia em valorizar o potencial dos alunos, sem levar em conta origem étnica, cultural ou social
em termos metodológicos e nas opções curriculares que adotava. Eliza Kaufman Abramovich, diretora da escola entre 1958 e 1962, foi um nome central na liderança desse processo. Autodidata, reunia a erudição das leituras à confiança no talento dos professores e orientadores que contratava. Apostava numa escola dinâmica, na qual os professores continuavam estudando e eram incentivados a criar. A
experiência na militância comunista incitou em Eliza a necessidade de unir teoria e prática, e a direção de uma escola como o Scholem apresentou-se como um terreno fértil para materializar ideais que rompiam com a camisa-de-força do sistema de educação formal. “O que me parece importante no Scholem é essa não rigidez em relação à burocracia e titulações”, afirma a escritora Fanny Abramovich, que
coordenou a pré-escola e mais tarde foi professora de artes e teatro. “A gente se formou aqui, não veio formada de outro lugar. A gente se fez fazendo”.
A pediatra Frima Grinspun, que dirigiu a escola entre 1962 e 1968, garantiu na equipe um olhar atento ao desenvolvimento das crianças e às necessidades dos adolescentes. Nas apostilas de formação de professores, preservadas por Marina Sendacz, há vários textos sobre a relação entre escola e comunidade, psicologia do desenvolvimento e sexualidade – temas avançados para a educação da época. Também é visível o intercâmbio com outras iniciativas educacionais importantes naquele momento, como o Colégio de Aplicação e a Escola Experimental da Lapa, entre outras. A chegada do diretor Odenis A. Módulo, em 1969, reforçou o reconhecimento do Scholem no circuito das escolas de vanguarda. A atuação de Berenice Ferman, de 1977 a 1979 e de Sara Cunha Lima, de 1980 a 1981, ambas exalunas e ex-professoras da escola, permitiu que se mantivesse uma orientação coerente com a trajetória da escola. A existência desse espaço educacional atraiu jovens professores, que, estimulados pela liberdade que havia na escola, se dedicaram a propor formas diferentes de aprender. Antonio Dimas, professor titular de Letras da usp , foi um componente da equipe que, em 1966, criou as turmas de Ginásio do Scholem. “A interdisciplinaridade era um princípio já naquela época”, afirma Dimas. “O currículo de história era o pilar a partir do qual decidíamos as atividades das demais matérias. Se o tema era Civilização do Açúcar, a literatura, a geografia, as artes associavam seus conteúdos à proposta.”
Um estudo do meio na Bahia – de ônibus, na década de 60 – foi parte da experiência dessa turma. “A gente começava a estudar antes mesmo de chegar à estrada. O estudo do meio era um momento de trabalho”, relembra Dimas.
A valorização da criatividade perpassava toda a vida escolar do aluno. Nas paredes da pré-escola, as fotos mostram a produção das crianças, numa orientação menos preocupada com a estética do resultado do que com a liberdade de criação e a experimentação de técnicas variadas. A idéia de projetos temáticos
também povoava a rotina das crianças: se o tema era “animais”, traziam-se fotos, traziam-se bichos, verificavam-se hábitos e características das diferentes espécies, visitava-se o zoológico. Um baú de fantasias que circulava entre as classes e os muitos pneus espalhados pelo pátio compunham este cenário, onde brincar era a ocupação principal dos pequenos alunos.
A educação pelas linguagens artísticas
A agitação cultural da Casa do Povo chegava até o Scholem, fosse pelas intensas atividades do grêmio, fosse por convites dos profissionais da escola. Novos Baianos, Belchior, Renato Teixeira foram alguns dos que se apresentaram na escola. “O Caetano Veloso também veio conversar com os alunos do pré e foi lá em cima no 3º andar cantar com as crianças”, conta dona Ilina Ortega, professora de música. Ensinando música ídiche e folclore brasileiro, investindo na iniciação musical e na concentração das bandinhas e dos corais, dona Ilina é uma unanimidade entre seus alunos, alguns dos quais se destacaram mais tarde como músicos.
O teatro era outro dos grandes trunfos, na esteira da tradição dos grupos profissionais e amadores em língua ídiche. A encenação dos contos de Scholem Aleichem e outros autores era uma estratégia eficaz para popularizar esses textos entre os alunos. “Ética, cultura e humor são os principais legados da escola”, opina Tatiana Belinky, que colaborou nas apresentações dos primeiros tempos como autora ou diretora. Obras de autores como Brecht, Shakespeare, João Cabral de Melo Neto e Ariano Suassuna foram montadas pelas turmas, além de composições literárias das próprias crianças. A força do teatro aliava o trabalho de profissionais como Naum Alves de Souza, Isa Kopelman, Mira Haar, Raimundo Matos e Eduardo Amos, entre outros, com a visão de que havia muito a aprender no ato de representar. “Tive uma formação maravilhosa no Scholem”, conta a atriz Débora Olivieri, “era tudo muito abrangente, muito intenso, com experiências que não ficavam só nos livros. Aprendi tudo de uma maneira muito aberta, com muita troca. As aulas de português, a feira de ciências, no fundo, tudo era uma forma de representação.”
Um lugar para a utopia
Todo esse clima de trabalho coletivo e o diálogo permanente com a produção cultural reforçavam o contraponto ao nacionalismo incondicional propagado pela ditadura militar a partir 1964. Educar praticando internamente a liberdade de expressão e estimulando o pensamento crítico confirmava a coerência da escola com suas raízes progressistas, e pavimentava a formação desses jovens para uma participação consciente na vida política do país.
A cultura ídiche estava presente nas casas e nas ruas do Bom Retiro. Gerações de imigrantes mantinham o idioma na educação de seus filhos, na comunicação com parentes no exterior
“Muitos pais e membros da mantenedora da escola eram militantes dos movimentos de esquerda e foram perseguidos pela ditadura”, afirma Max Altman. “Muitos filhos de militantes, não judeus, tiveram acolhida no Scholem, permitindo que recebessem uma educação de alta qualidade e condizente com os valores políticos de suas famílias.” Esta convivência entre judeus e não-judeus, brancos e negros e também índios contribuía para um cotidiano escolar que incorporava as diferenças dentro da sala de aula com naturalidade. Mas a fama de “escola dos vermelhos” não fazia jus a todas as famílias que matriculavam as crianças no Scholem. “Tinha meus quatro filhos aqui e não era comunista”, contou Tânia Furman, em depoimento de 1999. “Escolhi uma excelente escola.”
Sobrevive a memória
São muitas as conjecturas sobre os motivos que levaram ao fechamento do Scholem em 1981, apesar dessa memória festejada e de tantos feitos concretos. A aliança de vários fatores levou à inviabilidade da manutenção da escola.
O alto custo do projeto, detalhista na variedade de profissionais que incluía, demandava um aporte financeiro que a escola nunca logrou. Uma política de concessão de bolsas bastante generosa, por outro lado, dificultava ainda mais o balanceamento dessa equação.
O êxodo do Bom Retiro levou muitas famílias a transferirem seus filhos para escolas em suas novas vizinhanças. Um certo esvaziamento ideológico das gerações de filhos de imigrantes também reduziu a procura por aquela proposta tão definida politicamente.
A qualidade educacional do Scholem se manteve até o final. Foi um apagar de luzes doloroso e traumático para os envolvidos. Após os 25 anos que nos separam daquela data, o Scholem se mantém vivo nas pessoas que de alguma forma participaram dessa experiência: professores, alunos, diretores, pais. O legado de uma vanguarda pedagógica não se perdeu. Os caminhos abertos por tantos idealistas e entusiastas ligados à Casa do Povo inspiraram novas sendas, em busca de uma educação de qualidade no Brasil. Voltar os olhos para estas histórias, recuperando a herança afetiva e desvelando a competência educacional, com iniciativas como a que desenvolve agora o Grupo Memória Scholem, é uma forma de compreender melhor o diferencial desta escola que tantas raízes deixou
A experiência pedagógica e cultural do Scholem será tema do seminário Vanguarda Pedagógica: o legado do Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem, no próximo dia 21 de outubro, das 9h às 18h, no Centro da Cultura Judaica, uma realização do Grupo Memória Scholem. A programação, voltada para profissionais da área de educação, pesquisadores e estudantes, ex-alunos, docentes e voluntários, e público em geral, abordará os seguintes temas:
Scholem Aleichem: uma escola progressista
Fundamentos de uma vanguarda pedagógica
Linguagens e educação: o papel das artes
Mosaico das memórias: histórias marcantes
A entrada é franca.
Inscrições pelo telefone 3227 4015, das 14h às 17h.
Lilian Starobinas é mestre em História Social e doutoranda em Educação na Universidade de São Paulo. Colaboraram Cássio Schubsky , Gisele Kolber K. Hamadani e Daisy Perelmutter