Sara Rodi
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LI MIVI
livrodaminhavida.com
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LI MIVI limivi.com
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Título | Frio Autor | Sara Rodi
Design e Paginação | Ana Correia Tavares Design de Capa | Ana Correia Tavares Revisão | Susana Tavares Fotografia | Pedro Dias Editor| LI MIVI www.olivrodaminhavida.com e-mail| editora@olivrodaminhavida.com Edição 2ª Edição - Maio 2011 ISBN 978-989-8519-00-9 Depósito Legal nº 328413/11 Impressão e Acabamentos Rolo & Filhos II, SA É expressamente proibida a reprodução, no todo ou em parte, da presente obra sem autorização prévia da editora.
Sara Rodi
LI MIVI
Foi em 2000 que saiu a primeira edição de “Frio”. Tinha na altura 22 anos e o coração entalado numa corrente de ar frio. Forte e pungente, como todas as primeiras. Hoje, onze anos volvidos, conheço o Frio, e o Quente, e o Morno, e o a Escaldar, e o Gelado. À minha frente desenham-se novas histórias com novos calores, que espero publicar em breve. Mas nenhuma delas faria sentido sem essa outra que lhe antecedeu. “Frio” deixou-me experimentar a sensação de ser chamada de escritora. Se já sabia que não queria ser outra coisa, com “Frio” tive a certeza de que, com maior ou menor teimosia minha, esse dia ia chegar. Não sei se chegou. Mas o “Frio” está de volta. Esperemos que para ficar... Sara Rodi 2011
Ao Pedro, que em boa hora me aqueceu...
Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não conseguem) e, 12
sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo.
Marguerite Yourcenar, O Tempo, esse grande escultor
ELA Se as mulheres esquecessem tão facilmente como mentem! Mas a memória não nos perdoa aquilo que os nossos olhos escondem. Cicatrizamos a ferida que nos rebenta por dentro de sufoco, como se nos fosse mais suportável a chaga interna que a exteriorização da nossa fraqueza. Gostava de experimentar ser homem, para viver numa só verdade – mesmo que ela fosse uma mentira. Para ter certeza de alguma coisa. Esquecer-me de tentar perceber a cada momento as coisas que sinto. Viver sem feridas adormecidas, porque tudo o que nasce num homem, morre; tudo o que morre volta a nascer. Nada sobrevive nesse limbo entre ser e não ser, querer ou não querer, viver ou morrer. Nada se perde (ou os faz perder, ou perderem-se), tudo se transforma (ou transformam, ou os transforma), é a lei da natureza que o fantasma feminino do raciocínio teima em contrariar. Talvez sejamos só de outra natureza, sem leis, ou pelo menos sem essa previsibilidade que torna a vida uma ciência inteligível, um bem possuído e controlado sem perguntas sem resposta nem exceções práticas à teoria, ou teóricas à prática. Complica-me que para eles seja sempre tão pouco complicado! Se amam, não pensam, e não acreditam no amor de quem queira ou precise de pensar ao mesmo tempo. Se não amam, também não pensam, e não se preocupam com quem fingem amar e conseguem enganar e desprezar sem qualquer sentimento de culpa. Não saber o que é sofrer e não conseguir adivinhar o sofrimento que causam é a sua lei inata de sobrevivência. E a nossa lenta sentença de destruição.
ELE Se tivesse certeza das certezas que sinto! Mas as mulheres são peritas em fazer-nos duvidar daquilo que precisam de saber e nos exigem que saibamos. Jogam-nos como marionetas perdidas ao sabor das suas intenções e dos seus caprichos, dão-nos vida e alma, mas exigem que lhas vendamos num contrato cruel de exclusividade eterna e escravidão. Dão-nos tudo, mas para nos exigir ainda mais, o que não temos e nunca teremos. E crucificam-nos nesse handicap natural! Como os que seguiram Jesus Cristo foram os que ditaram a sua morte, as mulheres que nos fazem sentir deuses são as que nos cospem depois na cara a nossa natureza humana. Não somos nós que lhes damos esperanças elevadas, são elas que se alimentam de expectativas tão perenes quanto um simples abrir de olhos. Escarafuncham-nos a alma, desvendam os nossos cantos obscuros
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sem permissão, e acusam-nos de sermos quem não somos, quando sempre fomos o que seremos e foram elas apenas a olhar-nos como nos quiseram ver a cada momento. [Digo “mulheres” e “nós”, homens, porque se aceita sempre melhor uma situação quando se a generaliza (aliás, já estou a generalizar esta forma de aceitação). Pensar que é assim porque é assim sempre e com toda a gente, transforma a deformidade em fatalidade, e a fatalidade liberta-nos de uma boa dose de responsabilidade de ser e fazer o que não se quis ou não se quer, ou se quis e quer e não se devia ter querido ou querer.]
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Mas como é possível saber o que se quer, se o nosso querer depende de alguém que tem ainda mais dúvidas sobre o seu querer? Alguém suficientemente egocêntrico e masoquista para se apoderar de todo o sofrimento e reivindicar todos os direitos de gestão de um jogo em que ainda tem o poder para decidir quem perde e quem ganha, o quê e porquê. Contagia-me tanta indecisão, tanto monopólio, tanta dúvida acerca do que precisa ser certeza para existir! A felicidade não precisa de saber tudo! Por alguma coisa o amor deve ser cego, o desejo mudo e a vontade surda. Saber a cada momento o que lhes convém, não pode ser o bastante? Não é possível que lhes baste tão pouco para ter tudo? A mim bastava-me bastar a alguém para ser feliz. Ser o bastante de alguém será pedir assim tanto? Talvez o nosso problema seja exatamente esse: as mulheres exigem-nos tanto do que não conseguem saber se querem, que acabamos nós próprios, por medo, a exigir de menos o que queremos e sabemos querer por demais.
ELA Não o via há exatamente 17 anos. Parece-me uma brutalidade de tempo, quando penso que vivi pouco mais que duas vezes isso, mas a verdade é que consegui viver sem pensar nele durante tanto tempo, que não posso dar a esses 17 anos a importância que, à primeira vista, a dor da ausência e a fugacidade da vida lhe poderiam atribuir. Tinha 23 anos quando o conheci, era assim o que se pode chamar de uma mulher por fora que já se julga mulher por dentro. Sempre fui um ser desproporcionado.
Primeiro lembro-me que me sentia mais crescida por dentro do que por fora. Depois cresci por fora sem crescer por dentro, e nem agora me sinto equilibrada, embora a desproporção já se tenha invertido novamente, com a idade a fazer-se por dentro sem sinais exteriores dessa erosão interna. (Lá chegará o dia em que serei outra vez mais velha por fora do que por dentro, na quarta e última fase do ciclo da vida de uma mulher). Ele era suficientemente diferente de todos os outros homens que me tentavam seduzir para me interessar por ele. Não foi simples capricho de quem só quer o que lhe custa a ter. Aquela sobriedade altiva com que ele me olhava fascinou-me. Muito seguro de si, tão longe do mundo banal e desinteressante que ele julgava ser o meu. Que eu sentia ser o meu, ao olhá-lo, e era isso que me crispava por dentro. Sentia uma necessidade interior de me mostrar ao seu nível, ou acima, muito acima do dele, para lhe contrariar as expectativas. Provar-lhe (e/ou a mim mesma) que era mais do que uma simples mulher que ele podia desprezar com o mesmo à-vontade com que o resto dos homens se habituara a bajular. Só arranjei coragem para me meter com ele quando me convenci que não tinha hipótese nenhuma de coisa alguma – quando não se tem nada a perder é muito mais fácil arriscar o pouco que se tem. Estava sentado, no intervalo entre duas palestras, a olhar para o vazio – o seu horizonte de sempre –, e eu aproximeime com o meu livrinho de italiano na mão direita, pronto a justificar qualquer resposta minha que não quisesse dar, ou qualquer pergunta a que não me apetecesse responder. Perguntei-lhe as horas – ainda não tinha conhecimentos suficientes da outra língua para trocar o tempo cronológico pelo meteorológico, a chave do típico diálogo entre desconhecidos –, mas ele limitou-se a mostrarme o relógio, calado e imperturbável como se nada no mundo lhe pudesse servir de tema de conversa com uma estrangeira mais nova de passagem pelo seu país. Não tinha nada a meu favor, mas ele conseguiu fazer-me sentir suficientemente insignificante para me fascinar, de modo que não contive um Grazie com um sorriso que ele retribuiu. Pura misericórdia. Foi o primeiro dia.
ELE Já tinha perdido a esperança de a voltar a encontrar, ou pelo menos – se, como dizem, a esperança nunca morre – já a tinha adormecido no recanto das memórias
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do passado. Acho que até já me tinha esquecido do quanto a tinha amado, ou de como a fui amando sempre no esquecimento forçado da negação – porque, em situações normais, ninguém se esquece de uma coisa tão importante como o amor. Às vezes adormecemos os sentimentos mais fortes que não podemos sentir, é uma questão de autodefesa de quem não tira propriamente prazer do sofrimento, e os homens são peritos em negar-se ao masoquismo.
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Ela era do tipo de mulheres que me atrairia ao primeiro olhar e me repugnaria ao segundo. Bonita, vistosa, demasiado extrovertida para me agradar. Contudo, de uma persistência que me obrigou a exceder os meus limites de atração para um terceiro olhar mais atento. Vi mais do que devia, ou queria, nesse momento, mas ela só me conquistou verdadeiramente quando me dirigiu a palavra, numa simplicidade que não podia contradizer mais a excentricidade da sua aparência. As mulheres têm essa capacidade de conseguirem ser exatamente o contrário daquilo que aparentam. Nós muito poucas vezes o conseguimos. Não nos tornamos intelectuais só por usarmos óculos, nem yuppies se vestirmos fato e gravata. Há sempre alguma coisa em nós que denuncia a nossa verdadeira maneira de ser. As mulheres, talvez pela maior importância que dão a futilidades como a roupa que vestem ou a forma como se penteiam ou se maquilham, conseguem transformar-se com um simples toque na sua aparência. Acho que tiram prazer nisso mesmo, ser em cada manhã aquilo que ousam vestir, como se o guarda-fato guardasse personalidades em vez de peças de roupa. É por isso que é tão difícil confiar nelas sem estarmos juntos pelo menos as vezes suficientes para conhecermos as possibilidades escondidas nos seus armários. E é por isso também que elas conseguem muito melhor do que nós, homens, disfarçar as coisas que sentem e “dar a volta por cima” quando sofrem: bastalhes mudar por fora para se esquecerem do que foram por dentro, olharem-se ao espelho e verem-se diferentes do que eram para se julgarem de facto outras pessoas. Uma falsa conversão de sentimentos, que lhes mói exatamente por essa natureza de mera aparência. Nós, ao menos, podemos demorar a curar as nossas feridas, mas as nossas sublimações não são forçadas e, quando desaparecem, desaparecem de vez. Não percebia nada de italiano, por isso não se aproximou de mim sem um daqueles livrinhos com as frases mais comuns de uma língua, a perguntar-me que horas eram. Acharia que era mais uma das suas exuberâncias – e desde que tinha chegado à praça que não tinha parado de dar nas vistas numa divertida inocência forjada – se ela não se tivesse sentado em seguida ao meu lado,
calada, sorrindo apenas de uma felicidade qualquer que eu nunca tinha lido antes nos olhos de ninguém. Retribuí-lhe o sorriso e, nessa altura, percebi que nunca tinha gostado de mulheres bonitas apenas porque elas nunca me tinham ligado nenhuma. Foi o primeiro dia.
ELA O congresso, no dia seguinte, tinha um programa tão cheio que quase me esqueci que ele lá estava também. Só à noite é que arranjei tempo para inventar uma forma mais eficaz de me aproximar dele. Esqueci a tática do livro de italiano e tentei uma versão mais nacionalista. Apresentei-me em português, assim direta e supostamente inocente. Não notei no seu rosto uma diferença substancial que me levasse a crer que a nova tática resultara melhor do que a anterior, por isso voltei a calar-me e a sorrir-lhe – felizmente tenho sempre essa arma preparada para disfarçar a ousadia e consolar o desprezo. Só me disse o nome, como se o meu interesse fosse puramente toponímico. Como se nada mais de si próprio estivesse ao nível do meu interesse, e qualquer coisa que pudesse dizer fosse desperdício de saliva. Quase o odiei, nesse dia. Mas o ódio tem essa particularidade de ser um extremo bem próximo do outro extremo da paixão, como dois pólos opostos que a natureza dita que se atraiam. À terceira costuma ser de vez, lá diz o ditado que tem tão pouco de certo como de errado – é pura e simplesmente aleatório –, mas eu não perdia nada em arriscar. E a ocasião não podia ter sido mais propícia. No intervalo para o almoço fui dar com ele numa das esplanadas do Centro de Congressos a ler um livro do Saramago em italiano. Curiosamente um dos livros que tinha lido recentemente. Abordei-o com uma piada inteligente qualquer sobre o início do livro, e começámos finalmente a conversar. Eu num português muito lento e gesticulado, com algumas palavras em italiano embutidas macarronicamente no discurso. Ele num italiano menos deturpado, mas pronunciado suficientemente devagar para um português com facilidade em línguas perceber. Era uma pessoa ainda mais interessante do que eu suspeitara à primeira vista. Tinha os mesmos hobbies que eu, e interessava-se praticamente pelas mesmas coisas, apesar dos doze anos que tínhamos de diferença. Eram tantas as coincidências que, se os olhos dele não fossem suficientemente claros para não conseguirem mentir sem eu perceber, pensaria que estava a enganar-me descaradamente só para me agradar.
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Conversámos quase a tarde toda. Nem tão pouco me lembrei mais do congresso que me tinha custado quase um mês de ordenado. É assim quando nos apaixonamos, o tempo e o dinheiro ganham um novo estatuto, semelhante: desperdiçamo-los sem darmos conta, ou sem nos importarmos a mínima, e quando nos arrependemos já é tarde demais para os recuperar. São os custos da paixão. Interrompemos à hora do jantar porque ele tinha coisas combinadas, e eu fui para a cama sem conseguir ter fome para comer o que quer que fosse. Engraçado como o amor sacia o estômago e torna esfomeado o desejo...
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No outro dia, que era já o quarto, voltou a olhar-me como se não tivéssemos estado no dia anterior tantas horas a conversar. Felizmente não sou muito orgulhosa e adoro desafios, caso contrário as coisas teriam morrido ali. Assim, fui ter com ele, mais uma vez, e desafiei-o para um almoço que acabou por se prolongar novamente pela tarde toda. Não me arrependo do congresso – ele era bem mais interessante do que qualquer coisa que lá pudesse ter acontecido –, arrependo-me sim de não ter percebido logo que aquilo não me ia levar a lado nenhum. Ou melhor, que me levaria mais longe do que me era permitido, porque não me era permitido quase nada e eu quis de repente, e talvez por isso mesmo, quase tudo. Voltámos a despedir-nos à hora do jantar, sem que eu tivesse mais uma vez conseguido mostrar que não queria deitar-me novamente de desejo tão pouco saciado como o estômago. Ou sem conseguir despertar nele o apetite que em mim se satisfaria simplesmente com ele.
ELE Depressa me arrependi do meu sorriso, no dia seguinte. Passou o dia sem me olhar uma única vez, espiando com esse terceiro olho de intuição feminina as minhas reações a cada movimento seu. Esforcei-me por me esquecer dela, mas não consegui ouvir uma só palavra do congresso, tão concentrado estava em disfarçar o que não queria estar a pensar e até já talvez a sentir. Desejei-a infantilmente como as crianças desejam aquilo que ainda não têm. Talvez mais ainda, por desejar não só aquilo que não tinha como aquilo que pensava não poder vir a ter. Mas o meu instinto de autodefesa encolhia-me as garras que me saíam dos dedos com uma vontade louca de lhe rasgar a pele para comer o que de melhor (e pior. Tudo!) tivesse a minha presa para me oferecer. Com o passar
dos anos tinha aprendido a controlar-me. Não é nada fácil manter a cabeça fresca quando temos outra cabeça bem quente a querer pensar por nós, ou a querer agir por nós sem nos deixar pensar, mas a idade traz algumas vantagens em termos de autocontrolo. Começamos a ter medo de fracassar, como se a velhice fosse trazendo uma menor resistência à frustração. Preferimos guardar as memórias dos sucessos passados sem as manchar com incidentes do presente, e por isso retraímo-nos na decisão letal de ataque. À hora do jantar veio apresentar-se. Em português! Nem tão pouco se deve ter lembrado que no dia anterior eu tinha dado uma palestra em italiano, porque nem inglês falo, sou uma completa nulidade em línguas. Nem se deve ter lembrado sequer que ela própria, para me abordar no dia anterior, usara o seu livrinho de idiomas. Se calhar confundiu-me com outro homem qualquer em quem também testou o seu poder de manipulação do desejo. Ou então (e é o mais certo!) fê-lo de propósito, para me provocar, para marcar entre nós uma distância intransponível e me aprisionar sem defesa possível na ilha do meu monoglotismo. Percebi-lhe o nome, claro, e disse-lhe o meu, que ela repetiu noutro dos seus sorrisos intermináveis. É incrível como um sorriso pode cegar. Naqueles segundos de boca rasgada consegui esquecer todo o desprezo a que ela me tinha votado no dia todo. Mas ficámos por aí. Nessa noite fui para casa e adormeci abraçado à minha mulher para, já com o autocontrolo cego de desejo, tentar descortinar uma forma qualquer de a conquistar (uma mulher é sempre uma mulher, é mais difícil pensar numa sozinho do que ao pé de outra. Não é uma questão de sublimar um desejo com outro desejo, mas antes de preparar um jogo treinando no nosso próprio campo, com os jogadores disponíveis. Com as mesmas regras. Testando táticas. A única coisa que muda depois é o equipamento do adversário, mas estamos sem dúvida mais preparados do que se tivéssemos estado apenas sozinhos de braços cruzados a imaginar o que nos esperava). A ideia ocorreu-me só de manhã cedo, quando vi na mesinha de cabeceira da minha mulher um livro novo que ela tinha começado a ler. Os livros são fonte de curiosidade, e a curiosidade pela parte normalmente gera interesse pelo todo. Passei numa livraria antes de ir para o Centro de Congressos e comprei um livro do escritor português que tinha ganho o Nobel. Raramente tinha tempo para ler livros, exceto os técnicos, que era obrigado a devorar por razões profissionais. Mas gostava de ficção, não fiz nenhum esforço sobre-humano para começar a ler o romance.
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Só não sei se foi o meu isco que a pescou, se fui eu o peixe que conseguiu dar-se a pescar. Certo é que ela se aproximou de mim às custas de Saramago, e ficámos a conversar quase a tarde toda. Ela ia arriscando o italiano para me espicaçar com a sua inteligência, eu ficava-me pela minha língua, nunca tive jeito para improvisos linguísticos, e assim disfarçava com a peneira o sol da timidez que não podia demonstrar. Menti-lhe em muitas coisas que disse, como ela me mentiu em tantas outras. Era obrigado a desejá-la a curto prazo, por força das circunstâncias, e ela, por força nenhuma, se alguma vez me desejou não foi por muito mais tempo. Foi o terceiro dia.
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No dia seguinte confesso que tive medo de a encarar, apesar de ter passado grande parte da noite a trabalhar olhares e frases que na altura me pareciam certeiras. Mas uma mulher daquelas é sempre suficientemente imprevisível para ser dada como certa. E ela lá estava, segura e altiva. Ignorei-a também, para não dar parte fraca, confiante que isso potenciaria o meu grande momento de ataque, mas acabou por ser ela que, em mais um dos seus gestos com tanto de inocência como de insinuação perversa, me convidou para o almoço. Fui logo pousar as coisas ao carro, já sabia que não voltava ao congresso. Não podia perder uma oportunidade daquelas, que ela até fizera o favor de me oferecer de bandeja. O embalo, no entanto, durou apenas até eu desejar como nunca que ele não terminasse. Mas ela não propôs, eu, por uma cobardia estúpida que me assaltou naquele momento, não me senti com forças para superar uma recusa à minha proposta, e acabei por voltar à cama onde a minha mulher, que me esperava, nunca tinha precisado de propor o que eu não podia deixar de aceitar.
ELA O número cinco é sempre o número cinco. É muito raro preencher os boletins de totoloto do escritório, mas quando não arranjo argumentos para o negar aos meus colegas, que até pagam por mim as minhas cruzes distribuídas aleatoriamente, o único número de que nunca me esqueço é o cinco. Nunca ganhei nada com ele, mas tenho um fascínio tremendo por esse número de cantos, recantos e meias-voltas, que uma simples mão aberta pode traduzir. O meu número de telefone e de telemóvel terminam em cinco, a matrícula do carro tem dois cincos, e se tenho de tentar fazer alguma coisa tento-a sempre