DO NARRATIVO AO DRAMÁTICO...

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI DIRETORIA DE PESQUISA E EXTENSÃO

RELATÓRIO FINAL DE PESQUISA

DO NARRATIVO AO DRAMÁTICO: ANÁLISE DO CONTO O CORPO, DE CLARICE LISPECTOR, E SUA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA Autor: Lina Maria Braga Mendes Prof. Orientador: Débora Mallet Pezarim de Angelo 2004 6º semestre

Pesquisa financiada pela Diretoria de Pesquisa e Extensão da Anhembi Morumbi, dentro do Programa “Iniciação Científica”. É proibida a reprodução total ou parcial.

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AGRADECIMENTOS

À Profª Dra. Sandra Trabucco Valenzuela, coordenadora do curso de Letras, pelo incentivo. À Professora e Orientadora Débora Mallet, por todas as preciosas sugestões, pelo encorajamento, dedicação, paciência e compreensão com que me ajudou a chegar ao final deste trabalho. À Yanaí, por suportar a minha ausência. À Junia, Wonia e Rossana, por todo o apoio logístico, pelo encorajamento virtual, pelo companheirismo.

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DO NARRATIVO AO DRAMÁTICO: ANÁLISE DO CONTO O CORPO, DE CLARICE LISPECTOR, E SUA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA Autor: Lina Maria Braga Mendes UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

RESUMO: Este trabalho propõe uma análise das transformações sofridas pelo conto “O corpo”, de Clarice Lispector, no momento de sua adaptação para o cinema, no que diz respeito à eliminação do foco narrativo e duas de suas implicações nesta obra: o percurso da crueldade observada no narrador (crítico e mordaz ao emitir juízos de valor acerca das personagens) e a preocupação com a passagem do tempo, características extremamente fortes na voz narrativa. O percurso da crueldade observada no olhar do narrador do conto requer um detalhado estudo do foco narrativo, personagens e tempo no conto. Será também objeto deste estudo o detalhamento do conceito de “personagem” na linguagem cinematográfica, entre outros elementos, uma vez que consideramos que elas possam ser uma “ponte” de conexão entre o narrador da obra original e sua ausência na versão cinematográfica.

Palavras-Chave: Foco Narrativo; Clarice Lispector; Mal

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ABSTRACT: This study consists of an analysis of certain transformations, which the short story “O Corpo” by Clarice Lispector has been through, while the book was being adapted for the movies, mainly concerning the suppression of the narrator and two of its implications on this piece of writing: the extreme cruel attitude observed on the narrator (critical and mean while constantly expressing judgmental comments about all the characters) and his constant concern about the passing of the time, in the story, both extremely significant features in the narrative voice. Such cruel way observed in the point of view of the narrator requires a detailed study of the narrative focus, the characters and the time, in this short story. A detailed analysis of the concept of “character” in the movie language, among other elements, will also be part of this study, since we consider they can be like a connection “bridge” between the narrator of the original masterpiece and its total absence in the movie version.

Keywords: narrator; Clarice Lispector. cruel

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SUMÁRIO Página Introdução .......................................................................................................07 Método .............................................................................................................09 Resultados .......................................................................................................10 I – Elementos da Narrativa ..............................................................................10 1. Foco Narrativo ............................................................................................10 1.1. Narrador onisciente intruso...................................................................11 1.2. Narrador onisciente neutro ...................................................................11 1.3. Narrador testemunha............................................................................12 1.4. Narrador protagonista...........................................................................12 1.5. Narrador onisciente seletivo múltiplo ....................................................12 1.6. Narrador onisciente seletivo .................................................................12 a) Análise mental .................................................................................13 b) Monólogo interior...............................................................................13 c) Fluxo de consciência .........................................................................13 2. Tempo.........................................................................................................13 2.1. O tempo na narrativa............................................................................13 2.1.1. Tempo físico ...............................................................................14 2.1.2. Tempo psicológico ......................................................................14 2.1.3. Tempo cronológico .....................................................................14 2.1.4. Tempo histórico ..........................................................................15 2.1.5. Tempo lingüístico .......................................................................15 2.1.6. Tempo da narrativa.....................................................................15 2.2. O tempo no cinema ..............................................................................15 2.2.1. Legendas ....................................................................................16 2.2.2. Fade in........................................................................................16 2.2.3. Fade out......................................................................................17 2.2.4. Câmera e Montagem ..................................................................17 2.2.5. Cortes .........................................................................................17 2.2.6. Flash Back ..................................................................................17 2.2.7. Flash Forward .............................................................................17 3. Personagens...............................................................................................17 3.1. Caracterização das personagens segundo Johnson............................20 3.1.1. Personagens de costumes .........................................................20 3.1.2. Personagens de natureza...........................................................20 3.2. Caracterização das personagens segundo Forster ..............................20 3.2.1. Personagens planas ...................................................................20 3.2.2. Personagens esféricas (redondas) .............................................21 3.3. Formas de invenção de personagens ..................................................21 3.3.1. Experiência direta .......................................................................21 3.3.2. Reconstituídas ............................................................................21 3.3.3. Modelo real .................................................................................21 3.3.4. Modelo real conhecido................................................................22 3.3.5. Modelo real dominante ...............................................................22 3.3.6. Fragmentos de modelos reais.....................................................22 3.3.7. Concepção de homem................................................................22 3.4. Caracterização das personagens segundo Doc Comparato ................22 5


3.4.1. Protagonista................................................................................22 3.4.2. Coadjuvante................................................................................23 3.4.3. Antagonista .................................................................................23 3.4.4. Componente dramático...............................................................23 II – Aspectos da obra de Clarice Lispector .......................................................24 1. Do mal e outros demônios ..........................................................................24 1.1. Sadismo................................................................................................24 1.1.1. O sadismo na narrativa...............................................................25 1.2. Maldade e perversidade .......................................................................26 1.3. Inveja....................................................................................................27 2. A questão da alteridade ..............................................................................28 Discussão.........................................................................................................31 1. Na narrativa ................................................................................................31 1.1. O narrador ............................................................................................31 1.2. As personagens....................................................................................33 1.2.1. Xavier..........................................................................................33 1.2.2. Carmem ......................................................................................34 1.2.3. Beatriz.........................................................................................34 1.2.4. Prostituta.....................................................................................35 1.2.5. Secretário ...................................................................................35 1.2.6. Policiais.......................................................................................36 1.2.7. Homens ......................................................................................36 1.3. O tempo................................................................................................37 2. O filme.........................................................................................................39 2.1. As personagens....................................................................................39 2.1.1. Xavier..........................................................................................39 2.1.2. Carmem ......................................................................................39 2.1.3. Beatriz.........................................................................................40 2.1.4. Prostituta.....................................................................................40 2.1.5. Secretário ...................................................................................40 2.1.6. Delegado ....................................................................................41 2.1.7. Mulher do delegado ....................................................................41 2.1.8. Homem do avião.........................................................................42 2.1.9. Outros .........................................................................................42 2.2. O tempo................................................................................................43 2.3. A retomada do mal no cinema..............................................................44 2.3.1. O mal nos recursos cinematográficos.........................................46 Conclusões.......................................................................................................49 Referências Bibliográficas ................................................................................51 Notas bibliográficas ..........................................................................................51 Bibliografia........................................................................................................51 Outras fontes de consulta.................................................................................52 Anexo 1 – O Corpo...........................................................................................53 Anexo 2 – Ficha Técnica do Filme O Corpo.....................................................56

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“Não teria acaso pensado que o Mal fosse um estado tão raro, tão extraordinário, tão isolante e para onde era tão grato emigrar, se soubesse discernir em si mesma, como em todos os outros, essa indiferença pelos sofrimentos que nós mesmos causamos e que, por mais diversos nomes que lhes dêem, é a forma mais terrível e permanente da crueldade.” (Proust, No Caminho de Swann)

INTRODUÇÃO Clarice Lispector é um dos maiores expoentes da Literatura Brasileira no século XX. As reflexões acerca de seus escritos ocupam um lugar cativo nas preferências de diversos estudiosos e críticos literários, no Brasil e em outros países. Acerca de sua obra, disse o crítico Alfredo Bosi (1) "Os analistas à caça de estruturas não deixarão tão cedo em paz os textos complexos e abstratos de Clarice Lispector que parecem às vezes escritos adrede para provocar esse gênero de "deleitação" crítica (...)." Considerando a importância da autora no cenário nacional e internacional, o interesse despertado por suas produções literárias (tanto no meio acadêmico quanto junto ao público em geral) e ao mesmo tempo a complexidade das mesmas (apontadas muitas vezes como “intimistas” por desenvolverem, entre outros aspectos técnicos da narrativa, o chamado “monólogo interior das personagens”, um intenso mergulho em seus pensamentos e sensações), muitos caminhos de estudos poderiam ser suscitados. No entanto, o que mais nos chamou a atenção (devido à formação de roteirista e um interesse natural pelo cinema) foram as adaptações cinematográficas de obra tão interiorizada nas personagens. Segundo Tânia Pellegrini (2), ao observar o tempo desenvolvido nas narrativas modernas, o chamado “tempo da mente”, “A radicalização desse aspecto vai desembocar no fluxo de consciência, espécie de transcrição direta dos pensamentos, durante um espaço de tempo, de que Virgínia Woolf e James Joyce fizeram originalíssimo uso e que, mais tarde, no Brasil, impregnou inclusive a introspecção de Clarice Lispector com nuances especiais”. Diante de quadro narrativo tão complexo, uma questão nos atrai: como traduzir tantos pensamentos de personagens em cenas cinematográficas, sem o auxílio do narrador? Como transformar em imagens a voz tão presente de um narrador intruso, sem que isso implique numa perda da qualidade da obra adaptada? Há duas conhecidas adaptações cinematográficas de obras da autora: o romance A hora da estrela (publicado no ano de 1977 e adaptado para o cinema em 1985) e o conto “O corpo” (publicado em 1974 dentro da obra A via crucis do corpo e adaptado para o cinema em 1991). Na tentativa de refletir sobre a pergunta deixada em suspenso no parágrafo anterior, concentraremos nossa análise na adaptação do conto “O corpo”, certamente uma obra menos estudada do que a consagrada adaptação (com prêmio de melhor atriz para a protagonista Marcélia Cartaxo no Festival de Cinema de Berlim, no ano de 1986) do também consagrado romance A hora da estrela, o que nos permite maior possibilidade de modesta contribuição acadêmica com este estudo de Iniciação Científica.

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A relevância de nosso estudo demonstra-se ainda, entre outros fatores, frente ao seguinte cenário: a fase de crescimento vivida pelo cinema brasileiro nos últimos tempos (Leis de incentivo à cultura), o crescente interesse do meio artístico pela busca de suporte, motivação e conteúdo na Literatura, observado nas recentes adaptações de obras literárias para o cinema (“Lavoura Arcaica”, “Bicho de 7 Cabeças”, “Carandiru”, “Desmundo”, “Dom Casmurro”, “A Cartomante”, entre outras) e a importância da obra literária da autora Clarice Lispector. E, talvez, o mais importante: este estudo demonstra sua relevância mais específica na medida em que propõe uma reflexão sobre a tradução intersemiótica entre a linguagem literária e a cinematográfica, combinando os aspectos acima mencionados. Muitas possibilidades de análise poderiam surgir ao se perseguir o percurso do narrativo para o cinematográfico. No entanto, levando-se em conta alguns aspectos específicos do conto “O corpo” (e de outras obras da autora), nosso caminho de análise perseguirá os seguintes objetivos: 1. Analisar o que por hora denominamos “expressividade do mal” do narrador do conto “O corpo”. Tentando traduzir a expressão acima citada, entendemos como “expressivamente má” a voz de um narrador crítico e cruel na emissão de juízos de valor acerca das personagens. Segundo Rosenbaum (3) “A tentação do mal na obra de Clarice Lispector mostra-se às claras, sem pudor, sem remorso. No entanto o mal se oculta, mascarase, pulsa latente”. Esse “mal” está sem dúvida presente no narrador do conto, na relação que estabelece com suas personagens.

2. Apresentar o trajeto percorrido pelo elemento “crueldade” na transição da

voz do narrador da obra literária para sua adaptação cinematográfica. Afinal, se uma das marcas do dramático é a ausência do narrador, interessa-nos observar como a adaptação cinematográfica resolveu esse impasse: o que fazer com a crueldade do narrador (marca muito forte para o leitor que tiver contato com essa narrativa)? Ignorá-la? Transportá-la para outro elemento? De que maneira? Ainda nesse sentido, a questão tempo também nos parece relevante por ser um outro traço forte do narrador original: ele demonstra uma forte preocupação em mostrar um tempo repetitivo e alongado na vida das personagens; se associarmos a isso o seu olhar cruel e impiedoso, é como se sua crueldade fosse reforçada pelo fator tempo, algo como “as personagens são grotescas e vivem suas situações ridículas há anos”. Novamente, cabem-nos as perguntas: o que será feito dessa preocupação com o tempo demonstrada pelo narrador? Ela será excluída na versão cinematográfica? Será transformada? De que forma?

3. Observar as alterações sofridas pela obra literária quando transposta para

o cinema, no que tange às personagens. Consideramos este quesito de extrema importância, uma vez que acreditamos serem elas que guardarão, no filme, um contato com a crueldade presente na voz do narrador do conto.

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MÉTODO Tendo como objetos centrais de análise o conto “O corpo”, de Clarice Lispector, e filme homônimo de José Antônio Garcia, o processo de pesquisa deste trabalho está focado em estudo bibliográfico sobre Teoria Literária (“foco narrativo”, “tempo” e “personagens”), sobre a obra de Clarice Lispector (crítica em geral), sobre o enfoque do mal na literatura (em especial no que tange ao foco narrativo e à construção das personagens) e sobre cinema (adaptações cinematográficas, tempo, personagens e outros aspectos) . O capítulo “Resultados” é composto de dois tópicos, nos quais tentamos tratar os elementos teóricos de forma a abranger os assuntos mais relevantes para o entendimento de nosso tema central. São eles: I – Elementos da Narrativa: subdividido em Foco Narrativo, Tempo e Personagens, este capítulo busca apresentar os elementos de Teoria Literária e seus correspondentes na obra dramática, fundamentais ao entendimento das transmutações sofridas pelo conto no processo de adaptação à linguagem cinematográfica; II – Aspectos da obra de Clarice Lispector: nesta segunda parte trataremos das formas de expressividade do mal e da alteridade, dois elementos que consideramos essenciais na obra da autora para uma posterior análise do conto; No capítulo “Discussão”, buscamos apresentar o caminho percorrido pela crueldade presente na voz do narrador, do narrativo ao dramático. Para tanto, apresentamos uma pequena análise do foco narrativo no conto e dos elementos tempo e personagens no conto e no filme, além de outros aspectos utilizados na adaptação cinematográfica que mantêm vivo no filme o narrador de “O Corpo”; finalmente, no capítulo “Conclusões” apresentarmos nossas considerações finais. Após a bibliografia, consideramos oportuno colocar a versão do conto “O corpo” utilizada em nossas análises e a ficha técnica do filme de José Antonio Garcia.

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RESULTADOS I - Elementos da Narrativa 1. Foco Narrativo O ato de contar alguma coisa a alguém pode ser entendido como um processo “primitivo” da vida em sociedade. As primeiras manifestações do “narrar”, segundo Nadia Gotlib, em “Teoria do Conto”, estariam vinculadas à aquisição da linguagem pelo homem que, nas sociedades tribais, perto do fogo, reunia-se para transmissão de ritos e mitos. Esse “contar” a vida, possibilitado pela aquisição da linguagem e, portanto, observado desde a pré-história, implicaria em relacionar três elementos essenciais: um agente (quem conta o fato), um ouvinte (a quem se conta o fato) e um acontecimento (fato narrado). Este imbricado e pré-histórico relacionamento começaria a ser sistematizado e discutido na Antigüidade a partir dos estudos de Platão e Aristóteles. As idéias de Platão acerca da narrativa relacionam-se à atribuição de um valor ao ato de contar alguma coisa. Para ele, “narrar” se contrapõe a “imitar”, sendo a primeira uma atitude de maior valor, associada aos homens honestos, ponderados; a segunda, por sua vez, é considerada uma prática do “homem de natureza e educação contrárias” por trazer ao real aquilo que ele considera uma cópia infiel da realidade. “(...) a distinção entre imitar e narrar (...) já em Platão vem carregada de valor. Na verdade, o julgamento de que é mais adequado ao homem de bem narrar do que imitar, sobretudo quando o objeto de imitação lhe é inferior, está diretamente relacionado com a filosofia platônica como um todo, alicerçada basicamente na idéia de imitação como cópia infiel, simulacro do Real e da Verdade” (LEITE, 1985: 7)

Aristóteles, ao contrário, vê a imitação como “reveladora das essências” e não como cópia das aparências, preferindo esta à narração das ações. “Imitar, para Aristóteles, é uma forma de conhecer, que inclusive diferencia o homem dos outros seres vivos e lhe dá prazer” (LEITE, 1985: 8)

Séculos mais tarde, Wolfgang Kayser entenderá o “narrar” como um artifício do autor ocultado “atrás de um outro narrador na boca do qual põe a narração”, o que implica em possuir uma atitude para com o público, assim como para com o objeto narrado, criando, dessa maneira, uma espécie de “arte de contar”. “Todo narrador adota uma atitude para com seu público, mesmo quando não a dê a reconhecer claramente. Ele teria afinal falhado na sua tarefa se não conseguisse prender de qualquer modo o seu auditório e interessá-lo no que tem a contar.” (KAYSER, 1976:215)

Esta “atitude narrativa” relaciona-se ao estilo da obra, ao gênero narrativo e à distância ou proximidade que o autor decide manter do leitor. A opção por narrar em primeira ou terceira pessoa dará ao acontecimento narrado uma conotação mais subjetiva ou objetiva, respectivamente. “O autor de uma narrativa cria, por meio do público que apresenta e da figura fixada do narrador, uma perspectiva clara e limites fixos dentro dos quais terá agora que mover-se. (...) Nas narrativas apresentadas por um narrador fictício, quase sempre o

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narrador conta os fatos como se os tivesse vivido. A esta forma de narrar dá-se o nome de “conto em primeira pessoa” (narração subjetiva: Ich-Erzählung). O seu oposto é o “conto em terceira pessoa” (narração objetiva: Er-Erzählung), no qual o autor ou qualquer suposto contista fica fora do plano dos acontecimentos.“ (KAYSER, 1976:211-213)

A discussão iniciada com Platão e Aristóteles e retomada no decorrer dos tempos por estudos de teóricos como Hegel, Kayser, Henry James, Lubbock, entre outros, será sintetizada apenas no século XIX, com Norman Friedman e sua proposta de tipologia do foco narrativo, que efetivamente categorizará o narrador. Friedman, partindo de discussões anteriores acerca de cena (acontecimentos mostrados ao leitor) e sumário narrativo (acontecimentos contados e resumidos pelo narrador), cria uma tipologia específica para designar o narrador, baseada em sua participação no fato narrado, no ângulo (posição) e distanciamento mantidos em relação a este mesmo fato narrado e nos canais a partir dos quais narra o acontecimento. Dessa forma, estabelece seis categorias para designar os tipos de narrador encontrados nos textos; cada uma delas leva em conta essa voz que a partir de um determinado olhar conta uma história de uma maneira própria, particular e que, de algum modo, se relaciona com a história contada. Tentaremos descrever a seguir cada uma dessas tipologias narrativas. 1.1.

Narrador onisciente intruso

Narrador em terceira pessoa que se posiciona acima do fato narrado, ultrapassando qualquer possível limite de tempo e espaço. É um narrador que pode comentar a vida e as atitudes das personagens, mesmo que esse comentário seja completamente alheio ao enredo e ao tempo da história contada. Todos os acontecimentos (presentes, passados ou futuros), assim como os pensamentos mais íntimos das personagens, são de seu conhecimento e estão expostos à sua análise e crítica. Utilizado em larga escala por autores dos séculos XVIII e princípio do XIX, o narrador intruso assume diferentes posturas de acordo com o autor. Pode falar diretamente ao leitor, como no caso do autor romântico português Camilo Castelo Branco, ou emitir um julgamento pessoal acerca da moral e dos costumes das personagens, sem a menor preocupação com a neutralidade desse julgamento, como o escritor realista brasileiro Machado de Assis. Pode ainda promover longas pausas reflexivas na seqüência dos acontecimentos afastando momentaneamente o leitor da seqüência dos fatos, como na escrita do realista francês Honoré de Balzac. 1.2.

Narrador onisciente neutro

Também em terceira pessoa, apesar de possuir a mesma onisciência do narrador intruso sobre os fatos, acontecimentos e pensamentos das personagens, o narrador onisciente neutro procura manter uma postura isenta de julgamento acerca do narrado. Esse sentido está muito mais próximo da cena, que restringe a ação, que do sumário, que amplifica essa ação no tempo e no espaço, afastando o leitor do fato narrado. Apesar de também lançar mão desse recurso, o narrador onisciente neutro opta mais freqüentemente pela cena, já que sua utilização não implica em resumir (e comentar) os acontecimentos, acrescentando, assim, sua própria visão ou opinião.

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Mais freqüente nos autores realistas, o narrador onisciente neutro pode ser definido por uma postura impessoal frente aos acontecimentos, não construindo uma opinião explícita do narrado, o que faz com que a história seja contada a partir dos fatos que a compõem e o leitor se coloque na posição do espectador que aguarda o próximo acontecimento. Apesar disso, esse tipo de narrador possui presença forte e definida entre o fato narrado e o leitor. 1.3.

Narrador testemunha

Narrador em primeira pessoa, que vivencia os fatos como personagem secundária do enredo. Embora muitas vezes não esteja diretamente envolvido nos acontecimentos, sua participação confere verossimilhança à narrativa. Narrando a partir de sua própria visão, que não é onisciente, mas pessoal, este tipo de narrador vê os fatos, participa da ação, mas também conta aquilo que soube através de outra personagem. Sua visão, dessa maneira, é influenciada por inferências, descobertas e deduções. “No caso do“eu”como testemunha, o ângulo de visão é, necessariamente, mais limitado. Como personagem secundária, ele narra da periferia dos acontecimentos, não consegue saber o que se passa na cabeça dos outros, apenas pode inferir, lançar hipóteses, servindo-se também de informações, de coisas que viu ou ouviu e, até mesmo, de cartas ou outros documentos secretos que tenham ido cair em suas mãos.” (LEITE, 1985: 38)

1.4.

Narrador protagonista

A narrativa é construída em primeira pessoa, a partir do “olhar” da personagem principal que conta o fato, baseada em sua própria percepção do real, seus pensamentos e sentimentos. Não existe onisciência, o narrador não consegue acessar o pensamento das demais personagens e poderá impor maior ou menor distância entre a história e o leitor, de acordo com a descrição ou sumarização dos fatos narrados. O leitor acompanha os acontecimentos na medida em que eles ocorrem e à medida que são vividos pelo narrador protagonista. 1.5.

Narrador onisciente seletivo múltiplo

Não há um narrador, propriamente dito. A narrativa ocorre a partir da mente das personagens, misturando vozes, impressões e percepções. Não há um filtro prévio a essas percepções, como na narrativa onisciente. O autor adentra os pensamentos das personagens e se encarrega de traduzi-los detalhadamente, com o uso do discurso indireto livre. Pode ocorrer a alternância do ponto de vista de uma determinada personagem para outra, mostrando os anseios, desejos e frustrações de cada uma delas a seu turno ou de todas, de forma fragmentada. 1.6.

Narrador onisciente seletivo

Este tipo de narrativa assemelha-se ao anterior. Entretanto tem como base o pensamento de apenas uma personagem e não de várias. A narrativa transcorre, portanto, a partir de um ponto central: o que direciona o fato narrado são os pensamentos, sentimentos e percepções da personagem principal. Há ainda três outros importantes aspectos ligados às narrativas modernas que se inserem no estudo do foco narrativo por serem recursos diretamente relacionados aos chamados “processos mentais das personagens”. Vejamos: 12


a) Análise mental Diretamente relacionada aos processos de onisciência seletiva e onisciência seletiva múltipla, a análise mental é o aprofundamento dos pensamentos, sentimentos e percepções das personagens, feito de maneira indireta, através de um narrador que os expõe e analisa. b) Monólogo interior Trata-se de um aprofundamento nos processos mentais das personagens, feito de forma a aproximar (também através de técnicas de escrita) a linguagem das expressões de pensamento. c) Fluxo de consciência Apresenta os pensamentos das personagens através de um fluxo ininterrupto, numa linguagem quase sem nexo, próxima a uma manifestação do inconsciente. Os pensamentos podem se misturar a sonhos, obsessões e lembranças. O fluxo de consciência rompe com limites espaço-temporais, cruzando e entrecruzando vários planos narrativos, sem apresentar uma preocupação com a lógica interna da narrativa. Finalizamos, assim, com a descrição das tipologias narrativas de Friedman, o tratamento do foco narrativo. Passemos agora à questão do tempo. 2. Tempo Dividiremos esta análise em duas partes: o tempo na narrativa e o tempo no cinema. 2.1.

O tempo na narrativa

Para analisar a questão do tempo na narrativa, Benedito Nunes, em “O Tempo na Narrativa”, associa música e escrita, na medida em que ambas preenchem o tempo com conteúdo. Para o autor, enquanto na música as ligações com o tempo são entendidas e articuladas segundo medidas temporais, na narrativa o tempo se apresenta de modo quase sempre implícito. Embora de forma incipiente, a preocupação com o tempo na narrativa data da Antigüidade, sendo encontrada já na Poética de Aristóteles, para quem o tempo distingue-se na epopéia e na tragédia. Enquanto a duração da primeira seria ilimitada, a tragédia teria a duração de um dia, ou de “uma única revolução solar” marcando, assim, um critério astronômico de avaliação que, num espetáculo, seria em torno de três a quatro horas. Aristóteles emprega o termo “ação” para designar o início e o fim da atividade de representação e, desse modo, “a noção de tempo está implicada nos dois níveis distintos a que remetem esses significados: o nível da história, relativo aos fatos que ocorrem exteriormente numa certa ordem, e o do enredo, que os ajusta ou configura na unidade orgânica, sistemática, da ação interna à obra.”(NUNES, 1995: 8)

Depois de Aristóteles, muitos foram os filósofos e estudiosos que se preocuparam com a questão do tempo na narrativa, uma vez que ele está permanentemente presente na vida do homem, quer cronológica, quer psicologicamente.

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Para Wolfgang Kayser, o fato narrado deve ser apresentado preferencialmente no passado, o que daria ao texto efeitos mais vivos e intensos. A utilização do tempo verbal no pretérito em grande parte das narrativas ratificaria sua opinião. O autor poderia, ainda, utilizar-se de processos que encurtariam a distância entre o momento da leitura e o passado narrado. Kayser cita como exemplo dessa forma de tratar o tempo o romance “Ulysses”, do autor moderno irlandês James Joyce, no qual o narrador conta os acontecimentos de forma que o tempo da leitura corresponda ao tempo de duração dos fatos narrados. “Certamente há narrativas que suprimem o pretérito como tempo verbal de narrar e relatam tudo no presente. O leitor presencia, desse modo, uma ação que está a desenrolar-se. Mas é também incontestável que tais livros não produzem os efeitos devidos; a sua atitude constantemente “ofensiva” torna-os, antes, enfadonhos. (...) Há ainda outros processos para encurtar a distância com relação ao passado narrado. Assim o narrador pode fazer desenrolar o que conta numa seqüência temporal que corresponde exatamente à temporalidade objetiva do mundo real, fazendo coincidir o tempo objetivo com o da obra literária. O exemplo mais conhecido na atualidade é a obra Ulysses, de James Joyce, cuja leitura dura quase o mesmo tempo que os acontecimentos relatados. “ (KAYSER, 1976:218)

Benedito Nunes, em “O Tempo na Narrativa”, nos apresenta, a partir dos estudos dos diversos autores que trataram a questão do tempo desde a Antigüidade, uma sistematização do tempo em seis categorias, baseadas em características quantitativas, qualitativas, objetivas, subjetivas e culturais. Essa pluralidade de “tempos” não elimina as noções de ordem, duração e direção, comuns a todas elas, mas tenta, de alguma forma, categorizar essa questão. 2.1.1. Tempo físico Relata o tempo exterior das coisas, apresentando a relação entre o momento anterior e o momento posterior à ação. Irreversível, traduz-se em medições precisas e apóia-se no princípio da causalidade, ou seja, sem um dado evento (causa) não existiria outro (efeito) e a ordem do acontecimento de ambos é fixa, não podendo ser invertida. 2.1.2. Tempo psicológico Revela a experiência da sucessão dos estados internos do homem. Também chamado de tempo vivido, seu traço característico é a “descoincidência” intrínseca com as medidas temporais objetivas, melhor dizendo, é o tempo da experiência interna das personagens, tempo do pensamento, sem medida, em que se narra um momento no qual a referência do tempo objetivo é perdida. Passado e presente podem fundir-se, indistintamente, através de lembranças e sentimentos das personagens e do narrador. 2.1.3. Tempo cronológico Tempo dos acontecimentos, firma o sistema de calendários, marcando as datas a partir de acontecimentos qualificados e de outros, que se situam anterior ou posteriormente a esses. Como exemplo, o nascimento de Cristo, que é o eixo de referência de todo o calendário ocidental.

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2.1.4. Tempo histórico Diretamente ligado à história da humanidade, o tempo histórico representa a duração das formas históricas de vida, abrangendo intervalos curtos ou longos. Como intervalos curtos de tempo histórico temos, por exemplo, as guerras, revoluções, migrações, movimentos religiosos, políticos etc. Já como intervalos longos de tempo histórico, podemos citar processos históricos como o desenvolvimento do feudalismo, o advento do capitalismo etc. Numa narrativa, é representado pela indicação precisa de um momento ou acontecimento. Na prosa realista, por exemplo, é usado como marca de objetividade. Autores como o realista português Eça de Queirós ou o francês Flaubert traziam sua história contemporânea imbricada na estrutura de suas obras, citando fatos e acontecimentos de relevância histórica, o que permite ao leitor, até os nossos dias, situar-se facilmente no contexto histórico vivido pelas personagens. 2.1.5. Tempo lingüístico É o tempo linear, a seqüência em que o leitor recebe os fatos, na ordem em que os recebe. Demonstra a forma como os fatos são lingüisticamente apresentados ao receptor. A linguagem é seu único suporte, sendo assim, estabelece-se graças a expressões adverbiais como “hoje”, “ontem”, “depois”, etc. Marca-se através da presença de flashbacks ou da utilização de advérbios de tempo. “Cada vez que você fala com alguém é agora que você fala, e agora é o presente da enunciação funcionando como eixo temporal a partir do qual os eventos se ordenam. A enunciação é o ponto de emergência do presente (presente lingüístico), e é a emergência do presente o tempo próprio da linguagem”. (NUNES, 1995: 22)

2.1.6. Tempo da narrativa Diferentemente dos anteriores, que podem ou não estar presentes numa narrativa, o tempo da narrativa é encontrado em todas elas. De modo geral, é o tempo de duração da seqüência de acontecimentos narrados na história. Não é necessariamente linear, pois vários fatos podem estar sendo narrados de forma simultânea. É o responsável pelo andamento da narrativa, pelo acontecimento da ação. 2.2.

O tempo no cinema

A questão do tempo no cinema está associada ao ritmo da obra. Para Andrei Tarkovski, diretor de cinema, autor de “Andrei Rublev”, “O Espelho” e “Tempo de Viagem” , entre outros filmes russos consagrados nas décadas de 60 a 80, “O fator dominante e todo-poderoso da imagem cinematográfica é o ritmo, que expressa o fluxo do tempo no interior do fotograma” (TARKOVSKI, 1998: 134)

Essa associação não é, no entanto, única; ela complementa alguns importantes atributos que não afetam a existência do filme, mas influenciam fortemente a passagem do tempo: o comportamento das personagens, o tratamento das imagens e a trilha sonora. Somados, esses elementos regulariam a questão do tempo no cinema. Tarkovski vai mais fundo ao analisar o fator “montagem”, segundo o qual dois conceitos combinados criam um terceiro. Essa idéia gerou, nos anos 20, o chamado “cinema de montagem” e foi tomada como o principal elemento de um filme, tendo origem no trabalho de Eisenstein, cineasta russo, 15


diretor de “O Encouraçado Potenkin”, de 1925. Para o autor, a passagem do tempo não se dá no momento da montagem; é, antes, observada quadro a quadro e assim deve ser registrada e reproduzida. No momento da montagem, as tomadas já estariam “impregnadas” de um tempo inerente à obra cinematográfica, responsável pelo ritmo do filme, que de acordo com a fluidez que adquirir será mais ou menos capaz de harmonizar-se e articular-se. A tarefa do cineasta, desse modo, seria a de criar um fluxo de tempo pessoal, transferindo a sua percepção de movimento. Ao trabalhar na montagem, essas marcas pessoais seriam concretizadas como criação artística: “De que modo o tempo se faz sentir numa tomada? Ele se torna perceptível quando sentimos algo de significativo e verdadeiro, que vai além dos acontecimentos mostrados na tela; quando percebemos, com toda clareza, que aquilo que vemos no quadro não se esgota em sua configuração visual, mas é um indício de alguma coisa que se estende para além do quadro, para o infinito: um indício de vida. (...) Na medida em que o sentimento de tempo está ligado à percepção inata da vida por parte do diretor, e na medida em que a montagem é determinada pelas pressões rítmicas nos segmentos do filme, a marca pessoal do diretor é percebida na montagem.”(TARKOVSKI, 1998; 139-145)

Jean Claude Carrière, roteirista francês, autor de inúmeras obras dirigidas pelo consagrado diretor de “Um Cão Andaluz”, o espanhol Luis Buñuel, levanta, em “A Linguagem Secreta do Cinema”, alguns aspectos fundamentais para uma tentativa de entendimento da questão do tempo no cinema: “Lidar com o tempo, quer seja para acelerá-lo, ralentá-lo, cortá-lo ou emendá-lo, dissecá-lo ou até esquecê-lo é um componente orgânico da linguagem do cinema, uma parte da sua sintaxe, do seu vocabulário” (CARRIÈRE, 1995, 124).

Para o autor, o tempo seria um artifício que, quando bem trabalhado, poderia ajudar a criar uma ilusão do real muito intensa. A partir de alguns subterfúgios técnicos (montagens, efeitos especiais) utilizados para criar uma continuidade ou descontinuidade temporal intencionais, o cinema pode destruir o tempo de forma deliberada, eliminando-o mesmo fisicamente, a ponto de “rejuvenescer” uma platéia plenamente envolvida com a obra. O autor aponta algumas formas utilizadas no cinema para caracterização da passagem do tempo, que apresentaremos a seguir: 2.2.1. Legendas Solução que implica em utilizar-se do auxílio da linguagem escrita em socorro da visual. Processo muito usado no cinema mudo, mas evitado pelos cineastas modernos de uma maneira geral, por simbolizar a incapacidade da linguagem visual em marcar a passagem do tempo. Consiste em apresentar frases escritas na tela como “Dois anos depois”, por exemplo. 2.2.2. Fade in Representando um pequeno salto no tempo em direção ao futuro, o fade in consiste numa dupla exposição temporária, dos últimos quadros de uma tomada e dos primeiros da próxima, criando no espectador uma ilusão de passagem do tempo.

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2.2.3. Fade out Representa um salto de tempo maior em direção ao futuro. O fade out é o desaparecimento de uma imagem na escuridão antes do surgimento da próxima, que aparecerá a partir da mesma escuridão. 2.2.4. Câmera e montagem Recurso que consiste em alternar a exibição dos personagens de uma mesma cena através de movimentos de câmera. A passagem do tempo é percebida como se tivesse ocorrido entre os quadros, num “continuum temporal”. 2.2.5. Cortes Os cortes, juntamente com as mudanças de câmeras, podem ser usados para simbolizar a passagem do tempo. Uma seqüência de cortes pode representar anos e anos de vida de uma personagem ou o passar do tempo num dado lugar. 2.2.6. Flash back Técnica narrativa em voga nos anos 40. Inicialmente, mostra-se algum fato ocorrendo no presente, cuja explicação não está ao alcance do espectador. A seguir, inicia-se uma seqüência de imagens ou uma seqüência narrativa com fatos ocorridos no passado, que explicitará a origem do fato futuro. Trata-se de uma negação da temporalidade cronológica. Uma volta ao passado antes que o fim da história se concretize. 2.2.7. Flash forward Semelhante ao Flash Back, trata-se, ao contrário, da ida ao futuro com o objetivo de explicitar um pensamento da personagem, um desejo, um sonho, ou ainda de apresentar uma possível conseqüência de um fato que ocorre no presente. Nem a tipologia apresentada por Benedito Nunes, nem os aspectos levantados por Carrière ou Tarkoviski esgotam a questão do estudo do tempo na literatura ou no cinema, mas sistematizam, de forma didática, as categorias fundamentais para sua análise na narrativa e no drama. Passemos, finalmente, ao estudo das personagens narrativas e dramáticas 3. Personagens Anatol Rosenfeld, em “Literatura e Personagem”, trata a questão da personagem nos vários gêneros literários e no espetáculo teatral e cinematográfico. Para ele, tanto no sentido ontológico (enquanto “correlato objetual” projetado a partir de um texto) quanto no sentido lógico (baseada em seres, fatos e situações reais) “ficção” define-se como tal, independentemente das personagens, que se revelariam como elemento formador da ficção a partir dos aspectos epistemológicos da obra. Assim, um texto pode descrever perfeitamente uma situação real, mas apenas com a “humanização” e “animação” decorrentes da imaginação pessoal do leitor, cria-se a “impressão da presença real” do objeto, transportando o leitor, de forma ilusória, para dentro do mundo imaginário e permitindo, assim, a caracterização do texto como ficcional. Num texto cinematográfico, essa transposição é 17


“(...) conseguida, antes de tudo, através da força expressiva da linguagem, que transforma a mera descrição em vivência duma personagem (...). A narração – mesmo a não fictícia – para não se tornar em mera descrição ou em relato, exige, portanto, que não haja ausências demasiado prolongadas do elemento humano (...) porque o homem é o único ente que não se situa “no” tempo, mas que “é” essencialmente tempo.” (ROSENFELD, 2002:28)

A função narrativa seria exercida também através das tomadas e movimentos de câmera, inexistentes no teatro: “A câmera (...) focaliza, comenta, recorta, aproxima, expõe, descreve. O close up, o travelling, o “panoramizar” são recursos tipicamente narrativos.” (ROSENFELD, 2002:31)

Dessa forma, o leitor participaria dos eventos através da imagem obtida na tela do cinema, que seria um simulacro dos acontecimentos reais, não ficando relegado à descrição dos fatos. A voz do narrador estaria distribuída entre câmera e personagens. Para Paulo Emílio Salles Gomes, em “A Personagem Cinematográfica”, o mais comum no cinema seria a retração do narrador, que tem como objetivo dar liberdade às personagens e suas ações. Do ponto de vista físico e intelectual, o narrador estaria dividido entre as personagens, assumindo, ora um ponto de vista, ora outro e a construção do roteiro obedeceria ao ponto de vista da personagem principal. “Na realidade, um pouco de atenção nos permite verificar que o narrador, isto é, o instrumental mecânico através do qual o narrador se exprime, assume e qualquer película corrente o ponto de vista físico, de posição no espaço, ora desta, ora daquela personagem. Basta atentarmos para a forma mais habitual de diálogo, o chamado “campo contra campo”, onde vemos, sucessivamente e vice-versa, um protagonista do ponto de vista do outro”.(GOMES, 2002:107)

A utilização da palavra enquanto instrumento narrativo em linguagem cinematográfica desenrola-se de forma paralela à narração imagética ou sonora (ruídos). A narrativa visual, segundo Gomes, apresenta o mais imediato e de fácil percepção por toda a audiência. Já a narrativa vocal “sabe muito mais acerca da trama, nos apresentando os fatos de forma sutil e gradativa”. A narração vocal, ausente em alguns momentos, se faz do ponto de vista e através da voz das personagens. Já no teatro, em contrapartida, para Rosenfeld, a função do narrador se mantém nas rubricas autorais e é totalmente extinta no palco, substituída pela intervenção, em primeira instância, dos atores e, posteriormente, do cenário. As personagens absorvem o texto e algumas intromissões narrativas (“disse ele”, “comentou” etc), passando a constituí-las e tornando-se sua fonte, como ocorre no mundo real. Desse modo, ao contrário do cinema, onde tomadas totalmente sem atores, inteiramente visuais ou acompanhadas de um tema musical podem descrever, comunicar, expressar, por seu “cunho essencialmente narrativo”, o que a cena ou o autor querem transmitir, o palco teatral não pode permanecer vazio do elemento humano: “Quando Brecht pede ao ator que não se identifique com a personagem, para poder criticá-la, põe um foco narrativo fora dela, representado pelo ator que assume o papel de narrador fictício. Isso indica claramente que a identificação do ator com a personagem significa que o foco se encontra dentro dela: a aparente ausência do

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narrador fictício, no palco clássico, explica-se pelo simples fato de que ele se solidarizou ou identificou totalmente com uma ou várias personagens, de tal modo que já não pode ser discernido como foco distinto. É por isso também que o palco clássico depende inteiramente do ator-personagem, porque não pode haver foco fora dele.“ (ROSENFELD, 2002:30).

Para Décio de Almeida Prado, em “A Personagem no Teatro”, a personagem é o principal elemento de distinção entre teatro e romance enquanto gêneros. Enquanto no romance a personagem seria apenas mais um elemento, entre tantos outros, no teatro constituiria quase a totalidade da obra, sem que nada existisse independente de sua presença, dispensando a presença do narrador e tornando-se responsável pelo caráter persuasivo atribuído ao teatro: “A personagem teatral, portanto, para dirigir-se ao público, dispensa a mediação do narrador. A história não nos é contada, mas mostrada como se fosse de fato a própria realidade. Essa é, de resto, a vantagem específica do teatro, tornando-o particularmente persuasivo às pessoas sem imaginação suficiente para transformar, idealmente, a narração em ação: frente ao palco, em confronto direto com a personagem, elas são por assim dizer obrigadas a acreditar nesse tipo de ficção que lhes entra pelos olhos e pelos ouvidos.” (PRADO, 2002: 85)

Da mesma forma, se no romance, para Prado, o narrador seria um artifício que possibilitaria ao autor dizer de forma mais clara (objetiva ou subjetivamente) aquilo que a trama dos acontecimentos não é capaz de expressar, no teatro essa função (hoje extinta) teria sido exercida pelo coro da tragédia grega, a quem cabiam críticas e comentários a respeito das características morais, religiosas etc, da ação. A personagem teatral encontra-se, desse modo, totalmente sozinha, tendo sido cortado o fio narrativo que a prendia ao autor da peça. Voltando a Rosenfeld, num texto literário, a personagem seria uma “configuração esquemática”, tanto no âmbito físico quanto psíquico, projetada como indivíduo real determinado. Isso é possível, pois nossa visão de realidade é extremamente fragmentária e as orações de um texto narrativo projetam um mundo ainda mais fragmentário que o nosso. Desse modo, um autor, ao descrever um objeto, pode ter a preocupação de fazê-lo o mais próximo possível do objeto real, mas sempre será um simulacro desse real, criado a partir da visão pessoal do autor e dos aspectos que ele deseja realçar. Tratando mais especificamente da questão da personagem do romance, Antonio Candido, em “A Personagem do Romance”, reflete acerca da importância das personagens dentro do contexto literário. Para o autor, as personagens estariam imbricadas ao enredo e representariam o que há de mais essencial no romance, possibilitando a “adesão” ou não do leitor ao texto, através das possíveis identificações, projeções, transferências afetivas e intelectuais. “Quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida que vivem, nos problemas em que enredam, na linha do seu destino – traçada conforme uma certa duração temporal, referida a determinadas condições de ambiente, O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam.” (CANDIDO, 2002:53-54)

Para o autor, o romancista, na criação de uma personagem, deve levar em conta que cria um ser fictício que precisa, no entanto, comunicar uma impressão de 19


verdade existencial. Para isso, efetua uma escolha cuidadosa dos gestos, frases e demais recursos de caracterização disponíveis, o que lhe possibilitará a criação de um ser “ilimitado, contraditório e infinito em sua riqueza”. Desse modo, o romance estaria baseado: “(...) antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, como um tipo de ser, mesmo fictício, começando por descrever do modo mais empírico possível, a nossa percepção do semelhante. (...) a noção a respeito de um ser, elaborada por outro ser, é sempre incompleta, em relação à percepção física inicial. É que o conhecimento dos seres é fragmentário” (CANDIDO, 2002:55-56)

Nesse sentido, ainda segundo o mesmo autor, personagens cada vez mais complicadas psicologicamente são criadas, mas sempre dentro de duas formas de abordagem: a) como seres íntegros e simples, facilmente reconhecíveis, marcados por traços que os caracterizam; b) como seres complexos, que não se esgotam nos traços característicos, mas estão sempre prontos a apresentar marcas desconhecidas. Para reforçar a idéia de que a criação de personagens sempre acompanhou esta divisão rígida e pré-definida vinculada ao seu grau de maior ou menor complexidade, Cândido nos apresenta as sistematizações de Johnson (séc. XVIII), que divide as personagens em personagens de costumes e de natureza, e Forster (séc.XX), que cria os conceitos de personagem plana e esférica. Tentaremos descrever a seguir esses quatro tipos de personagens. 3.1 Caracterização das personagens segundo Johnson 3.1.1 Personagens de costumes Divertidas e superficiais, as personagens de costumes apresentam-se por traços marcantes e caricatos, invariáveis e desde logo revelados. Utilizados para caracterizar personagens cômicos, pitorescos, demasiado sentimentais ou extremamente trágicos. 3.1.2 Personagens de natureza Personagens marcantes, sem a regularidade das personagens de costumes, possuem características não imediatamente identificáveis; para entendê-las é necessário aprofundar-se numa busca do não pitoresco. A personagem de natureza é vista a partir de sua existência, sem marcas baseadas nas relações sociais. 3.2

Caracterização das personagens segundo Forster

3.2.1 Personagens planas Construídas em torno de uma única idéia ou qualidade, não mudam com as circunstâncias. Quase caricatas e acentuadamente estáticas, são reconhecidas com facilidade quando surgem no texto e também facilmente lembradas pelo leitor. Personagens de duas dimensões (2D), como as de desenho animado e, por isso, planas. 20


3.2.2 Personagens esféricas (redondas) Organizadas com maior complexidade do que as planas e capazes de surpreender convincentemente o leitor, as personagens esféricas revelam-se de forma gradual, por meio de tramas, oscilações etc. Possuem, assim, três dimensões (3D), e não duas, como as planas. Afeitas a realizações mais altas, são imprevisíveis e podem facilmente arriscar-se por alguma coisa. Ainda dentro da sistematização de Forster, uma distinção entre a personagem de ficção e a pessoa viva nos é apresentada por Antonio Candido. Para Forster, a personagem de ficção, que designou “Homo Fictus”, vive segundo as mesmas linhas de ação da pessoa viva, o “Homo Sapiens”, mas suas relações com o mundo são mais intensas. Do ponto de vista do leitor, o “Homo Fictus” traz a possibilidade de um conhecimento mais interno, íntimo, enquanto o “Homo Sapiens”, o ser vivente que no rodeia e com o qual convivemos, só nos permite um conhecimento externo, superficial. A personagem de ficção, dessa forma, nos permite um conhecimento “(...) muito mais coeso e completo (portanto mais satisfatório) do que o conhecimento fraqmentário ou a falta de conhecimento real que nos atormenta nas relações com as pessoas.” (CANDIDO, 2002:64)

Partindo do pressuposto de que as personagens são seres fictícios e, portanto, cópias do real, Antonio Candido afirma que a criação da personagem “oscila entre dois pólos ideais: ou é uma transposição fiel de modelos ou é uma invenção totalmente imaginária”. (2002:70). A partir destes dois pólos, elas seriam criadas por uma vasta gama de formas de invenção, que pode ser esquematizada da seguinte forma: 3.3

Formas de invenção de personagens

3.3.1 Experiência direta Personagens transpostas com relativa fidelidade de modelos que o romancista adquire de sua experiência direta interior ou exterior. Subdivide-se em: a) Incorporação das vivências e sentimentos do escritor (experiência interior, projetada); b) Transposição de pessoas com as quais o escritor teve contato direto (experiência exterior) 3.3.2 Reconstituídas Personagens transpostas a partir de modelos reconstituídos pelo escritor através de documentos ou testemunhos aos quais soma o caráter imaginativo. 3.3.3 Modelo real Personagens construídas a partir de modelo real, que o escritor desfigura e o recria, mantendo, todavia, a capacidade de identificação.

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3.3.4 Modelo real conhecido Personagens construídas a partir de modelo real, direta ou indiretamente conhecido, que serve como estímulo à caracterização dada pelo escritor. A personagem resultante dessa construção pode não ter nenhuma semelhança ao modelo real. 3.3.5 Modelo real dominante Personagens elaboradas a partir de modelo real dominante, ao qual se juntam outros modelos secundários que serão refeitos a partir da criatividade do escritor. 3.3.6 Fragmentos de modelos reais Personagens construídas a partir de fragmentos de modelos reais, sem predominância de uns sobre os outros. A personagem resultante dessa junção terá personalidade nova, independente das demais. 3.3.7 Concepção de homem Personagens que obedecem a uma certa concepção de homem, com um intuito simbólico, sem raízes reais na personalidade fictícia resultante da criação. O leitor percebe uma espécie de “arquétipo interior” e neste grupo se enquadram os homens feridos pela realidade, os humilhados, os ofendidos e aqueles que encarnam o ideal de “homem puro, refratário ao mal”. Partindo dessa tipologia, o autor afirma que a utilização de um ou de outro modelo depende das intenções do romancista e a questão da verossimilhança não está associada à escolha do modelo, mas à estrutura e organização interna do texto: “(....) a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside o romance e das intenções do romancista. (...) Em todos os casos (...) o que se dá é um trabalho do criador, em que a memória, a observação e a imaginação se combinam em graus variáveis, sob a égide das concepções intelectuais e morais. (...) a verdade da personagem não depende apenas, nem sobretudo, da relação de origem com a vida, com modelos propostos pela observação, interior ou exterior, direta ou indireta, presente ou passada. Depende, antes do mais, da função que exerce nas estrutura do romance, de modo a concluirmos que é mais um problema de organização interna que de equivalência à realidade exterior.”(CANDIDO, 2002:74-75)

3.4 Caracterização das personagens segundo Doc Comparato Doc Comparato, em seu guia da arte técnica da escrita para televisão e cinema, “Da Criação ao Roteiro”, classifica as personagens quanto à complexidade e a função exercida na obra. Para o autor, “Uma personagem tem de possuir todos os valores que consideramos universais (morais, éticos, religiosos, afetivos, políticos, etc), e também os chamados pessoais, que apenas têm significado naquela personagem específica (obsessão pelo trabalho, mania de ordem, etc). Os ingredientes que entram na composição de uma personagem são basicamente os mesmos; o que varia são as proporções que se dão a esses valores” (COMPARATO, 2000:128)

3.4.1 Protagonista

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O herói da história. Materializa o tema central do texto e recebe a maior intensidade dramática. Possui objetivos claros e ações bem demarcadas. Encontra-se em primeiro plano, no centro da ação. 3.4.2 Coadjuvante Coadjuvante: colaborador; personagem secundária que está ao lado do protagonista ou do antagonista. Menos complexa, pode ser um elemento não humano. 3.4.3 Antagonista Opositor, protagonista às avessas. Pode se manifestar através de um grupo de personagens. Age no sentido do prejuízo, da perseguição ao protagonista. 3.4.4 Componente dramático De função complementar na obra, não possui a profundidade da personagem, servem como elementos explicativos, de ligação, normalmente caracterizados como personagens sem complexidade ou estereotipadas. Com essas classificações, encerramos a abordagem dos elementos da narrativa. Passemos agora à análise do mal (ou do elemento “crueldade”) e de outros temas pertinentes na obra de Clarice Lispector.

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II – ASPECTOS DA OBRA DE CLARICE LISPECTOR 1. Do Mal e “Outros Demônios” Yudith Rosenbaum, em Metamorfoses do Mal, uma leitura de Clarice Lispector, analisa a obra da autora sob a ótica dos aspectos considerados vinculados à idéia do mal. Para a autora, a temática do mal sempre esteve presente na Literatura, desde a Antigüidade até a Era Moderna: “A expressividade do mal sempre habitou a literatura – desde Homero, que fez da cólera de Aquiles o motor da Ilíada, passando pelo pecado original, que inaugura a história do homem na Bíblia ou pelo Inferno de Dante, viagem através do império do mal. Dos seus primórdios à modernidade, o mal sempre encontrou palavras que o representassem.“ (ROSEMBAUM, 1999: 17)

Em Clarice Lispector, a desconstrução da sintaxe e a transgressão do foco narrativo tradicional, aliadas à expressão de um “eu” distinto do herói tradicional da literatura do século XIX por sua pulverização e descentralização intrínsecas, constróem essa “expressividade do mal”, que é encontrada em aspectos vinculados à questão do sadismo, manifestado de diferentes maneiras em sua obra. Nitidamente contrastante à escrita de outros autores brasileiros da primeira fase do modernismo, a escrita de Clarice destaca a palavra como “força demolidora” frente a um universo com o qual entra em conflito. A construção da subjetividade, transformada em tema, é a potência que desmascara as relações do humano com as contradições e os antagonismos a que se expõe, totalmente fragmentado, no mundo em que vive. Rosembaum propõe uma leitura da obra de Clarice Lispector fundamentada na representação simbólica das “forças arcaicas estruturantes da subjetividade humana”. Desse modo, entende que: “Se o sujeito contemporâneo está cindido, fragmentado, errante, a linguagem que o expressa acompanha as contingências e a precariedade de seus gestos, mimetizando a periclitância do enredo e das personagens. Ao mesmo tempo, a modernidade está marcada por uma enorme desconfiança na capacidade e no poder de representação do discurso. (...) Investigar o sadismo na obra de Clarice é participar de uma crítica voltada para esse sujeito destronado perscrutando-lhe os movimentos mais íntimos e arcaicos.” (ROSEMBAUM, 1999: 23)

Essas forças arcaicas se manifestam na obra de Clarice Lispector de diferentes modos e através de inúmeras formas de expressão, caminhando da perversidade à ironia, da inveja à destrutividade, passando pela agressividade e o sadomasoquismo. Analisaremos, a seguir, algumas dessas formas de expressão. 1.1.

Sadismo

Para a autora, o sadismo é um elemento associado à pulsão transformadora na obra de Clarice Lispector e estaria presente não apenas na caracterização de muitas de suas personagens, como também na temática e na própria estruturação de sua escrita; através da utilização de imagens e outros recursos narrativos caracteriza-se um “estilo sádico de narrar” com o qual Clarice, de certa forma, manipularia o leitor dentro de sua escrita “poderosa”.

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1.1.1. O sadismo na narrativa A esse respeito, Leyla Perrone-Moisés, analisando os elementos do fantástico no conto “A mensagem” de Clarice Lispector (publicado em “Felicidade Clandestina”, 1971), levanta a questão da anulação do tempo, expressa através de acontecimentos narrados num pretérito perfeito que rompe a continuidade preparada por vários pretéritos imperfeitos anteriores ao fato. Numa tentativa de explicação desta anulação, o narrador oscila entre razões naturais e causas sobrenaturais e misteriosas causando no leitor uma sensação de incompreensão insuportável, dada a ameaça do sobrenatural. O próprio tema do conto, ligado ao topos literário “casa mal-assombrada”, já apresenta a intenção de causar no leitor um certo mal-estar. Aliados ao tema e objetivando a intensificação dessa sensação, os processos retóricos utilizados na descrição e na narrativa tomam o sentido figurado do assombro “ao pé da letra”, criando várias possibilidades de leitura (psicanalítica, sociológica, sócio-psicológica, feminista) que impediriam a liberação final do leitor, inibindo, de certo modo, o processo de catarse. Esse tratamento do narrar, definido por Perrone-Moisés de “perversidade”, estaria fortemente presente na postura desse narrador não participante, mas onisciente, capaz de revelar ao leitor, comentando e classificando, os pensamentos mais íntimos das personagens. Ainda a respeito do narrador do conto analisado, a autora afirma: “As perguntas colocadas pelo narrador ficam sem resposta ou recebem respostas evasivas. A ausência de resposta parece dever-se, até certo ponto, ‘a ignorância ou ‘a confusão das próprias personagens, cuja voz interior o narrador estaria assumindo. Mas em vários momentos fica claro que o narrador sabe mais que elas (...) Revelando assim, várias vezes seu saber maior e sonegando informações conclusivas, o narrador reduz o leitor a uma indecisão (ou a uma tolice) tão grande quanto a das personagens. A leitura é uma busca cega de um sentido sempre adiado, análoga à busca das personagens.“ (PERRONE-MOISÉS, 1998: 171)

Para Rosembaum, a manipulação do leitor por essa escrita “poderosa” de Clarice pode ser vista percorrendo toda sua obra. Em “Perto do Coração Selvagem”, romance de 1944, as oscilações do foco narrativo entre primeira e terceira pessoas marcam uma "errância" da personagem Joana, que assume e perde seu lugar a todo momento, para um narrador que se apropria do discurso. Dessa maneira, o leitor, desnorteado, mergulha nas inquietações da personagem, quando a narrativa está em primeira pessoa, e sobe à tona quando o narrador (terceira pessoa) assume esse discurso, impregnando o romance de uma pluralidade de vozes. A personagem Joana concentra, numa única visão, a diversidade de ângulos com que olha o mundo e é olhada por ele. A respeito da voz da personagem ser apresentada através do narrador, Rosembaum cita Berta Waldman, ao tratar da questão do “trânsito narrativo” em “A Paixão segundo CL”: “Na medida em que (o narrador) se identifica extremamente com as personagens, ele diz o que elas diriam, e o que elas dizem em discurso direto é o que o narrador poderia dizer. Com isso, o diapasão narrativo é dado pelo discurso ‘indireto livre’, espaço de enunciação neutro, a meio caminho do ‘eu’ e do ‘outro’ ”. (ROSEMBAUM, 1999: 37)

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O que Rosembaum chama de “sadismo narrativo” de Clarice poderia ser visto em outras obras da autora, como no conto “A Quinta História” (publicado em “A Legião Estrangeira”, 1964), no qual sai da esfera temática para efetivamente caracterizar uma atitude de construção narrativa, causando estranhamento no leitor. Narrado em primeira pessoa, o conto apresenta uma narradora voyeur que tenta consumar um assassinato de baratas. Intertextualizando com “As mil e uma noites”, a narrativa “prende o leitor nas garras do texto”, através do recurso da repetição e da inconclusão da história, colocando-o num moto perpétuo que impede a finalização da leitura. Essa mesma postura voyeurística é encontrada e aperfeiçoada na narradora de “A Paixão segundo GH”, romance de 1964 narrado em primeira pessoa em que leitor e narradora possuem uma relação de ouvinte e salvador, respectivamente, pontuada por uma narrativa que trabalha no campo das categorias negativas, remetendo o leitor para incertezas, incomunicabilidade, desmontagem, paradoxo, obscuridade, deformação e desconcretização. Rosembaum analisa ainda um outro texto de Clarice em que pode ser encontrada essa postura “sádica do narrador”. Trata-se do conto “A Fuga”, publicado em 1979; inicialmente cria no leitor uma empatia com a personagem em fuga, pela projeção de seu próprio desejo de liberdade; posteriormente, esse sentimento transforma-se em frustração, com a desistência por parte da fugitiva. O narrador sádico, desse modo, numa atitude nada inocente, cria um mal-estar generalizado nesse leitor que vê se frustrarem seus próprios desejos de liberdade com a desistência da personagem. “Clarice Lispector cria uma intimidade com o leitor de modo a enlaçá-lo melhor; o que se poderia cautelosamente chamar de “narrador sádico” parece aproveitar da cumplicidade com o leitor, e estaria a serviço de desloca-lo de um repouso, sempre adiado.” (ROSEMBAUM, 1999: 125)

1.2.

Maldade e perversidade

Não é apenas na estrutura narrativa que o elemento da crueldade pode ser encontrado na obra de Clarice Lispector. Algumas de suas personagens são construídas de maneira a apresentarem comportamentos relacionados a características ligadas à questão do mal, como traços de perversidade, além de sadismo e inveja, impedindo sua classificação convencional em tipos e perfis psicológicos. A relação bíblica entre o Mal e o feminino, apontada na história do nascimento da humanidade, protagonizada por Eva (como afirma Rosembaum citando o ensaio de Rita Schmidt, “Pelos Caminhos do Coração Selvagem: Sob o Signo do Desejo”) traça seu percurso na Literatura, desde a Antigüidade até a Modernidade, mostrando sua marca em autores como o realista brasileiro Machado de Assis (em personagens como a conhecida “Capitu”) ou o francês Marcel Proust, entre outros de igual importância. “Não era o Mal que lhe dava idéia do prazer, que lhe parecia agradável; era o prazer que lhe parecia maligno. E como cada vez que se entregava ao prazer vinha ele acompanhado daqueles maus pensamentos que durante o resto do tempo estavam ausentes de sua alma virtuosa, ela acabava por achar no prazer alguma coisa de diabólico, por identificá-lo com o Mal.” (PROUST, 2001:162)

A paixão pelo mal e a liberdade de exercer essa escolha é vista com naturalidade pelas personagens femininas de Clarice, como a própria Joana, de “Perto do 26


Coração Selvagem”, Sofia, de “Os Desastres de Sofia” (“A Legião Estrangeira”, 1964), ou a personagem narradora e autobiográfica de “Felicidade Clandestina” (1971), entre outras. Rosembaum diferencia maldade de perversidade, ressaltando a importância desta diferenciação no entendimento e caracterização das personagens claricianas. Para isso, cita Patrick Vignoles (A Perversidade, 1991): “A maldade sempre está ligada a atos determinados (contra a lei, o bem, o justo, o honesto), enquanto a perversidade é um estado, uma disposição que podemos classificar de indeterminada ou que nos aparece como determinada para qualquer coisa, isto é, pronta para tudo. (...) O perverso diverte-se com demolir o mundo humano, como se recusasse fazer parte dele ou como se fosse impotente para nele integrar-se.” (ROSEMBAUM, 1999: 37)

1.3.

Inveja

Roberto MEZAN, em “A Inveja”, estuda esse conceito a partir de sua conceituação enquanto pulsão/elemento narcísico da sexualidade. Para o autor, a inveja é um desejo de se igualar a outro a quem se admira por algum motivo; é dificilmente confessada e surge contra a vontade daquele que inveja. Originada narcisicamente no olhar daquele que deseja o que é do outro, a inveja, diferentemente do desejo que simboliza o “querer também”, é o “querer para mim” e sua falta representa dor, ao mesmo tempo em que a alegria do outro pela posse é insuportável. O invejoso inicialmente atribui ao outro uma condição especial de que se imagina privado, por algum motivo, para, mais tarde, vincular esse estado à posse de algo que será o suporte da inveja. Segundo o autor, “o objetivo do invejoso é privar o outro da coisa invejada (mesmo que para isso tenha que eliminá-la). O desejo que acompanha a inveja é (...) um desejo de coincidência, de restauração da plenitude narcísica rompida com a descoberta do limite e da diferença, isto é, do intervalo entre um e outro(...) A inveja é a inveja do impossível, que representa um estado de coincidência com o outro que é nada mais que uma faceta do narcisismo (...) O invejoso mantém lado a lado o desejo de coincidência e de plenitude e a defesa contra ele. Mantém-se entre os dois desejos.” (MEZAN, 2002: 134-139)

A questão do olhar, como instância através da qual surge a inveja, relaciona-se, para Mezan, à mesma palavra em latim, invídia, que provém de vedére (ver) e origina-se no mito de Narciso, que se apaixona por seu reflexo na água, associado à imagem da perfeição e da idealização. Clarice Lispector se utiliza dessa força mitológica do olhar, transformando as personagens em escravas de um desejo capaz de paralisá-las. Rosembaum apresenta a “inveja” nas personagens de Clarice como sentimento desorganizador, capaz de levá-las a atitudes imprevistas e posturas perplexas. A autora analisa, no conto “Legião Estrangeira” (1964), a personagem que, por não poder possuir um “pintinho” que a vizinha ganhara na véspera de natal, o mata. Esse assassinato é justificado pela própria dona do animal morto como um ato de amor. Desse modo, afirma: “o auge da expressão amorosa é seguido pela morte do mesmo objeto que proporciona a felicidade.” (ROSEMBAUM, 1999:94) Outra personagem clariciana que pode ser caracterizada pela inveja é a protagonista de “Felicidade Clandestina”. Neste conto a narradora, uma menina que ama ler, deseja ardentemente um livro de uma colega de escola, filha de um 27


livreiro, que a cada dia, por puro prazer sádico, inventa uma nova desculpa para não emprestá-lo. Todas as referências à dona do livro são marcadas pela ausência de imparcialidade da narradora (“A menina era gorda, baixa, sardenta... tinha um busto enorme”). Quando, finalmente, obtém a posse do objeto desejado, a narradora, muito mais do que usufruir deste, se realiza, também sadicamente, com a perda da posse da outra. O enredo é movimentado por essa fissura de caráter das personagens que mantêm entre si o que Rosembaum chama de “controle sádico”, marcado por suas atitudes de “crueldade, pura vingança, calma ferocidade, sadismo, tortura densa”. Inveja e sadismo dão a tônica deste conto. 2. A Questão da Alteridade A questão da alteridade, na obra de Clarice Lispector, relaciona-se à possibilidade de transformação da identidade das personagens. Segundo Daniela Kahn, em “A Via Crucis do outro”, “(...) identidade e alteridade aparecem como dois conceitos inseparáveis na obra de Clarice Lispector, sendo que um se define em função do outro. Isto talvez seja decorrência de um paradoxo que parece nortear a representação da relação da alteridade na obra clariciana: a busca do outro se dá a partir de uma posição narcisista, que se caracteriza por uma dificuldade de discriminação entre eu e outro. O encontro com o outro configuraria o fracasso de uma tentativa intensa de superação desse narcisismo. Em termos de representação literária isso se concretiza na adoção de uma linguagem suficientemente sofisticada e sutil capaz de tematizar, de diversas formas e em diversos níveis, essa zona de indiferenciação de limites borrados entre o eu e o outro.” (KAHN, 2000:9)

Nesse sentido, a relação entre as personagens na obra de Clarice estaria impregnada de sua relação, em primeiro plano, com um narrador (enquanto personagem, em primeira ou em terceira pessoa) e, em segundo, com o autor e o leitor que se inter-relacionariam. A identificação com o outro substituiria a própria interação das personagens entre si. Na escrita clariciana, pode-se observar o duplo “narrador – autor” expresso através da projeção deste, naquele. Exemplificando, podemos verificar um reflexo de fatos da vida de Clarice na personagem narradora de “Felicidade Clandestina”. A menina (como a autora, na infância) tinha obsessão pela leitura e também nasceu numa cidade nordestina. Outra personagem, Carmem, do conto “O Corpo” (“A Via Crucis do Corpo”, 1974), também se mostra como duplo da escritora, ao apresentar como suas algumas falas e trechos de textos de Clarice e insinuar, através da compra de uma máquina de escrever, uma relação paródica com a profissão de escritor. Ainda segundo Daniela Kahn, o duplo, na obra de Clarice, seria sempre representado por uma versão mais “tosca” de uma personagem mais elaborada, geralmente o protagonista. Esse “duplo, seria uma personagem de caráter ambíguo, responsável por confusões e erros de percepção por parte dos outros personagens e do próprio leitor. Além disso, a falta de contornos definidos do “duplo” o caracterizaria sempre como personagem derivado, no limiar entre ele e o que a autora chama de “mesmo” . Luis Antonio Mousinho Magalhães, em “Cultura, Perdição, Salvação: a imitação do escuro”, analisa a questão da alteridade na obra da Clarice Lispector como uma possibilidade de retomada de uma reflexão no outro, um poder de pensar 28


segundo o outro que enriquece as personagens. Para Magalhães, a autora utilizase de sonoridades e silêncios em sua narrativa (que ele chama de “escureza”), que possibilitariam a abertura da comunicação: “O romance clariciano parece “apostar numa possibilidade de transfiguração – se o mundo não pode ser reparado, pode ser recriado – caos e cosmos. Num mundo reificado, tecnificado, onde as relações entre as coisas e a própria percepção delas quase sempre é automatizada e cega, a compreensão possível talvez se faça pela escureza da não compreensão e das possibilidades que esta funda”. (MAGALHÃES, 2002: 137)

A própria atitude narrativa pode apresentar traços de alteridade, como pode ser percebido na narração em primeira pessoa do conto “A Quinta História”. Em seu todo, enfatiza-se a distinção entre o “eu que vive a história” e o “eu que relata a história”, ainda que ambos representem a mesma pessoa: a narradora personagem que tenta matar baratas. Ainda a respeito deste conto, Clarice Lispector transforma, por assim dizer, a arte de narrar (linguagem) em seu duplo (metalinguagem), ao construir a trama em forma de episódios que contam basicamente a mesma história, numa estrutura em camadas que lembra o corpo de uma barata. O leitor é convidado a participar de uma espécie de seriado em que: “o homem representado é portador de uma dupla historicidade: a historicidade de seu destino individual e coletivo que se perpetua através da historicidade da própria forma de relato de sua experiência. Nesse sentido o registro oral ou escrito dessa experiência tem a função de conserva-la viva na memória de uma coletividade; relatar tem a função de impedir a morte através do esquecimento.” (KAHN, 2000:27)

Outro aspecto de alteridade presente na narrativa de Clarice Lispector, segundo Kahn, é a questão do onírico. Para a autora, a realidade onírica clariciana, presente, por exemplo, na crônica “A Geléia Viva”, de 1942, se constitui em desdobramento do real, ou “duplo” da vivência diurna. O sonho subverteria os parâmetros do chamado “estado de vigília”, fazendo com que os elementos da narrativa (tempo, espaço e personagens) se combinem de maneira inusitada. “Ao conjugar a experiência do sonho com a realidade do despertar, o texto apresenta duas formas distintas de apreensão da realidade, que se constituem uma no duplo da outra, e que têm o seu paralelo no jogo de duplicações presente nos diversos níveis do texto, desde o conteúdo, passando pela duplicação do próprio texto, até atingir os microelementos da linguagem.” (KAHN, 2000:36)

Para encerrar a questão da alteridade na obra de Clarice Lispector, é preciso enfocar a construção das personagens femininas nos recorrentes triângulos amorosos, compostos por duas mulheres e um homem. De acordo com Daniela Khan, essa construção se dá, geralmente, pela ênfase nas diferenças, pelo contraste, organizado a partir da oposição básica entre “forma” e “conteúdo”. Assim, se uma das personagens envolvidas for bonita, a outra, certamente, ou será feia, ou possuirá características físicas grotescas. O contraste poderá ser percebido na aparência física, na natureza psicológica ou na oposição dessas duas facetas. Desse modo, uma personagem feia e grotesca poderá apresentar uma alma delicada, sensível, enquanto seu duplo (a bonita do mesmo triângulo amoroso) apresentará problemas de caráter ou revelará maneiras grosseiras. O triângulo amoroso do conto “O Corpo” possui características um pouco diferenciadas. As personagens femininas Carmem e Beatriz, que representariam 29


dois vértices de um triângulo amoroso juntamente com Xavier, são apenas uma das pontas. Numa relação de interdependência, elas reforçam inconscientemente essa condição de dependência na medida em que, como opostas, assumem papéis complementares na relação com o outro vértice, Xavier. O triângulo amoroso só se configura, efetivamente, quando o trio se transforma num quarteto, como veremos adiante. Outros tipos de representação da alteridade podem ser encontrados ao longo da obra de Clarice Lispector; entretanto, as formas aqui apresentadas são suficientes para balizar nossa análise. Passemos a ela.

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DISCUSSÃO O objeto de nossa análise é o elemento crueldade, que pode ser observado na voz do narrador, no tratamento dado à narrativa e na postura das personagens; interessa-nos observar o que foi feito dele na transposição do conto para o cinema, uma vez que não há nenhum tipo de narrador no filme de José Antonio Garcia. Apresentaremos, a seguir, um levantamento dos elementos da narrativa (narrador, personagens e tempo) do conto “O Corpo” e apontaremos características que demonstram não só que a “crueldade” está presente na voz do narrador, como também de que forma alguns elementos da narrativa são transformados para que seja possível transpor para o cinema essa crueldade, tão presente no conto de Clarice Lispector.

1 A Narrativa 1.1 O narrador Diferentemente de outras obras mais expressivas de Clarice Lispector, o livro A Via Crucis do Corpo, em que se insere o conto O Corpo, nos apresenta uma escrita menos voltada à preocupação com a linguagem, traço característico de seu estilo. O livro, uma encomenda de seu editor, foi escrito em apenas um final de semana, a partir de argumentos previamente fornecidos à autora. Mais direto e menos preocupado com a forma, o conto O Corpo possui um narrador que assume uma postura comprometida e um tanto quanto “bruta” e “maldosa”; essa postura vai basear nossa leitura e, a partir dos escritos de Yudith Rosembaum, será nomeada como “crueldade” . Baseando-nos em Ligia Moraes Leite, podemos afirmar existir predominantemente no conto O Corpo um narrador em terceira pessoa, do tipo onisciente intruso, por sua constante emissão de opiniões e juízos de valor acerca das personagens que, em alguns momentos, tornam-se verdadeiros julgamentos. “Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada” (LEITE, 1985, p.27)

Presente em toda a narrativa, esse narrador intruso é uma característica mais forte na primeira parte do conto (antes da descoberta da amante de Xavier). Ele apresenta as personagens utilizando adjetivos depreciativos e maldosos como “gorda”, “enxundiosa”, “truculento” e narra os acontecimentos através de comentários “cruéis” sobre suas vidas e moral. Essa marca pode ser vista por todo o texto, através de um tratamento impregnado de desdém e uma linguagem maliciosa e cruel: “Beatriz comia que não era vida.” ( p.27, grifo nosso) “Cada noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo. Uma não tinha ciúme da outra” ( p.27, grifo nosso) “Pareciam um bolero” (p.28, grifo nosso) “Beatriz, com suas banhas, escolhia um biquíni e um sutiã mínimo para os enormes seios que tinha.”(p.28, grifo nosso) “Na verdade não precisava de nada, era uma pobre desgraçada” ( p.29, grifo nosso) “Xavier comia com maus modos: pegava a comida com as mãos, fazia muito barulho para mastigar, além de comer com a boca aberta. Carmem, que era mais fina, ficava

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com nojo e vergonha. Sem vergonha mesmo era Beatriz que até nua andava pela casa.” (p.31, grifo nosso) “Nessa noite as duas fizeram amor na sua frente e ele roeu-se de inveja” (p.32, grifo nosso)

Um outro tipo de foco narrativo aparece em pequenos trechos introdutórios a um comentário ou observação intrusa, a onisciência neutra: “Na noite em que viu o Último Tango em Paris foram os três para cama: Xavier, Beatriz e Carmem.” (p. 27). Logo a seguir, o narrador intruso retorna comentando “Todo o mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres.”(p.27). Cabe observar que o narrador onisciente neutro, portador de uma postura impessoal e isenta de julgamentos frente aos acontecimentos, não predomina ao longo da narrativa. No segundo momento do conto, após a descoberta da amante de Xavier, o narrador em terceira pessoa abre espaço para uma narrativa em primeira pessoa composta por discursos diretos das personagens, introduzidos por um narrador onisciente neutro em terceira pessoa. Os diálogos entre Carmem e Beatriz movimentam a história “gota a gota”, num lento e torturante anúncio da morte de Xavier. A crueldade, observada no tratamento dispensado às personagens pelo narrador intruso inicial, passa, numa espécie de “sadismo narrativo”, a ser destinada ao leitor, que, sem alternativas, é obrigado a tornar-se testemunha da trama da morte de Xavier. “Carmem pensou, pensou e disse: − Acho que devemos dar um jeito. − Que jeito? − Ainda não sei. − Mas temos que resolver. − Pode deixar por minha conta, eu sei o que faço” (p.32 e 33) “Carmem disse: − Tem que ser hoje.”(p.33 ) “Disse para Beatriz: − Na cozinha há dois facões. − E daí? − E daí que nós somos duas e temos dois facões. − E daí? − E daí, sua burra, nós temos armas e poderemos fazer o que precisamos fazer. Deus manda. − Não é melhor não falar em Deus nessa hora? − Você quer que eu fale no Diabo? Não, falo em Deus que é dono de tudo. Do espaço e do tempo. (p.33)

O “sadismo narrativo”, já apontado por Rosembaum na obra de Clarice Lispector, nesse momento se amplia: a crueldade inicialmente observada na relação entre o narrador intruso e as personagens agora atinge também o leitor. Uma outra forma de “sadismo narrativo” é verificada através da utilização diferenciada de um dos mais característicos recursos da narrativa de Clarice, o monólogo interior. Em O corpo esse recurso não nos é apresentado através da voz de uma das personagens, mas na voz do narrador, também a partir da descoberta da amante de Xavier. O narrador, até então não participante, mas onisciente, inicia uma série de perguntas que ele mesmo responde logo a seguir, numa espécie de jogo em que antecipa para o leitor acontecimentos fundamentais ao desenvolvimento da trama, causando, conseqüentemente, uma frustração nas suas expectativas:

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a) “Como é que começou o desejo de vingança? As duas, cada vez mais amigas, desprezando-o”. (p. 32) Nesse ponto, o narrador revela que as personagens Carmem e Beatriz irão vingar-se de Xavier, eliminando a possibilidade dessa descoberta pelo leitor através da compreensão da sucessão dos acontecimentos. b) “E Xavier? O que fariam com Xavier? Este parecia uma criança dormindo.”(p.32) Este questionamento das personagens Carmem e Beatriz, apresentado através da voz do narrador e seguido da afirmação de que Xavier dormia e, portanto, estava indefeso, faz com que o leitor já antecipe um desfecho trágico para a personagem. c) “Os dois facões eram amolados, de fino aço polido. Teriam força? Teriam sim.” (p.34) O narrador, além de afirmar que o assassinato será consumado (“Teriam sim”), revela ao leitor, antes do momento do crime, a arma que será utilizada no mesmo (“facões de fino aço polido”). d) “E agora? Agora tinham que se desfazer do corpo.” (p. 34) O narrador antecipa que as duas pretendem esconder o corpo de Xavier, o que faz com que o leitor elimine, de antemão, algumas possibilidades de continuidade imediata para a narrativa, como um flagrante, ou o arrependimento das assassinas, por exemplo. Podemos afirmar, desse modo, que a crueldade do narrador, observada inicialmente no tratamento dispensado às personagens, extrapola o âmbito da narrativa, atingindo o leitor, que é manipulado em três diferentes momentos: a) ao utilizar-se de adjetivos e períodos predominantemente pejorativos na descrição das personagens, o narrador sugere ao leitor uma opinião a respeito delas, modelando a leitura do conto de acordo com suas próprias impressões (do narrador). b) ao transferir a narrativa para as personagens, num discurso direto que anuncia, passo a passo, a decisão de Carmem e Beatriz, faz com que o leitor testemunhe a trama que levará ao assassinato de Xavier. c) ao conduzir, de forma nada inocente, a narrativa que antecede o desfecho do conto, revelando (ou deixando subentendidos) os próximos acontecimentos, o narrador tira do leitor o direito ao prazer de descobrir o que acontecerá, a sensação de atingir o clímax da leitura, fazendo com que ele acompanhe os acontecimentos sem a sensação que a expectativa e a dúvida lhe causariam. Podemos observar, assim, que o percurso narrativo da crueldade no conto de Clarice Lispector se dá pela utilização de um narrador onisciente intruso na primeira parte do conto, seguida de um narrador onisciente neutro associado ao discurso direto das personagens na segunda parte, para finalizar no monólogo interior que antecede ao crime. Além disso, o percurso traçado pela crueldade na narrativa atinge não só as personagens, como também o leitor, o que faz desse elemento uma das principais características desse conto. Desta forma, entendemos que por ser um traço tão importante deve estar retomado de alguma forma em uma adaptação cinematográfica que se proponha a ser um pouco fiel ao texto original. 1.2 1.2.1

As personagens Xavier

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Descrito como um homem “truculento”, “sangüíneo” e “muito forte”. Tem 47 anos. Fisicamente, “estava em pleno vigor” e “parecia um super-homem”. Vivia com duas mulheres e “cada noite era uma”. O narrador caracteriza Xavier como um homem grosseiro e mulherengo, para, num segundo momento, após seu assassinato, enaltecê-lo com expressões como “bom cidadão que era” e dar-lhe uma origem quase nobre ao falar de seu “rico sangue” que escorria num “desperdício”. Talvez aqui possamos ver mais um recurso de sadismo narrativo, pois esse “enaltecimento” pode ser visto como um olhar irônico diante de um cadáver. 1.2.2

Carmem

Carmem, “que era mais fina”, é descrita como uma mulher “alta”, “magra”, “mais elegante” e mais nova (39 anos) que os outros dois. Se inicialmente o narrador a trata como uma vítima “pobre desgraçada” por estar envolvida com aquelas personagens simples, um tanto quanto toscas e brutas, no final da narrativa a transforma em uma mulher “colérica”, capaz de tramar o assassinato de Xavier e envolver Beatriz em seu plano: “Carmem liderava e Beatriz obedecia” (p.33). 1.2.3

Beatriz

Descrita como “gorda” e “enxundiosa”, Beatriz “comia que não era vida” e não tinha vergonha de “suas banhas”. É a mais velha dos três, com 50 anos. A personagem, ridicularizada no início do conto, tem, no decorrer da trama, suas atitudes perdoadas por seu caráter “muito romântico que era”. Mais uma vez, o narrador manipula o leitor de maneira sádica, ironizando o comportamento das personagens mesmo em momentos de crise como o assassinato. Se pensarmos numa classificação das personagens segundo o modelo de Forster, podemos considerar Xavier e Beatriz como personagens planas e Carmem mais próxima do esférico, uma vez que se revela de modo mais gradual e apresenta um comportamento menos previsível que as outras duas, mais caricatas e estáticas. A própria construção dessa personagem revela um trabalho mais detalhado da autora nesse sentido. Podemos verificar uma certa incorporação de vivências pessoais de Clarice, ao transportar para a personagem o gosto pela escrita, revelado no diário mantido por Carmem e na compra de uma máquina de escrever durante a viagem a Montevidéu. Essa incorporação de vivências será intensificada no filme, pois Carmem apresentará como seus, trechos de textos da própria Clarice. Consideramos as três personagens (Xavier, Carmem e Beatriz) como protagonistas do conto de Clarice. Se pensarmos na existência de um triângulo amoroso para definirmos o antagonista, essa narrativa possui características muito particulares, pois o “triângulo”, no sentido de relação em desequilíbrio, só se configura com a entrada de um quarto elemento, a prostituta, que está resumida a três curtas citações no conto todo. Assim sendo, a consideraremos como antagonista, uma vez que se opõe às protagonistas Carmem e Beatriz e seu surgimento (ou a descoberta de sua existência) detona os acontecimentos que transformam o enredo. O triângulo inicial formado por Xavier, Carmem e Beatriz não simboliza uma disputa, uma vez que os dois “vértices” femininos vivem harmoniosamente. As duas são personagens que se complementam, construídas 34


de forma a não haver antagonismos. Ambas aceitam sua poligamia, não aparentando incomodar-se com essa situação. A entrada da prostituta desequilibra essa situação inicial, criando um segundo triângulo que se sobrepõe ao primeiro, em que um dos vértices é formado por Xavier, outro pela prostituta e o terceiro por Carmem e Beatriz juntas. O narrador sinaliza ao leitor essa relação ao afirmar que “Os três, na verdade, eram quatro, como os três mosqueteiros” (p. 29). Após a descoberta da traição, as personagens Carmem e Beatriz, inicialmente enquadradas na situação poligâmica vivida, desestruturam-se totalmente, a ponto de tramar o assassinato do companheiro. Matar Xavier passou a ser uma obrigação, uma atitude inevitável. O Mal se instaura também nas personagens, mas é orientado pelo divino, numa punição ao adultério de Xavier. “(...)poderemos fazer o que precisamos fazer. Deus manda.”(p.33) “Matar requer força. Força humana. Força divina”. (p.34) “Se tivessem podido, não teriam matado o seu grande amor”.(p.34)

Carmem e Beatriz não puderam deixar de matar “seu grande amor” porque Xavier precisava ser punido por ter cometido adultério, o que comprova que a situação anterior à entrada da prostituta não era considerada um “pecado”, propriamente. Após o assassinato, Carmem e Beatriz, tendo cumprido sua missão divina e, portanto, isentas de qualquer culpa pela morte do marido, passam a se comportar como viúvas e não como assassinas de Xavier. “As duas mulheres compraram vestidos pretos. E mal comiam. Quando anoitecia a tristeza caía sobre elas.”(p.35)

O sofrimento ocasionado pela perda do marido irá se contrapor, entretanto, à atitude final das personagens que demonstram frieza ao se referir ao companheiro morto. O mal, nessa passagem, habita a indiferença à dor causada a Xavier, que jazia morto no jardim. Mais uma vez, a atitude das duas vem balizada por uma alusão ao divino. “Então Carmem falou assim: a. Xavier está no jardim b. No jardim? Fazendo o quê? c.

Só Deus sabe o quê.

(...) Então Beatriz, sem uma lágrima nos olhos, mostrou-lhes a cova florida.”(p. 36, grifo nosso)

1.2.4

Prostituta

Sem nome, sem descrição física. Descrita apenas como “prostituta ótima” pelo narrador; essa personagem, numa primeira leitura, de pouca relevância, é a antagonista da trama, pois o conflito é instaurado a partir de sua descoberta. Muito mais desenvolvida no filme que no conto, a personagem marca o rompimento do equilíbrio da vida das protagonistas. 1.2.5

Secretário 35


Também sem qualquer informação quanto à personagem coadjuvante “Alberto”, secretário após o assassinato do patrão, com o objetivo pois desconfia do desaparecimento do chefe também será mais desenvolvida no filme. 1.2.6

sua idade ou descrição física, a de Xavier, é introduzida no conto de desmascarar suas assassinas, e vai à sua casa. A personagem

Policiais

Componentes dramáticas, segundo a classificação de Doc Comparato, não possuem a profundidade de uma personagem. Surgem no conto, levadas à casa do morto pelo secretário, para averiguar a morte de Xavier. No filme, um dos policiais é um delegado, que diferentemente dos policiais do conto, participa da trama desde o início como personagem coadjuvante. 1.2.7

Homens

Também componentes dramáticas, apresentados como “mais dois homens que não se sabia quem eram”, surgem no conto juntamente com os policiais e compõem o total de sete pessoas que foram ao jardim esclarecer a morte de Xavier. Podem ter ajudado a desenterrar o corpo da personagem, uma vez que foram necessários três homens para desenterrá-lo. De modo geral, as personagens de “O Corpo” podem ser classificadas, segundo Johnson, como personagens de costumes, por suas características caricatas tendendo, muitas vezes, ao pitoresco. Essas características são potencializadas no filme de José Antonio Garcia, beirando o ridículo em alguns momentos. Como podemos notar, a crueldade também está presente nas personagens da narrativa. Os discursos diretos de Carmem e Beatriz, vistos anteriormente, já indicam a frieza com que planejam assassinar o marido. O próprio Xavier não está isento dessa crueldade, pois inicialmente instaura a bigamia, rompendo posteriormente esse “pacto” ao trazer um terceiro elemento para dentro do relacionamento, a prostituta. Também notamos a existência de crueldade nos dois homens que acompanharam os policiais à casa de Carmem e Beatriz. Mesmo diante do cadáver de Xavier, eles não tomaram nenhuma atitude, assumindo uma postura conivente com os policiais que, totalmente indiferentes em relação ao morto, libertaram as assassinas após serem desmascaradas. Podemos concluir, desse modo, que, antecipando a transferência que deve haver na adaptação cinematográfica, a crueldade observada no narrador de O Corpo já está presente nas personagens, não apenas nas protagonistas como também nas demais pois, excetuando-se o secretário, que ficou atônito com a descoberta do cadáver do patrão, todos os presentes nesse momento demonstraram, além de frieza, indiferença em relação ao sofrimento de Xavier. E, mesmo Alberto, após descobrir a morte do patrão, é solicitado a esquecer o ocorrido, fazendo parte do círculo da crueldade, mesmo que de maneira passiva. Como afirma Proust, em No Caminho de Swann, “(...) essa indiferença pelos sofrimentos que nós mesmos causamos e que, por mais diversos nomes que lhes dêem, é a forma mais terrível e permanente da crueldade.”

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1.3

O tempo

Benedito Nunes aproxima música e escrita ao descrever o tempo. Se pensarmos nessa associação para entender um pouco melhor a passagem do tempo no conto O Corpo, observaremos que, logo na segunda página, o narrador utiliza uma imagem que associa o cotidiano das personagens ao Bolero de Ravel: “Às seis horas da tarde foram os três para a Igreja. Pareciam um bolero. O bolero de Ravel.” (p.28)

Essa associação define muito bem o que será a tônica da passagem do tempo no conto de Clarice Lispector: um tempo lento, demorado, impregnado de um tédio que se revelará nas relações, na fala, nas atitudes, no dia a dia das personagens. Não é à toa que Clarice instaura o tédio a partir da referência ao “Bolero”. A conhecida obra de Ravel é cíclica, repetitiva, apresentando um tema inicial que se repete inúmeras vezes, a partir de seguidas subidas de tom. A relação das personagens Carmem e Beatriz com esse tédio é de aparente normalidade e equilíbrio. Não há cansaço, não há uma rotina vivida de maneira desgastante. Ao contrário, o narrador procura nos mostrar que as mulheres de Xavier estão integradas a esse dia a dia monótono e gastam seu tempo fazendo compras e cozinhando: “E de noite ficaram em casa vendo televisão e comendo.” (p.28) “A vida lhes era boa. Às vezes Carmem e Beatriz saíam a fim de comprar camisolas cheias de sexo.”(p.29)

Ao mesmo tempo em que o narrador nos apresenta a adaptação das personagens a uma vida repetitiva e imutável, ele insiste, durante todo o conto, em desprezá-las, criticando e denegrindo sua imagem para o leitor: “Em Montevidéu compraram um livro de receitas culinárias. Só que era em francês e elas nada entendiam. As palavras mais pareciam palavrões.”(p.30)

Ele ainda nos reafirma seguidamente a demora na passagem do tempo, estendendo o tédio através dos anos, prolongando dessa forma o seu desprezo por elas, sua crítica mordaz e reforçando sua crueldade: “Longo era o dia” (LISPECTOR, 1974, p.30) “Tinham que esperar pacientemente... “(LISPECTOR, 1974, p.32)

Mas, se por um lado, o narrador nos demonstra que as personagens estão totalmente adaptadas a seu cotidiano, por outro, ele nos leva a entender que o tédio a que estão submetidas em alguns momentos incomoda, entristece, levando-nos a concluir que apesar de aparentemente adaptadas, as personagens não estavam totalmente confortáveis com a vida que tinham. “Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste.’(p. 30, grifo nosso)

Consideramos, assim, que a forma com que o narrador alonga a passagem do tempo é mais uma maneira de expressar sua crueldade, pois o cotidiano cíclico e repetitivo ao qual as personagens estão presas faz com que vivam amarradas

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permanentemente ao tédio, ao enfado, ao desconforto e, conseqüentemente, ao desprezo e à mordacidade do narrador. Analisando ainda o tempo da narrativa, o conto nos mostra uma ação transcorrida no passado, pela utilização constante de verbos no pretérito perfeito, imperfeito e mais que perfeito. No que diz respeito ao tempo cronológico, não há uma referência clara à época em que a história se passa. As personagens, logo no início do conto, vão ao cinema assistir ao filme “O último tango em Paris”, o que nos indica que os fatos ocorrem na década de 70, momento em que o filme estreou no Brasil. O tempo físico traduz-se de forma irrefutável na relação de causa e efeito que a descoberta da existência da prostituta tem com o assassinato de Xavier. A conexão que se estabelece entre os dois fatos (descoberta e assassinato) indica uma ordem temporal irreversível. Se a existência da amante não fosse revelada, o tédio não seria rompido, o ciclo continuaria existindo e Xavier não seria morto. O tempo psicológico é observado nos momentos em que o narrador instaura o monólogo interior e inicia os questionamentos que ele mesmo irá responder a seguir, como se ocorresse uma sucessão de estados internos que são apresentados ao leitor através da alternância entre dúvidas e certezas. O tempo lingüístico, marcado por uma farta utilização de advérbios e expressões adverbiais, faz com que a duração da história pareça ser muito longa no conto e a situação de “mesmice” da vida das personagens permaneça durante anos em aparente normalidade. Essas inúmeras marcas de passagem do tempo permeiam toda a narrativa e são habilmente utilizadas pelo narrador para marcar a questão do tédio, como se pode verificar nas passagens abaixo: “E assim era, dia após dia.” (LISPECTOR, 1974, p.28, grifo nosso) ”Passavam-se dias, meses, anos. Mingúem morria” (LISPECTOR, 1974, p.28) “Longo era o dia.” (LISPECTOR, 1974, p.30) “Até que veio um certo dia” (LISPECTOR, 1974, p.32) “Passaram-se os dias” (LISPECTOR, 1974, p.35)

Referências a passar o tempo assistindo televisão, à dedicação à cozinha, à associação de seu cotidiano com o Bolero de Ravel, à passagem lenta do tempo, ao fato de nada acontecer, entre outras, comprovam a insistência do narrador em apresentar ao leitor o enfado e simultaneamente a adaptação à vida que levavam as personagens, já que a rotina não era causa de desequilíbrio. A questão da relação sexual entre Carmem e Beatriz também é um elemento utilizado pelo narrador para mostrar o tédio, como podemos ver no seguinte trecho do conto de Clarice: “Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste.” (grifo nosso. p. 30)

O tempo lingüístico caminha, dessa forma, imbricado ao tempo da narrativa de maneira a reforçar a idéia de um alongamento do tédio. A insistência com que o narrador marca esse tempo lingüístico prolonga a história, fazendo com que o

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tédio seja um elemento característico da vida das personagens e não um problema, algo que imponha algum tipo de dificuldade de convivência. Esse convívio com o tédio implica no equilíbrio de suas relações e o rompimento dessa situação, que ocorre a partir de um evento específico – a descoberta da amante de Xavier – irá transformar de tal maneira sua rotina a ponto de desencadear os fatos subseqüentes, que redefinirão o destino das personagens. Consideramos, desse modo, que o tempo também é um fator fundamental na definição da questão da crueldade no conto de Clarice Lispector. A forma como essa questão é trabalhada, em especial no que tange ao tempo da narrativa e ao tempo lingüístico por estarem imbricados, corrobora e intensifica a crueldade do narrador que utiliza o alongamento do tempo para fortalecer o tédio que permeia a vida das personagens, fazendo com que ele se amolde a seu cotidiano de tal forma que elas estejam permanentemente atadas a seu julgamento. 2.

O Filme

2.1 As Personagens 2.1.1 Xavier Interpretado por Antônio Fagundes, é o dono de uma farmácia que vive numa casa de um bairro de classe média em São Paulo, com suas duas mulheres. Freqüenta regularmente a missa, onde sofre o preconceito “das beatas”, sem se importar com isso. Não possui a brutalidade, nem o porte físico da personagem descrita por Clarice. Fagundes dá um toque de malandragem à personagem plana do conto, deixando-o mais próximo do ridículo que do truculento. Personagem de costumes por seu caráter caricato, o Xavier do cinema esbanja da utilização de caras e bocas, beirando o patético. É o protagonista da ação, por possuir mais destaque que todas as outras personagens. Ele é o centro das cenas e recebe a maior intensidade dramática que Carmem e Beatriz, mesmo que de forma caricata. 2.1.2 Carmem A personagem de Marieta Severo é o foco principal da nossa atenção na adaptação cinematográfica do conto de Clarice Lispector. Devido à maior importância e exposição dada à personagem de Antonio Fagundes no filme, não podemos considerar que Carmem e Beatriz sejam, como no conto, protagonistas ao lado de Xavier, o que lhes dará, inicialmente, o papel de coadjuvantes. Ambiciosa e frustrada, a Carmem do cinema gosta de escrever e envia contos que nunca são publicados para o concurso de uma revista. José Antonio Garcia aprofunda, no filme, a relação estabelecida entre escritor e personagem na construção da personagem de Marieta Severo, num processo de experiência direta, a partir da incorporação de vivências e sentimentos da escritora. Trechos de textos de Clarice são inseridos na fala de Carmem como frases de seu diário, numa relação de alteridade escritor/personagem: “Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco. Quer se absorver a outra pessoa toda.”

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Não podemos enxergar esta personagem com os mesmos olhos das anteriores. Sua construção foi muito mais trabalhada no cinema, uma vez que muito da Desse modo, a personagem de Marieta Severo crueldade do narrador foi absorvida por ela, o que pode ser observado na interpretação de Marieta Severo, seus olhares, gestos e expressões, além da inserção de diversos trechos do narrador do conto em sua fala. CONTO: “Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste.” (p. 30)

FILME: BEATRIZ: Enquanto isso, a gente vai se arranjando entre a gente, é amor também. CARMEM: Amor sem homem é amor triste, Bia.

CONTO: “(...) estavam exaustas. Matar requer força. Força humana. Força divina. As duas estavam suadas, mudas, abatidas.”(narrador, p.34)

FILME: CARMEM: Você quer que eu fale no Diabo? Não, falo em Deus que é dono de tudo. Do espaço e do tempo.e matar requer força, força humana, força divina., muito mais imprevisível que as

demais, é uma personagem esférica, com aspirações a escritora e revelada de forma gradual ao espectador. Inicialmente coadjuvante, Carmem se transforma em antagonista, por tramar o assassinato de Xavier. 2.1.3 Beatriz Vivida no cinema por Claudia Gimenez, a personagem mantém as características físicas e o caráter de simplicidade que possui no conto, sendo responsável pela cozinha; mais complacente com as atitudes de Xavier e, ao contrário do conto, em que tinha 50 anos, é mais nova que Carmem e que Xavier. Também a consideraremos uma personagem plana e de costumes, por suas características sentimentais e sua personalidade simples. Diferentemente do conto, a Beatriz do cinema é, como Carmem, inicialmente coadjuvante passando a antagonista quando se transforma em assassina de Xavier. 2.1.4 Prostituta Sem um nome específico no conto, a prostituta do filme se chama Monique. Interpretada por Carla Camuratti, Monique aparece várias vezes no filme, mas as transformações ocorridas na adaptação do conto para o cinema, principalmente no que diz respeito à transferência de parte da crueldade do narrador para a personagem Carmem, tiraram dessa personagem o papel de única antagonista, transformando-a também em coadjuvante (podemos observar isso em cenas em que aparece cantando ou tendo relações sexuais com Xavier). Personagem plana, Monique representa a amante, o quarto, dos três mosqueteiros, que surge para desequilibrar uma relação inicialmente em equilíbrio. 2.1.5 Secretário

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Alberto, personagem coadjuvante vivida por Ricardo Pettine, é uma espécie de “confidente” de Xavier, pois sabe da existência da prostituta, encobre suas saídas e ouve suas queixas quando as mulheres descobrem a existência da amante. O espectador, no entanto, não consegue definir se a personagem condena ou não as atitudes do patrão, pois a interpretação do ator, suas expressões, os comentários maliciosos que emite, repetindo as confidências de Xavier acerca de seu relacionamento com Monique (“goza, filho da puta, goza”) deixam em dúvida sua real opinião. Como no conto, Alberto desconfia do desaparecimento de Xavier e pede ajuda ao delegado. Testemunha da descoberta do cadáver, seu final não fica muito claro no filme, pois, ao contrário do que ocorre no conto, o delegado o envia de volta à farmácia antes de decidir enterrar o corpo novamente, o que tira parte da verossimilhança da cena. 2.1.6 Delegado De nome Salvador, esta personagem coadjuvante, vivida por Sérgio Mamberti, não existe no conto de Clarice, mas ganha importância no cinema, por receber parte da responsabilidade pela crueldade existente no filme. Em algumas cenas, o delegado Salvador demonstra uma certa inveja da virilidade de Xavier, com um olhar saudosista que remete a um passado distante. Este olhar pode ser visto na sua primeira aparição, quando está limpando seu carro, olha para a casa de Xavier e depois levanta os olhos para o céu e sorri, como se lembrasse de algo muito bom de seu passado. Este mesmo olhar é visto na cena da farmácia, no momento em que descobre que Xavier, além das duas mulheres, possui uma amante. O delegado faz um sinal com a mão, mostrando três dedos para Alberto, o secretário, e após a confirmação, repete o olhar “perdido” no passado, da cena anterior. Policial próximo à aposentadoria, vive com a mulher, Helena, e tem uma neta. Seu sonho é poder se aposentar sem problemas no trabalho, o que o leva a “fazer vista grossa” à bigamia de Xavier, apesar dos constantes pedidos da esposa por uma atitude mais eficaz. 2.1.7 Mulher do delegado Helena, personagem coadjuvante de Maria Alice Vergueiro, traz para o cinema, de uma forma transformada, a carga crítica do narrador do conto às personagens Carmem e Beatriz. Numa postura similar a do narrador, Helena também critica as personagens, mas não por suas características pessoais como a gordura ou a ignorância. A crítica contumaz da mulher do delegado dirige-se à bigamia e à imoralidade que essa situação de pecado carrega. De certo modo, essa transferência ocorre na tentativa de manter viva, no filme, a tônica de crueldade existente no conto, ainda que uma crueldade diferente da observada no narrador. Nesse sentido, a própria criação das personagens do delegado e sua esposa tem a função de trazer o mal da narrativa para o cinema, pois o que justifica sua existência é justamente a crítica e a inveja presentes em suas falas. Em todas as cenas em que aparece, Helena critica o fato de Xavier possuir duas esposas, pedindo ao marido que intervenha legalmente nessa situação. Na cena da missa, por exemplo, ela passa uma sacola solicitando donativos aos fiéis presentes. Sorri para todos até que, ao passar por Carmem que se preparava para depositar algum dinheiro, recua, recusando o donativo e mostrando-se fortemente ofendida 41


com a oferta. A postura de Helena, nessa cena, demonstra claramente essa crítica à moral de Carmem que, por viver maritalmente e em situação de bigamia com Xavier, não é digna de estar em um ambiente cristão. O dinheiro que provém dessa situação “imoral” não é bem vindo. Personagem coadjuvante, a mulher do delegado quer que o marido assuma seu papel de autoridade e tenha uma atitude heróica antes da aposentadoria, enxergando essa possibilidade na bigamia de Xavier. 2.1.8 Homem do avião Papel vivido por Daniel Filho, a personagem, inexistente no conto, simboliza o caráter cíclico da vida de Carmem e Beatriz. Após assassinarem Xavier e serem libertadas pelo delegado, que não desejava complicações antes da aposentadoria, as duas entram num avião e sentam-se ao lado da personagem de Daniel Filho, que se mostra receptivo, demonstrando que a situação de bigamia vivida com Xavier poderia se repetir. A cena, que apresenta Daniel Filho no avião, sentado entre as duas mulheres, repete a passagem do conto em que os três viagem a Montevidéu: “Foram de avião. Sentaram-se em banco de três lugares: ele no meio das duas.” (p. 29)

Componente dramático, essa personagem serve como elemento explicativo, induzindo o espectador a imaginar um novo final para a história de Clarice Lispector. 2.1.9 Outros Outros personagens de menor importância compõem a adaptação de O Corpo. Com funções de componentes dramáticos, o amolador de facas, o rapaz da farmácia, o menino do Rio de Janeiro, o homem do realejo, as demais prostitutas, o barman, os policiais e a neta do delegado não possuem maior complexidade ou importância no filme de José Antonio Garcia. Entendemos que uma maior inserção de personagens no filme diz respeito não apenas a uma necessidade decorrente da diferença entre as linguagens, como também à questão da transferência da crueldade do narrador para o cinema. O mal da narrativa foi dissolvido, transformado e distribuído entre algumas personagens-chave na adaptação cinematográfica, para que o filme não perdesse essa característica tão importante do conto. A crueldade recai, principalmente, nas personagens Carmem, Helena e no delegado. Em Carmem ela pode ser observada através da interpretação da atriz Marieta Severo; mas também podemos vê-la nas personagens Beatriz e Xavier, por meio da utilização do texto do narrador em sua fala, além do secretário Alberto, que encobre os encontros de Xavier com a prostituta, para depois comentar ironicamente as confissões secretas do chefe. Observamos que o filme apresenta uma outra forma de crueldade não verificada no conto, a crítica à bigamia, ou seja uma crítica mais ampliada, a uma situação coletiva que envolve as três personagens e não uma crítica individualizada, como a observada no narrador.

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Finalizando, ressaltamos a importância da personagem de Daniel Filho que, com sua aparição, resgata a preocupação do narrador com o tempo, demonstrando ao leitor o caráter cíclico da narrativa, que amarra permanentemente as personagens a um ciclo vicioso, como o que as atava no conto. 2.2 O tempo A questão do tempo no filme de Garcia difere da abordagem que esse tema tem no conto. Não vemos marcas da passagem do tempo tão determinantes da duração da história quanto no conto. A seqüência dos fatos transcorre muito rapidamente, como se passassem apenas algumas semanas do início ao fim do filme. Se no conto ”passavam-se dias, meses, anos”, no filme as personagens não envelhecem e os fatos ocorrem quase que simultaneamente. O tempo cronológico não é muito bem definido. Se considerarmos a estréia de “O último tango em Paris” como elemento que irá definir a época em que a história se passa, teríamos, como no conto, uma ação transcorrida na década de 70. Entretanto, a caracterização das personagens e do espaço remonta a fins da década de 50 ou início dos anos 60, conforme podemos observar, por exemplo, nos seguintes elementos: a) Xavier, além de passar “Gumex” no cabelo (fim dos anos 50) usa um bigode muito incomum para os anos 70. As vestimentas das mulheres também não são características dos anos 70. b) O delegado possui um Chevrolet Buick, carro produzido em fins da década de 40. c) A cozinha da casa de Xavier possui uma geladeira e um fogão que já estavam superados na década de 70. Na sala há uma “radiola” da década de 60. d) A farmácia de Xavier é antiquada; a caracterização das ruas do centro da cidade por onde ele passa para ir encontrar com a prostituta remonta à década de 50. e) A música ouvida por Carmem no rádio é a canção “Ave Maria no Morro”, gravada por Dalva de Oliveira em 1942. Esses elementos, entre outros, indicariam que a ação se passa em fins da década de 50, o que poderia ser visto como um problema na adaptação da obra, uma vez que “O Último Tango em Paris” é de 1972. Uma outra possibilidade de entendimento dessa caracterização seria enxergar na utilização de características ultrapassadas na década de 70 um modo de mostrar a lenta passagem do tempo na vida das personagens, que estariam, desse modo, “paradas” no tempo, ou vivendo num tempo não coincidente com o real. Procurando elementos no filme que pudessem comprovar essa hipótese, encontramos, numa das cenas em que Xavier vai encontrar Monique, um moderno relógio digital numa esquina do centro de São Paulo, convivendo com toda a caracterização restante, que é dos anos 50. Sabemos que não havia relógios digitais nas ruas de São Paulo na década de 50, mas não encontramos outros elementos no filme que pudessem comprovar essa hipótese. Segundo nosso entendimento, para a consolidação da mesma, seriam necessários mais elementos de décadas posteriores. 43


O filme não parece estar preocupado de maneira enfática em mostrar a lenta passagem do tempo. A cena do amolador de facas é uma das poucas em que podemos perceber que o tempo transcorre lentamente. Beatriz, enquanto espera que as facas sejam amoladas, olha inúmeras vezes para o alto, dando a sensação de uma espera demorada. Também não há muitas referências explícitas à passagem do tempo. Após a morte de Xavier, Beatriz e Carmem comentam que as roseiras plantadas sobre sua cova cresceram muito em apenas uma semana. Fazia, assim, uma semana que Xavier havia morrido. Não é possível saber, portanto, quanto tempo se passou do início ao fim do filme. A questão do tédio, tão importante no conto, também não é tratada com a mesma intensidade no filme. Ele se mostra, por exemplo, na excessiva preocupação de Beatriz com o ato de “cozinhar”. Ao contrário do que temos no conto, as personagens não gastam a maior parte do seu tempo em frente à televisão, mas cuidando e falando de comida. A responsabilidade pela cozinha, que no conto era dividida entre as duas mulheres, no filme é exclusiva de Beatriz. Essa preocupação ocupa um lugar absoluto no cotidiano dessa personagem. Beatriz é quem cozinha, quem mata as galinhas para o almoço, quem amola as facas que, no final, servirão como arma para o assassinato de Xavier. Essa preocupação pode ser demonstrada no momento em que ela sabe da traição do companheiro. Sua primeira pergunta acerca de sua amante é “ela fez comida pra você?” como se sua função na vida de Xavier se limitasse a cozinhar. Também podemos ver o tédio na vida das personagens na cena em que Carmem conta para Xavier que manteve relações sexuais com Beatriz. Xavier pergunta: “Vocês fazem?” e Beatriz responde “Não tinha nada pra fazer, mesmo”. Outra fala das personagens também nos indicam a existência do tédio no filme: CARMEM: Vai comer de novo? BEATRIZ: Eu vou, não tem nada pra fazer nessa tarde chata.

Temos ainda a seqüência final, em que Carmem e Beatriz sentam-se ao lado de Daniel Filho no avião. Entendemos que essa é a marca mais importante no filme da confirmação do tédio verificado no conto. A presença de um homem receptivo às duas mulheres, sinaliza a possibilidade de repetição dos fatos, indicando claramente o caráter cíclico observado anteriormente na narrativa. De qualquer modo, não podemos afirmar que o filme possua a mesma preocupação em marcar o tempo, observada no narrador de O Corpo. As marcas são mais tênues, muito menos explícitas que as do conto. 2.3 A retomada do mal no cinema Segundo Anatol Rosenfeld, no cinema, a voz do narrador está distribuída entre câmera e personagens. Considerando a importância do elemento crueldade no conto de Clarice Lispector, o roteiro do filme O Corpo não poderia deixar que essa característica fosse abandonada, uma vez que pretende ser uma adaptação fiel do original. Assim, na tentativa de manter vivo no filme o elemento que mais

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caracteriza o conto, transporta, ipsis literis, vários trechos das falas do narrador para a voz das personagens. As personagens Carmem e Beatriz incorporam diversos trechos da fala do narrador, o que intensifica a dramaticidade das cenas em questão, mantendo viva, no filme, a crueldade de sua voz, como pode ser visto nos exemplos abaixo: A - Na cena em que Carmem e Beatriz decidem matar Xavier, a fala de Carmem carrega um trecho da fala do narrador: CONTO: “Carmem e Beatriz sentaram-se junto à mesa da sala de jantar, sob a luz amarela da lâmpada nua, estavam exaustas. Matar requer força. Força humana. Força divina. As duas estavam suadas, mudas, abatidas. Se tivessem podido, não teriam matado o seu grande amor.”(narrador, p.34)

FILME: CARMEM: (....) Deus manda. BEATRIZ: Não, é melhor não falar em Deus agora. CARMEM: Você quer que eu fale no Diabo? Não, falo em Deus que é dono de tudo. Do espaço e do tempo.e matar requer força, força humana, força divina.

B - Na cena em que Carmem e Beatriz carregam o corpo de Xavier, podemos observar a transferência da fala do narrador para Beatriz: CONTO: “E, no escuro da noite – carregaram o corpo pelo jardim afora. Era difícil porque Xavier morto parecia pesar mais do que quando vivo, pois escapara-lhe o espírito”. (narrador, p. 34)

FILME: CARMEM: Ai, tá pesado. BEATRIZ: É porque o espírito se foi.

Beatriz também absorve a fala do narrador no momento em que os policiais estão desenterrando Xavier: CONTO: “Três homens abriram a cova, destroçando o pé de rosas que sofriam à toa a brutalidade humana.” (p. 36)

FILME: BEATRIZ: As rosas são as que mais sofrem...

O próprio Xavier também não escapa da incorporação da fala do narrador, ao utilizar-se dela para se referir à viagem dos três ao Rio de Janeiro: FILME: XAVIER: “Os três mosqueteiros vão fazer uma viagem”

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CONTO: “Os três na verdade eram quatro, como os três mosqueteiros. (narrador, p.29)

Algumas falas do delegado também carregam características da voz do narrador do conto, como a adjetivação. Ao ser interpelado pelo secretário, que buscava investigar o desaparecimento do chefe, o delegado diz: DELEGADO: “Eu conheço cada história do Xavier... Ele sempre foi assim meio brincalhão”.

A transcrição da fala do narrador pode ser vista no final do filme, após a descoberta do corpo do morto, quando utiliza um trecho da fala do narrador para descrever Xavier: FILME: DELEGADO: “Um homem forte, sangüíneo, boa pessoa apesar de tudo.”

CONTO: “Xavier era um homem truculento e sanguíneo. Muito forte esse homem” (NARRADOR, P.27)

O delegado apresenta, ainda, um certo fatalismo na sua fala, que também pode ser, facilmente, associado à voz do narrador: DELEGADO: “O que tinha de acontecer, já aconteceu. A vida é assim mesmo, um dia acaba tudo.”

Como podemos observar, grande parte do texto do narrador foi, de certa forma, “dissolvido” e distribuído entre as personagens do cinema. Assim, consideramos que, mesmo de forma diluída, as falas das personagens carregam para o filme a crítica e a crueldade presentes na voz do narrador do conto, uma vez que os juízos de valor e os comentários críticos conseguem se manter vivos e intensos 2.3.1 O mal nos recursos cinematográficos Outros elementos específicos da linguagem cinematográfica como a cor, a trilha sonora e os movimentos de câmera foram cuidadosamente trabalhados para manter vivo no filme o narrador cruel que encontramos no conto. A utilização recorrente da cor vermelha como marca da luxúria e da sexualidade que envolve as personagens é muito forte do filme de José Antonio Garcia. Mesmo o espectador que assiste ao filme pela primeira vez, sem prestar nenhuma atenção a esse fato, já consegue perceber a invasão da cor vermelha em mais da metade das cenas, pois ela está nos móveis, nas vestimentas, impregnada em todos os lugares. A presença do vermelho é mais intensa, no entanto, nas situações que têm a intenção de intensificar o caráter sexual da cena: o cobertor da cama de Xavier, o sofá do camarim da prostituta, a poltrona e o abajur do quarto de Xavier, a metade inferior das paredes de sua sala de jantar, e ainda, a roupa, o batom e as unhas de Carmem na cena inicial em que vão ao cinema assistir ao “ Último Tango em Paris”.

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A sonorização também é utilizada para marcar o mal que está presente na narrativa. Em muitos momentos a trilha sonora lembra as trilhas de filmes “trash” e corrobora o suspense da cena. Do mesmo modo, a intensificação do volume do som que é ouvido pelo espectador também é um fator que podemos associar à crueldade observada no narrador com o leitor do conto. Numa cena que antecede ao assassinato de Xavier, por exemplo, o volume é aumentado gradativamente. Esse recurso é utilizado com uma trilha sonora que causa uma sensação de suspense no espectador, antecipando o desfecho trágico da próxima cena. Como observa Anatol Rosenfeld, outro “recurso tipicamente narrativo” utilizado no cinema é a movimentação da câmera. Ao mostrar as personagens ora em plano aberto, ora em close, uma maior intensidade dramática da cena é obtida, causando no espectador, uma sensação de maior proximidade com o fato. Um plano aberto no quintal da casa de Xavier, com a neblina envolvendo as personagens, por exemplo, pode causar a sensação de que um fato trágico se aproxima. Ao mesmo tempo, um close no rosto de Carmem no momento em que lê um texto de Clarice Lispector em seu diário, envolve o espectador na trama, aproximando-o indiretamente da autora do conto, dando maior autenticidade à obra adaptada. Uma última observação quanto à transferência do mal observado na voz do narrador do conto para o filme através da utilização de recursos cinematográficos relaciona-se à adaptação do conto em roteiro. Um trecho narrativo impregnado de juízo de valor foi transformado no roteiro, numa cena totalmente distinta da narrada, mas que conseguiu mostrar ao espectador, sem que uma única palavra do narrador fosse dita pelas personagens, exatamente o que o narrador quis transmitir no texto. Trata-se, no filme, da cena em que Carmem, Xavier e Beatriz estão jantando num restaurante após assistirem ao filme “Último Tango em Paris”. O trecho do conto a que nos referimos é o seguinte: “Todo mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres. Cada noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo. Uma não tinha ciúme da outra.” (p. 27)

No filme, os três estão jantando quando os músicos começam a tocar o tango “La Cumparsita”. Xavier, que adorava tangos, levanta-se e convida Beatriz para dançar. Enquanto dançam, Carmem, de seu lugar à mesa, assiste, e sua fisionomia expressa um intenso prazer com o que vê. A sexualidade da cena é marcada pela cor vermelha, pois ela está vestida de vermelho e suas unhas e boca estão pintadas com um vermelho intenso, além é claro, de uma brilhante interpretação da atriz Marieta Severo. Outras duplas, que inicialmente também dançavam, vão aos poucos se afastando, restando apenas Xavier e Beatriz. Quando o tango termina, o público presente no restaurante, inclusive Carmem, começa a aplaudir o casal. Após alguns segundos, Carmem deixa de aplaudi-los e passa a agradecer as palmas, como se ela também fizesse parte da dupla que dançava. Observamos assim, que muitos são os recursos através dos quais o mal, expressão maior do narrador do conto de Clarice Lispector, pode se expressar numa tela de cinema. Na adaptação de José Antonio Garcia, ele pode ser encontrado na fala das personagens, no cuidado com sua interpretação, na variação dos movimentos de câmera, na trabalhada trilha sonora, na utilização recorrente da cor vermelha como sinônimo de luxúria e sexualidade e na 47


capacidade de criação do roteirista que, partindo do texto, constrói imagens capazes de transmitir, metaforicamente, a mesma idéia do escritor.

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CONCLUSÕES A tarefa de um roteirista é transformar idéias em mensagem através de uma linguagem audiovisual. Essas idéias podem ser geradas a partir de seu imaginário, de um fato, história, notícia ou, como no caso de O Corpo, a partir da adaptação de uma obra literária. Podemos dizer que uma das diferenças básicas entre os trabalhos do roteirista e do escritor reside no tipo de linguagem utilizada para contar a história. Enquanto o escritor preocupa-se com a linguagem escrita, com o “narrar”, o roteirista deve ter a preocupação de conseguir unificar em um produto final não fracionado várias linguagens características do cinema, como a visual e a sonora, por exemplo. Ele não pode perder de vista que o resultado final não é uma colagem, mas uma obra única, que o espectador absorve integralmente, como um “todo”. O roteirista que se propõe a fazer uma adaptação de uma obra literária precisa transformar em sons e imagens toda a emoção descrita na narrativa. Ele enfrentará a crítica do leitor da obra original, que está preocupado em ver na tela o que leu no livro e, mais ainda, o que imaginou serem as personagens no momento em que foi absorvido pela leitura. Ao mesmo tempo irá se defrontar com um público consumidor de cinema de entretenimento, menos afeito à Literatura, que poderá consumir mais facilmente uma obra menos “artística” e mais voltada à indústria cultural. Assim, no momento em que decide adaptar para o cinema um texto literário, conhecido ou não, de autor consagrado ou não, o roteirista precisará definir se pretende fazer uma adaptação mais ou menos comercial e se ela será fiel ou não ao original. Isso implica em decidir pelo caminho que irá seguir, uma vez que poderá se interessar mais por um ou outro aspecto da obra, desenvolver melhor um tema de pouco destaque no original, dar mais atenção a uma personagem relegada ao segundo plano na narrativa, inverter papéis, acrescentar falas, criar novas personagens, diferentes situações, alterar o desfecho etc. As possibilidades são inúmeras e o roteirista é quem deve decidir que caminho seguir. Lapidar metáforas, construir diálogos, reconstruir o tempo e minimizar o papel do narrador fazem parte desse trabalho árduo. Especificamente na adaptação do conto O Corpo, José Antonio Garcia decidiu ser o mais fiel possível ao original de Clarice Lispector e convidou Alfredo Oros, roteirista já consagrado pela adaptação de A Hora da Estrela, para dividir com ele essa tarefa. Seu primeiro obstáculo certamente foi contar, através de imagens, uma história narrada, predominantemente, em terceira pessoa, com um narrador que, apesar de ausente, se encontra tão presente no conto por meio de seus comentários. Outro obstáculo enfrentado pelos roteiristas foi o de transportar para o filme as inúmeras marcas de passagem do tempo existentes no conto, responsáveis por gerar um tédio alongado que aprisiona as personagens à sua vida monótona e repetitiva. Uma vez que o roteirista optou pela não utilização do recurso “voz-off” que, de certa forma, representa o narrador no cinema, o papel do narrador precisou ser minimizado. Não poderia, contudo, ter sido eliminado, já que sua voz possui uma característica específica, a crueldade, que a torna a marca principal desta obra.

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Entendemos que, no processo de adaptação do conto “O Corpo”, parte dessa crueldade transita da voz do narrador na obra literária para as personagens da adaptação fílmica e que esse percurso envolve, não apenas as personagens já existentes no conto, como também a criação de novas, que têm, como objetivo principal, transportar para o cinema a importância do narrador. Outras questões específicas da linguagem cinematográfica, como fotografia e sonorização, são utilizadas para recriar, no filme, a mesma atmosfera gerada pelo narrador do conto. Observamos, ainda, que o roteiro nos apresenta uma nova faceta da crueldade, pois a crítica destina-se a uma situação vista como imoral pela sociedade e, sob a ótica do narrador do conto, pouco importa a questão da bigamia; as personagens eram individualmente ridicularizadas por seu excesso de peso, truculência, romantismo, ou talvez, principalmente, por perpetuarem valores afetivos de uma classe média moderna dentro de uma situação aparentemente transgressora (a bigamia), transformando o impulso da sexualidade em uma forma ainda mais banal e ridícula de vivência. O percurso do mal da narrativa para o cinema passa, desse modo, não apenas por uma transferência do narrador para as personagens, como também por um processo de recriação no filme de José Antonio Garcia. Já no que tange ao tempo, os roteiristas optaram por não apresentar de forma tão freqüente, como no conto, as marcas de sua passagem. A questão tédio, definido pelo caráter cíclico observado no conto a partir da referência ao Bolero de Ravel, foi resolvida com a inclusão da personagem de Daniel Filho, que representa o “eterno retorno” , a possibilidade de recomeçar uma nova vida exatamente igual à anterior. Nesse sentido, sua libertação (da cadeia, de Xavier, do tédio que aprisionava) não teria significado absolutamente nada. Em nosso entendimento, José Antonio Garcia e Alfredo Oros atingiram um bom resultado na adaptação de O Corpo, uma vez que os principais elementos do conto, a crueldade do narrador e sua preocupação com o tempo, de certa forma foram bem resolvidos na adaptação. Outros roteiristas poderiam ter pensado em soluções diferentes ou muito mais simples para estas questões, optando pela vozoff e contratando Paulo César Pereio, por exemplo, com sua voz grave e “cruel” para o papel de narrador. Mas isso é apenas um outro caminho, e assim como essa é uma profissão de escolhas, a leitura que fizemos neste trabalho é apenas mais uma possibilidade.

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BIBLIOGRAFIA SOBRE FOCO NARRATIVO 1. KAYSER, Wolfgang. “Análise e Interpretação da Obra Literária” , Coimbra, Armênio Amado, 6 Ed., 1976. 2. FERNANDES, Maria Lucia Outeiro. “Ficção e História: um jogo de espelhos”, in “Cenas Literárias, a narrativa em foco”, SP, Cultura Acadêmica, 2002 3. CASTRO, Manuel Antonio de. “O Narrador e a obra: a Linguagem como medida”, in “Cenas Literárias, a narrativa em foco”, SP, Cultura Acadêmica, 2002 4. LEITE, Ligia Chiappini de Moraes. “O Foco Narrativo”. SP, Ática, 1999. 5. GOTLIB, Nadia Battella. “Teoria do Conto”, SP, Ática, 2003, 10ed. SOBRE O TEMPO 6. POUILLON, Jean. “O Tempo no Romance”. SP, Cultrix, 1974. 7. NUNES, Benedito. “O Tempo na Narrativa”. SP, Ática, 2000. 8. CARRIÈRE, Jean Claude. “A Linguagem Secreta do Cinema”, RJ, Nova Fronteira, 1995. 9. TARKOVSKI, Andrei. “Esculpir o Tempo”, SP, Martins Fontes, 2 ed., 1998. SOBRE PERSONAGENS 10. ROSENFELD, Anatol. “Literatura e Personagem” in “A personagem de ficção”, SP, Perspectiva, 10 ed., 2002. 11. CANDIDO, Antonio. “A Personagem do Romance” in “A Personagem de Ficção”, SP, Perspectiva, 10 ed., 2002. 12. PRADO, Décio de Almeida. “A Personagem no Teatro” in “A Personagem de Ficção”, SP, Perspectiva, 10 ed., 2002. 13. GOMES, Paulo Emílio Sales. “A Personagem Cinematográfica” in “A Personagem de Ficção”, SP, Perspectiva, 10 ed., 2002. 14. COMPARATO, Doc. “Da Criação ao Roteiro”, RJ, Rocco, 5ed., 2000.

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SOBRE O MAL 15. MEZAN, Roberto. “A Inveja”, in “Os Sentidos da Paixão”, SP, Cia das Letras, 2002. 16. BAUDRILLARD, Jean. “A Transparência do Mal: Ensaios Sobre os Fenômenos Extremos”, Campinas/SP, Papirus, 2 ed., 1992. 17. ROSENBAUM, Yudith. Metamorforses do Mal, uma leitura de Clarice Lispector. SP, EDUSP, 1999. SOBRE CLARICE LISPECTOR 18. PERRONE-MOISÉS, Leila. “A Fantástica Verdade de Clarice”, in “Flores da Escrivaninha”, SP, Cia das Letras, 1ª reimpressão, 1998. 19. CÂNDIDO, Antonio. “No Raiar de Clarice Lispector”, in “Vários Escritos”, SP, Livraria Duas Cidades, 2 ed, 1977. 20. KAHN, Daniela Mercedes. “A Via Crucis do Outro”, Dissertação (Mestrado em Teoria Literária), SP, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2000. 21. MAGALHÃES, Luis Antonio Mousinho. “Cultura, Perdição, Salvação: a imitação do escuro” in, “Cenas Literárias, a narrativa em foco”, SP, Cultura Acadêmica, 2002. SOBRE ADAPTAÇÕES LITERÁRIAS 22. BALOGH, Anna Maria. “Conjunções, disjunções, Transmutações – da Literatura ao cinema e à TV”, SP, Annablume, ECA/USP, 1996. 23. GOBBI, Márcia Valéria Zamboni. “A dramatização da ficção narrativa”, in “Cenas Literárias, a narrativa em foco”, Cultura Acadêmica, SP, 2002 24. HIRSCH, Linei. Transcriação Teatral: da narrativa literária ao palco. Dissertação (Mestrado em Artes) Escola de Comunicação e Artes, USP/SP. 1987.

OUTRAS FONTES DE CONSULTA 1. LISPECTOR, Clarice. A Via Crucis do Corpo. Rio de Janeiro: Artenova, 1974. 2. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. SP, Globo, 21 ed, 2001. 3. O CORPO. Produção: José Antonio Garcia, CINEARTE, 1991. Videocassete (80 min.) NTSC, cor.

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Anexo 1 O corpo Clarice Lispector Xavier era um homem truculento e sanguíneo. Muito forte esse homem. Adorava tangos. Foi ver “O último tango em Paris” e excitou-se terrivelmente. Não compreendeu o filme: achava que se tratava de filme de sexo. Não descobriu que aquela era a história de um homem desesperado. Na noite em que viu “O último tango em Paris” foram os três para a cama: Xavier, Carmem e Beatriz. Todo mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres. Cada noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo. Uma não tinha ciúme da outra. Beatriz comia que não era vida: era gorda e enxundiosa. Já Carmem era alta e magra. A noite do último tango em Paris foi memorável para os três. De madrugada estavam exaustos. Mas Carmem se levantou de manhã, preparou um lautíssimo desjejum – com gordas colheres de grosso creme de leite – e levou-o para Beatriz e Xavier. Estava estremunhada. Precisou tomar um banho de chuveiro gelado para se pôr em forma de novo. Nesse dia – domingo – almoçaram às três horas da tarde. Quem cozinhou foi Beatriz,a gorda. Xavier bebeu vinho francês. E comeu sozinho um frango inteiro. As duas comeram o outro frango. Os frangos eram recheados de farofa de passas e ameixas, tudo úmido e bom. Às seis horas da tarde foram os três para a igreja. Pareciam um bolero. O bolero de Ravel. E de noite ficaram em casa vendo televisão e comendo. Nessa noite não aconteceu nada: os três estavam muito cansados. E assim era, dia após dia. Xavier trabalhava muito para sustentar as duas e a si mesmo, as grandes comidas. E às vezes enganava a ambas com uma prostituta ótima. Mas nada contava em casa pois não era doido. Passavam-se dias, meses, anos. Ninguém morria. Xavier tinha quarenta e sete anos. Carmem tinha trinta e nove. E Beatriz já completara os cinqüenta. A vida lhes era boa. Às vezes Carmem e Beatriz saíam a fim de comprar camisolas cheias de sexo. E comprar perfume. Carmem era mais elegante. Beatriz, com suas banhas, escolhia biquíni e um sutiã mínimo para os enormes seios que tinha. Um dia Xavier só chegou de noite bem tarde: as duas desesperadas. Mal sabiam que ele estava com a sua prostituta. Os três na verdade eram quatro, como os três mosqueteiros. Xavier chegou com uma fome que não acabava mais. E abriu uma garrafa de champanha. Estava em pleno vigor. Conversou animadamente com as duas, contou-lhes que a indústria farmacêutica que lhe pertencia ia bem de finanças. E propôs às duas irem os três a Montevidéu, para um hotel de luxo. Foi uma tal azáfama a preparação das três malas. Carmem levou toda a sua complicada maquilagem. Beatriz saiu e comprou uma minissaia. Foram de avião. Sentaram-se em banco de três lugares: ele no meio das duas. Em Montevidéu compraram tudo o que quiseram. Inclusive uma máquina de costura para Beatriz e uma máquina de escrever que Carmem quis para aprender a manipulá-la. Na verdade não precisava de nada, era uma pobre desgraçada. Mantinha um diário: anotava nas páginas do grosso caderno encadernado de vermelho as datas em que Xavier a procurava. Dava o diário a Beatriz para ler. Em Montevidéu compraram um livro de receitas culinárias. Só que era em francês e elas nada entendiam. As palavras mais pareciam palavrões. Então compraram um receituário em castelhano. E se esmeraram nos molhos e nas sopas. Aprenderam a fazer “roast-beef”. Xavier engordou três quilos e sua forca de touro acresceu-se. Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste. Um dia contaram esse fato a Xavier. Xavier vibrou. E quis que nessa noite as duas se amassem na frente dele. Mas, assim encomendado, terminou tudo em nada. As duas choraram e Xavier encolerizou-se danadamente. Durante três dias ele não disse nenhuma palavra às duas. Mas, nesse intervalo, e sem encomenda, as duas foram para a cama e com sucesso. Ao teatro os três não iam. Preferiam ver televisão. Ou jantar fora.

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Xavier comia com maus modos: pegava a comida com as mãos, fazia muito barulho para mastigar, alem de comer com a boca aberta. Carmem, que era mais fina, ficava com nojo e vergonha. Sem vergonha mesmo era Beatriz que até nua andava pela casa. Não se sabe como começou, mas começou. Um dia Xavier veio do trabalho com marcas de batom na camisa. Não pôde negar que estivera com a sua prostituta preferida. Carmem e Beatriz pegaram cada uma um pedaço de pau e correram pela casa toda atrás de Xavier. Este corria feito um desesperado, gritando: perdão! perdão! perdão! As duas, também cansadas, afinal deixaram de persegui-lo. Às três horas da manhã Xavier teve vontade de ter mulher. Chamou Beatriz porque ela era menos rancorosa. Beatriz, mole e cansada, prestou-se aos desejos do homem que parecia um superhomem. Mas no dia seguinte avisaram-lhe que não cozinhariam mais para ele. Que se arranjasse com a terceira mulher. As duas de vez em quando choravam e Beatriz preparou para ambas uma salada de batata com maionese. De tarde foram ao cinema. Jantaram fora e só voltaram para casa à meia-noite. Encontrando um Xavier abatido, triste e com fome. Ele tentou explicar: — É porque às vezes tenho vontade durante o dia! — Então, disse-lhe Carmem, então por que não volta para casa? Ele prometeu que assim faria. E chorou. Quando chorou, Carmem e Beatriz ficaram de coração partido. Nessa noite as duas fizeram amor na sua frente e ele roeu-se de inveja. Como é que começou o desejo de vingança? As duas cada vez mais amigas e desprezando-o. Ele não cumpriu a promessa e procurou a prostituta. Esta excitava-o porque dizia muito palavrão. E chamava-o de filho da puta. Ele aceitava tudo. Até que veio um certo dia. Ou melhor, uma noite, Xavier dormia placidamente como um bom cidadão que era. As duas ficaram sentadas junto de uma mesa, pensativas. Cada uma pensava na infância perdida. E pensaram na morte. Carmem disse: — Um dia nós três morreremos. Beatriz retrucou: — E à toa. Tinham que esperar pacientemente pelo dia em que fechariam os olhos para sempre. E Xavier? O que fariam com Xavier? Este parecia uma criança dormindo. — Vamos esperar que Xavier morra de morte morrida? Perguntou Beatriz. Carmem pensou, pensou e disse: — Acho que devemos as duas dar um jeito. — Que jeito? — Ainda não sei. — Mas temos que resolver. — Pode deixar por minha conta, eu sei o que faço. E nada de fazerem nada. Daqui a pouco seria madrugada e nada teria acontecido. Carmem fez para as duas um café bem forte. E comeram chocolate até a náusea. E nada, nada mesmo. Ligaram o rádio de pilha e ouviram uma lancinante música de Schubert. Era piano puro. Carmem disse: — Tem que ser hoje. Carmem liderava e Beatriz obedecia. Era uma noite especial: cheia de estrelas que as olhavam faiscantes e tranqüilas. Que silêncio. Mas que silêncio. Foram as duas para perto de Xavier para ver se se inspiravam. Xavier roncava. Carmem realmente inspirou-se. Disse para Beatriz: —Na cozinha há dois facões. —E daí? —E daí nos somos duas e temos dois facões. —E daí? —E daí, sua burra, nos duas temos armas e poderemos fazer o que precisamos fazer. Deus manda. —Não é melhor não falar em Deus nessa hora? —Você quer que eu fale no Diabo? Não, falo em Deus que é dono de tudo. Do espaço e do tempo. Então foram à cozinha. Os dois facões eram amolados, de fino aço polido. Teriam força?

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Teriam sim. Foram armadas. O quarto estava escuro. Elas faquejaram erradamente, apunhalando o cobertor. Era noite fria. Então conseguiram distinguir o corpo adormecido de Xavier. O rico sangue de Xavier escorria pela cama, pelo chão, um desperdício. Carmem e Beatriz sentaram-se junto à mesa da sala de jantar, sob a luz amarela da lâmpada nua, estavam exaustas. Matar requer força. Força humana. Força divina. As duas estavam suadas, mudas, abatidas. Se tivessem podido, não teriam matado o seu grande amor. E agora? Agora tinham que se desfazer do corpo. O corpo era grande. O corpo pesava. Então as duas foram ao jardim e com auxílio de duas pás abriram no chão uma cova. E, no escuro da noite – carregaram o corpo pelo jardim afora. Era difícil porque Xavier morto parecia pesar mais do que quando vivo, pois escapara-lhe o espírito. Enquanto o carregavam, gemiam de cansaço e dor. Beatriz chorava. Puseram o grande corpo dentro da cova, cobriram-na com terra úmida e cheirosa do jardim, terra de bom plantio. Depois entraram em casa, fizeram de novo café, e revigoraram-se um pouco. Beatriz, muito romântica que era – vivia lendo fotonovelas onde acontecia amor contrariado ou perdido – Beatriz teve a idéia de plantarem rosas naquela terra fértil. Então foram de novo ao jardim, pegaram uma muda de rosas vermelhas e plantaram-na na sepultura do pranteado Xavier. Amanhecia. O jardim orvalhado. O orvalho era uma benção ao assassinato. Assim elas pensaram, sentadas no banco branco que lá havia. Passaram-se dias. As duas mulheres compraram vestidos pretos. E mal comiam. Quando anoitecia a tristeza caía sobre elas. Não tinham mais gosto de cozinhar. De raiva, Carmem, a colérica, rasgou o livro de receitas em francês. Guardou o castelhano: nunca se sabia se ainda não seria necessário. Beatriz passou a ocupar-se da cozinha. Ambas comiam e bebiam em silêncio. O pé de rosas vermelhas parecia ter pegado. Boa mão de plantio, boa terra próspera. Tudo resolvido. E assim ficaria encerrado o problema. Mas acontece que o secretario de Xavier estranhou a longa ausência. Havia papéis urgentes a assinar. Como a casa de Xavier não tinha telefone, foi até lá. A casa parecia banhada de “mala suerte”. As duas mulheres disseram-lhe que Xavier viajara, que fora a Montevidéu. O secretário não acreditou muito mas pareceu engolir a história. Na semana seguinte o secretario foi à polícia. Com Polícia não se brinca. Antes os policiais não quiseram dar crédito à história. Mas, diante da insistência do secretário, resolveram preguiçosamente dar ordem de busca na casa do polígamo. Tudo em vão: nada de Xavier. Então Carmem falou assim: —Xavier está no jardim. —No jardim? Fazendo o quê? —Só Deus sabe o quê. —Mas nós não vimos nada nem ninguém. Foram ao jardim: Carmem, Beatriz, o secretário de nome Alberto, dois policiais, e mais dois homens que não se sabia quem eram. Sete pessoas. Então Beatriz, sem uma lágrima nos olhos, mostrou-lhes a cova florida. Três homens abriram a cova, destroçando o pé de rosas que sofriam à toa a brutalidade humana. E viram Xavier. Estava horrível, deformado, já meio roído, de olhos abertos. —E agora? Disse um dos policiais. —E agora é prender as duas mulheres. —Mas, disse Carmem, que seja numa mesma cela. —Olhe, disse um dos policiais diante do secretário atônito, o melhor é fingir que nada aconteceu senão vai dar muito barulho, muito papel escrito, muita falação. —Vocês duas, disse o outro policial, arrumem as malas e vão viver em Montevidéu. Não nos dêem maior amolação. As duas disseram: muito obrigada. E Xavier não disse nada. Nada havia mesmo a dizer.

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Anexo 2 Ficha Técnica do filme - O Corpo Direção José Antonio Garcia Elenco Antonio Fagundes (Xavier) Marieta Severo (Carmen) Claudia Jimenez (Bia) Carla Camurati (Monique) Sergio Mamberti Maria Alice Vergueiro Ricardo Pettine Lala Deheinzelin Equipe Técnica Roteiro: Alfredo Oros, baseado no conto O corpo de Clarice Lispector Fotografia: Antonio Meliande Montagem: Danilo Tadeu e Eder Mazzini Som direto: Lia Camargo e Tide Borges Trilha sonora: Paulo Barnabé Direção de arte e cenografia: Felipe Crescenti Figurino: Luiz Fernando Pereira Produtoras: Cinearte Produções Cinematográficas Ltda. e Olympus Filme Ltda. Produtora associada: Embrafilme S/A Direção de produção: Sara Silveira Produtores: Anibal Massaini e Adone Fragano Ano de produção: 1991 Duração: 80 minutos Distribuição em cinema: Riofilme

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