Caderno dispersos

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CADERNO DO PEREGRINO [DISPERSOS]

CADERNOS DE POESIA

EDIÇÕES CORDEIRO-LOBO


1

Índice MIRADOURO DO SOCORRO NO FUNCHAL ....................................................... 2 A GRANDE MURALHA DA CHINA ....................................................................... 3 DIANTE DA FONTE DOS QUATRO RIOS ............................................................. 4 MARÉ BAIXA NA NORMANDIA ........................................................................... 5 ABADIA DE WHITBY .............................................................................................. 6

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MIRADOURO DO SOCORRO NO FUNCHAL

Amurada de barco sem proa enfrentando as pujantes águas envolventes salgadas e profundas que vão tecendo espumas que se esboroam ao correr e ao revés dos seixos, donde quem hoje se debruça pouco recorda quando não ignora da vertigem da travessia do abismo do enjoo escorregadiço do convés rumo a outros cais outros degredos

sobre ti

onde as casas aprenderam discretas a respirar nem por guelras nem frestas mas pelos poros ásperos do basalto que suam sucos terrestres substantivos fertilizantes dissolutos onde o mel encerrado nos lábios nas jarras dorme sonhando cair em chuva liberto numa poligamia de perfumes floridos e vulcânicos onde trazido por alguém até ao parapeito uma sombrinha evasiva alheia se desfia com saudades de quando cada mês dispunha de trinta tipos diferentes de dias, Só as flores do jacarandá a caligrafar ainda versos no ar dos tormentos do amor e dos perigos das viagens, restos dos véus da Sissi amarrotadas sedas rotas a florir na buganvília

se demoram

esvoaçam explosiva frágil roxa Lisboa, 25 de Junho de 1988

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A GRANDE MURALHA DA CHINA

E

stava tanto frio nos terraços da

GRANDE MURALHA CONGELOU fotográfica máquina da bateria

Que a Não me permitindo fazer Um único disparo. Resultado: Menos umas quantas FOTOS de TURISTA, Como a GRANDE MURALHA Tão inúteis que nunca impediu nenhuma invasão nem a conquista

Caxias, 10 de Setembro de 2015

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DIANTE DA FONTE DOS QUATRO RIOS Na Piazza Navona Amanheceu Sem sol, sem pressa. Um mar cinzento Inundara todo o céu. E na praça, ali tão perto, A oito passos Da margem onde me sento, Ali, onde as águas com mais fragor Se abatem em perpétuo movimento, Foi onde avistei primeiro Tua cabeça Envolta em cristas de espuma Iridescente, Depois teu corpo Travado pelo cio adulto Que sai do mármore. Então me atiro Aos quatro rios Para ti como jangada A te agarrar Como corda como alga Como a mão inescapável Do meu destino Certo de vir A afundar-me a quatro mãos Quando o amplexo Que se avizinha Explodir Num alvoroço de espelhos E mil reflexos De líquidos violoncelos.

Lisboa, 2 de Outubro de 1979

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MARÉ BAIXA NA NORMANDIA

Terra de extrema mungidura De vacas e touros brancos, De labirintos marinhos e verdes, Nevoenta irmã bastarda De Creta, Quem te munge assim o mar Entornando a nata No areal da baixa-mar Sem que de cuja espuma Nenhuma Vénus Nasça!?

Trouville, Setembro de 1989

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ABADIA DE WHITBY

Desequilíbrio perfeito desflorido pedra a pedra descarnada mandíbula ferrada na falésia outrora farol à fé erguido para guia das solidões da carne e incautos mareantes, Quantos gritos de alarme contra razias e borrascas que do norte se abatiam antes do fim do Verão não estridularam seus sinos vigilantes!?

Diante do poder enervante do mar tremia de frio contemplando a obra desagregadora acumulada ano após ano donde até Deus mentalmente se evadira ali onde um resto de calor de alcova um parapeito nodoso uma penumbra de agasalho deviam permanecer talvez enterrados como pepitas de sonho;

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Mais que o ronco enervante do mar era o estertor do dragão de eriçadas escamas ferido de morte por aquele São Jorge o que me arranhava em ecos medonhos e lancetas a garganta,

Um céu de borrifos violeta e riscos de bruma desconexa infiltram-se nos bilros góticos de que se enfeitam as janelas num rodopio de vento estroboscópico,

Um chuvisco espumejante desprega-se dos arcos que exibem as suas cicatrizes hematomas e ventosas como um polvo enorme pendurado fora de água O chão da nave central está encharcado de relva fresca muito cremosa muito à inglesa nuvens baixas femininas roçam os lombos perigosamente pelas ogivas soltando flauteios de sirene enganadores armando ciladas na vazante; Velejam um arco-íris envolto em ligaduras todas brancas e fragmentos de navios com proas vermelhas e estremeções orgânicos ao sabor do vento leste carregado e saliva doce como amoras românticas,

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O transepto engrinalda-se com fitas de memória como esse anel dos teus cabelos que nunca me deste mas eu guardo como se se tratasse duma moeda recuperada dos fundos da infância entre ocos ouriços do mar despojos de cofres há muito naufragados;

A pedra dos claustros que escapou ao leilão acabou sendo saqueada pelo povo então miserável destas arribas ou pelos magistrados do rei requisitada para as obras do porto interior sendo de crer que ainda hoje se reconheçam e entre si comuniquem por ladainhas sibilantes numa língua reprimida a coberto do lamento natural que às ondas arranca o vento por estas ruas inanimadas estes degraus fossilizados gorgolejantes de muco-chuva visco-mar degraus da beira-mar que se descobrem rosados e como um ânus franzidos pela rebentação que há gemendo em mim de desejo de arrependimento de que não me tenha entregue completamente a quem com voz ferida me amava.

Lisboa, Agosto de 1995

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