Umas paginas

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NO FORTE VERMELHO DE AGRA

Às escâncaras, como no circunstante canteiro as túlipas, copulavam sentados no chão sobre tapetes de seda crua e almofadões do tamanho de dunas, à vista das garças voadoras e das afogueadas nuvens paradas de espanto; Como os peixes nos tanques de eriçadas barbatanas, copulavam no chão sentados ali no pátio interior, numa falcata de sombra acampados, no pavilhão em forma de barca com tolda de cobre e velas de fumo, sob a abóbada de pedra-pérola onde o ar quente como leite e denso, circula e ascende desde as costelas até à nuca até à cúpula onde luzem estrelas embutidas de aljôfar e pedrarias de Ceilão e Samatra com granizos de suores;

Com a elegância e exacta mesura com que desceriam do palanquim no intervalo duma caçada para uma merenda numa clareira atapetada de sombra no meio do capim, copulavam sentados no chão do jardim sob um dossel de asas de apsaras e vertigens de gáveas com desempenhos de leque, ali num vedado de tules brancos esvoaçantes com brado pregueados de poente; Num canto, pouco recuado, escravas tangedoras da Pérsia, de Orissa, da Circássia,

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tocavam pandeiros, flautas, tambores e campainhas, mais para abafar incastos ruídos com vocativos favos de crepúsculo nas dilatadas pupilas que para prever ou retardar ápices de vulvas ou glandes com consistência de laringes; Nenhum homem nem eunuco tinha acesso ao recinto – atrás das pesadas portas vigilavam os guardas, pacientavam ministros e validos – só algum rapaz pré-púbere a quem cabia assitir o seu senhor no labirinto dos botões e faixas ou interpretar um gesto de quem todos os silêncios têm sentido; Ao alcance dum gesto, travessas com mangas descascadas e talhadas de melancia sem pevides, ao alcance dos dedos, as almotolias de óleos emolientes de cravinho e cardamomo, as ampolas de óleos odorosos extraídos de doces rosas e de árduas rimas, ao alcance da língua, das estrelas todas em cascata a cocção de fermentos e enzimas.

Ele ostenta na rampa da sua perfeita intenção a nítida clivagem da sua circuncisão, qual lamparina de rubis sem mais abrigo que o silogismo da sua compacta fertilidade que se acentua tónica e fosfórica no seu turbante inchado de dobras e voltas sem costuras senão o gotejar de pedras e diamantes gota a gota conta a conta com valências de fronde carregada de frutos ofuscantes, clorídricos; ao pescoço, um enxame de pólens de pérolas, chicotes zurzindo o peito em franjas esfaceladas sensitivas;

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Ostenta barba e trá-la aparada em diafragma meridiana debruçada e petulante de virilidade, os cabelos repuxados são reféns do seu turbante numa simbiose de arame com grades de sede, os pêlos do peito e púbis mandou-os desbastar em caligrafias de chuva quedando-se uma bruma rasteira e escura de quando a monção está para acabar.

Ela é o braseiro entre a borrasca e o ninho de sangue ou quase que irradia por salivados vaus como coisa húmida, úbere, argênteas empenas no quebrar-se do pecíolo de folha quando se agarra à própria sombra com gritos ovais, essências do seu alambique cónico; Papoilas coaguladas tingiram-lhe mãos e pés com os seus beijos precipitados e arranhões de tigres; No cabelo leva fiadas de rosadas pérolas, no nariz pérolas miudinhas em argolas e nas orelhas tilintando; outras enfiadas no fio infinito do desejo titilam o nenúfar de anil arreigado no fundo do ventre nos fundos incoercíveis ventosas, ventríloquos, recifes, pérolas grandes como amoras; Dentro das suas coxas já as pérolas dele, brancas, soltas se derramam encostando-se à aurora.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2013

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SARCÓFAGO DOS ESPOSOS (Museu Etrusco de Villa Giulia, em Roma)

Deles, os romanos diziam que eram maus soldados, Como marinheiros uma nulidade, Falsos como os Fenícios, – Enguias insubmissas; Gabavam-lhes os méritos como médicos, áugures E adivinhos. Nunca partiram à descoberta do mundo nem das ilhas, Não quiseram conquistar a Península, Nem raptavam por hábito mulheres ou trigo Dos vizinhos. Julgavam viver na cerca dum primordial paraíso: A terra tremia pouco, os dragões extintos, O mar pescoso, os rios modestos mas sensatos, Os montes frondosos e os vales generosos e macios Como o ventre das suas mulheres que só requeriam Um dobrar da espinha E umas sementes bem servidas de suor. Alimentavam-se de azeitonas, feijões e favas E duma broa cozida com azeite e ervas ácidas. Ah sim, e bebiam vinho Destemperado com mel ou macerado com bagas De amora e de zimbro. Talvez não quisessem ser mais que hortelões Hospedando as estações na eira e no curral No meio dos bichos: – a mosca pica o gado, o cavalo rapa a relva, o galo engole a larva, o verme é omnívoro, nas traseiras do quintal o sol ri, as crianças gritam – Capazes de fecundar as flores com os próprios dedos Caso abelhas e besouros não se aguentassem no ar De tanto pólen carregado nas patas, nas asas… Usavam uma escrita tão inextricável Que os tornou habilitados a ler o futuro nos fígados Das águias e nos círculos dos voos dos pombos Ou nos olhos cegos dos meninos. Não acreditavam na vida eterna no seio dos deuses, Cuja companhia evitavam e temiam, Mas sim no seio da família que manteria a sua memória Viva com preces, lumes e oferendas em sua honra, Em troca da protecção que do além paternal lhes adviria, Numa ininterrupta cadeia: linha, nó, anilha De filho para filho, para filho, para filho… Num convivial banquete de perene chegada E despedida.

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Estão ambos reclinados num kline almofadado, Os bustos soerguidos Amparando-se um ao outro: ele de tronco nu, Músculos e mamilos bem definidos, Os cabelos compridos Caindo para trás em canudos, A barba erecta, pontiaguda e curta, os pés descalços Numa bonomia jucunda, pausada e viril; Ela traz um gorro bordado sobre um penteado De madeixas brunidas, entrançadas, Veste uma longa túnica com friso na bainha Deixando a descoberto o luxo Dos sapatinhos de pontas recurvas em bico. O pulso dele repousa no ombro dela Ou é o ombro dela que se apoia no contraforte Do braço levantado do marido? Esse braço masculino quase não-amplexo Refreia a carícia ou confiante concita-a Por trilhos quase-fíbulas a nós desconhecidos? Que seguravam suas mãos no gesto suspensas Benevolentes, para nós quase não-estendidas? Âmpolas de perfumes encantatórios? Taças de vinho para libação propiciatória Dando início ao banquete, para eles talvez o último? Ou somente o aceno em que os dedos fagueiros Também sorriem Abrindo-se num convite para que os acompanhemos Sem receio neste festim, Para nós o primeiro?

Lisboa, 3 de Março de 2013

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LA SAINTE CHAPELLE em Paris P or ém não nos é dado saber porque a folha se rebele em acuminado aço, espinhaço à caça de sangue cingindo crostas colchas púrpuras, cunha quase osmose vulnerária quase sangrenta unção porque fosse eleita no no martírio feri-lo e prenhe de sal a coroá-lo. Único dado de facto, a transacção do seu simulacro por 135.000 libras pagas ao imperador de Constantinopla por esses espinhos, pérolas de arestas, âmbar, lágrimas, mudas testemunhas do seu último hálito índigo ICHTYS; ICHTYS, trazidas para a Paris de São Luís. Do que alegadamente roçou e lambeu os cabelos do ungido o não poder haver legítimo dono, do que não tem soberano, impôs que só existisse guardião venerante ou lavrador de nuvens em fuga de infinito. Que logo se pensasse num escrínio rectangular, um cofre transparente era senão óbvio que à espinhosa grinalda desse custódia, mas necessário foi por três vezes centuplicar a escala para acomodar seu esplendor de aurora boreal, coroa com vocação de arado celestial. Lavrou-se um santuário sem fachada nem transepto nem portal, sem chave nem fecho, um molde de empenas sem paredes, quase se erguera o dedo e o olho da providência que se sustenta de ar, fé e vidro para sempre em equilíbrio insone. Contudo o altíssimo fraseado dos pilares malevolamente cinzentos, de tão exiles parecem alegorias da peste e o seu olhar turvo segue-nos com retumbância de meteorito que espera dissimular-se em fronde escura. Paredes, sim, múltiplas só de luz refractada irrefreável em refrega recalcitrante a refrondescer em âmbitos de amplos andores. Luz que se acasala aos teus olhos com a luxúria hipnótica da cascata que vai d e s a g u a r : na bacia lava-pés na púcara meio cheia de quinta-feira-santa; do vinho da última ceia; na travessa com a cabeça no poço de Samaria do baptista fumegante; contaminado de coliformes na barca das onze mil virgens fecais em simbiose com trezentos marinheiros hemotórax de hititas descalços a bordo hicsos, israelitas; umas vezes descendo o Reno no kit de crucificação outras vezes sobe-o; de tamanho único

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71 nos três cornifornicadores guindados a heróis do amor - David de longos caracóis cobiça Betsabé na cama, Lancelote armado só de si esperando a rainha escondido no jardim das damas, Tristão de joelhos tomando das mãos de Isolda o filtro de ervas da Irlanda; na estrada de Damasco atrás de uma moita de murta divisa-se peremptória a cabeça de São Paulo inclinado a converter um efebo de cabelo curto; damas de longas tranças e mangas e bainhas de arminho bordam aliciamentos e causeries d’esprit diante de avarandados pajens em que nova barba se debruça e os pés latejam apertados em escarpins verdes de camurça; nos palácios submersos com seus torreões de nácar orlados de ameias douradas cantam a compasso de algas sereias cantadeiras e mancebos empunham seus instrumentos com tremores de pénétration pacifique boca-a-boca como peixes eléctricos donde escapam bolhas de alambique; dois domingos de ramos passeiam pelo bazar de Jerusalém com suas palmas em hosana suas palmilhas rotas e calos, chagas de estrebaria de psicodrama e hálitos mornos de cebola; um estilita sem olhos nem dentes profetiza abismos ardentes labirintos, cadeiras de rodas que se dobram e desdobram, fornos crematórios vistos do interior trovoadas de amianto e albedo…

cruz de montar do melhor cedro 3 cravos de ferro sem artrite, as 3 negações de Pedro, as 3 lágrimas de João mais as três Marias à beira dum chilique; na fuga para o Egipto o menino durante 7 semanas só mijou água de malvas colorindo de roxo as fraldas e deixando um rasto de novas tamareiras nos oásis e rãs enamoradas da lua nos canaviais confinantes; Um São Jorge fogoso montando sem sela nem estribos no encalço da virgem, que vai deixar de sê-lo, no meio dos gritos de incitamento e baforadas de jubiloso fumo do dragão que afinal tem coração complacente de alcaiote; um rei pouco dado a mulheres de corpo frágil como vidro legisla por silogismos contra os hereges sentado diante dos cortesãos na celha do banho buscando alívio para as dores da gota representadas pelas constelações do aquário e do cisne; das hóstias menstruadas escorre o sangue para dois painéis mais abaixo onde a mulher adúltera que escapou à lapidação se contorce numa crise de glicémia desprendendo-se de equimoses como as árvores das folhas; a mesma turba de judeus e zelotas continua clamar na praça por barrabás, engels, marx maos de 68 mutatis mutantis…

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72 Frisos mutilantes quase lâminas, de flores de lis, descamisadas glandes corações em chamas, bolotas, besantes, espigas de ouro, copas, aspas intersectam faixas de gorjeios de grifos, crinas de unicórnios, hastilhas e garras de salamandra interceptam versículos e parábolas, acrónimos inscritos em cartilhas cartazes, pergamenas, cártulas, dísticos, garatujas góticas gregas latinas movendo-se na aceleração da luz através de losangos de vidro com a fluidez serpentina da areia na matemática do tempo, do acaso, da sorte, às costas do sol numa língua coreografada já fóssil entre vidraças tésseras e grampos como nós à espera da epifania do instante.

Lisboa, 17 de Março de 2013

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O DAVID de Michelangelo

Tua nudez é o teu heroísmo completa de todos os gestos que hão-de vir enformados ainda nos teus músculos, completa de todos teus desejos aduzidos e suspensos aflorando nas pregas dos teus lábios, pálpebras prepúcio;

É a tua nudez que incide e faísca no sobrolho oblíquo de ira da tua testa franzida entretecida ainda dum verdor adolescente numa embriaguez de faunos e flautas carregada de sussurros do louro inflexível da manhã;

A tua nudez veste-se do som da verdade hirta de sombra e luz lavrada, trovão sibilino de carícias com algo de terrível de tangível: confissão do destino no fio do arado.

De quem é esse corpo que engrandeces e reguardas, marmórea armadura de parada? (de quem) a alacridade da crineira juvenil, a insubmissão arreitada dos mamilos, a exterioridade terrena e sensitiva asserida nos testículos, a visibilidade relampejante das veias emblema do ímpeto do pulsar da paisagem do teu agir nos túrgidos cachos pendentes do ventre viril?

A tua nudez lança arcos sobre praças a prumo pódios sobre pódios através de feixes e cones de claridade colmatando abismos e palatos, impregnada pelo desejo de ser penetrada como a língua pela palavra como a casa pelo seu dono e o pescoço mais alvo pela voz mais alta;

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Irrevogáveis são os teus gritos de luz que atroam nos nossos olhares, Irrefreáveis são os ecos dos teus olhos que nos dedilham um cantar, Insondáveis as profundezas do céu que uma só das tuas mãos é capaz de conter feita fogosa trémula pedra. A tua nudez é o alvo e o início que aquartela a tua sina inadulterada de encandear os homens libertando estrelas numa torsão do pescoço um fremir do lábio a tensão dum dedo em cuja inviável respiração respiro concedendo-me a graça de esperar que me resgates da matemática do tempo do sulco da nuvem lívida do eclipse.

Lisboa, 9 de Junho de 2013

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O TEMPLO DE KARNAK EM LUXOR

Estes pés latejantes deslumbrados do caminho que ainda agora à beira-Nilo, – contador do tempo – senhor de prodígios e bálsamos – deixo lamber e afagar na intimidade dos postigos pelas sua águas limaçosas cor de malaquite, um dia serão, perdidos o dom do tacto e a lei do sangue a rebate, cingidos, nus e rígidos, em rolos de gaze de perfumes indizíveis à sombra caída do trovão. Mas pra onde irá a minh’alma? Da minh’alma que lhe farão?

Estes braços de que me orgulho que ainda ontem no mergulho ritual no Lago Sagrado pareciam comandar hordas de ondas reclusas entre mil colunas castigadas, fendendo presságios das esferas, as mãos em concha inscrevendo às braçadas gotejantes hieróglifos de sonho, um dia não serão mais que inúteis remos, varais cruzados, enfaixados, encaixotada bagagem no séquito da viagem da deusa coroada de sol e com a lua entre as pernas. Mas pra onde irá a minh’alma? Quem a defenderá, senão tu, das penas eternas?

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Estas vísceras que moldam a fogo, geram e destilam força, desejo, inveja, amor, em breve viscosas e frias, serão depostas em vasos selados de alabastro, longe do cheiro da vida, à guarda da deusa de asas de escamas e andar de estrela. Mas pra onde irá A minh’alma? Que farão com ela?

Sim, guardarão estas unhas, cabelos, dentes, ossos, esta pele tão frágil e ténue com que te acendo o peito, com que este estilete empunho, e as próprias estrelas roço, depois de encerada a preceito, amidada e estirada, numa cripta da deusa hermafrodita com três seios e seis testículos, encerrada em câmara escura entre cânticos e benzeduras à espera da chamada do céu. Mas minh’alma Pra onde irá… À tua procura Como agora eu?

Caxias, 2 de Setembro de 2013

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DIANTE DO BUSTO DE NEFERTITI

Nunca os meus dedos roçarão suas orelhas – nem que fossem transparentes, Nunca os meus lábios tomarão o gosto dos seus – nem que o sol os mascarasse, Nunca será o meu bafo a amparar a vertigem do seu pescoço – equilíbrio dos astros. Acontece que sinto a sua respiração ainda nas costas da minha mão em ferida. Nunca me serão dados a ver os seus dentes, a flor da sua língua, os seus cabelos em contenda com a noite pela posse da escuridão. Acontece que o perfume deles ainda reverdece como frases completas no meu céu da boca. Nunca me dirigirá olhar nem fala, sou menos que o luar caído no chão para adornar suas sandálias. Mas pode acontecer – assim eu imploro a Ísis, deusa maior, que rege o espírito das mulheres e submete a carne dos homens – que um dia, acesa de raiva e de furor, lance mão do seu chicote de hipopótamo e, diante das escravas assustadas e dos guardas que já me despem e a seus pés me arrojam, com seu braço dispensador de raios, de vida e de dor, me açoite com mão fulminosa e pesada de desprezo pela suspeita que só no ar retine que eu possa, indigno, por ela – sublime entre as sublimes – viver a morrer a suspirar de amor.

Caxias, 4 de Janeiro de 2014

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