La llorona

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La Llorona



La Llorona

Marcela Serrano


Titulo original La llorona 2008© Marcela Serrano Gerência editoral Lourdes Magalhães

Projeto gráfico de miolo e capa Carlos A. Andreotti

Coordenação editorial Tânia Lins

Diagramação LCT Tecnologia

Tradução Roseane Rezende de Freitas

Foto de capa Dreamstime

Edição texto Véra Regina Maselli Paulo P. Sanchez Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) __________________________________________________________________________ Serrano, Marcela La Llorona / Marcela Serrano ; [tradução Roseana Rezende de Freitas]. -- São Paulo : Primavera Editorial, 2008. Título original: La Llorona. 1. Romance chileno I. Título. 08-09219 CDD-c861 __________________________________________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Romances : Literatura chilena c861 ISBN 978-85-61977-00-9 Pri Primavera Editorial Ltda. Rua Ferreira de Araújo, 202 - 8º andar 05428-000 – São Paulo - SP Primeira edição. 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 ©2008, Pri Primavera Editorial Ltda. Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios, eletrônicos, mecânicos, fotográficos ou quaisquer outros, sem autorização prévia, por escrito, da editora. Impressão: Orgrafic


A minha irm達 Paula, a quem devo este livro. Para Willie Schavelzon, simplesmente



I ELA

Em espanhol, La Llorona, “aquela que chora”. A lenda original, da qual há várias versões, é de origem mexicana e aponta essa mulher misteriosa como a deusa Cihuacóati. Durante a conquista do México ela gritava: “Oh, meus filhos! Onde os levarei, para não perdê-los?”. Além do México, a lenda é muito popular também em alguns países da América do Sul e nas comunidades hispânicas. No Brasil, a versão mais próxima seria a da Dama de Branco ou Mulher da Meia-Noite. No folclore hispânico, é a alma penada de uma mulher que afogou seus filhos.


8 – ELA


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Você a matou. Foi o que me disseram no vilarejo. E me chamaram de Chorona. Não porque eu chorasse à toa. Nunca me derreti em prantos, nem quando era pequena. Meus lamentos eram silenciosos. Até os meus gritos eram contidos, como se tivessem atravessado minha garganta com uma ferramenta afiada daquelas que ficam no estábulo. Uma garganta dilacerada também grita sufocada. Chamaram-me assim por causa da lenda da alma penada de uma mãe que assassinou seus filhos, LA LLORONA – 9


afogando-os no rio. Dizem que ela vaga à noite nas proximidades do local, chorando e lamentando a morte dos garotos. Dizem também que as noites de tormenta se abrem obstinadamente diante dela e o coração lhe escapa do corpo junto com seus soluços. Ela é a Chorona. Tivesse sido eu a assassina, ficaria olhando os cães arranhando a terra, enfrentaria as dificuldades, daria nome às coisas, e a perda seria somente da vida. Mas, quando minhas vizinhas me viram voltar com as mãos vazias, não acreditaram em mim. Como? Se ontem a menina estava bem! Onde estava o corpo? E o funeral? Não houve nada. Caminhei na direção do rio e, como se fosse a verdadeira assassina, chorei. Chorava por causa de suas mãos quentes. Lembranças silenciosas. Havia caminhado e caminhado, ferindo meus pés sem poder acreditar que ela estivesse morta. As vizinhas tinham razão; ela estava melhorando na sexta-feira quando a vi pela última vez no horário de visita. No sábado não pude vê-la porque estava na sala de radiografia. Até mesmo a poeira do caminho congelava no domingo, quando cheguei ao hospital. Pensava naquelas mãos pequeninas e mornas, que acabariam com o meu frio, e que eu poderia beijar quantas vezes tivesse vontade. E, digo a vocês que foi exatamente assim que me contaram: Senhora, sua filha morreu. E nada mais. Que eu fosse resolver o problema no primeiro andar. Não podia me mover, sentia meu corpo ainda mais entorpecido do que estava ao chegar. Não só as mãos, mas eu toda, e por inteira. A cabeça, o coração. Ninguém se compadecia de mim. Inerte, peguei o telefone público e liguei para meu 10 – ELA


padrinho. Com certeza ele cuidaria dos trâmites. Meu marido estava trabalhando e na obra não havia telefone. O taxista do ponto do açougue foi avisá-lo. Lembro primeiro do frio, depois do gelo; por fim, do pesadelo. Só desconfiei quando, pedi para vê-la e ninguém conseguiu encontrá-la. Acabou o horário de visita, me disseram, e que me retirasse, pois já era noite. Não me movi. Queria matar todo mundo, isso sim, que morressem. Rezei para que Deus enviasse um cataclismo e destruísse a cidade inteira, que derrubasse, pedra por pedra, o hospital e sua gente. Uma a uma aquelas enfermeiras que falam baixinho como se estivessem nos consolando, um a um aqueles médicos que só estavam ali para coisas administrativas, como se a morte fosse uma coisa a ser administrada. Deuses desalmados. Quando por fim meu marido chegou, a coisa ficou feia. Ele queria enterrar a filha, queria ver o corpo. Seus gritos só diminuíram com calmantes. Fomos embora na manhã seguinte e o sol não acalentou nossas almas geladas. Agitei-me com uma raiva nova, desconhecida e urgente: tinha que encontrar o corpo da menina, despedir-me dela. Foram dois dias de espera enquanto seu corpinho gelado perambulava errante por algum lugar sem sequer um vestidinho para ser enterrado. O administrador-chefe nos recebeu e nos falou da cremação. Não estávamos presentes na hora do falecimento, segundo ele; e ela teve que ser levada ao necrotério; eram os procedimentos. Era mais um corpo não-reclamado. E havia muitos mortos para pouco espaço. Mas eu estava aqui no domingo, senhor; cheguei cedo e não me movi. LA LLORONA – 11


Silêncio. E estivemos aqui na segunda-feira e na terça-feira. Não saí do hospital. Eu estava aqui. Mas não adiantava. Entendo seu abalo, senhora; imagino a sua dor. Meu marido se assustou com meus gritos e minha obstinação. Com tanta insistência. Ele finalmente recebeu a certidão de óbito. Vamos embora de uma vez por todas, ele me disse; não voltaremos a pisar neste lugar. Cinzas não são vestidas; cinzas não passam frio. Na única igreja do vilarejo, acenderam velas para Nossa Senhora, rezaram missa, mas não havia corpo. E fomos cada um para sua casa; meus peitos carregados de leite e a cabeça zunindo sob o vento gelado. Eu ouvia o murmúrio das minhas vizinhas: Chorona, Chorona. Se ao menos meu marido escutasse. Mas ele esteve sempre calado, sem se meter com ninguém. Sua irmã veio cuidar de mim. Meu leite secou, não fui mais trabalhar e queria morrer. Só lembro isso. Em uma segunda-feira cinzenta, enquanto eu lavava roupa na bacia, tive um pressentimento e fiquei paralisada. Não sei bem o que vi; talvez tenha ouvido uma voz, não sei; mas, acreditem, meu coração teve uma certeza: a menina estava viva. Não tinha morrido; tinha sido roubada de mim. A idéia circulava ao meu redor, insensata, mas tão certa como o sol nasce todas as manhãs. Apressada, enxuguei as mãos e parti, deixando a roupa molhada e sem pendurar. Peguei ônibus, fui até a obra para ver meu marido e contei a ele. Ele me mandou embora. Que deixasse de inventar, que fizesse outro 12 – ELA


filho, pois ainda era jovem; enfim, que parasse com aquela história. Já em casa, peguei uma cadeira e sentei-me sob a palmeira, a única árvore em nosso jardim. Minha cunhada havia partido. Eu estava sozinha. Gostei daquilo, do exílio. Nunca, até então, me sentara para pensar, nem me ocorrera fazê-lo, e eu não sabia se as outras pessoas tinham tempo ou vontade de tal ócio. Pensar e nada mais. Sentada sob a árvore, em companhia de pássaros para os quais nem olhei, com as mãos cruzadas serenamente sobre o ventre, fiz um esforço para recordar. Com calma e precisão, fui me lembrando dos momentos, um a um. Minhas vizinhas estavam equivocadas se pensavam que eu estava ali indiferente, matando o tempo. O vilarejo onde eu morava ficava a meia hora da cidade. Não que a cidade fosse grande ou importante; era apenas a mais próxima. O hospital dos meus pesares ficava lá. Eu também estava ocupada lavando roupas naquele dia quando, estendendo um lençol, levantei os braços e algo estourou. Um jato colossal de água molhou tudo. Gritei para minha vizinha, para que corresse ao açougue e chamasse o táxi. Agüente, senhora, agüente um pouco mais, suplicava o taxista, como se não estivesse acostumado a partos no banco traseiro do seu carro. Cheguei ao hospital da cidade com a menina entre as pernas e fui direto para a maternidade. Ainda bem, insistia o taxista para quem quisesse ouvir, secando suas gotas de suor com um lenço quadriculado, menos mal assim. E foi assim que aconteceu. Um parto fácil e rápido. Gritos não me faltaram porque não havia anestesia para a dor. A menina nasceu grande e comprida, moreninha, com muitos cabelos LA LLORONA – 13


emaranhados e boa saúde. Levaram-me para a sala de recuperação, onde havia outras cinco mulheres. Na cama do lado esquerdo, uma garota de dezesseis anos chorava porque havia escondido a gravidez com uma faixa, saído da casa dos pais no final de semana com a desculpa de procurar trabalho e precisava voltar o quanto antes e sem nada nas mãos. Coitada, ela queria me dar seu filho. Que, por favor, o levasse comigo e o criasse com a minha. O bebê era claro, muito bonito, mamava muito, chorava como gente grande e quando a garota lhe dava o peito, então, quem chorava era ela. O quarto dos prantos, eu o batizei assim, quando não chorava uma, chorava a outra. As enfermeiras, preocupadas, chamaram-me de lado para me pedir que a vigiasse: poderia matar a criança. Monstros envenenados, incapazes de distinguir medo de maldade. Do lado direito, uma mulher com seu sexto filho se estufava de orgulho; seriam mais duas mãos para lavrar a terra e cuidar dos animais. Seu marido a venerava por lhe dar tantos varões. Ela foi uma boa companhia, sua experiência me ajudou e ela segurava minha filha quando eu tinha dores, porque seu filho nunca chorava e ela não tinha dores. As enfermeiras nos obrigavam a caminhar pelo quarto e conversávamos e ajudávamos umas às outras com os recém-nascidos e no preparo dos chazinhos, cada vez mais mornos à medida que avançava o dia, pois só nos traziam a garrafa térmica uma vez, pela manhã. Era permitida uma hora de visitas diária, mas isso não funcionava sempre, porque os maridos trabalhavam e poucas mulheres tinham família na cidade. 14 – ELA


Procurar sinais de nascença nesses corpinhos tão pequenos foi um passatempo. Por mais que eu procurasse, minha filha não tinha nenhum. E se você a perder, como vai distingui-la?, perguntou-me a que chorava o dia todo. E por que eu a perderia?, respondi. Minha vizinha de quarto mostrou uma mancha enorme sob o braço do filho, mas não importa, dizia ela, porque é homem. Como se fosse um potrinho já marcado. Para toda a vida. Finalmente chegou o quarto dia, a data de minha alta. Uma enfermeira nova apareceu naquela manhã. Ela parecia mais importante que as outras, por causa do uniforme que usava. Ela falou baixinho com a garota dos prantos e, assim que ela fechou a porta, a garota nos contou: o próprio hospital havia conseguido uma mãe para seu filho; era um segredo, não haveria nada legal, nada de papelada, perfeito para ela, ninguém ficaria sabendo de sua situação. Contou-me que seu pai era capataz de uma fazenda de gado, orgulhoso de seu posto e da proximidade que tinha com os patrões, gente muito católica e tradicional. Poderia perder o trabalho se soubessem do deslize de sua filha, que também ajudava na casa dos patrões quando a família chegava para as férias. O pai do bebê era um irmão do patrão. Quando ela o informou da gravidez, ele ameaçou tirar o menino de seu ventre; sabia como fazê-lo, mas já era tarde. Sem tristeza, me explicou que ele não era mau, só que vinha de uma família rígida. Estava noivo de uma jovem da capital e aquilo poderia arruinar tudo para ele. Tão jovem aquela garota e já tinha um sentido de realidade formado. Bom para ela, pensei, para LA LLORONA – 15


que não sofra. Estava aliviada enquanto se preparava para partir. Talvez começasse a chorar ao se separar do recém-nascido, acreditaria em um deus desgraçado ao entregá-lo, sentiria um ácido corroendo algum vazio ao partir sem ele. Mas não. Ela foi embora para retomar sua vida como se o parto não tivesse sido nada além de um sonho ruim. Depois que os chorões foram embora o silêncio da cama ao meu lado me fez adormecer. Quando despertei, minha menina estava ardendo. Que não me preocupasse, disse a enfermeira, era só uma febre. Eu recebi alta, mas ela teve que ficar no hospital. Na manhã seguinte, vi minha filha em uma sala com outros recém-nascidos e pude tocá-la e amamentá-la. Ela ficou três dias hospitalizada, a febre diminuía e diminuía, e a vi sã e forte em minhas visitas. Era um vírus, me explicaram, em alguns dias ela poderia deixar o hospital. Quando fui visitá-la no sábado estava tirando raios-X e não pude vê-la. Aí detive minhas lembranças. Para que radiografias, se era só uma virose? Seus pulmões, explicaram, poderiam ter sido afetados pela febre, e seria bom examiná-la antes que recebesse alta. Naquele momento agradeci pelo fato de o hospital se preocupar tanto; as filas para raios-X costumavam ser grandes. Senti-me uma privilegiada, a feliz privilegiada; feliz, feliz. Ainda sentada sob a palmeira do meu jardim, perguntei a mim mesma se no dia das supostas radiografias não a teriam levado para outro lugar, preparando-a para a alta. Na última vez que a vi, naquela sexta-feira, prometi que daria a ela um nome na próxima visita. (Ainda não estávamos de acordo entre os que tínhamos escolhido.) Eu sei que 16 – ELA


ela entendeu, sei que seus olhos me viram, e sei porque sei, porque fui eu que a pari. E lhe contei, caso não soubesse, que suas mãozinhas eram mornas e que eu gostava muito delas. Fiquei muitos dias calada, e pensando, e recordando. Comportava-me bem para não alertar meu marido. Via a menina sem parar, às vezes sobre a cama, outras no quintal, despida. Não tinha a oportunidade de vesti-la. Ela estava gelada. Eu tentava aquecê-la, mas ela desaparecia. Eu então suplicava desesperada para recuperar a sanidade e voltar a tocá-la. Escondida, visitei uma vidente no casario perto do vilarejo. Ela tinha quase cem anos e via tudo através das folhas do chá. Eu mordia meus lábios quando finalmente me sentei à sua mesa. De antemão, jurei que se ela a visse morta, ficaria tranqüila. Depois de um longo silêncio, ela me ofereceu um sorriso tímido, sem um só dente, e com um punhado de ossos segurou minha mão. A menina está viva, disse ela baixinho. Falou-me de um berço com véus, de uma mulher clara que cuidava de seu sono. Viu-a sadia. Ela está em uma casa muito grande, me disse, deve ser de gente rica. Pedi-lhe a descrição da casa e do bairro para ir procurá-la. Só viu tijolos vermelhos, um jardim imenso e janelas brancas. Nada mais. Saí procurando. Nem olhei no vilarejo, não valia a pena. Fui para a cidade dos meus pesares, talvez perto do hospital. Por dias e dias meu marido saía para trabalhar e logo atrás saía eu. Quantos ônibus peguei, meu Deus! Cheguei a conhecer metro a metro a cidade nojenta. E seus arredores. Cada subúrbio. Mas, não achei nada, nem tijolos vermelhos, nem LA LLORONA – 17


janelas brancas, nem um jardim imenso. Voltei à vidente. Pela segunda vez ela olhou as folhas e pela segunda vez apareceu a casa. A mesma descrição; nenhum dado novo. E não passou pela sua cabeça que essa casa pode estar na capital ou talvez em outro país? Com sua voz baixa acrescentou: não prossiga, mulher, é o destino. Fui à polícia e fiz uma denúncia por seqüestro. Na mesma noite chegaram dois agentes à minha casa para que a ratificasse. Meu marido mostrou-lhes a certidão de óbito e na manhã seguinte me mandou para o campo, com os meus pais. Estava descontrolada: essa foi a sentença.

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