Winnicott - Ressonâncias

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Apresentação

O projeto do qual surgiu o encontro, e por consequência este volume, teve como foco chamar a atenção para a perspectiva psicanalítica winnicottiana e sua abordagem do ser humano, levar adiante o bastão dos encontros latino-americanos anteriores e avançar em um terreno que refletisse a liberdade desejável dos psicanalistas contemporâneos de se apropriarem da obra do autor, cada um a seu modo. Longe de uma inquietação exegética, nosso intuito foi dar voz a diferentes modos de apropriação da obra do autor por colegas das diversas partes do Brasil e da América Latina. Isso ficou bem claro desde que nos reunimos em Buenos Aires, em outubro de 2007, na qualidade de diretor científico da SBPSP1, com os colegas responsáveis pela organização de vários dos diversos encontros que vem sendo organizados ao longo desses anos, com tanto carinho. Ali acordou-se a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo como responsável pela organização do próximo simpósio, o XVII Encontro Latino-Americano sobre o Pensamento de D. W. Winnicott.2 Este ocorreu em outubro de 2008, em São Paulo, com setecentos e vinte participantes oriundos de vários Estados brasileiros, inclusive distantes de nós, como Rondônia, e de vários países sul-americanos — Argentina, Chile, Uruguai, Peru, Venezuela. Sua Comissão Organizadora, que trabalhou com notável entusiasmo e também criatividade, foi composta por Inês Sucar (coordenadora), Eliana Rache, Heloisa de Moraes Ramos, Magaly Marconato Callia, Maria Rosa Maris Sales, Marlene Rozenberg, Mirian Malzyner, Plinio Montagna, Rahel Boraks, Roberto Azevedo, Suely Gevertz, Yoshiaki Ohki, Yvete Piha Lehman. O encontro foi pensado para que se fizessem trabalhar os processos reflexivos de cada autor, destacando algum aspecto da obra winnicottiana que influencia sua prática, clínica ou teórico/clínica, no final da primeira década do século XXI. Essa perspectiva se fazia importante também para nós, da SBPSP, auscultarmos a influência que esse magistral psicanalista tem em diversos colegas oriundos de diversos grupos de pensamento de nossa Sociedade, sabidamente interessados por seu trabalhos. Do ponto de vista global do simpósio, tratava-se de trazer o foco para a as ressonâncias de Winnicott na clínica contemporânea dos colegas de toda a América Latina, promovendo a partir daí uma conversa livre, aberta, sobre sua obra, hoje, em nosso continente a partir de contribuições originais de cada um. Nossa Sociedade tem uma inscrição eminentemente clínica como característica fundamental; assim é também a obra winnicottiana, a qual, mesmo quando percorre o caminho da epistemologia do sujeito não se afasta da experiência clínica, exibindo até mesmo com uma desconstrução do linguajar técnico psicanalítico, transformando isso em sua força. Para James (2007), isso evoca uma poderosa resposta intuitiva.

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na presidência de Luiz Carlos Menezes , em cuja gestão se deu também o XVII Encontro.

Quero ressaltar em particular, daquele grupo, o acolhimento e apoio de Raquel Zac de Goldstein, uma das criadoras do movimento dos encontros, década e meia atrás, que se animou com uma versão paulista dele. 2

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Estabelecer esse diálogo franco tem também a função de rastrear nossa clínica, e fundamentalmente nossa liberdade de pensar e fazer psicanálise ou se utilizar dela de algum modo. Isso está em sintonia completa com o irrecusável convite de Winnicott, em seu trabalho “ "Communication between infant and mother, and mother and infant, compared and contrasted” (Winnicott, 1968, p. 23). "Come at the world creatively, create the world, it is only what you create that has meaning to you". (Winnicott, 1968, p. 23). Ele se refere à mãe, que, "tendo estabelecido sua realidade básica para o bebê, tornando real exatamente aquilo que o bebê está procurando" oferece as condições para que este possa criá-la, pois "temo que dizer que o bebê criou o seio, mas não poderia ter feito isso se a mãe não o tivesse acompanhado com o seio exatamente naquele momento". E é dessa experiência de onipotência, como ele diz, que o bebê começa a poder experimentar frustrações. Foi esse então, o espírito do convite aos autores em relação à obra de Winnicott, de início. Por outro lado, não perdemos de vista a importância do conhecimento plural em psicanálise, e, sem dúvida, na formação psicanalítica. Entendemos a riqueza do conhecimento e da prática psicanalítica atual como transcendendo o monoautoralismo. James Grotstein, por exemplo, em artigo publicado na Revista Brasileira de Psicanálise (Grotstein,) postula que o psicanalista, hoje, deve ser versado ao menos em dois idiomas psicanalíticos para poder dar conta da complexidade do campo, hoje. Nossa visão é que um deles de preferência deve ser o winnicotiano. Entram aí, em uma condensação extraordinária, implícitos, aplicação de conceitos dos mais importantes, conhecidos, e utilizador e difundidos de Winnicott, como mãe suficientemente boa, preocupação materna primária, onipotência benigna, espaço potencial, objeto transicional, uso do objeto, com destruição e sobrevivência. A antiga "voz solitária de Winnicott por quase trinta anos (James, 1962, p. 69) conta hoje de modo crescente, com amplo reconhecimento da importância de seu pensamento para o avanço da teoria e da prática psicanalíticas (Abram, 2008, p.1190).

Plinio Montagna

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Referências bibliográficas ABRAM, J. (1996). – The language of Winnicott. Londres, Karnac, 2007. ABRAM, J. (2008). – Donald Woods Winnicott (1876-1971) : A Brief introduction. International Journal of Psychoanalysis, 89, 1189-1217 GILLESPIE, W.H. (1971). – Donald W. Winnicott . International Journal of Psychoanalysis, 52, 227-28 GROTSTEIN, J. (1998?). – Grotstein, James S. Mantendo um encontro com a psicanálise futurística. Revista Brasileira de Psicanálise, v.33, n.1, p. 133-49, 1999. JAMES, M. (1962). – Infantile narcissistic trauma: Observation on Winnicott’s work in infant care and child development. International Journal of Psychoanalysis, 43, 69-79. JAMES, M. (1985). – The essential contribution of D.W. Winnicott. Winnicott Studies: The Journal of the Squiggle Foundation, 1, Spring 1985, 26- 35 WINNICOTT, D.W. (1931). – Clinical Notes on Disorders of Childhood. Londres, Heinemann, 1996 (apud Abram). WINNICOTT, D.W. (1968). Communication between infant and mother, and mother and infant, compared and contrasted. In: Joffe, W.: What is psychoanalysis, London: Ballierer, Tindal & Cassel. p. 15-25.

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Sumário

Apresentação

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CRIATIVIDADE Implicações do Conceito de Criatividade para a Situação Clínica Gilberto Safra

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Criatividade, Subjetividade e Mundo Atual: Um Salto no Vazio Mirian Malzyner

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El Pensamiento Creativo: Talento, Transicionalidad y Conectividad Sonia Abadi

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Driblando o Óbvio: A Agressividade no Paradoxo da Criação Magaly M. Marconato Callia & Luciana Bertini Godoy

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La Creatividad en Sus Raíces Alfredo Painceira

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CONSTRUÇÃO DO PSIQUISMO A Construção do Psiquismo: a Singularidade da Perspectiva Winnicottiana Diferindo de Freud, Klein e Bion Alfredo Naffah Neto

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Continuidade do Ser e Construção do Psiquismo: Uma Consideração Rogério N. Coelho de Souza

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Contribuições de Winnicott sobre a Adolescência: Transformação do Espaço Potencial Yvette Piha Lehman

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A Construção do Psiquismo na Relação Família-Criança: Desenvolvimento Normal e Patológico Roberto Azevedo

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LUGAR DO ANALISTA As Principais Contribuições de Winnicott à Prática Clínica Orestes Forlenza Neto

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Em um Espaço Transicional: A Presença Viva do Analista Eliana Rache

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El Analista Trabajando. El Lugar del Analista Alicia Szapu de Altman

129

A Especificidade do Lugar do Analista: A Possibilidade do Self Transicional Anna Lucia Melgaço Leal Silva

137

O Lugar do Analista Elney Bunemer

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MUTUALIDADE Mutualidade, Comunicação Silenciosa e Identificações Cruzadas Roberto Barberena Graña

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Gritos e Silêncios Aida Ungier

167

Mutualidade: Qual a Novidade? Luiz Marcírio Kern Machado

177

Níveis de Mutualidade Plinio Montagna

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PARADOXO El Creador Literario — el Pensar Paradojal y El Fantaseo Raquel Zak de Goldstein

197

Presença do Paradoxo na Construção de Vínculos: Clínica, Alteridade e Cultura Bernardo Tanis

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A Lógica Paradoxal na Teoria e na Prática da Psicanálise: Ressonâncias Luis Cláudio Figueiredo

219

Paradoxo e Loucura: A Radicalidade do Pensamento Psicopatológico de D. W. Winnicott Tânia Maria José Aiello Vaisberg

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Sobre a Teoria do Pensar em Winnicott Reinaldo Lobo

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PSICOSSOMA Winnicott y la Psicosomática – La Escucha Sensible y el Holding y el Handling en la Clinica con Pacientes que Padecen Afecciones Alérgicas Noemí Lustgarten de Canteros

255

A Questão do Psicossoma em Winnicott Yoshiaki Ohki

273

El Psique-soma y el Pensamiento Salvaje Jorge C. Ulnik

281

Psique-soma e o "Verdadeiro Self": Da Clínica à Atitude Analítica Milton Della Nina

293

TENDÊNCIA ANTISSOCIAL Da Tendência Antissocial ao Viver Criativo José Outeiral

305

Tendências Antissociais: Teorias e Práticas Preventivas a Partir do Conceito de Espaço Transicional David Léo Levisky

313

El Psicoanalista Antisocial o el Psicoanálisis Transgredido Pablo Abadi

327

Tendência Antissocial Raul Gorayeb

333

VAZIO Do Vazio ao Sonho: Sonhando Sonhos com Quem não Aprendeu a Sonhar Paulo de Moraes Mendonça Ribeiro

343

El Vacio Mental — Clínica, Psicopatología y Teoría Jaime Marcos Lutenberg

355

O Vazio Henrique Honigsztejn 375 Vazios Marlene Rozenberg & Rahel Boraks

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Vacío Jaime Coloma Andrews

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PERFIL PROFISSIONAL Perfis Profissionais

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Criatividade

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IMPLICAÇÕES DO CONCEITO DE CRIATIVIDADE PARA A SITUAÇÃO CLÍNICA Gilberto Safra

O tema da criatividade foi, habitualmente, abordado no campo psicanalítico como um fenômeno decorrente do funcionamento psíquico. Como exemplo desse tipo de abordagem, temos a criatividade tematizada ao lado da questão da sublimação ou relacionada ao conceito de reparação. Com Winnicott, ocorrerá um reposicionamento desse tema, pois a criatividade não mais será compreendida como decorrente do funcionamento psíquico, mas como aspecto fundamental da condição humana, cuja realização originará, eventualmente, o próprio funcionamento psíquico. O processo de constituição de si mesmo, ou se quisermos, a possibilidade mesma do emergir do fenômeno psíquico terão, em sua base, a realização da criatividade do bebê humano. O tema da criatividade pode, na verdade, ser abordado em diferentes registros, o que explicita a complexidade desse tópico. Entre eles, destaco: o registro ontológico, o registro sociopolítico e o registro da constituição do si mesmo.

REGISTRO ONTOLÓGICO Do ponto de vista ontológico, o tema da criatividade é abordado por diferentes autores como relacionado à questão da liberdade do ser humano. Criatividade e Liberdade são, aqui, compreendidas como facetas originárias da condição humana. Abordar o ser humano a partir do vértice da liberdade é abordá-lo como posicionado diante do horizonte de sua existência, de tal modo que cada indivíduo tem a necessidade e a responsabilidade de projetar-se em direção ao futuro. Todo homem nasce, vive, como ser sempre inacabado, sendo continuamente chamado a se inventar. A condição de inacabado do ser humano assentar-se-ia na faceta da liberdade originária, ofertando-lhe a possibilidade de reinventar-se, o que implica em constituir-se, definir destinos, pavimentar princípios. Nesse vértice, a vida humana não está, de antemão, pré-definida, embora o homem possa ser atravessado pelas questões decorrentes da hereditariedade, do campo sociocultural e pelas vicissitudes das questões transgeracionais. Assinalar a situação do ser humano como estando, originariamente, assentada na liberdade e na criatividade é assinalar a faceta trágica da condição humana. Nessa perspectiva, o ser humano é chamado a inventar-se, em situação de profunda orfandade e desamparo. Mesmo com o acolhimento da mãe suficientemente boa, jamais a orfandade originária da condição humana poderá ser totalmente contemplada. Como filho da liberdade e da criatividade, o ser humano é compreendido, fundamentalmente, como sendo ser de ação. É diferente compreendermos o ser humano como ser racional e compreendê-lo como um ser de ação. Se apreendermos o 13

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homem como um ser racional, vamos acreditar que o ápice da condição humana seria a possibilidade de colocar as diversas facetas da sua existência sob o domínio de sua racionalidade, perspectiva que pode ser encontrada no Iluminismo. No entanto, se compreendermos o homem como sendo originariamente ser de ação, abordaremos o ser humano como sempre despencado, chamado a agir, a decidir e a posicionar-se frente ao outro, frente ao mundo, frente à sua existência. Compreender o ser humano como ser criativo e como um ser de ação significa que ele está em um contínuo processo de invenção de si mesmo. Nessa condição, o indivíduo estará sempre entre o ser e o não-ser; só pode criar e projetar um destino aquele ente atravessado pela condição trágica de estar posicionado entre o ser e o não-ser. O homem é, assim, um ser de fronteira. A posição entre o ser e o não-ser coloca o ser humano sempre em devir, pois nenhum destino, nenhuma organização de si mesmo se finda, ela será sempre transitória. É por essa razão que podemos compreender a própria existência humana como trânsito, vértice fundamental para que se possa compreender mais profundamente a questão da transicionalidade e o uso do símbolo pelo ser humano. O ser humano não só simboliza, mas, também, pode vir a usar o símbolo como veículo de maneiras distintas de se situar no mundo. Essa perspectiva lhe oferta a possibilidade de deslizar-se de um sentido de realidade a outro. O bebê humano, partindo da realidade subjetiva em direção à realidade compartilhada, assenta a experiência transicional. Nesse registro, vive um contínuo trânsito, que se inicia, desenvolve-se continuamente no viver, em direção à morte. A criatividade compreendida dessa maneira aparece como possibilidade e como limite. Possibilidade porque oferta, a cada ser humano, a oportunidade de criar horizontes, de inventar-se. Limite pelo fato de que a criatividade também assinala que o homem está em uma condição, na qual o seu ser sempre acontece de maneira precária. Se levarmos isso em conta, vamos, também, compreender que as diferentes agonias impensáveis relacionam-se ao atravessamento da experiência de não-ser no ser humano. Esse aspecto é importante, pois em nosso tempo, frequentemente, a questão da criatividade é apresentada sem a sua faceta trágica. Muitas vezes, observamos certa celebração em determinadas concepções humanistas sobre criatividade, que deixam esquecido o fato de que ser criativo implica em uma condição trágica, na qual o desamparo e a precariedade são elementos fundamentais. Concepções que surgem como se o fato de se assinalar o ser humano como originariamente criativo corresponderia à apresentação de uma visão otimista dele. Afirmar que o ser humano é criativo é posicionar o seu desamparo fundamental. Perspectiva diferente da situação animal, que tem a sua vida de alguma forma organizada e determinada pelos movimentos instintivos. O ser humano, embora habitado pelos instintos, vive-os tecidos com a questão da liberdade: faceta fundamental do conceito de pulsão. Essa visão antropológica, na qual a criatividade é concebida como o elemento mais fundamental da condição humana, determina um modo específico de se compreender a angústia. Se pensarmos que a angústia mais fundamental para o ser humano relaciona-se à morte, teremos as formulações que teorizam a angústia como decorrente da pulsão de morte. No entanto, se temos a concepção antropológica, na qual o ser humano ocuparia o lugar de fronteira entre o ser e o não14

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-ser, a angústia não emerge pela questão da morte, mas pelo fato de que o homem poderá cair no não-ser. Nessa perspectiva, encontraremos as formulações de Winnicott, nas quais ele assinala que o suicídio poderia aparecer como ação defensiva pelo fato de o indivíduo não ter tido a experiência de ser. Mais terrível do que morrer é não ter tido a experiência de ser. A angústia, nesse vértice, informa o ser humano de sua condição fronteiriça. A angústia mais originária não seria a decorrente de um funcionamento psíquico, mas aquela reveladora da condição humana. Perspectiva que se pode reconhecer em Winnicott e que aparece também nas reflexões de Kiekergaard e Heidegger. Assim sendo, a angústia, nesse vértice, não é um fenômeno psíquico, embora possa ocorrer atravessando o psíquico. No texto Creativity and Its Origin (1971), Winnicott assinala que existe esperança quando uma pessoa não perdeu a possibilidade de sofrer. A capacidade de sofrer decorre da possibilidade que a pessoa tem de estar próxima de sua condição. Aqueles que perderam a esperança não mais sofrem e perdem a característica que os tornam humanos. Sofrer, nessa perspectiva, relaciona-se à esperança. No livro Human Nature (1988), Winnicott afirma que, do ponto de vista psicopatológico, o mais doente não é o psicótico; o mais doente é aquele que perdeu a esperança, que cai em um estado tal que perde a possibilidade de se inventar e de experimentar o sofrer como meio de reorientar o seu gesto em direção ao porvir. Alguns autores acreditam que Winnicott estaria fazendo uma teorização excessivamente otimista pelo fato de não se posicionar a favor da pulsão de morte. No entanto, quando se adentra o seu pensamento mais profundamente percebe-se que a pulsão de morte não seria a questão mais fundamental do ser humano. A problemática mais originária para o ser humano seria o não-ser; questão muito mais terrível que o morrer. Frente ao não-ser, morrer é um alívio.

REGISTRO SOCIOPOLÍTICO Nesse registro, a criatividade também comparece. O ser humano nasce em uma organização sociopolítica já estabelecida. Essa organização assinala não só o lugar que a família dessa criança terá na sociedade, mas, também, a posição que essa criança terá em sua família e na sociedade. A pessoa teria a sua vida definitivamente marcada por esse lugar sociocultural no qual nasceu? Embora o ser humano nasça em uma estrutura sociocultural pré-definida, ele nasce como ruptura. Hanna Arendt (1958) assinala que o ser humano nasce como ruptura e como evento no campo sociocultural e, por essa razão, o seu nascimento mesmo coloca em questão a organização do mundo, dotando o homem da possibilidade de ação. A ação possibilita que o ser humano destine-se diante de sua existência, mas também dota o ser humano com a potencialidade do gesto político. Compreender o ser humano como ser criativo no registro sociopolítico implica também em reconhecer que, embora o ser humano possa sofrer determinações socioculturais, poderá, eventualmente, acessar a consciência de sua situação e questionar a ordem sociocultural. O fato de Winnicott utilizar um modelo antropológico assentado na criatividade 15

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permite que se tenha interlocução com a filosofia, com a sociologia, com as diferentes áreas das ciências humanas. Ao falar da questão da criatividade, Winnicott enfatiza a importância do que ele denomina de apercepção criativa. Esse conceito assinala a possibilidade de estar diante dos objetos e das situações de mundo de um modo em que seja possível um tipo de apreensão que seja pessoal. A apercepção criativa ocorre integrando, em um único evento, a objetividade e a subjetividade, perspectiva fundamental do evento paradoxal. Uma pessoa é mais objetiva na medida em que tem maior assentamento no registro subjetivo. Maior disponibilidade da subjetividade existirá para aquele que acessa o registro, o objetivo. Há uma coexistência desses dois registros na apercepção criativa.

REGISTRO DA CONSTITUIÇÃO DO SI-MESMO Winnicott nos fala de duas formas de adoecimento, nas situações em que paradoxo é rompido, ou quando ele não é alcançado. A primeira modalidade de adoecimento é aquela que foi tratada com maior ênfase pela psicanálise e pela psicologia, na qual a experiência de uma pessoa é só subjetiva. Nesse caso, o indivíduo tem suas experiências predominantemente no registro da alucinação e do delírio. Desse modo, a sua experiência do mundo é tão idiossincrática que não lhe é possível compartilhá-la com os outros homens. No entanto, Winnicott também assinala o adoecimento de alguém para quem só existe a objetividade, situação que se relaciona, por exemplo, com as diferentes modalidades de aparecimento do falso self. Um adoecimento que é experimentado não simplesmente por uma desadaptação do indivíduo ao meio, mas pelo fato de que o indivíduo se perde de si mesmo. Para discutir esse tema, Winnicott utiliza-se do conceito de apercepção criativa. A experiência aperceptiva implica na possibilidade de ser mantido o paradoxo, de se estar situado no mundo objetivamente, sem que a experiência subjetiva seja perdida. Coexistência de possibilidades que acontece em determinado momento do processo maturacional, abrindo a experiência do brincar, do espaço potencial e do uso da cultura. Em Creativity and Its Origins (1971), Winnicott aborda os fenômenos denominados de elemento feminino puro e do elemento masculino puro. O elemento feminino é descrito como estando relacionado à possibilidade de o bebê identificar-se com o seio. Winnicott assinala que o encontro do bebê com o seio possibilita uma experiência de identificação que não é psíquica, mas é constitutiva. Trata-se de uma identificação com o sei que lá está. O seio é ofertado e com ele é apresentada uma possibilidade de ser, o que leva Winnicott a afirmar que a experiência de ser é transmitida pela mãe. A mãe oferta a possibilidade de repousar no horizonte da existência. O elemento feminino possibilita o emergir do gesto que cria a ilusão, perspectiva fundamental do elemento masculino, e possibilita, ainda, a quietude sustentada, enquanto o elemento masculino abre a experiência de ilusão. A ilusão aparece a partir do momento em que o bebê cria o seio como objeto a partir da necessidade. O ele16

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mento feminino relaciona-se ao ser e o masculino ao fazer. O elemento feminino puro possibilita o ser em meio à comunicação silenciosa. O elemento masculino cria o objeto sem o uso de uma representação pré-existente. Nessa perspectiva, poderíamos falar de dois modos distintos de apercepção criativa: a decorrente do gesto e aquela decorrente do ser. A apercepção criativa decorrente do gesto possibilita que o indivíduo tenha um acesso à realidade, mas uma realidade que é acessada subjetivamente para, posteriormente, ser apreendida de maneira objetiva. O indivíduo, em decorrência da experiência da apercepção criativa originada a partir do elemento masculino, pode ir em direção ao mundo na expectativa e na esperança do encontro do objeto necessitado. Nesse caso, surge a possibilidade de objetividade, mas de maneira pessoal. No entanto, a apercepção criativa decorrente do elemento masculino demanda a experiência decorrente do elemento feminino. É preciso ser e estar para que o gesto possa re-criar o mundo. São essas duas facetas constitutivas da apercepção criativa, originárias do elemento feminino e do elemento masculino, que possibilitam a coexistência do subjetivo e do objetivo. Ao existir essas duas possibilidades — objetivo pessoal, subjetivo pessoal —, compõe-se o que Winnicott denomina de viver criativo. O viver criativo implica na possibilidade de se estar na existência de um modo subjetivo e de um modo objetivo, de tal modo que se possa alcançar a apreensão objetiva do mundo sem se perder a pessoalidade. Winnicott assinala que a criatividade é, muitas vezes, simplesmente se estar vivo. Nosso mundo, organizado fundamentalmente pela funcionalidade, é um mundo que continuamente põe em questão a capacidade de o ser humano viver criativamente. O indivíduo que não pôde vivenciar a experiência de si mesmo como ruptura, muitas vezes não pode encontrar um lugar para habitar que possa vir a ser um lugar pessoal. Essa pessoa pode sentir-se impedida de desconstruir o mundo, estando demandado a uma adaptação ao já existente. O indivíduo que perdeu a possibilidade da experiência do masculino como criação do objeto tende a ter uma objetividade só perceptiva. Assim sendo, ele viverá no mundo de um modo em que a objetividade será simples fruto de uma percepção sem implicação de sua subjetividade; viverá uma experiência do sem sentido. A pessoa sem a experiência do elemento feminino não tem possibilidade de ser, de estar e de silêncio. A apercepção criativa do ponto de vista do masculino ou do feminino brinda a pessoa com a experiência de realidade. O ser humano precisará, continuamente, recriar o seu contato com cada objeto de seu mundo, de maneira que o seu modo de ser possa ser contemplado. Abordar o ser humano a partir da noção de criatividade torna-se fundamental para a clínica contemporânea, para que se compreenda o sofrimento apresentado pelas pessoas na atualidade. Vivemos em um mundo sustentado por uma perspectiva ideológica que busca legitimar um mercado avassalador, que homogeneiza a face do planeta em que vivemos, aniquilando diferenças, singularidades, cidadanias em nome do consumo que se torna o referente fundamental das relações entre os homens. Os encontros se retificam; o homem é roubado dos enigmas que lhe dão origem, instalando-se o reino do Mesmo e do Simulacro sobre as ruínas da ética que possibilitam o acontecer humano. Essa é a face do mercantilismo e da hegemonia 17

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da técnica que também comparece no modo como, a nosso ofício, frequentemente é exercido. Nessa perspectiva, o outro é mero instrumento para enriquecimento e para que lugares de prestígio social e de poder possam ser alcançados. Na atualidade, é preciso recuperar a memória dos fundamentos do humano, na qual a compreensão do homem criativo é faceta ética fundamental.

Referências bibliográficas ARENDT, H. (1958). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. WINNICOTT, D. W. (1971). Playing and Reality. London: Tavistock; New York: Routledge, 1992. WINNICOTT, D. W. Human Nature. London: Free Association Books, 1988.

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