A CERIMÓNIA DO ADEUS
Título original: La cérémonie des adieux © Éditions Gallimard, 1981 © Edições Cotovia, Lda., Lisboa 2008 Todos os direitos reservados ISBN 978-972-795-275-5
Simone de Beauvoir
A cerimónia do adeus
Tradução de Luísa Feijó
Cotovia
Àqueles que amaram Sartre Que o amam Que o amarão
PREFÁCIO
Eis o primeiro dos meus livros — certamente o único — que você não terá lido antes de ser impresso. É-lhe inteiramente dedicado e em nada lhe interessa. Quando éramos novos e que, no fim de uma discussão exaltada, um de nós triunfava com brio, dizia ao outro: “Você está na sua caixinha!”. Você está na sua caixinha; não sairá dela e eu não irei lá ter consigo: mesmo que me enterrem ao seu lado, das suas cinzas aos meus restos não haverá qualquer passagem. Este você de que me sirvo é um logro, um artifício retórico. Ninguém o ouve; não estou a falar com ninguém. Na verdade é aos amigos de Sartre que me dirijo. Àqueles que desejam conhecer melhor os seus últimos anos. Contei-os, tal como os vivi. Falei um pouco de mim, porque a testemunha faz parte do seu testemunho, mas fi-lo o menos possível. Primeiro, porque não é o meu tema; e, depois, como comentei, em resposta a uns amigos que me perguntavam como é que eu 9
estava a aguentar: “É uma coisa que não se pode dizer, que não se pode escrever, que não se pode pensar; é uma coisa que se vive e é tudo”. Este relato baseia-se unicamente no diário que escrevi durante estes dez anos. E, também, nos numerosos testemunhos que recolhi. Obrigada a todos aqueles que, através dos seus escritos ou de viva voz, me ajudaram a reconstituir o fim de Sartre.
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1970.
Durante toda a sua existência, Sartre nunca deixou de se pôr em causa; sem deixar de reconhecer aquilo a que chamava os seus “interesses ideológicos”, não queria alienar-se neles, razão por que, muitas vezes, optou por “pensar contra si próprio”, fazendo um esforço difícil de “quebrar ossos na sua cabeça”. Os acontecimentos de Maio de 68, nos quais participou e que o impressionaram particularmente, foram para ele a oportunidade de uma nova revisão; sentia-se contestado enquanto intelectual e por essa via foi levado, durante os dois anos seguintes, a reflectir sobre o papel do intelectual e a modificar o conceito que dele fazia. Explicou-se muitas vezes acerca disto. Até então1, Sartre tinha concebido o intelectual como um “técnico do saber prático”, dilacerado pela contradição entre a universalidade do saber e o particularismo da classe dominante de que
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Particularmente nas conferências que fez no Japão.
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ele era o produto: incarnava, assim, a consciência infeliz, tal como Hegel a define; satisfazendo a sua consciência exactamente com essa má consciência, pensava que esta lhe permitia colocar-se ao lado do proletariado. Agora, Sartre pensava que era necessário ultrapassar essa fase: ao intelectual clássico, opunha o novo intelectual, que nega em si mesmo o momento intelectual para tentar encontrar um novo estatuto popular; o novo intelectual procura diluir-se na massa para fazer triunfar a verdadeira universalidade. Sem a ter traçado ainda claramente, Sartre tinha tentado seguir esta linha de conduta. No Outono de 68, tinha assumido a direcção de um boletim, Interluttes, às vezes policopiado, outras vezes impresso, que circulava entre os comités de acção. Tinha-se encontrado várias vezes com Geismar e interessara-se vivamente por uma ideia que este lhe tinha exposto no início de 69: editar um jornal onde as massas falariam às massas, ou melhor, onde o povo, nos locais em que as suas lutas o tivessem parcialmente reconstituído, falaria às massas para as arrastar para esse processo. Após um início de concretização, o projecto acabou por se gorar. Mas realizou-se quando Geismar aderiu à Esquerda Proletária (Gauche Prolétarienne — G.P.) e os maoistas criaram com ele La Cause du Peuple. O jornal não tinha proprietário. Era escrito directa ou 12
indirectamente pelos trabalhadores e a sua venda era militante. O seu objectivo era dar uma ideia das lutas travadas em França pelos operários, a partir de 70. Mostrou-se muitas vezes hostil para com os intelectuais e, a propósito do processo de Roland Castro, para com o próprio Sartre2. Apesar disso, por intermédio de Geismar, Sartre conheceu vários membros da G.P. Quando, porque certos artigos de La Cause du Peuple atacavam violentamente o regime, o seu primeiro director Le Dantec e, depois o segundo, Le Bris, foram presos, Geismar e outros militantes propuseram que Sartre lhes sucedesse. Ele aceitou, sem hesitar, porque achava que o peso do seu nome poderia ser útil aos maoistas. “Cinicamente pus a minha fama na balança”, diria ele mais tarde, numa conferência feita em Bruxelas. A partir daí, os maoistas viram-se forçados a rever o juízo que faziam dos intelectuais e a táctica que utilizavam em relação a estes. 2
Roland Castro, militante de Vive la Révolution (V.L.R.) tinha, juntamente com Clavel, Leiris, Genet e outros, ocupado o Gabinete do C.N.P.F. para protestar contra a morte de cinco trabalhadores imigrados, asfixiados por gás de aquecimento. Os C.R.S. tinham-nos espancado, preso e depois libertado, excepto Castro que, num semáforo, tinha descido da viatura e tentado fugir. Apanhado novamente pela polícia, foi acusado de violência para com esta instituição. Foi condenado, porque o juiz se recusou a situar o processo no único terreno válido, o terreno político. Sartre testemunhou em seu favor e La Cause du Peuple comentou este depoimento com malevolência.
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Contei, em Tout compte fait, o processo de Le Dantec e de Le Bris, que teve lugar a 27 de Maio, e em que Sartre foi notificado como testemunha. Nesse dia, o governo anunciou a dissolução da Esquerda Proletária. Pouco antes tinha-se realizado na Mutualité um meeting em que Geismar tinha convocado o público a descer à rua a 27 de Maio, para protestar contra o processo: falou apenas oito minutos e nem por isso deixou de ser preso. O primeiro número de La Cause du Peuple dirigido por Sartre foi publicado a 1 de Maio de 70. O poder não se manifestou contra Sartre mas o Ministro do Interior mandou apreender na origem todos os números: felizmente, a tipografia conseguira pôr na rua a maior parte dos exemplares antes de serem apreendidos. Então, o governo atirou-se aos vendedores que foram levados a um tribunal de excepção, acusados de terem reconstituído a liga dissolvida. Contei também como Sartre, eu mesma e vários amigos vendemos o jornal no centro de Paris, sem que ninguém nos incomodasse seriamente. Um dia, as autoridades cansaram-se daquela luta vã e La Cause du Peuple passou a ser distribuída nos quiosques. Foi criada uma Associação dos “Amigos de La Cause du Peuple”, de que Michel Leiris e eu éramos directores. O recibo do certificado da associação começou por nos ser recusado; foi preciso recorrer a um tribunal 14
administrativo para que, finalmente, no-lo entregassem. Em Junho de 70, Sartre contribuiu para a fundação do Socorro Vermelho, de que Tillon e ele foram os principais pilares. O objectivo da organização era lutar contra a repressão. Num texto em grande parte redigido por Sartre, o Comité de iniciativa nacional declarava, entre outras coisas: O Socorro Vermelho será uma associação democrática, legalmente constituída, independente; o seu objectivo essencial será garantir a defesa política e jurídica das vítimas da repressão e proporcionar-lhes apoio material e moral, assim como às suas famílias, sem qualquer exclusivo… …Não é possível defender a justiça e a liberdade sem organizar a solidariedade popular. O Socorro Vermelho, nascido do povo, servi-lo-á no seu combate. A organização integrava os principais grupos de esquerda, o Témoignage Chrétien e várias personalidades. A sua plataforma política era muito vasta. Essencialmente, visava opor-se à vaga de prisões ordenada por Marcellin, depois da dissolução da G.P. Muitos militantes estavam presos. Havia que juntar informações sobre os seus casos e inventar formas de acção. O Socorro Vermelho contava vários milhares de membros. 15
Foram constituídos comités de base nos vários bairros de Paris e na província. Entre os comités de departamento, o de Lyon era o mais activo. Em Paris, a organização ocupou-se mais particularmente dos problemas dos imigrantes. Embora, em princípio, do ponto de vista político estes grupos fossem muito ecléticos, foram os maoistas que neles se mostraram mais activos e que, mais ou menos, os controlaram. Apesar de cumprir com zelo as suas tarefas militantes, Sartre não deixava de consagrar o melhor do seu tempo ao trabalho literário. Estava a terminar o terceiro tomo da sua grande obra sobre Flaubert. Em 1954, Roger Garaudy tinha-lhe proposto: “Tentemos explicar um mesmo personagem, eu segundo os métodos marxistas e você segundo os métodos existencialistas”. Sartre tinha escolhido Flaubert, de quem tinha dito muito mal em Qu’est-ce que la littérature?, mas que o tinha seduzido quando lhe tinha lido a correspondência: o que o atraía nele era a preeminência conferida ao imaginário. Sartre tinha, nessa época, enchido uma dezena de cadernos, depois redigido um estudo de mil páginas que tinha abandonado em 1955. Retomou-o e refê-lo de fio a pavio, entre 68 e 70. Intitulou-o L’Idiot de la Famille e escreveu-o ao correr da pena com muito entusiasmo. “Tratava-se de mostrar um método e de mostrar um homem”. 16
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Explicou-se várias vezes sobre as suas intenções. Falando, em Maio de 71, com Contat e Rybalka, explicou que não se tratava de uma obra científica, porque não utilizava conceitos, mas sim noções, sendo a noção um pensamento que introduzia em si o tempo: a noção de passividade, por exemplo. Adoptava, para com Flaubert, uma atitude de empatia. “É esse o meu objectivo: provar que é perfeitamente possível conhecer qualquer homem, desde que se utilize o método apropriado e que se possuam os documentos necessários”. Disse também: “Quando mostro como Flaubert não se conhece a si mesmo e como, ao mesmo tempo, se compreende admiravelmente, estou a indicar aquilo a que chamo o vivido, ou seja, a vida em compreensão consigo mesmo, sem que seja indicado um conhecimento, uma consciência tética.” Os seus amigos maoistas condenavam mais ou menos este empreendimento: teriam preferido que Sartre escrevesse algum tratado militante ou um grande romance popular. Mas, nessa matéria, ele não estava disposto a ceder a nenhuma pressão. Compreendia o ponto de vista dos seus camaradas mas sem o partilhar: “Se considerar o conteúdo”, dizia ele, a propósito de L’Idiot de la Famille, “tenho a impressão de uma fuga, mas se, pelo contrário, considerar o método, tenho a sensação de ser actual.” 17
Regressou a esta questão na conferência que pronunciou, mais tarde, em Bruxelas. “Há dezassete anos que estou amarrado a uma obra sobre Flaubert que não poderia interessar aos operários, pois está escrita num estilo complicado e certamente burguês… Estou-lhe amarrado, quer dizer: tenho sessenta e sete anos, estou a trabalhar nela desde os cinquenta anos e já sonhava com ela antes… Dado que escrevo sobre Flaubert, sou um enfant terrible da burguesia que deve ser recuperado.” A sua ideia profunda era que, fosse qual fosse o momento da história, fosse qual fosse o contexto social e político, seria sempre essencial compreender os homens e que o seu ensaio sobre Flaubert poderia ajudar a essa compreensão. Sartre estava, pois, satisfeito com os seus diferentes compromissos quando, depois de uma feliz estada em Roma, regressámos a Paris, em Setembro de 70. Ele morava num pequeno apartamento austero, no décimo andar de um prédio do Boulevard Raspail, em frente do cemitério de Montparnasse e muito perto da minha casa. Sentia-se lá bem. Fazia uma vida bastante rotineira. Encontrava-se regularmente com velhas amigas: Wanda K., Michèle Vian e a filha adoptiva, Arlette Elkaim, em casa de quem dormia duas noites por semana. As outras noites passava-as em minha casa. 18
Conversávamos, ouvíamos música: eu tinha adquirido uma discoteca importante que ia enriquecendo todos os meses. Sartre interessava-se muito pela escola de Viena — sobretudo Berg e Webern — e pelos compositores do nosso tempo: Stockhausen, Xenakis, Berio, Penderecki, muitos outros. Mas gostava sempre de regressar aos clássicos. Gostava de Monteverdi, de Gesualdo, das óperas de Mozart — sobretudo Cosí fan tutte — e das de Verdi. Durante estes concertos de câmara, comíamos um ovo cozido ou uma fatia de fiambre e bebíamos um pouco de whisky. Eu moro num “atelier de artista com ‘loggia’”, segundo a definição dada pelas agências imobiliárias. Passo os meus dias numa grande sala de tecto alto; umas escadas interiores dão acesso a um quarto que uma espécie de varanda liga à casa de banho. Sartre dormia lá em cima e descia de manhã para tomar o chá comigo; às vezes, uma das amigas dele, Liliane Siegel, vinha buscá-lo e levava-o a tomar um café num botecozito perto de casa dele. Encontrava-se frequentemente com Bost em minha casa, à noite. E também frequentemente com Lanzmann, com quem sentia grandes afinidades apesar de alguns desentendimentos relativamente à questão israelo-palestina. Apreciava particularmente os serões de sábado que Sylvie passava connosco e os almoços de domingo que nos juntavam aos três em La Coupole. Encon19
trávamo-nos, também, de longe em longe com diversos amigos. À tarde, trabalhava eu em casa de Sartre. Estava à espera da publicação de La Vieillesse e a pensar num último volume das minhas memórias; ele revia e corrigia em L’Idiot de la Famille o retrato do doutor Flaubert. Estava um Outono magnífico, azul e dourado: anunciava-se um bom ano3. Em Setembro, Sartre participou num grande comício, organizado pelo Socorro Vermelho, para denunciar o massacre dos palestinos pelo Rei Hussein da Jordânia. Assistiram seis mil pessoas. Sartre encontrou-se lá com Jean Genet, que já não via há muito tempo. Genet estava ligado aos Panteras Negras, sobre os quais tinha escrito um artigo no Nouvel Observateur e estava prestes a partir para a Jordânia, onde queria ir instalar-se, por uns tempos, num campo palestino. A saúde de Sartre já não me dava preocupações há uns tempos. Apesar de ele fumar dois maços de Boyards por dia, a sua arterite não tinha aumentado. Foi brutalmente, no fim de Setembro, que o medo me assaltou. Um sábado à noite, tínhamos jantado com Sylvie no “Dominique” e Sartre tinha bebido muito vodka. De regresso a minha casa, pôs-se a 3
Conservávamos o hábito de contar por anos escolares.
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dormitar e, depois, adormeceu mesmo, deixando cair o cigarro. Ajudámo-lo a subir para o quarto. Na manhã seguinte, parecia perfeitamente bem e voltou para casa dele. Mas quando, às duas horas, a Sylvie e eu o fomos buscar para almoçar, Sartre andava aos encontrões contra todos os móveis. À saída de La Coupole, embora tivesse bebido muito pouco, estava a titubear. Levámo-lo de táxi para casa da Wanda, na rua du Dragon e, ao sair do carro, por pouco não caía. Já lhe tinha acontecido ter vertigens: em 68, em Roma, ao sair do automóvel na praça Santa Maria, no Trastevere, tinha cambaleado a ponto de a Sylvie e eu termos tido de o amparar; sem atribuir grande importância a este facto, tinha ficado surpreendida porque ele não tinha bebido nada! Mas nunca estas perturbações tinham sido tão fortes e adivinhei-lhes a gravidade. Anotei no meu diário: “Este estúdio, tão alegre desde o meu regresso, mudou de cor. A bela alcatifa cor de rato lembra um luto. É assim que será preciso viver, no melhor dos casos ainda com felicidade e alguns momentos de alegria, mas com a ameaça suspensa sobre nós, com a vida posta entre parênteses.” Ao transcrever estas linhas, espanto-me: de onde me tinha vindo aquele negro pressentimento? Penso que, apesar da minha aparente tranquilidade, havia mais de vinte anos que 21
nunca tinha deixado de estar em alerta permanente. O primeiro aviso tinha sido em 1954, no fim da viagem que Sartre tinha feito à U.R.S.S., a crise de hipertensão que o tinha levado ao hospital. No Outono de 1958, eu tinha sabido o que é a angústia4; Sartre não tinha tido um ataque por um triz; e, desde então, a ameaça subsistia: as suas artérias e arteríolas eram demasiado estreitas, disseram-me os médicos. Todas as manhãs, quando ia acordá-lo, tinha sempre pressa de verificar se respirava. Não sentia uma verdadeira inquietação: era mais um fantasma, mas que queria dizer qualquer coisa. Os novos achaques de Sartre obrigaram-me a tomar dramaticamente consciência de uma fragilidade que, na realidade, eu não ignorava. No dia seguinte, Sartre tinha recuperado mais ou menos o equilíbrio e foi consultar o seu médico habitual, o Dr. Zaidmann. Este mandou fazer exames e recomendou a Sartre que não se cansasse enquanto não fosse visto, no domingo seguinte, por um especialista. Este— o professor Lebeau — não quis pronunciar-se: o desequilíbrio podia ser originado por perturbações do ouvido interno ou por problemas no cérebro. A seu pedido, foi feito um encefalograma que não revelou qualquer anomalia.
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Ver La Force des Choses.
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