À ESPERA DE GODOT
Título original: En attendant Godot © Les Éditions de Minuit, Paris, 1952 © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2000 1.a edição: Julho de 2001 2. edição: Novembro de 2002 a
Concepção gráfica de João Botelho ISBN: 972-795-008-6
Samuel Beckett
À espera de Godot uma tragicomédia em dois actos 3.a edição Tradução de José Maria Vieira Mendes
Cotovia
Índice
Nota do Tradutor À ESPERA DE GODOT
p. 9 11
Nota do Tradutor
À Espera de Godot foi escrito originalmente em francês (publicado em 1952) e depois traduzido pelo próprio Samuel Beckett para inglês. Esta tradução portuguesa foi feita a partir da versão inglesa conforme a segunda edição da editora Faber and Faber de 1965, que apresenta importantes alterações em relação ao texto francês, alterações essas que motivaram a sua escolha. Não foi porém esquecido o original francês e muitas vezes a ele se recorreu para desfazer dúvidas e tomar decisões. Além disso, foram adoptados, por razões fonéticas, alguns topónimos e nomes próprios do francês em detrimento do inglês. Foi igualmente consultada a edição crítica do texto que se baseia numa revisão feita pelo próprio autor já em 1975 — The Theatrical Notebooks of Samuel Beckett (ed. Dougald McMillan e James Knowlson), Grove Press, New York, 1994. Apesar de não se encontrar habitualmente em textos portugueses (e franceses) o travessão como marca de interrupção de fala, optou-se por, tal como no texto inglês, manter este sinal. Fica-se assim a ganhar com a importante distinção entre o uso das reticências, que indicam uma suspensão ou até ligeiro prolongamento duma frase inacabada, e o uso do travessão, que indica a interrupção abrupta da frase.
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O espectáculo feito a partir desta tradução (uma produção Artistas Unidos e Re.Al estreada em Lisboa, no dia 18 de Maio de 2000, no antigo edifício do jornal A Capital) teve a seguinte ficha técnica: Encenação: João Fiadeiro Cenografia e figurinos: Rita Lopes Alves, Isabel Nogueira, Ana Paula Rocha e José Manuel Reis Luz: Pedro Domingos Som: Rui Dâmaso Interpretação: Luís Elgris (Vladimir), Miguel Borges (Estragon), João Garcia Miguel (Pozzo), Cláudio da Silva (Lucky), Guilherme Duarte (Menino) Assistência de encenação: Jorge Cruz e Marie Mignot
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À ESPERA DE GODOT
Personagens ESTRAGON VLADIMIR LUCKY POZZO UM MENINO
ACTO I Uma estrada no campo. Uma รกrvore. Anoitecer.
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Estragon está sentado num pequeno monte de terra a tentar descalçar a bota. Puxa-a com ambas as mãos, arfando. Pára exausto, descansa com a respiração ofegante e recomeça da mesma forma. Entra Vladimir. (desistindo mais uma vez) Nada a fazer. (aproximando-se com um passo curto e tenso, as pernas afastadas) Começo a ter a mesma opinião. Toda a minha vida tentei resistir, dizia para mim mesmo, Vladimir, sê razoável, ainda não experimentaste tudo. E recomeçava a luta. (Como se pensasse na luta. Para Estragon.) Cá estás tu outra vez. Estou? Fico contente por te voltar a ver. Pensava que te tinhas ido embora para sempre. Também eu. Até que enfim que voltamos a estar juntos! Como é que vamos festejar isto? (Pensa.) Levanta-te para te abraçar. (Estende a mão a Estragon.) (irritado) Agora não, agora não. (melindrado, frio) Pode-se saber onde é que Sua Excelência passou a noite?
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Num fosso. (espantado) Um fosso! Onde? (sem qualquer gesto.) Por ali. E não te bateram? Bateram-me? Claro que me bateram. Os mesmos de sempre? Os mesmos? Não sei. Quando penso nisso… estes anos todos… se não fosse eu… onde é que estavas agora…? (Decidido.) Hoje não passavas de um monte de ossos, não tenhas dúvidas. (impressionado) Então e depois? (abatido) Isto é demais para um homem só. (Pausa. Alegre.) Por outro lado, de que é que me serve agora desanimar, digo eu. Já devíamos ter pensado nisso há um milhão de anos atrás, nos anos noventa. Deixa-te de conversas e ajuda-me a descalçar esta porcaria. De mãos dadas, do topo da Torre Eiffel, entre os primeiros. Na altura ainda andávamos decentes. Agora é tarde demais. Nem sequer nos deixavam subir. (Estragon agarra-se à bota.) O que é que estás a fazer? A descalçar a minha bota. Nunca te aconteceu? Estou farto de dizer que se tem de descalçar as botas todos os dias. Porque é que nunca me ouves? (enfraquecido) Ajuda-me! Dói? 16
ESTRAGON Dói! Ele quer saber se me dói! VLADIMIR (zangado) Só tu é que sofres! Eu não existo. Gostava de te ouvir se tivesses o que eu tenho. ESTRAGON Dói? VLADIMIR Dói! Ele quer saber se me dói! ESTRAGON (apontando) De qualquer maneira podias abotoar-te. VLADIMIR (debruçando-se) Tens razão. (Abotoa a braguilha.) Há que dar valor às pequenas coisas da vida. ESTRAGON O que é que queres, estás sempre à espera do último minuto. VLADIMIR (sonhador) O último minuto… (Medita.) Quanto mais tarda mais arrecada. Quem é que disse isto? ESTRAGON Porque é que não me ajudas? VLADIMIR Há dias em que sinto que, seja como for, vai acontecer. E então fico todo esquisito. (Tira o chapéu, olha para dentro dele, passa a mão por dentro, sacode-o, volta a pô-lo na cabeça.) Como é que hei-de dizer? Aliviado e ao mesmo tempo… (procura a palavra)…horrorizado. (Enfático.) HO-RRO-RI-ZA-DO. (Volta a tirar o chapéu e olha para dentro dele.) Engraçado! (Bate no chapéu como que para desalojar um corpo estranho, volta a olhar e põe-no na cabeça.) Nada a fazer. (À custa de muito esforço, Estragon consegue descalçar a bota. Olha para dentro da bota, passa a mão por dentro, vira-a, sacode-a, procura se não caiu qualquer coisa no chão. Não encontra 17
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nada, volta a passar a mão pela bota, o olhar vago em frente.) Então? Nada. Deixa ver. Não há nada para ver. Experimenta calçá-la outra vez. (examinando o pé) É melhor deixá-lo respirar um bocado. Ora aqui temos um homem como deve ser! Acusa as suas botas quando a culpa é dos seus pés. (Volta a tirar o chapéu, olha para dentro dele, passa a mão por dentro, sacode-o, bate nele, sopra, volta a pô-lo na cabeça.) Isto começa a ser preocupante. (Silêncio. Estragon mexe o pé, esticando os dedos para melhor circulação do ar.) Um dos ladrões foi salvo. (Pausa.) É uma percentagem razoável. (Pausa.) Gogo. O quê? E se nos arrependêssemos? De quê? Bem… (Pensa.) Não me parece necessário entrar em pormenores. De termos nascido? Vladimir solta uma grande gargalhada que reprime de imediato levando a mão ao púbis, a cara contraída. Já nem se pode rir. Terrível privação. Apenas sorrir. (Sorri de repente de orelha a orelha, continua a sorrir, acaba de sorrir com o mesmo repentismo.) Não é a mesma coisa. Nada a fazer. (Pausa.) Gogo. 18
ESTRAGON (irritado) O que é? VLADIMIR Já alguma vez leste a Bíblia? ESTRAGON A Bíblia… (Pensa.) Devo ter dado uma vista de olhos. VLADIMIR Lembras-te dos Evangelhos? ESTRAGON Lembro-me dos mapas da Terra Santa. Eram coloridos. Muito bonitos. O Mar Morto era azul claro. Só de olhar para ele ficava com sede. É para lá que vamos, costumava dizer que é ali que vamos passar a nossa lua de mel. Vamos nadar. Vamos ser felizes. VLADIMIR Devias ter ido para poeta. ESTRAGON Mas eu fui poeta. (Um gesto a indicar os trapos com que está vestido.) Não se nota? Silêncio. VLADIMIR Onde é que eu ia… Como é que está o teu pé? ESTRAGON Está a inchar. VLADIMIR Ah, já me lembro, os dois ladrões. Lembras-te da história? ESTRAGON Não. VLADIMIR Queres que ta conte? ESTRAGON Não. VLADIMIR Ajuda a passar o tempo (Pausa.) Eram dois ladrões que foram crucificados ao mesmo tempo que o nosso Salvador. Um deles — ESTRAGON O nosso quê? VLADIMIR O nosso Salvador. Dois ladrões. Dizem que um foi salvo e que o outro foi… (procura o contrário de salvo) …condenado. ESTRAGON Foi salvo de quê? VLADIMIR Do inferno. 19
ESTRAGON Vou-me embora. Não se mexe. VLADIMIR E no entanto… (Pausa.) Como é que — espero não te estar a aborrecer — como é que, dos quatro Evangelistas, apenas um fala do ladrão que foi salvo. Estiveram lá todos — ou pelo menos não andaram longe — e só um deles fala de um ladrão que foi salvo. (Pausa.) Então, Gogo, de vez em quando podias dizer qualquer coisa. ESTRAGON (com um entusiasmo exagerado) Eu acho que isto é extraordinariamente interessante. VLADIMIR Um em quatro. Dos outros três, dois deles nem sequer falam de ladrões e o terceiro diz que os dois o insultaram. ESTRAGON Quem? VLADIMIR O quê? ESTRAGON O que é que estás para aí a dizer? (Pausa.) Insultaram quem? VLADIMIR O Salvador. ESTRAGON Porquê? VLADIMIR Porque ele não os queria salvar. ESTRAGON Do inferno? VLADIMIR Não, estúpido! Da morte. ESTRAGON Pensava que tinhas dito do inferno. VLADIMIR Da morte, da morte. ESTRAGON Então e depois? VLADIMIR Então devem ter sido os dois condenados. ESTRAGON E porque não? VLADIMIR Mas um dos quatro diz que um dos dois foi salvo. ESTRAGON E depois? Não estão de acordo, paciência. 20
VLADIMIR Mas estiveram lá os quatro. E só um deles é que fala de um ladrão que foi salvo. Porque é que devemos acreditar mais nesse do que nos outros? ESTRAGON Quem é que acredita nesse? VLADIMIR Toda a gente. Só se conhece essa versão. ESTRAGON As pessoas são mesmo umas ignorantes de merda. Levanta-se a custo, coxeia até à esquerda, pára, olha para longe com a mão na testa a proteger os olhos, vira-se, vai à direita, olha para longe. Vladimir segue-o com o olhar, depois pega na bota, olha para dentro, larga-a precipitadamente. VLADIMIR Bah! Cospe. Estragon vai ao centro da cena e fica de costas para a plateia. ESTRAGON Que sítio encantador. (Vira-se, vai até à boca de cena, olha para o público.) Perspectivas animadoras. (Vira-se para Vladimir.) Vamos embora. VLADIMIR Não podemos. ESTRAGON Porquê? VLADIMIR Estamos à espera do Godot. ESTRAGON (sem esperança) Ah, pois é. (Pausa.) Tens a certeza que era aqui? VLADIMIR O quê? ESTRAGON Que tínhamos de esperar. VLADIMIR Ele disse ao pé da árvore. (Olham para a árvore.) Estás a ver outra? ESTRAGON Que árvore é que é? VLADIMIR Não sei. Um salgueiro chorão. 21
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Então e as folhas? Deve estar morto. Acabaram-se as lágrimas. Ou então ainda não é a estação dele. Parece mais um arbusto. Um buxo. Um arbusto. Um — (Interrompe-se.) O que é que estás a querer dizer? Que nos enganámos no sítio? Ele já cá devia estar. Ele não deu a certeza que vinha. E se não vier? Voltamos amanhã. E depois de amanhã. Talvez. E por aí fora. O que interessa é que — Até que ele venha. És implacável. Viemos cá ontem. Ai não não, estás enganado. O que é que fizemos ontem? O que é que fizemos ontem? Sim. Bom… (Zangado.) Contigo nunca se tem a certeza de nada. Cá para mim, nós estivemos aqui. (olhando à volta) Reconheces isto? Eu não disse isso. Então? Isso não quer dizer nada. 22
VLADIMIR De qualquer das formas… esta árvore… (virando-se para o público.) …aquele pântano. ESTRAGON Tens a certeza que era esta noite? VLADIMIR O quê? ESTRAGON Que tínhamos de esperar. VLADIMIR Ele disse no Sábado. (Pausa.) Penso eu. ESTRAGON Pensas. VLADIMIR Devo ter tomado nota. Vasculha nos bolsos de onde tira lixo vário. ESTRAGON (insidioso) Mas qual Sábado? E será que hoje é Sábado? Não será Domingo? (Pausa.) Ou Segunda? (Pausa.) Ou Sexta? VLADIMIR (olhando desenfreadamente à sua volta como se o dia estivesse escrito na paisagem) Não é possível! ESTRAGON Ou Quinta? VLADIMIR O que é que fazemos? ESTRAGON Se ele cá veio ontem e nós não estávamos, podes ter a certeza que hoje não aparece. VLADIMIR Mas tu próprio dizes que estivemos cá ontem. ESTRAGON Posso estar enganado. (Pausa.) Vamos calar-nos um minuto, pode ser? Está bem. (Estragon senta-se no VLADIMIR (fraco) monte de terra. Vladimir caminha agitado de um lado para o outro, parando de vez em quando para olhar para longe. Estragon adormece. Vladimir pára em frente a Estragon.) Gogo!… Gogo!… GOGO! Estragon acorda sobressaltado. ESTRAGON (retoma a consciência do horror da sua situação) Estava a dormir! (Desesperado.) Porque é que nunca me deixas dormir? 23
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Senti-me sozinho. Tive um sonho. Não me contes! Sonhei que — NÃO ME CONTES! (com um gesto para o universo) Isto chega-te? (Silêncio.) Não é simpático da tua parte, Didi. A quem é que eu hei-de contar os meus pesadelos privados se não os puder contar a ti? Mantém-nos privados. Sabes bem que eu não suporto isso. (frio) Há alturas em que não sei se não seria melhor separarmo-nos. Não ias longe. Isso seria muito mau, muito mau mesmo. (Pausa.) Não é verdade, Didi, muito mau mesmo? (Pausa.) Tendo em conta a beleza do caminho. (Pausa.) E a bondade dos caminhantes. (Pausa. Carinhoso.) Não é verdade, Didi? Calma. (voluptuosamente) Calma… calma… Os ingleses dizem cauma. (Pausa.) Conheces a história do inglês no bordel? Conheço. Então conta-ma. Pára com isso! Um inglês, que bebeu um bocadinho mais do que o habitual, resolve ir a um bordel. Pergunta-lhe a patroa se ele quer uma loira, uma morena ou uma ruiva. Continua. 24
VLADIMIR PÁRA COM ISSO! Vladimir sai disparado. Estragon levanta-se e segue-o até ao limite do palco. Gestos de Estragon como se fosse a assistência encorajando um pugilista. Entra Vladimir. Passa por Estragon, atravessa o palco cabisbaixo. Estragon dá um passo na direcção de Vladimir, detém-se. ESTRAGON (gentil) Querias falar comigo? (Silêncio. Estragon dá mais um passo.) Querias dizer-me alguma coisa? (Silêncio. Mais um passo.) Diz, Didi… VLADIMIR (sem se voltar) Não tenho nada para te dizer. ESTRAGON (mais um passo) Estás zangado? (Silêncio. Mais um passo.) Desculpa. (Silêncio. Mais um passo. Estragon pousa a mão no ombro de Vladimir.) Então, Didi. (Silêncio.) Dá-me a tua mão. (Vladimir volta-se.) Abraça-me! (Vladimir hirto.) Não sejas teimoso! (Vladimir amolece. Abraçam-se. Estragon recua.) Cheiras a alho! VLADIMIR É para os rins. (Silêncio. Estragon observa a árvore atentamente.) E agora, o que é que fazemos? ESTRAGON Esperamos. VLADIMIR Está bem, mas enquanto esperamos? ESTRAGON E se nos enforcássemos? VLADIMIR Mmm. Depois ficávamos com tesão! ESTRAGON (muito excitado) Tesão? VLADIMIR Com todas as suas consequências. Crescem mandrágoras onde ele cai. É por isso que 25
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elas gritam quando as arrancamos. Não sabias? Vamos enforcar-nos agora mesmo! Num ramo? (Aproximam-se da árvore.) Não me parece de confiança. Não se perde nada em experimentar. Força. Primeiro tu. Não senhor, primeiro tu. Porquê eu? Porque és mais leve do que eu. Por isso mesmo! Não percebo. Puxa lá pela cabeça. Vladimir pensa. (finalmente) Continuo a não perceber. Então é assim. (Pensa.) O ramo… o ramo… (Zangado.) Puxa lá pela cabeça! És a minha única esperança. (com esforço) Gogo leve — ramo não partir — Gogo morto. Didi pesado — ramo partir — Didi sozinho. Porque se — Não tinha pensado nisso. Se puder contigo pode com qualquer coisa. Mas será que eu sou mais pesado do que tu? Lá isso não sei. O que é que tu achas? Há cinquenta por cento de hipóteses. Ou quase. E então, o que é que fazemos? Deixa estar. O melhor é não fazermos nada. É mais seguro. Vamos esperar para ver o que é que ele diz. 26
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Quem? O Godot. Boa ideia. Vamos esperar para saber exactamente em que pé estamos. Por outro lado talvez não fosse mau malhar o ferro enquanto está quente. Estou com curiosidade para saber o que ele tem para nos oferecer. Depois, ou pegamos ou largamos. O que é que nós lhe pedimos exactamente? Não estavas lá? Não devia estar a ouvir. Oh… nada de concreto. Uma espécie de oração. Precisamente. Uma súplica vaga. Exactamente. E o que é que ele disse? Que logo via. Que não prometia nada. Que tinha de pensar no assunto. No sossego da sua casa. Consultar a sua família. Os amigos. Os agentes. Os correspondentes. Os livros. A conta bancária. Antes de tomar uma decisão. É o procedimento habitual. É, não é? 27
ESTRAGON Acho que sim. VLADIMIR Eu também. Silêncio. ESTRAGON (ansioso) Então e nós? VLADIMIR Como diz que disse? ESTRAGON Eu disse, Então e nós? VLADIMIR Não percebo. ESTRAGON Qual é o nosso papel no meio disto tudo? VLADIMIR O nosso papel? ESTRAGON Não tenhas pressa. VLADIMIR O nosso papel? De mendigos. ESTRAGON Isto está assim tão mau? VLADIMIR Terá Sua Excelência alguma exigência a fazer? ESTRAGON Já não temos direitos? Gargalhada de Vladimir reprimida como antes mas agora sem sorriso. VLADIMIR Se não fosse proibido, fazias-me rir. ESTRAGON Perdemos os nossos direitos? VLADIMIR (com clareza) Livrámo-nos deles. Silêncio. Ambos quietos, os braços baloiçando, a cabeça descaída, os joelhos dobrados. ESTRAGON (fraco) Não estamos atados? (Pausa.) Não estamos — VLADIMIR Ouve! Escutam com uma rigidez grotesca. ESTRAGON Não oiço nada. VLADIMIR Shhht! (Escutam. Estragon perde o equilíbrio, quase cai. Apoia-se ao braço de Vladimir que vacila. Escutam agarrados um ao outro.) Eu também não. Suspiros de alívio. Descontraem-se e separam-se. 28
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Assustaste-me. Pensava que era ele. Quem? O Godot. Oh! O vento nos juncos. Ia jurar que ouvi uns gritos. E porque é que ele havia de gritar? Ao seu cavalo. Silêncio. (violentamente) Estou com fome. Queres uma cenoura? Não há mais nada? Sou capaz de ter uns nabos. Dá-me uma cenoura. (Vladimir vasculha nos bolsos, tira um nabo e oferece-o a Estragon que lhe dá uma dentada. Zangado.) É um nabo! Ai perdão! Ia jurar que era uma cenoura. (Vasculha de novo nos bolsos e só encontra nabos.) São tudo nabos! (Continua a vasculhar.) Deves ter comido a última. (Vasculha.) Espera, já encontrei. (Tira uma cenoura e dá-a a Estragon.) Toma, meu caro. (Estragon limpa a cenoura à manga e começa a comê-la.) Dá-me o nabo. (Estragon dá-lhe o nabo que ele volta a meter no bolso.) Fá-la durar que é a última. (mastigando) Fiz-te uma pergunta. Ah. Respondeste-me? Que tal é a cenoura? É uma cenoura. 29