A FONTE GREGA
Título original: La Source Grecque © Éditions Gallimard 1953 © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2006 Todos os direitos reservados. ISBN 972-795-137-6
Simone Weil
A Fonte Grega Estudos sobre o pensamento e o espírito da Grécia Tradução de Filipe Jarro
Livros Cotovia
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Índice
PRIMEIRA PARTE 1. A Ilíada, ou o poema da força 2. Zeus e Prometeu 3. Lamentos de Electra e Reconhecimento de Orestes 4. Antígona 5. Primavera de Meleagro
SEGUNDA PARTE PLATÃO Deus em Platão Sobre o Teeteto Sobre o Fedro Sobre o Fedro e o Banquete Extractos do Fedro Sobre a República HERACLITO Fragmentos Deus em Heraclito Notas sobre Cleanto, Ferecides, Anaximandro e Filolau
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ORIGEM DOS TEXTOS: “A Ilíada, ou o poema da força” foi escrito em 1939-40 e teria sido publicado na Nouvelle Revue, não fosse a ofensiva alemã; não pôde ser publicado em Paris, que estava ocupada, mas foi-o em Marselha, nos Cahiers du Sud (Novembro de 1940), sob o nome de Emile Novis, anagrama de Simone Weil. É republicado na mesma publicação (n.º 284, 1947), depois da guerra, sob o nome verdadeiro da autora. O fragmento “Zeus e Prometeu” terá sido provavelmente escrito em 1942-43; “Lamentos de Electra e reconhecimento de Orestes” em 1942. “Antígona” foi publicado antes da guerra (16 de Maio de 1936) numa publicação raríssima (Entre nous, chronique de Rosières). A tradução de “Primavera” de Meleagro foi encontrada num dos cadernos que a autora deixou em Nova Iorque, quando partiu para Londres em 1942. “Deus em Platão” e os restantes textos sobre Platão, bem como a tradução dos fragmentos de Heraclito e a nota “Deus em Heraclito” pertencem aos cadernos redigidos em Marselha e em Nova Iorque entre o final de 1940 e Novembro de 1942. As notas sobre Cleanto, Ferecides, Anaximandro e Filolao foram escritas em Londres em 1943.
PRIMEIRA PARTE
A ILÍADA, OU O POEMA DA FORÇA
O verdadeiro herói, o verdadeiro objecto, o centro da Ilíada, é a força. A força que é manipulada pelos homens, a força que submete os homens, a força perante a qual a carne dos homens se retrai. Nela a alma humana surge incessantemente alterada pelas suas relações com a força; arrastada, ceifada pela força da qual julga dispor, curvada sob o constrangimento da força que suporta. Aqueles que sonharam que a força, graças ao progresso, pertencia ao passado, puderam ver neste poema um documento; aqueles que sabem discernir a força, hoje como outrora, no centro de qualquer história humana, lá encontram o mais belo, o mais puro dos espelhos. A força, é o que torna quem lhe é submetido numa coisa. Quando é exercida até ao extremo, faz do homem uma coisa no sentido mais literal, porque faz dele um cadáver. Havia alguém e, num instante, não há ninguém. É um quadro que a Ilíada não se cansa de nos apresentar. … os cavalos Faziam soar os carros vazios nos caminhos da guerra Enlutados de seus condutores sem mácula. Eles em terra Jaziam, mais caros aos abutres que às esposas.1
O herói é uma coisa arrastada atrás de um carro pela poeira: … Em volta, os cabelos Negros e esparsos, e toda a cabeça na poeira
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A tradução dos excertos citados é nova. Cada linha traduz um verso grego, as transposições e encavalamentos são reproduzidos escrupulosamente; a ordem das palavras gregas dentro de cada verso é respeitada tanto quanto possível. (Nota de S. Weil)
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Jazia, outrora encantadora; agora Zeus aos seus inimigos Deixara que a aviltassem em sua terra mãe.
A amargura deste quadro saboreamo-la pura, sem que nenhuma ficção reconfortante o venha alterar, nenhuma imortalidade consoladora, nenhuma baça auréola de glória ou de pátria. Fora dos membros voou a sua alma, até Hades, Chorando a sua sorte, abandonando virilidade e juventude.
Mais pungente ainda, de tal modo o contraste é doloroso, é a súbita evocação, logo apagada, de um outro mundo, o mundo remoto, precário e comovente da paz, da família, esse mundo onde cada homem é para aqueles que o rodeiam aquilo que conta mais. Gritava às servas de belos cabelos casa fora Que junto ao lume dispusessem um tripé, para que houvesse Para Heitor um banho quente ao regressar do combate. Ingénua! Não sabia que longe dos banhos quentes, O braço de Aquiles o vergara, por causa de Atena de olhos verdes.
Estava de facto longe dos banhos quentes, o infeliz. Não era o único. Quase toda a Ilíada se passa longe dos banhos quentes. Quase toda a vida humana sempre se passou longe dos banhos quentes. A força que mata é uma forma sumária, grosseira, da força. Muito mais variada nos seus métodos, mais surpreendente nos seus efeitos, é a outra força, a que não mata; ou seja, a que não mata ainda. Vai matar certamente, ou vai matar talvez, ou talvez esteja apenas suspensa sobre o ser que a todo o instante pode matar; em todo caso, transforma o homem em pedra. Do poder de trans-
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formar um homem em coisa fazendo-o morrer procede outro poder, e bem mais prodigioso, o de fazer uma coisa de um homem que continua vivo. Está vivo, tem uma alma; é, no entanto, uma coisa. Ser tão estranho, essa coisa que tem uma alma; estranho estado para a alma. Quem dirá quanto deve ela constantemente, para a ele se conformar, torcer-se e dobrar-se sobre si própria? Não é feita para habitar uma coisa; quando a isso é forçada, tudo nela sofre violência. Um homem desarmado e nu na direcção do qual está virada uma arma torna-se cadáver antes de ter sido atingido. Por instantes, ainda congemina, age, espera: Pensava, imóvel. O outro aproxima-se, transido, Ansioso por tocar os seus joelhos. Queria em seu coração Escapar da mala morte, do negro destino… E com um braço cingia-lhe os joelhos suplicando, Com o outro agarrava a pontiaguda lança…
Mas depressa compreendeu que a arma não se irá desviar, e, respirando ainda, já é só matéria; ainda pensante já nada pode pensar: Assim falou esse filho tão brilhante de Príamo Em termos suplicantes. Responderam-lhe palavras inflexíveis: ........................................................................................... Disse; ao outro desfalecem coração e joelhos; Larga a lança e cai sentado, mãos erguidas, As duas mãos. Aquiles desembainha o agudo sabre, Golpeia a clavícula, ao longo do pescoço; por inteiro Mergulha o sabre de dois gumes. Ele, rosto em terra, Jaz estendido, e o sangue negro corre humedecendo a terra.
Quando, fora de qualquer combate, um estrangeiro fraco e sem armas suplica um guerreiro, não é por isso con-
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denado à morte; mas um momento de impaciência por parte do guerreiro seria suficiente para lhe tirar a vida. É o suficiente para que a sua carne perca a principal propriedade da carne viva. Um pedaço de carne viva manifesta a vida sobretudo pelo sobressalto; uma pata de rã, sob o choque eléctrico, salta; o aspecto próximo ou o contacto de uma coisa horrível ou aterrorizadora faz saltar qualquer associação de carne, nervos e músculos. Mas esse suplicante não se sobressalta, não estremece; não tem licença para tal; os seus lábios vão tocar o objecto para ele mais carregado de horror: Ninguém viu entrar o grande Príamo. Deteve-se, Cingiu os joelhos de Aquiles, beijou-lhe as mãos, Terríveis, assassinas, que tantos filhos lhe tinham massacrado.
O espectáculo de um homem reduzido a este grau de infelicidade gela mais ou menos como gela o aspecto de um cadáver: Como quando a desgraça colhe alguém, quando em sua terra Matou, e que chega à morada de outro, De algum rico; um arrepio ganha aqueles que o vêem; Assim estremeceu Aquiles ao ver o divino Príamo. Também os outros estremeceram, olhando uns para os outros.
Mas é apenas um momento, e cedo a própria presença do infeliz é esquecida: Disse. O outro, pensando no pai, quis chorá-lo; Pegando-lhe no braço, empurrou um pouco o ancião. Ambos se recordavam, um de Heitor assassino, E caía em lágrimas aos pés de Aquiles, contra o chão; Mas Aquiles, esse, chorava o pai, e também por vezes Pátroclo; e os soluços enchiam a morada.
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Não é por insensibilidade que Aquiles, num gesto, atirou ao chão o ancião agarrado aos seus joelhos; as palavras de Príamo lembrando o seu velho pai comoveram-no até às lágrimas. Simplesmente, acha-se tão livre nas suas atitudes, nos seus movimentos, como se aquilo que estivesse a tocar os seus joelhos fosse um objecto inerte, e não um suplicante. Os seres humanos à nossa volta têm, só pela sua presença, um poder, e que só a eles pertence, de parar, reprimir, alterar cada um dos movimentos que o nosso corpo esboça; um transeunte não nos faz desviar do caminho numa estrada da mesma maneira que uma tabuleta, não nos levantamos, não andamos, não nos sentamos no nosso quarto da mesma maneira quando estamos sós e quando temos um visitante. Mas essa influência indefinível da presença humana não é exercida pelos homens a quem um movimento de impaciência pode retirar a vida antes mesmo que um pensamento tenha tido tempo de os condenar à morte. À sua frente, os outros movem-se como se não estivessem ali; e eles, por sua vez, no perigo em que se encontram de num instante serem reduzidos a nada, imitam o nada. Empurrados caem, caídos ficam em terra, enquanto o acaso não leva a que ao espírito de algum venha o pensamento de os erguer de novo. Mas por fim erguidos, honrados com palavras cordatas, que não se atrevam a tomar a sério essa ressurreição, a ousar exprimir um desejo; uma voz irritada de seguida os remeteria ao silêncio: Disse, e o ancião tremeu e obedeceu.
Ao menos os suplicantes, uma vez satisfeitos, voltam a ser homens como os outros. Mas há seres mais infelizes que, sem morrer, se tornaram coisas para toda a vida. Não há nos seus dias nenhum jogo, nenhum vazio, nenhum campo livre para nada que venha deles próprios. Não são homens que vivem mais duramente que outros, colocados socialmente
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mais abaixo que outros; são uma outra espécie humana, um compromisso entre o homem e o cadáver. Que um ser humano seja uma coisa, existe aí, do ponto de vista lógico, uma contradição; mas quando o impossível se tornou uma realidade, a contradição na alma torna-se ruptura. Essa coisa aspira a todo o instante a ser um homem, uma mulher, e em nenhum instante o consegue. É uma morte que se estira ao longo de uma vida; uma vida que a morte congelou muito antes de a suprimir. A virgem, filha de um padre, sofrerá esse destino: Não a devolverei. Antes a terá a velhice levado, Em Argos, nossa morada, longe da sua terra, Correndo para o tear, vindo para a minha cama.
A jovem mulher, a jovem mãe, esposa do príncipe, sofrê-lo-á: E talvez um dia em Argos irás tecer o pano para outro E levarás a água da Mésia ou do Hípere, Contra tua vontade, sob a pressão doutra necessidade.
A criança herdeira do ceptro real sofrê-lo-á: Elas irão certamente em porões de navios, E eu com elas; tu, meu filho, ou comigo Seguir-me-ás e farás trabalhos aviltantes, Penando frente a um dono sem doçura…
Tal destino, aos olhos da mãe, é tão temível para a sua criança quanto a própria morte; o cônjuge deseja ter perecido antes de ver a sua mulher escravizada; o pai quer lançar todas as calamidades do céu sobre o exército que impõe à sua filha esse destino. Mas naqueles sobre os quais ele se abate, um destino tão brutal apaga as maldições, as revoltas,
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as comparações, as meditações sobre o futuro e o passado, quase a recordação. Não compete ao escravo ser fiel à sua cidade e aos seus mortos. É quando sofre ou morre um dos que lhe fizeram perder tudo, devastaram a sua cidade, massacraram os seus à sua frente, é então que o escravo chora. Porque não? Só então apenas as lágrimas lhe são permitidas. São-lhe mesmo impostas. Mas na servidão, não estão as lágrimas prontas para correr logo que possam, impunemente? Disse chorando, e as mulheres mais gemiam, A pretexto de Pátroclo, cada uma de seu tormento.
Em nenhum momento o escravo tem licença para exprimir seja o que for, a não ser aquilo que pode agradar ao dono. É por isso que, se numa vida tão morna um sentimento pode despontar e animá-lo um pouco, só pode ser o do amor do dono; qualquer outro caminho está vedado ao dom de amar, assim como para um cavalo os varais, as rédeas, o freio barram todos os caminhos excepto um. E se por milagre surge a esperança de voltar a ser um dia, por favor, alguém, a que grau não irá chegar o reconhecimento e o amor por homens que um passado ainda tão próximo deveria levar a inspirar horror: Meu esposo, a quem fui oferecida por pai e mãe respeitados, Vi-o frente à minha cidade varado pelo agudo bronze. Meus três irmãos, vindos à luz de uma só mãe, Tão caros! encontraram o dia fatal. Mas não me deixaste, quando meu marido pelo rápido Aquiles Foi morto, e destruída a cidade do divino Mines, Verter lágrimas; prometeste que o divino Aquiles Me tomaria por mulher legítima e em seus navios me levaria A Fta, celebrar o casamento entre os Mirmidões. Assim sem descanso te choro, tu que sempre foste doce.
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Não se pode perder mais do que aquilo que perde o escravo; perde toda a vida interior. Só reencontra um pouco dessa vida quando surge a possibilidade de mudar de destino. É esse o império da força: um império que vai tão longe como o da natureza. Também a natureza, quando entram em jogo as necessidades vitais, apaga qualquer vida interior e mesmo a dor de uma mãe: Porque até Níobe de belos cabelos quis comer, Ela em casa de quem doze filhos pereceram, Seis filhas e seis filhos na flor da idade. Eles, Apolo matou-os com seu arco de prata Na sua fúria contra Níobe; elas, Artémis que ama as flechas. Pois que se quis igualar a Leto de belas faces, Dizendo “tem dois filhos; eu dei à luz muitos mais”. E esses dois, apenas dois, todos mataram. Eles nove dias jazeram na morte; ninguém veio Enterrá-los. As pessoas tornaram-se pedras pelo querer de Zeus. E eles ao sexto dia foram sepultados pelos deuses do céu. Mas quis comer, quando se cansou das lágrimas.
Nunca se exprimiu com tanta amargura a miséria do homem, que o torna até incapaz de sentir a sua própria miséria. A força manipulada por outro impera sobre a alma como a fome extrema, quando consiste num poder perpétuo de vida e de morte. E é um império tão frio, tão duro como se fosse exercido pela matéria inerte. O homem que em toda a parte é o mais fraco está no meio das cidades tão só, mais só, que o homem perdido no meio de um deserto. Dois tonéis estão dispostos à beira de Zeus, Onde estão as suas dádivas, malas num, boas noutro… Aquele a quem faz dádivas funestas, expõe ao ultraje;
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A medonha necessidade afugenta-o pelas terras divinas; Errante, não recebe estima dos homens nem dos deuses.
Assim impiedosamente a força esmaga, assim impiedosamente inebria quem a possui, ou crê possuí-la. Ninguém a possui verdadeiramente. Os homens não estão divididos, na Ilíada, em vencidos, escravos, suplicantes de um lado, e vencedores, chefes, do outro; não se encontra nela um só homem que nalgum momento não se veja obrigado a vergar sob a força. Os soldados, embora livres e armados, também sofrem ordens e insultos: O homem do povo que visse e apanhasse a gritar, Com o ceptro lhe bateria e repreenderia: “Miserável, tem-te quieto, escuta os outros quando falam, Teus superiores. Não tens coragem nem força, Nada vales no combate, e nada na assembleia…”
Tersites paga caro palavras no entanto perfeitamente razoáveis, e que se parecem com as que Aquiles pronuncia. Bateu-lhe, ele curvou-se, as lágrimas correram premidas, Um tumor sangrento formou-se-lhe nas costas Sob o ceptro dourado; sentou-se e teve medo. Na dor e no estupor enxugou as lágrimas. Os outros, em sua mágoa, divertiram-se e riram.
Mas o próprio Aquiles, esse herói orgulhoso, invicto, é-nos mostrado, desde o início do poema, chorando de humilhação e de dor impotente, depois que raptaram à sua frente a mulher que queria para esposa, sem que ele ousasse opor-se. …Mas Aquiles Chorando sentou-se à parte, longe dos seus, À beira das ondas que embranqueciam, de olhar posto no mar cor de vinho.
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Agamémnon humilhou Aquiles deliberadamente, para mostrar que é ele quem manda: … Assim, saberás Que posso mais que tu, e todos hesitarão Em tratar-me de igual para igual, e em desafiar-me.
Mas uns dias depois é a vez do chefe supremo chorar, ser forçado a rebaixar-se, a suplicar, e tem a dor de o fazer em vão. A vergonha do medo também não é poupada a nenhum dos combatentes. Os heróis tremem como os outros. Basta um desafio de Heitor para que fiquem consternados todos os Gregos sem nenhuma excepção, excepto Aquiles e os seus, que estão ausentes: Disse, e todos se calaram e guardaram silêncio; Tinham vergonha de recusar, e medo de aceitar.
Mas logo que Ájax avança, o medo muda de lado: Os Troianos, um arrepio de terror desfaleceu-lhes os membros; Ao próprio Heitor saltou o coração do peito; Mas não podia já tremer, nem refugiar-se …
Dois dias mais tarde, é a vez de Ájax sentir o terror: Zeus pai, lá de cima, fez crescer o medo dentro de Ájax. Pára, varado, cobre as costas com o escudo de sete peles, Treme, olha para a multidão apavorado, como um animal…
O próprio Aquiles chega uma vez a tremer e a gemer de medo, na frente de um rio, é certo, não na frente de um homem. À excepção de Aquiles, absolutamente todos nos são mostrados vencidos em algum momento. O valor contri-
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bui menos para determinar a vitória do que o destino cego, representado pela balança de ouro de Zeus: Nesse instante Zeus pai abriu a balança de ouro. Nela pousou duas sortes da morte que tudo ceifa, Uma para os Troianos domadores de cavalos, outra para os Gregos [escudados em bronze. Ergueu-a, foi o dia fatal dos Gregos que caíu.
A força de ser cego, o destino estabelece uma espécie de justiça, cega também, que pune os homens armados, com o castigo do talião; a Ilíada formulou-o muito antes do Evangelho, e quase nos mesmos termos: Ares é imparcial, mata aqueles que matam.
Se todos se destinam à nascença a sofrer a violência, a essa verdade o império das circunstâncias fecha os espíritos dos homens. O forte nunca é absolutamente forte, nem o fraco absolutamente fraco, mas ambos ignoram-no. Não julgam pertencer à mesma espécie; nem o fraco se vê como semelhante ao forte, nem é olhado como tal. Aquele que possui a força caminha num meio não resistente, sem que nada na matéria humana à sua volta seja de molde a suscitar, entre o impulso e o acto, esse curto intervalo onde se aloja o pensamento. Aí onde não cabe o pensamento, não cabem a justiça ou a prudência. É por isso que estes homens armados agem duramente e loucamente. A arma enterra-se num inimigo desarmado a seus pés; triunfam sobre um moribundo descrevendo-lhe os ultrajes que o seu corpo irá sofrer; Aquiles degola doze adolescentes troianos na fogueira de Pátroclo tão naturalmente como cortamos flores para uma campa. Ao fazer uso do seu poder, não desconfiam nunca que as consequências dos seus actos irão vergá-los quando chegar a sua vez. Quando se pode com uma palavra fazer
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calar, tremer, obedecer um ancião, será que se pensa que as maldições de um padre têm importância para os adivinhos? Será que se evita raptar a mulher amada por Aquiles, quando se sabe que ambos, ela e ele, terão de obedecer? Será que Aquiles, quando desfruta da fuga dos miseráveis Gregos, pode imaginar que essa fuga, que irá durar e terminar de acordo com a sua vontade, vai fazer perder a vida ao seu amigo e a ele próprio? É deste modo que aqueles a quem a força é entregue pelo destino, por com ela contarem demais, perecem. Não podem não perecer. Porque não consideram a sua própria força como uma quantidade limitada, nem as suas relações com os outros como um equilíbrio entre forças desiguais. Visto que os outros homens não impõem aos seus movimentos esse tempo de espera que é a única origem do nosso respeito para com os nossos semelhantes, concluem que o destino lhes deu plenos direitos, e nenhuns aos seus inferiores. Vão, por isso, além da força de que dispõem. Vão inevitavelmente além dela, não sabendo que tem limites. São, então, sem apelo entregues ao acaso, e as coisas já não lhes obedecem. Às vezes o acaso serve-os; outras vezes prejudica-os; ei-los nus, expostos à desgraça, sem a armadura de potência que protegia a sua alma, sem mais nada agora que os separe das lágrimas. Esse castigo de um rigor geométrico, que pune automaticamente o abuso da força, foi o primeiro objecto da meditação nos Gregos. Constitui a alma da epopeia; sob o nome de Nemésis, é o motor das tragédias de Ésquilo; os Pitagóricos, Sócrates, Platão, partiram daí para pensar o homem e o universo. A noção tornou-se familiar por toda a parte onde o helenismo penetrou. Talvez seja esta noção grega que subsiste, sob o nome de karma, em países do Oriente impregnados de budismo; mas o Ocidente perdeu-a e já nem sequer tem, em nenhuma das suas línguas, palavra que a exprima; as ideias de limite, de medida, de equilíbrio, que deveriam
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determinar a condução da vida, já só têm um uso servil na técnica. Só somos geómetras perante a matéria; os Gregos foram primeiro geómetras na aprendizagem da virtude. O desenrolar da guerra, na Ilíada, consiste simplesmente neste jogo de báscula. O vencedor do momento sente-se invencível, mesmo que algumas horas antes tenha sofrido uma derrota; esquece-se de utilizar a vitória como uma coisa que vai passar. No final do primeiro dia de combate que a Ilíada relata, os Gregos vitoriosos poderiam certamente obter o objecto dos seus esforços, ou seja Helena e as suas riquezas; pelo menos se supusermos, como Homero, que o exército grego tinha razão ao crer que Helena estava em Tróia. Os padres egípcios, que o saberiam, afirmaram mais tarde a Heródoto que ela se encontrava no Egipto. Em qualquer caso, nessa noite, os Gregos já não a querem: “Não se aceitem agora nem os pertences de Páris, Nem Helena; todos vêem, mesmo o mais ignorante, Que Tróia está agora à beira do seu fim.” Disse. E todos os Aqueus o aclamaram.
Aquilo que eles querem é nada menos que tudo. Todas as riquezas de Tróia por despojos, todos os palácios, os templos e as casas por cinzas, todas as mulheres e todas as crianças por escravos, todos os homens por cadáveres. Esquecem um detalhe; é que nem tudo está em seu poder; porque não estão dentro de Tróia. Talvez amanhã lá estejam; talvez não. Heitor, no próprio dia, deixa-se levar pelo mesmo esquecimento: Porque isto sei em minhas entranhas e no coração; Virá o dia em que perecerá a santa Ílion, E Príamo, e a nação de Príamo de boa lança. Mas não penso tanto na dor dos Troianos que se avizinha, Em Hécuba, no rei Príamo,
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Em meus irmãos tão numerosos e bravos, Que cairão em terra com os golpes do inimigo, Antes em ti, quando um dos Gregos couraçado de bronze Te arrastará em lágrimas, roubando-te a liberdade. ............................................................................................ Mas eu, que morra e que a terra me encubra Antes que te ouça gritar, que te veja arrastada!
O que não daria ele nessa altura para afastar os horrores que julga inevitáveis? Mas só em vão pode oferecer aquilo que oferece. Dois dias depois, os Gregos fogem miseravelmente, e o próprio Agamémnon gostaria de poder embarcar. Heitor, que, cedendo pouco, obteria então facilmente a partida do inimigo, nem sequer lhe permite partir de mãos vazias: Façam-se fogueiras por toda a parte, e que o luzeiro suba aos céus Com receio que de noite os Gregos de longos cabelos Para fugir se atirem ao grande dorso dos mares… Que cada um reflita nisto em sua casa, .......................................................... para que o mundo inteiro receie Levar até aos Troianos domadores de cavalos a guerra que faz chorar.
Realizou-se o seu desejo; os Gregos ficam; e no dia seguinte, ao meio-dia, fazem de Heitor e dos seus um objecto lamentável: Eles, pela planície fugiam como vacas Que um leão afugenta, na calada da noite… Assim os perseguia o poderoso Atrida Agamémnon, Matando o último continuamente; eles, fugiam.
No decorrer da tarde Heitor retoma a vantagem, depois volta a recuar, de seguida põe os Gregos em debandada, e é então travado por Pátroclo e pelas suas tropas frescas. Pátroclo, aproveitando a vantagem para além das suas forças,
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acaba por se achar desprotegido, sem armadura e ferido, perante a espada Heitor e, ao fim da tarde, Heitor vitorioso acolhe com duras críticas o conselho prudente de Polidamas: “Agora que recebi do matreiro filho de Cronos A glória junto aos navios, impelindo os Gregos ao mar, Imbecil! Não dês tais conselhos frente ao povo. Nenhum Troiano te dará ouvidos; não o permitirei.” Assim falou Heitor, e os Troianos aclamaram-no…
No dia seguinte Heitor está perdido. Aquiles fê-lo recuar em toda a extensão da planície e vai matá-lo. Sempre foi o mais forte dos dois em combate; mais ainda após várias semanas de descanso, levado pela vingança e a vitória, contra um inimigo esgotado! Eis Heitor sozinho frente aos muros de Tróia, completamente só, esperando a morte e tentando convencer a sua alma a enfrentá-la. Ai! se passasse para lá da porta e da muralha, Polidamante primeiro me encheria de vergonha… Agora que por loucura minha perdi os meus, Temo os Troianos e as Troianas de longos véus E ouvir dizer por menos bravos que eu: “Heitor, muito confiante em sua força, deixou o país perdido.” Se no entanto eu pousasse o meu escudo arqueado, A minha boa máscara, e, encostando a lança à muralha, Me dirigisse para o ilustre Aquiles, ao seu encontro?... Mas porque me dá o coração estes conselhos? Não me chegarei a ele; não teria piedade, Nem deferência; matar-me-ia, posto assim a nu Como uma mulher…
Heitor não escapa a nenhuma das dores e das vergonhas que são o quinhão dos infelizes. Só, despido de todo o pres-
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tígio da força, a coragem que o manteve fora dos muros não o preserva da fuga: Heitor, quando o viu, foi tomado por tremores. Não conseguiu Ali permanecer… … Não é por uma ovelha ou por uma pele de vaca, Recompensas habituais da corrida, que eles se esforçam; Correm por uma vida, a vida de Heitor domador de cavalos.
Ferido de morte, ainda aumenta o triunfo do vencedor com súplicas vãs: Imploro-te pela tua vida, pelos teus joelhos, pelos teus pais…
Mas os ouvintes da Ilíada sabiam que a morte de Heitor iria dar uma curta alegria a Aquiles, e a morte de Aquiles uma curta alegria aos Troianos, e o aniquilamento de Tróia uma curta alegria aos Aqueus.
Assim a violência esmaga aqueles que toca. Acaba por parecer exterior àquele que a manipula como àquele que a sofre; nasce então a ideia de um destino sob o qual carrascos e vítimas são igualmente inocentes, os vencedores e os vencidos irmãos na mesma miséria. O vencido é causa de desgraça para o vencedor, assim como o vencedor para o vencido. Um único filho teve, para uma vida curta; e esse, Envelhece longe dos meus cuidados, porque distante da pátria Fico perante Tróia magoando-te, a ti e aos teus filhos.
Um uso moderado da força, que permitiria sair da engrenagem, exigiria uma virtude mais do que humana, tão rara como a constante dignidade na fraqueza. De resto, a
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moderação também não está isenta de perigo; porque o prestígio, que constitui mais que três quartos da força, é feito sobretudo da magnífica indiferença do forte pelo fraco, indiferença tão contagiosa que se transmite àqueles que são o seu objecto. Mas não é habitual ver um pensamento político aconselhar o excesso. A tentação do excesso é que é quase irresistível. Por vezes certas palavras razoáveis são pronunciadas na Ilíada; as de Tersites são-no ao mais alto grau. As de Aquiles irritado são-no também: Nada tem o valor da minha vida, nem todos os bens que se diz Existirem em Ílion, a cidade tão próspera… Podem-se conquistar os bois, as gordas ovelhas… Mas uma vida humana, quando se foi, já não se reconquista.
Mas as palavras sensatas caem no vazio. Se um inferior as pronunciar, é punido e cala-se; se for um chefe, a elas depois não conforma os seus actos. E se necessário existe sempre um Deus para aconselhar a insensatez. Por fim, a própria ideia de que se pode querer escapar a essa ocupação que o destino reparte, a de matar e morrer, desaparece do espírito: … nós a quem Zeus Desde novos obrigou, até à velhive, a penar Em dolorosas guerras, todos perecendo até ao último.
Já estes combatentes, como os de Craonne tanto tempo depois, se sentiam “todos condenados”. Caíram nesta situação pela armadilha mais simples. À partida, o seu coração é leve como quando se tem para si uma força e contra si o vazio. As suas armas estão nas suas mãos; o inimigo está ausente. Excepto quando se tem a alma assombrada pela fama do inimigo, é-se sempre muito mais forte que um ausente. Um ausente não impõe o jugo da necessidade. Nenhuma necessidade surge ainda no espírito dos que
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assim se vão, e é por isso que se vão como se fossem para um jogo, como para uma licença longe das obrigações diárias. Para onde foram as nossas gabarolices, nós tão bravos, Essas que em Lemnos vaidosamente declamáveis, Fartando-vos da carne dos bois de chifres direitos, Bebendo por taças que transbordavam de vinho? Que a cem ou duzentos desses Troianos cada um Faria frente no combate; e eis que um deles é demais para nós!
Mesmo depois de experimentada, a guerra não deixa imediatamente de parecer um jogo. A necessidade própria da guerra é terrível, muito diferente daquela ligada aos trabalhos da paz; a alma só se lhe submete quando já não lhe pode fugir; e enquanto lhe consegue fugir passa dias desprovidos de necessidade, dias de jogo, de sonho, arbitrários e irreais. O perigo é então uma abstracção, as vidas que são destruídas são como brinquedos quebrados por uma criança e são do mesmo modo indiferentes; o heroísmo é uma pose de teatro e está maculado pela gabarolice. Se, ainda por cima, por instantes um afluxo de vida vem multiplicar a potência de agir, julgamo-nos irresistíveis em virtude de uma ajuda divina que garante contra a derrota e a morte. A guerra então é fácil e amada vilmente. Mas para a maior parte este estado não dura. Chega um dia em que o medo, a derrota, a morte dos companheiros amados verga a alma do combatente à necessidade. A guerra cessa então de ser um jogo ou um sonho; o guerreiro compreende por fim que ela existe realmente. É uma realidade dura, duríssima demais para poder ser suportada, porque encerra a morte. O pensamento da morte não pode ser suportado senão por rasgos, logo que se sente que a morte é de facto possível. É certo que qualquer homem está destinado a morrer, e que um soldado pode envelhecer nos combates; mas para aqueles cuja alma está sob o jugo
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da guerra, a relação entre a morte e o futuro não é a mesma que para os outros homens. Para os outros a morte é um limite ao futuro imposto com antecedência; para eles é o próprio futuro, o futuro que lhes é atribuído pela sua profissão. Que homens tenham por futuro a morte, é algo contra natura. Logo que a prática da guerra tornou sensível a possibilidade de morte que cada minuto encerra, o pensamento torna-se incapaz de passar de um dia ao dia seguinte sem atravessar a imagem da morte. O espírito sofre então uma tensão que só suporta por pouco tempo; mas cada nova aurora traz a mesma necessidade; os dias acrescentados aos dias fazem anos. A alma é violentada todos os dias. Todas as manhãs a alma mutila-se de toda a aspiração, porque o pensamento não pode viajar no tempo sem passar pela morte. Assim, a guerra apaga qualquer ideia de objectivo, mesmo a ideia dos objectivos da guerra. Apaga o próprio pensamento de pôr termo à guerra. A possibilidade de uma situação assim tão violenta é inconcebível enquanto não a vivemos; o fim é inconcebível quando nela nos encontramos. Por isso nada se faz que conduza a esse fim. Os braços não podem deixar de segurar e de manipular armas na presença de um inimigo armado; o espírito deveria congeminar para encontrar uma saída; perdeu qualquer capacidade de congeminar o quer que seja nesse sentido. Está inteiramente ocupado em violentar-se. Sempre, entre os homens, quer se trate de servidão ou de guerra, as desgraças intoleráveis duram pelo seu próprio peso e parecem, assim vistas de fora, fáceis de carregar; duram porque retiram os recursos necessários para delas sair. No entanto, a alma sujeita à guerra grita por libertação; mas a própria libertação revela-se-lhe sob uma forma trágica, extrema, sob a forma da destruição. Um fim moderado, razoável, deixaria a nu, para o pensamento, uma desgraça tão violenta que nem como recordação pode ser suportada. O terror, a dor, o esgotamento, os massa-
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cres, os companheiros destruídos, não se julgue que todas essas coisas possam deixar de morder a alma se a embriaguez da força não tiver vindo afogá-las. A ideia de que um esforço sem limites só teria trazido um lucro nulo ou limitado dói: O quê? Deixar Príamo, os Troianos, gabarem-se Da Argiva Helena, por quem tantos Gregos Frente a Tróia morreram longe da terra mãe?... O quê? Desejas que a cidade de Tróia de largas ruas Aqui a deixemos, por quem sofremos tantas desgraças?
O que importa Helena para Ulisses? O que importa mesmo Tróia, cheia de riquezas que não compensarão a ruína de Ítaca? Tróia e Helena importam apenas como causas do sangue e das lágrimas dos Gregos; é ao tornarmo-nos donos delas que podemos tornar-nos donos de recordações terríveis. A alma, obrigada pela existência de um inimigo a destruir em si aquilo que a natureza lá tinha deixado, julga poder sarar apenas pela destruição do inimigo. Ao mesmo tempo, a morte dos companheiros bem-amados suscita uma sombria emulação de morrer: Ah, morrer já, se o meu amigo teve De sucumbir sem meu socorro! Longe da pátria Pereceu, e não me teve para afastar a morte… Agora parto em busca do assassino de tão querida cabeça, Heitor; a morte, irei recebê-la quando Zeus a quiser mandar, e todos os outros deuses.
O mesmo desespero leva então a perecer e a matar: Sei bem que o meu destino é de aqui morrer, Longe de meu pai e minha mãe amados; mas no entanto Não cessarei antes que os Troianos recebam toda a guerra.
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O homem habitado por esta dupla necessidade de morte pertence, enquanto não se tornar outro, a uma raça diferente da raça dos vivos. Que eco poderá encontrar, em tais corações, a tímida aspiração da vida, quando o vencido suplica que lhe permitam voltar a ver o dia? Já a posse das armas por um lado, a privação das armas por outro, tiram a uma vida ameaçada quase toda a importância; e como poderia, aquele que em si destruíu o pensamento de que ver a luz é suave, respeitá-lo nesse lamento humilde e vão? Estou a teus pés, Aquiles; tem respeito, tem piedade; Estou aqui como um suplicante, oh filho de Zeus, digno de respeito. Porque em tua casa comi pela primeira vez o pão de Deméter, Nesse dia em que me capturaste no meu pomar bem tratado. E vendeste-me, enviando-me para longe do meu pai e dos meus, Para a santa Lemnos; por mim ofereceram-te uma hecatombe. Fui comprado pelo triplo; hoje esta aurora é para mim A décima-segunda, desde que regressei a Ílion, Depois de tantas dores. Eis-me novamente em tuas mãos Por um destino funesto. Devo ser odioso para Deus pai, Se assim a ti me entrega novamente; para pouca vida Minha mãe me deu à luz, Laótoe, filha do ancião Altos…
Que resposta recebe esta fraca esperança! Então, amigo, morre tu também! Porque tanto te lamentas? Também ele morreu, Pátroclo, e valia bem mais que tu. E eu, nâo vês como sou alto e belo? Sou de nobre raça, tenho por mãe uma deusa; E sobre mim também estão a morte e o duro destino. Será a aurora, ou a noite, ou o meio do dia, Quando também, pelas armas, me arrancarão a vida…
É necessário, para respeitar a vida em outrem quando nos tivemos de mutilar de qualquer aspiração de viver, um
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esforço de generosidade que despedaça o coração. Não se pode imaginar nenhum dos guerreiros de Homero capaz de tal esforço, a não ser talvez aquele que de certa maneira se encontra no centro do poema, Pátroclo, que “soube ser suave com todos”, e na Ilíada não comete nada de brutal ou de cruel. Mas quantos homens conhecemos, em vários milhares de anos de história, que demonstraram tão divina generosidade? Não sei se se poderão nomear dois ou três. Sem essa generosidade, o soldado vencedor é como uma calamidade da natureza; possuído pela guerra, não é mais que um escravo, embora de um modo muito diverso, tornado em coisa, e as palavras são sem poder sobre ele, como sobre a matéria. Os dois, ao contacto da força, sofrem o seu efeito infalível, que é o de tornar surdos ou mudos aqueles que toca.
Tal é a natureza da força. O poder que possui de transformar os homens em coisas é duplo e exerce-se de dois lados; petrifica diferentemente, mas igualmente, as almas daqueles que a sofrem e daqueles que a manipulam. Esta propriedade atinge o grau mais elevado no meio das armas, a partir do momento em que uma batalha se orienta para uma decisão. As batalhas não se decidem entre homens que calculam, combinam, tomam uma resolução e a executam, mas entre homens despidos dessas faculdades, transformados, caídos ao nível quer da matéria inerte que é só passividade, quer das forças cegas que são apenas impulso. É esse o último segredo da guerra, e a Ilíada exprime-o com as suas comparações, onde guerreiros surgem como iguais ao incêndio, à inundação, ao vento, aos animais ferozes, a qualquer causa cega de desastre, sejam animais medrosos, árvores, água, areia, tudo aquilo que é movido pela violência das forças exteriores. Gregos e Troianos, de um dia para o outro, por
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vezes de uma hora para a outra, sofrem alternadamente uma e a outra transmutação: Como vacas assaltadas por um leão que quer matar, Num prado pantanoso e vasto pastando Aos milhares…; todas tremem; assim então os Aqueus Em pânico foram afugentados por Heitor e Zeus pai, Todos… Como quando o fogo destruidor cai no espesso de um bosque; Por todo o lado o leva o vento; então os troncos, Arrancados, caem debaixo do fogo violento; Assim o Atrida Agamémnon fazia cair as cabeças Dos Troianos que fugiam…
A arte da guerra é apenas a arte de provocar tais transformações, e o material, os métodos, a própria morte infligida ao inimigo são simples meios para tal; o seu verdadeiro objecto é a alma dos combatentes. Mas estas transformações constituem sempre um mistério, e os deuses são os autores, eles que movem a imaginação dos homens. Seja como for, esta dupla propriedade de petrificação é essencial à força, e uma alma colocada em contacto com a força só por uma espécie de milagre consegue dela escapar. Tais milagres são raros e breves. A ligeireza daqueles que manipulam sem respeito os homens e as coisas que têm, ou julgam ter, à sua mercê, o desespero que força o soldado a destruir, o esmagamento do escravo e do vencido, os massacres, tudo contribui para um quadro uniforme de horror cujo único herói é a força. O resultado seria uma morna monotonia se não houvesse, espalhados aqui e ali, momentos luminosos, momentos breves e divinos em que os homens têm uma alma. A alma que assim desperta, durante alguns instantes, para logo depois se perder sob o império da força, essa alma desperta pura e intacta; não surge nela nenhum sentimento ambíguo, com-
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plicado ou turvo; só cabem nela a coragem e o amor. Por vezes um homem encontra assim a sua alma deliberando consigo, quando tenta, como Heitor frente a Tróia, sem a ajuda dos deuses ou dos homens, enfrentar o destino sozinho. Os outros momentos em que os homens encontram a sua alma são aqueles em que amam; quase nenhuma forma pura de amor entre os homens está ausente da Ilíada. A tradição da hospitalidade, mesmo após várias gerações, sobrepõe-se à cegueira do combate: Sou então para ti um hóspede amado no seio de Argos… Evitemos as lanças um do outro, mesmo na refrega.
O amor do filho pelos pais, do pai, da mãe pelo filho, é constantemente referido de maneira curta e comovente: Respondeu ela, Tétis, derramando lágrimas: “Nasceste-me para uma curta vida, meu filho, se assim falas...”
Assim o amor fraterno: Meus três irmãos, que uma só mãe me dera à luz, Tão queridos…
O amor conjugal, condenado à desgraça, é de uma pureza surpreendente. O esposo, evocando as humilhações da escravidão que esperam a mulher amada, omite aquela cuja simples recordação sujaria de antemão essa ternura. Nada tão simples como as palavras dirigidas pela esposa àquele que vai morrer: … Melhor seria para mim, Se te perder, estar debaixo de terra; não terei Outro recurso, quando encontrares o teu destino, Só terei dores…
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Não menos comoventes são as palavras dirigidas ao esposo morto: Meu esposo, morreste antes de tempo, tão jovem; e eu, tua viúva, Deixas-me só em minha casa; o nosso filho ainda tão pequeno Que tivemos tu e eu, infeliz. E não penso Que se torne crescido algum dia… .............................................................................................................. Porque ao morrer não me estendeste as mãos de tua cama, Não disseste uma palavra sábia, que para sempre Nela pudesse pensar ao verter lágrimas.
A mais bela amizade, a amizade entre companheiros de combate, é tema para os últimos cantos: … Mas Aquiles Chorava, pensando no bem amado companheiro; Não o tomou o sono, que tudo doma; virava-se e voltava a virar-se…
Mas o triunfo mais puro do amor, a graça suprema das guerras, é a amizade que sobe ao coração dos inimigos mortais. Faz desaparecer a fome de vingança pelo filho morto, pelo amigo morto, apaga com um milagre ainda maior a distância entre benfeitor e suplicante, entre vencedor e vencido: Mas quando foi estancado o prazer de beber e de comer, Então o Dardânida Príamo pôs-se a admirar Aquiles, Quanto era alto e belo; tinha o rosto de um deus. E por sua vez o Dardânida Príamo foi admirado por Aquiles Que olhava para o seu belo rosto e escutava as suas palavras. E quando se saciaram da contemplação um do outro…
Estes momentos de graça são raros na Ilíada, mas são suficientes para fazer sentir com extremo pesar aquilo que a violência faz e fará perecer.
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No entanto, uma tal acumulação de violências seria fria sem um tom de incurável amargura que se faz continuamente sentir, embora indicado frequentemente numa só palavra, muitas vezes mesmo por uma divisão do verso em duas linhas. É por isso que a Ilíada é uma coisa única, por esta amargura que procede da ternura, e que se estende a todos os humanos, igual como o brilho do sol. O tom nunca deixa de estar impregnado de amargura, também nunca se rebaixa até ao lamento. A justiça e o amor, que pouco lugar podem ter neste quadro de extremos e de injustas violências, banham-no com a sua luz sem nunca aflorarem a não ser pelo tom. Nada de precioso, destinado a perecer ou não, é desprezado, a miséria de todos é exposta sem fingimento nem desdém, nenhum homem é posto acima ou abaixo da condição comum a todos os homens, tudo aquilo que é destruído é lamentado. Vencedores e vencidos estão igualmente próximos, são, com igual direito, semelhantes ao poeta e ao ouvinte. Se existe uma diferença, é a de a desgraça dos inimigos ser talvez sentida mais penosamente. Assim ali caiu, adormecido num sono de bronze, O infeliz, longe da esposa, defendendo os seus…
Que tom para evocar o destino do adolescente vendido por Aquiles em Lemnos! Onze dias alegrou o coração junto àqueles que amava, Regressando de Lemnos; no décimo-segundo novamente Às mãos de Aquiles Deus o entregou, ele que tinha De o enviar a Hades, apesar de não querer partir.
E o destino de Euforbo, aquele que só viu um dia de guerra: O sangue banha os seus cabelos com os cabelos das Graças parecidos…