A ida ao teatro e outros textos

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livrinhos de teatro / 61

Valentin Ludwig Fey nasceu em Munique a 4 de Junho de 1882, filho de família modesta. Depois de alguns anos de trabalho como marceneiro, começa uma carreira de cantor popular nas cervejarias de Munique. Chega a organizar, sem êxito, uma digressão com uma grande orquestra de vinte instrumentos que ele acciona sozinho, graças a um mecanismo que inventou. É em 1907 que conhece, com O Aquário, o seu primeiro grande êxito. E passa a assinar Karl Valentin. Será em 1908, quando trabalha como actor em Frankfurter Hof, que conhece Liesl Karlstad, a qual viria a tornar-se a sua parceira em palco durante cerca de trinta anos. Bertolt Brecht frequenta os seus espectáculos, toca episodicamente na sua orquestra, reconhece a sua influência. Quando, por razões de saúde, Liesl Karlstad abandona a parceria, em 1935, Valentin não encontra substituta à altura. A 1 de Abril de 1937, Samuel Beckett assiste ao seu espectáculo em Munique e comenta «Rimos tristemente». Em 1942, Valentin retira-se para a casinha que tem em Plannegg, onde trabalha como amolador. Depois da guerra, tenta um regresso, com Liesl Karlstadt – mas passam despercebidos. Quase esquecido, Karl Valentin morre de pneumonia a 9 de Fevereiro de 1948. O seu teatro é redescoberto nos anos 70, a partir das traduções que foram feitas em França, por Jean-Jourdheuil e Jean-Louis Besson (Éditions Théâtrales), tendo desde então sido reconhecido como um dos maiores autores cómicos de sempre.

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karl valentin

A Ida ao Teatro e outros textos

Traduções de Almeida Faria, Luiza Neto Jorge, Maria Adélia Silva Melo, Osório Mateus e Jorge Silva Melo

< os clássicos > ARTISTAS UNIDOS COT OVIA

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título: A Ida ao Teatro e outros textos copyr ight: Karl Valentin © Piper Verlag GmbH, München 1992, 2007 tr a duções: Almeida Faria, Luiza Neto Jorge, Maria Adélia Silva Melo, Osório Mateus e Jorge Silva Melo r ev isão: Madalena Alfaia © desta edição: Artistas Unidos / Livros Cotovia, Lisboa, Janeiro de 2012

ARTISTAS U NIDOS R. Campo de Ourique, 120 1250 – 062 Lisboa www.artistasunidos.pt artistasunidos@artistasunidos.pt

LI V ROS COTOV IA Rua Nova da Trindade, 24 1200 – 303 Lisboa www.livroscotovia.pt geral@livroscotovia.pt

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nota

Neste livro reúnem-se traduções que foram feitas para o espectáculo E Não Se Pode Exterminá-lo?, do Teatro da Cornucópia (1979), mas que acabaram por não ser incluídas.

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ÍNDICE

a ida ao teatro

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Der Theaterbesuch (1933) Tradução: Luiza Neto Jorge.

o anúncio de casamento

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Heirats-Annonce (1940) Tradução: Luiza Neto Jorge.

não

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Nein (1946) Tradução: Luiza Neto Jorge.

conversa interessante

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Interessante Unterhaltung (1941) Tradução: Luiza Neto Jorge.

casa para vender

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Der überängstliche Hausverkäufer (1940) Tradução: Maria Adélia Silva Melo.

sisselberger no banco dos réus

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Sisselberger vor Gericht (1940) Tradução: Osório Mateus.

coelho assado

37

Der Hasenbraten (1936) Tradução: Osório Mateus.

conversa na fonte

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Gesprach am Springbrunnen (1946) Tradução: Luiza Neto Jorge.

bofetadas

44

Ohrfeigen (1937) Tradução: Jorge Silva Melo.

o novo guarda-livros

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Der neue Buchhalter (1937) Tradução: Jorge Silva Melo.

no consultório

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Beim Arzt (1940) Tradução: Jorge Silva Melo.

a liga das amigas dos gatos

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Verein der Katzenfreunde (1940) Tradução: Maria Adélia Silva Melo.

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onde estão os meus óculos?

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Wo ist meine Brille? (1936) Tradução: Jorge Silva Melo.

o fotógrafo

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Der Photograph (1918-1920) Tradução: Osório Mateus.

optimismo pessimista

64

Pessimisticher Optimismus (1942) Tradução: Almeida Faria.

a prancha da árvore de natal

67

Das Christbaumbrettl (1922) Tradução: Maria Adélia Silva Melo.

desvalorização de moeda

77

Die Geldentwertung (1946) Tradução: Maria Adélia Silva Melo.

voos picados na sala de espectáculos

79

Sturzflüge im Zuschauerraum (1946-1948) Tradução: Maria Adélia Silva Melo.

argumentos para cinema

um fogo e peras

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Grossfeuer (1922) Tradução: Maria Adélia Silva Melo.

casal de porteiros precisa-se

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Hausmeisters-Eheleute gesucht (1932) Tradução: Maria Adélia Silva Melo.

o jornal de ontem

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Die gestrige Zeitung (1940-43).Tradução: Jorge Silva Melo.

Estas traduções, realizadas nos finais dos anos 70, partiram das edições disponíveis na altura (nomeadamente, os discos de Karl Valentin/Liesl Karlstad e o Das Große Karl Valentin Buch editado por Michael Shulte em 1973 pela Piper Verlag). Mais tarde, entre 1991 e 1997, a Piper Verlag veio a editar uma edição crítica de Karl Valentin (Der Große Karl Valentin), em nove volumes. Como muitos dos textos foram representados pelo autor em temporadas diferentes, a sua reescrita foi constante, verificando-se inúmeras variantes de acordo com o tempo e a ocasião.

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A I D A A O TEAT RO

O lugar da acção é um quarto amansardado, à moda antiga, pequeno-burguesa, com um papel pintado, baratucho e já meio amarelo, do tempo dos nossos avós. À esquerda, por cima do canapé estofado, um quadro de flores quadricromado, metido numa moldura doirada, que dá nas vistas. As duas janelas, ao fundo, parecem dar para um saguão; cada um dos batentes está dividido em três vidraças. As cortinas claras, de cor creme, já há imenso tempo que não são lavadas, estão desprovidas de duplas cortinas e apanhadas por cordões, de cada lado das janelas, no meio das quais se vê um retrato de mulher à moda antiga, numa moldura oval, e por cima um grande calendário – reclame, informe, ostentando um oito enorme, ou qualquer outra data passada desde há muito, de modo a perceber-se que já há imenso tempo que as folhas não são arrancadas. À direita da janela, sobre uma prateleira, uma gaiola de pássaros, ao canto um fogão de faiança com um tubo de latão até cima, ao qual está presa uma corda com roupa estendida, a secar; no rebordo superior do fogão um moinho de café, atrás do qual desponta um bule de barro, redondo e bojudo, onde pelos vistos se aquece o café. Entre uma e outra janela há uma cómoda das antigas, com um altifalante em cima e vários bibelôs. No meio do palco uma mesinha quadrada de palhinha, coberta com um naperon branco de renda e em cima um ramo de flores numa jarra barata. Diante do canapé uma mesa redonda coberta 9

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com uma toalha de peluche debruada por um galão dourado. Na parede de rebaixo uma clarabóia de onde se desprende, iluminando a mesa, a luz do dia. No parapeito das janelas vasos com plantas floridas dão uma certa sensação de bem-estar. A Mulher traz, por cima do vestido, um avental azul debruado a branco, e mais tarde aparecerá com um vestido comprido à moda antiga e um chapéu esquisito de piqué que acabará por substituir pela «mantilha de teatro» branca. O Marido é uma pessoa alentada, com uma grande barba hirsuta e uma calvície separada da testa apenas por meia dúzia de cabelos penteados para o lado. As calças largas e escuras fazem imensas pregas, o colete claro, bastante remendado, está desabotoado. Na camisa um colarinho mole de pontas voltadas, baixo e largo, sobre o qual passa uma fita negra como aquelas que outrora usavam os artesãos, e cujas pontas se cruzam sobre o peito e arrebitam para os lados. Mais tarde aparecerá esterlicado numa velha casaca e num colete escuro, que emparceiram com umas calças às riscas. Os atacadores dos sapatos pretos, informes, estão cheios de nós, um guarda-chuva catastrófico e um «Coggs» gigantesco, de abas comicamente erguidas e arredondadas, constituem a sua indumentária quando, finalmente, se acha pronto para sair. No entanto, o colete continua desabotoado quando ele, já no fim, encontra os bilhetes do teatro no bolso das calças. A Vizinha é uma mulher com ar descuidado, em trajo de cozinha, com um avental de uma indefinível cor de serapilheira. Os cabelos grisalhos têm um ar pouco cuidado e, desgrenhados, despontam por todos os lados. Segura na mão uma chávena sebenta, sem asa. Ao subir o pano, vê-se o Marido sentado à mesa, a ler o jornal.

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Mulher (entra precipitadamente) Ora vê lá tu, marido, vinha eu a subir as escadas e não é que me aparece a dona da casa e me vem outra vez com outra oferta? Adivinha o que é que ela me deu? Marido Deixa-te de criancices, diz lá. Mulher Toma, vê, dois bilhetes de teatro para o Fausto! Que dizes a isto? Marido Os meus agradecimentos! Mas porque não vai ela mesma, essa velha pega? Mulher Oh! Certamente que não tem tempo. Marido Ah, ela não tem tempo, e nós temos que ter. Mulher Também não deves ser assim tão ingrato! Marido Não me digas que ainda não percebeste que essa mulher nos tomou de ponta, senão não nos ia oferecer os bilhetes. Mulher Pretendeu apenas ter uma amabilidade para connosco. Marido Ela, para connosco? Porventura já tivemos nós alguma amabilidade para com ela? Nunca! Mulher Então, acompanhas-me? Sim ou não? Marido E a que horas começa isso? Mulher Lá isso não sei; vou descer e perguntar-lhe. Marido Pois é, começa às sete e meia! Mulher Mas se já são sete menos um quarto, não vamos conseguir estar prontos a tempo! Mas geralmente os teatros começam mais tarde, só às oito. Marido Qual! Começam entre as sete e meia e as oito. Mulher Oh! Antes das oito de certeza que não, os teatros começam sempre mais tarde. Lembras-te aqui há quatro semanas fomos à revista e só às dez é que começou. Marido Bom, então o que é que se faz? Mulher Ora! Não penses demasiado e vem! Marido Além disso ainda não jantámos. Mulher O jantar está pronto. 11

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Marido Bem, eu despacho-me num instante, é só o tempo de me pentear. Mulher Isso pode ficar para depois, agora vamos comer. (Sai. O Marido agarra num espelho, que coloca sobre a mesa; o espelho nunca se aguenta de pé. Entra a Mulher com os pratos e os talheres.) Bem, agora vamos lá ver se não perdemos tempo. Ah! Já cá faltava isto – mas põe-no direito! (O espelho aguenta-se em pé, mas só ao contrário.) Marido Mas assim não consigo ver. Mulher Então vira-o! (O Marido vira o espelho, que volta a não se ter de pé e a cair constantemente. A Mulher põe-no como deve ser. O Marido penteia a barba e os cabelos.) Bem gostaria de saber que tens tu para pentear; nem sequer o risco podes fazer, com essa vegetação que tens no toutiço. Marido É um hábito que me ficou, de antigamente. Mulher Como é que este homem pode ser assim tão vaidoso, para quem é que te estás a embonecar, eu gosto de ti assim, não tens que agradar a mais ninguém. Marido Talvez no teatro fique ao meu lado uma moça gira. Mulher E julgas então que ela vai olhar para ti? Olha mas é para o Fausto! Marido No intervalo, queria eu dizer… (A Mulher sai e volta a entrar com o jantar, uma travessa de chucrute e salsichas pequenas.) Outra vez o prato único. Mulher Mas cá em casa nunca houve outra coisa. (Há uma salsicha para cada um, ele agarra nelas, tira um metro da algibeira, mede as salsichas, dá a mais pequena à Mulher e fica com a maior; em seguida ambos enterram precipitadamente os garfos na chucrute, os garfos prendem-se um ao outro, cada qual puxa para o seu lado. Até que ele, com uma pancada da faca, separa os garfos. Durante este reboliço todo, vai olhando para o relógio de parede.) Pronto, ficou todo 12

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torto, mas agora já sei quem me dá cabo dos garfos. E agora toca a comer depressa. Marido Não se deve comer à pressa, faz mal à saúde. Mulher Toma mais chucrute! (Levanta-se e deita-lhe mais chucrute no prato.) Marido (furioso, afastando-a com a mão) Eu sei servir-me sozinho. (Olha para o espelho.) Mulher Deixa-te de fazer caretas, não tens precisão nenhuma de olhar para o espelho quando estamos a comer. Marido Precisamente. Assim come-se a dobrar. (Fazem ambos imenso barulho a comer.) E como é que vamos fazer com o miúdo, quando ele volta do trabalho? Mulher Já pensei nisso. Deixamos-lhe o jantar já aquecido, e antes de sairmos temos que escrever um bilhetinho. Vá, continua a comer, que eu escrevo. (Vai buscar papel e tinta à cómoda.) Escrevo, portanto, que não estamos em casa. Marido Isso não precisas de escrever, que ele vê logo – tens que escrever é que saímos. Mulher Era o que eu estava a dizer! Escrevo que não estamos cá porque nos ausentámos. Marido Escreve: Munique, dia… Mulher Não, escrevo assim: Querido… Ambos Mas afinal como é o nome dele? Mulher Tu é que és o pai, tinhas obrigação de saber como se chama o miúdo. Marido Tu, que és a mãe, é que tinhas obrigação de saber. Mulher É que nós tratamo-lo sempre por «miúdo»… ora esta, mas como é que ele se chama? Marido Espera lá… vou perguntar à vizinha. Mulher Oh! Havemos de lá chegar sozinhos, Jesus-Maria-José. Ah! É José que ele se chama! Bom: meu querido José… 13

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Marido Não podes escrever isso, porque ele é meu também. Mulher Nesse caso escrevo nosso querido José, só para me deixares da mão… Nosso querido José… Marido Prezado senhor, nosso querido José… Mulher O teu jantar está na cozinha em cima do fogão, aquece-o porque entretanto vai arrefecer. Marido Já estamos em Dezembro. Mulher Estou a referir-me ao jantar, vai arrefecer e nós temos que ir ao teatro. Marido Se não nos apetecer, não somos obrigados… Mulher Então escrevo que se calhar vamos… – que temos a oportunidade… – que queremos… – que devemos… Marido Que vamos. Mulher Mas quando ler o bilhete já nós nos fomos embora. Marido Então escreves: fomos. Mulher No caso de o teatro estar fechado, devemos com certeza voltar para casa. Recebe os cumprimentos. Marido Os mais respeitosos cumprimentos. Mulher Dos teus pais que saíram, bem como da tua mãe. Marido Mas a mãe já está incluída nos pais. Mulher E ponho ponto final, senão o idiota vai continuar a ler. Marido Agora acrescenta aí: no caso de preferires o jantar frio, não precisas de aquecê-lo. Mulher Senão fica muito quente. Bom, agora vamos ali pô-lo em cima da mesa. A não ser que ele ali não dê logo com ele – ele geralmente entra pela porta, nesse caso deixa-se o bilhetinho no chão! Marido E ele vai passar-lhe por cima com as botas todas sujas e depois já não pode ler. (Põe a carta em cima da cómoda, encostada à jarra das flores.) Mulher Isso aí, ao pé do ramo de flores, não está bem, é capaz de julgar que é dia dos anos. 14

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Marido Mas não é. Mulher De qualquer modo vai impressioná-lo; não, assim não. Marido (encosta a carta ao espelho) Sensacional! Repara: entrou, vem até aqui, olha para o espelho e pergunta para consigo: «Que bilhetinho é este?» E nessa altura repara nele. Mulher Nós é claro que olhamos, porque sabemos que está aí um bilhetinho. Mas ele não faz a mínima ideia, se calhar não olha. Marido É absolutamente necessário que olhe. Mulher Mas, se não olha, fica aí o bilhetinho para nada. Marido Ah! Espera aí, já sei. Vais escrever outro bilhetinho: «Mal entres, olha logo para o espelho.» Mulher Bom… Então escrevo: mal entres, olha logo para o espelho, que hás-de lá ver qualquer coisa. E pronto, perdemos um tempo infinito com todas estas escritas… Já são quase sete, felizmente que o teatro começa às oito. Marido Começa às sete e meia. Mulher Acho que vou deixar a loiça para amanhã de manhã, senão faz-se muito tarde. (Levanta a mesa.) Marido (procura por toda a parte, abre as gavetas e abana a cabeça) Onde é que me puseste o botão do colarinho, Fanny? Mulher Lá começa a caça ao botão do colarinho, já te desencantei mais de cem mil botões… Marido Isso é demais. Basta-me um, só. Mulher Gostava bem de saber que fazes tu aos botões de colarinho, deve-los comer pela certa. (Agarra na caixa dos botões e mostra-lha. O marido precipita-se para ela, batem com a cabeça um no outro, ele procura avidamente dentro da caixa, até que lá descobre um botão do colarinho, que brande triunfalmente em frente ao nariz dela.) Agora vou-me eu arranjar… Ah! Ainda tenho que ir à cozinha. (Sai.) Marido (berra-lhe) Mas onde é que está o colarinho? 15

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Mulher Onde tu ontem o deixaste. Marido (passa torturas para apertar o colarinho, mas não consegue enfiar o botão na segunda casa do colarinho postiço) Fanny, aperta-me aqui o colarinho, antes que eu endoideça. Mulher (entra num pé-de-vento, com o ferro de frisar metido no cabelo) Se não me deixas em paz, não estarei pronta a tempo, o que é que queres de mim? Marido Tens que apertar-me o colarinho, senão ainda atiro com ele para trás do fogão. Mulher Então segura-me aqui no ferro! (Agarra no ferro de frisar pelo cabo e estende-lhe a parte metálica a escaldar.) Marido Ai! Minha grandessíssima idiota! Então metes-me assim o ferro a escaldar na mão? Mulher Como queres tu que eu to dê doutra maneira? Com certeza que não to vou dar assim. (Agarra no ferro pela parte metálica e pespega-lhe o cabo de madeira em frente do nariz, o que faz com que também se queime.) Ai! Marido (deixa cair o botão do colarinho no chão) Agora caiu-me o botão no chão. (Puxa várias vezes para baixo o candeeiro de roldana e bate com a cabeça nele.) Mulher E lá está ele outra vez sem botão! Por este andar vamos chegar mesmo atrasados, isso posso-te eu garantir. (Procura o botão.) Estará debaixo do canapé? Marido Rolou e foi parar debaixo da cómoda! Ela baixa-se, à procura, ele levanta um tudo-nada a cómoda, e a loiça e os bibelôs caem. Mulher Jesus-Maria-José, a minha rica loiça. (Continua a resmungar, furiosa.) Marido (ri) Cá está o botão! Onde está então o colarinho? Mulher E lá está ele outra vez sem saber do colarinho, já viram! Marido Não senhor, aqui está o colarinho. 16

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Mulher E agora vou vestir-me, que um, ao menos, se despache. Ponho o vestido preto? Marido Sim. Mulher Ou o castanho? Marido Sim. Mulher Com certeza não vou pôr os dois ao mesmo tempo! Marido Assim já não tens frio. Mulher Vale bem a pena perguntar-te qualquer coisa. Pois bem, vou pôr o castanho – vamos ver, senão depois logo ponho o preto. (Sai. Entretanto, o Marido pôs o colarinho e a gravata. Procura os sapatos, que encontra. Enquanto enfia um, põe o outro em cima da mesa. Enerva-se com os atacadores, quando vai para apertar os sapatos. A Mulher entra num pé-de-vento envergando o vestido castanho.) Eh! Aperta-me aqui o vestido, sozinha não sou capaz. Marido Ora esta! Aí temos nós outra vez quinhentos colchetes! Mulher Não tenhas medo, que já mandei pôr um fecho éclair. (O Marido puxa o fecho éclair.) Que praga! Mal se apertava um colchete, logo o outro se desapertava, e, ao despir-me, mal desapertava um, logo outro se prendia. Marido Não fales tanto e arranja-te depressa. (O atacador parte-se-lhe entre os dedos, ele rabuja e resmunga.) Mulher Para quê todos esses nervos? Quer-me parecer que não serás tu o único a ir ao teatro! Marido Nem isto sequer são atacadores! Mulher Para a próxima dou-te um arame – mas mesmo assim hás-de parti-lo. (Sai. O Marido dá um nó no atacador, põe-se de pé, bate um pouco com os pés no chão, posto o que enfia o colete e o casaco. A Mulher volta a entrar com o chapéu na mão) Não sei, mas acho que este chapéu não vai lá muito bem com o vestido castanho… 17

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Marido Põe outro – mas despacha-te! (Põe o chapéu e fica pronto.) Mulher Além de que me dá um ar terrivelmente descarado! Marido Nunca gostei dele. Mulher Vou pôr a mantilha, que aliás me fica muito melhor. Marido Pois sim, mas toca a andar, vamos chegar atrasados. (Anda para cá e para lá em passinhos nervosos.) Mulher (vai buscar o saco de mão estilo Pompadour e o leque) Mas antes tenho que dar aqui uma arrumadela. Marido (resmunga) Se fosse a ti lavava também a escada e o chão da cozinha. Mas que grande chata! Mulher (também a resmungar) Mas que rabugento! Que culpa tenho eu que me tivessem oferecido os bilhetes? Marido Esse estupor, para a próxima há-de ser ela a ir ao teatro e não vem para aqui incomodar os outros, não. (Lança-lhe de esguelha um olhar furioso; A Mulher protege-se com as mãos.) Mulher É só haver qualquer coisa que me dê prazer… cá em casa é assim, levar o ano inteiro a trabalhar, para isso já eu sou boa, mas… Marido E eu para ganhar dinheiro. Mulher Pois sim, já te conheço, daqui para a frente não há nada que te faça calar, vamos levar o caminho a discutir, e no teatro vai continuar a discussão, e só a altas horas da noite é que a discussão pára. Pois fica sabendo desde já que passo bem sem esse divertimento. Prefiro ficar em casa, vai tu sozinho ao teatro. Marido Como é que eu posso ir sozinho ao teatro se tenho dois bilhetes? Mulher (chora e senta-se) Mas que culpa tenho eu que me tivessem oferecido dois bilhetes? Marido Já estava à espera disso. Vamos, toca a andar para o teatro! 18

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Mulher Estou tão cheia de nervos, bem sabes que não aguento discussões, não me apetece sair, pronto, já não me apetece sair, vai tu ao teatro com quem quiseres! Vou já despir-me e meter-me na cama, estou com uma destas dores de cabeça, vou já, já… Marido Toma mas é um comprimido para as dores de cabeça! (Dá-lhe o medicamento.) Mulher Não fazes cá falta nenhuma, se tens tanto gosto nisso, vai, que eu vou para a cama. (Engole o comprimido e sai.) Marido Alto! Já engoliste? Deita-o cá para fora! Mulher Não era este? Marido Também tu, engoles tudo o que te dão! Mulher Diz lá o que é que me deste? Marido Pastilhas Léo para purgar. Mulher Olha que lindo serviço, pastilhas Léo, laxativas! Está lá escrito: efeito imediato, age dentro de uma hora! São sete e meia, agora às oito e meia estamos nós precisamente no teatro e vai ser lá que a coisa começa. Marido Começa às sete e meia. Mulher Quero eu dizer: comigo. Bom, vamos lá então, pode ser que daqui até lá já tenhamos voltado para casa. Só gostava era de saber se os outros, quando saem, é assim como nós. Marido Exactamente igual! Mulher Não pode ser assim em parte nenhuma. Marido Só que eles não dizem; de resto… Bom, vamos lá. Mulher E pronto, lá estás tu com o teu ar de desmazelo. Não tens emenda, mas afinal que raio de camisa vem a ser essa? Marido Uma camisa de homem. Mulher Certamente não vais levar essa camisa ao teatro, é a camisa mais velha que tens, há quinze dias que andas com ela. Marido Mas não se dá por isso. 19

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Mulher Não, não saio contigo assim com essa camisa, nem pensar nisso, se alguém te via, iam pensar que sou uma porca. Marido Mas que importância tem isso? Mulher Não, trata de ir já pôr outra camisa. (Tira uma do roupeiro.) Marido Tão cedo não esquecerei este dia; nunca, nunca mais vou ao teatro. Mulher Vamos, eu ajudo-te! (Despe-se todo até ficar só em camisa. Nesse instante aparece a Vizinha. Traz uma chávena na mão. Ao ver o homem despido, solta um grito de terror e deixa cair a chávena.) Porque é que você não bate à porta? E tu não fiques aí plantado, todo nu! Mete-te no quarto! (Ele escapa-se.) Estamos cheios de pressa, vamos ao teatro. Vizinha Se faz favor, era uma pinguinha de azeite para temperar a salada, se fazia o favor de me dar. Mulher Vem sempre na pior altura, está sempre a precisar de qualquer coisa. (Vai buscar a garrafa de azeite.) Bom, que porção é que quer? Vizinha É só uma pinguinha. (A Mulher deita-lhe o azeite na chávena. Entretanto, o Marido voltou. Vem ainda a segurar as calças e bate no cotovelo da mulher no momento preciso em que ela deita o azeite.) Marido Mas afinal onde é que me puseste a camisa? (O azeite derrama-se no vestido da Mulher.) Mulher Jesus, só me faltava agora esta, o meu rico vestido, se não dá vontade de chorar. Vizinha Lamento imenso. Mulher Olha que perna tão linda! – o vestido está estragado. Felizmente que é azeite, ao menos não põe nódoa. Já lhe chega? Tome lá! (Dá-lhe a chávena cheia de azeite.) Vizinha Muito obrigada – muito prazer. Marido Mas então onde é que está a camisa? 20

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Mulher Acolá, em cima da cadeira. Marido (pega na camisa, desdobra-a e segura-a no ar. Vê-se que é uma camisa de criança.) Jesus. Jesus. Mulher É uma camisa de miúdo, não havia outra na gaveta, és mesmo um patarata, sabes perfeitamente que só tens duas camisas – pois andas com as duas a uso e não dizes nada, trata de pôr o peitilho – aqui tens um peitilho limpo. (Estende-lhe um peitilho de elástico.) Marido É comprido demais. Mulher Então rasga-o! (Rasga ela a parte de baixo do peitilho.) Marido Depressa! São sete e meia! (Ele veste-se então, as mãos parecem ter asas, peitilho, gravata e relógio caem no chão, enfia o relógio nas calças, o relógio cai pela perna abaixo; a Mulher vai-lhe dando o colete, o casaco, o chapéu e finalmente o sobretudo – primeiro mete a mão pelo forro, depois enfia também o guarda-chuva na manga. Tudo isto dá uma confusão dos diabos.) Mulher Agora é que vamos mesmo chegar atrasados, temos que ir de eléctrico, mas enfiamo-nos logo no da frente para chegar mais depressa. Espera, faltam os binóculos, toma, leva tu. (Tira de uma gaveta um par de binóculos metido num estojo e estende-lho.) Marido (deixa-os cair) Já estão lixados. Mulher Isto passa a mais. (Abre o estojo.) Ah! Ainda bem que cá não estavam, senão tinham-se partido. Bom, vamos lá então. Não te falta nada, as chaves, o porta-moedas, um lenço, o teu rapé? Fechaste a janela do quarto? Pode vir aí uma ventania! (Vai ver.) Marido Anda, anda! Mulher Bom, apaga a luz e fecha a porta! Marido (no escuro) Os bilhetes, és tu que os tens? Mulher Não, és tu. 21

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Marido Não, senhor, és tu, espera lá, acende aí a luz. Mulher Era o cúmulo, se agora não tivéssemos os bilhetes (Vê dentro da mala de mão.) Nem sequer abri a mala. Estavas sentado acolá e meti-te os bilhetes na mão. Marido Talvez os tenhas metido ali. (Vai até à cómoda e mete a mão na gaveta.) Mulher Não, senhor, tenho a certeza absoluta. (Fecha a gaveta com toda a força e entala-lhe os dedos.) Marido Ai! Ai! (Chora, encostado à Mulher.) Mulher Só te digo é que já me sinto toda arrepiada só com a ideia de ir ao teatro! Se ao menos tivéssemos os bilhetes… Sim, porque sem bilhetes não nos vão deixar entrar. (Ele tira os bilhetes do bolso das calças.) Marido Espera! Mulher Cá estão eles; vou já metê-los na mala, senão ainda os perdes novamente; mas já viste? Podíamos ter olhado logo para aqui, está cá marcada a hora a que começa: começo do espectáculo às oito horas – uma vez mais, quem é que tinha razão? Eu! As mulheres têm sempre razão, está aqui escrito, preto no branco, começo do espectáculo às oito horas. Marido Sim, é verdade, começo do espectáculo às oito horas. Sexta-feira, 17 de Julho. Mulher Sexta, como? Mas hoje é quinta! Olham petrificados um para o outro; cai o pano.

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