A maquina do arcanjo

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A MÁQUINA DO ARCANJO


Título: A Máquina do Arcanjo © Frederico Lourenço e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2006 ISBN 972-795-???-?


Frederico Lourenรงo

A Mรกquina do Arcanjo

Cotovia



Wohin sind die Tage Tobiae, da der Strahlendsten einer stand an der einfachen Haustür, zur Reise ein wenig verkleidet und schon nicht mehr furchtbar; (Jüngling dem Jüngling, wie er neugierig hinaussah). Träte der Erzengel jetzt, der gefährliche, hinter den Sternen eines Schrittes nur nieder und herwärts: hochaufschlagend erschlüg uns das eigene Herz. … O que é feito dos dias de Tobias, em que um dos mais radiantes surgiu à porta simples da casa, um tanto disfarçado para a viagem e já não terrífico; (jovem para o jovem, ao olhar curioso lá pra fora). Se o Arcanjo agora, o perigoso, de detrás das estrelas se aproximasse descendo um só passo: com seu violento bater nos abatia o próprio coração. RAINER MARIA RILKE, Segunda Elegia de Duíno (tradução de Paulo Quintela)



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Quando, no final da adolescência, a necessidade de passar da teoria à prática em questões sexuais começou a tornar-se premente, dei-me conta de que ser activo ao mesmo tempo nas esferas da música e do sexo causava um entrechoque com efeitos de anulação recíproca para ambas as coisas. Em termos de vivência prática, sexo e música eram, no meu caso, incompatíveis. Apercebi-me disto quando, aos dezanove anos, tive a primeira experiência de um envolvimento simultaneamente romântico e carnal. Os efeitos, para meu espanto, fizeram-se logo sentir. No dia seguinte à primeira noite de amor, pressenti, quando me sentei ao piano para estudar, que algo de estranho se passara dentro de mim; que eu deixara de ser quem fora — eu, que estava habituado, desde os seis anos, a ver-me (e a ser visto) como pianista. O que se passava dentro de mim era demasiado complexo para que, na altura, eu tivesse compreendido o que 9


poderia estar em causa. Hoje, a situação parece-me clara. O que aconteceu foi isto: após uma adolescência de renúncia sexual, passada ao teclado a estudar de manhã à noite, de repente vi a minha identidade de músico ferida de obsolescência. Afinal, o que eu sempre procurara no piano era, simplesmente, um namorado. * Diferente, porém, era a situação para outros pianistas, meus colegas e amigos. Longe de serem actividades incompatíveis, sexo e música representavam, para eles, uma espécie de pulsação biológica, num jogo de alternância em que era o sexo, justamente, que alimentava as horas de estudo ao piano. Sexo entendido em sentido lato: sexo “conjugal”, engates, consumo do cinema gay que, a partir dos anos 80, fazia furor nalguns círculos privados. Muitas vezes juntávamo-nos em casa de dois ou três dos mais independentes do jugo paterno e ficávamos até altas horas a discutir os méritos respectivos do Pollini e do Brendel entre visionamentos escaldantes de cowboyadas pornográficas, sessões de cinema subitamente rematadas pela iniciativa de alguém se sentar ao piano para demonstrar a sensacional descoberta alcançada, nesse dia, ao fim de horas de 10


estudo: uma nova maneira de estudar a fuga da sonata op. 110 de Beethoven. Dizer que tudo isto, para mim, era desconcertante seria uma “hipóbole” (antónimo de “hipérbole”). Então a Música não era uma arte sagrada, como afirma a personagem do Compositor na ópera Aridane auf Naxos de Richard Strauss? Discutir os trilos em notas dobradas da polaca-fantasia de Chopin entre ejaculações de cowboys não seria blasfémia? Comecei a pôr-me em dúvida. Depois formulou-se no meu íntimo a seguinte pergunta: e se fossem os meus amigos, muito mais soltos e descomplicados do que eu, que tinham razão? Seria “pura” e desinteressada a minha negação do sexo? Sem conseguir formular o raciocínio com contornos precisos, eu intuía vagamente que, com a opção pela castidade, eu pretendia comprar ou pagar qualquer coisa: em troca, eu esperava de Deus o talento musical que me faltava. Talento. Era a palavra mágica no círculo dos meus amigos. Tudo, mas tudo, eu seria capaz de ofertar em prol dessa quimera, a ponto de, até aos dezanove anos (durante todo o período da minha vida em que estudava, sempre que possível, seis a oito horas de piano por dia), eu ter abdicado por completo quer de romances, quer de engates — limitando, inclusive, ao mínimo possível, a própria actividade auto-erótica. “Abdicado”. Bom… eu 11


pensava, de facto, na coisa como Abdicação; mas restaria saber se é possível abdicar-se de algo que nunca se experimentou. Seja como for, em consequência desta renúncia, eu revelava-me, nos mais pequenos gestos, uma pilha de nervos, sempre hirto, susceptível, atreito às mais mesquinhas invejas; sempre a ranger os dentes, mesmo (ou sobretudo) quando tocava piano; propenso, com as pessoas que me eram mais próximas, a inexplicáveis ataques de mau génio. Devia ser tão evidente o estado de descompensação reprimida em que me encontrava que um dos meus amigos pianistas, entre loas ao Retrato de Ricardina de Camilo e brilhantes análises de A Queda de um Anjo, me disse um dia assim, à queima-roupa: “precisas de te vir com outras pessoas”. Engoli em seco, estarrecido por ele ter percebido o que jamais eu lhe dissera. É que não só eu alimentava a ficção, na presença dos meus colegas, de que, como eles, também eu “passava a vida a foder”, como tinha grandes conversas sobre sexo com esse meu amigo camiliano: muito teorizámos nós sobre a anatomia do ânus, sobre o papel desempenhado pela estimulação da próstata no prazer do coito anal, sobre posições mercê das quais se minorava a dor causada pela pressão do pénis na passagem pelo esfíncter. Tudo assuntos de que eu não percebia nada; de que não tinha a mínima experiência; e que, a bem dizer, me aterrorizavam. 12


* Na parede do meu quarto, por cima do piano, estava fixada com fita cola uma reprodução do quadro do pintor quatrocentista florentino Filippino Lippi, representando Tobias acompanhado pelo arcanjo Rafael. Nas fases mais críticas do meu período de castidade, sonhava muitas vezes com as figuras de Tobias e do arcanjo — e com a “máquina” sobre a qual ambos presidiam: o meu piano. Por muito que custe ao crente católico (que ainda sou) admiti-lo, esses sonhos com as personagens bíblicas eram invariavelmente do foro erótico, embora de um erotismo espiritualizado, rarefeito, metafísico. A homossexualidade — tenho de afirmá--lo — nunca se me afigurou profana. Nunca vi outra coisa em namorados (ou em parceiros ocasionais) que não irmãos em Cristo; ser-me-ia estruturalmente impossível não respeitar, em cada gesto sexual, o divino na pessoa humana. Nunca concebi a homossexualidade como outra coisa que não um nome diferente para hombridade. Às vezes, nos meus sonhos, era Rafael que se sentava à “máquina” a tanger. As peças que eu me batia nessa altura por dominar (uma partita de Bach, um improviso de Chopin) saíam dos seus dedos de arcanjo como testamentos de verdade 13


musical; como lições de metafísica e de estética; como prova iniludível, em cada nota, de que Deus existia e que só a Música tinha o poder de provar a Sua existência. Pela minha parte, escutava em silêncio, em atitude de humilde entrega; desvanecido com toda a beleza que, para meu benefício, o arcanjo extraía do teclado. Quando, nestas sessões oníricas, era Tobias a tocar — com o arcanjo, muito alto por cima dele, a virar as páginas da partitura ou simplesmente com as mãos a descansar sobre os ombros dele —, era aí que a narrativa do sonho tendia a assumir uma dimensão que, com a delicadeza possível, apelidarei de genital. Como me sucede ainda hoje nos abundantes sonhos eróticos em que as minhas noites são pródigas, a verosimilhança nas situações sonhadas era o que mais primava pela ausência; e actos que, anatomicamente, nunca poderiam ter conhecido realização prática no estado desperto revelavam-se, no onírico, não só plenos de potencial simbólico, como carregados de informação sugestiva sobre o que de mais perturbador se estava a passar na minha cabeça. Direi apenas que o papel de leito de fornicação desempenhado pelo piano nos actos sexuais sonhados com Tobias e o arcanjo deixa-me a cismar sobre uma série de coisas que carecem, ainda hoje, de clarificação na minha psicologia. 14


Natural como a aurora de róseos dedos era a relação de reciprocidade que se estabelecia entre mim e Tobias no que toca ao intercâmbio dos papéis activo e passivo no acto sexual propriamente dito, situação cuja aprazível ausência de complicações no plano onírico estava longe de corresponder a uma equivalente isenção de problemas quando eu não estava a dormir. Desonesto seria não frisar que, pesassem embora motivos musicais e religiosos na minha opção adolescente pela castidade, a tal voto não era alheio o já aludido terror que só a ideia da penetração anal infundia na minha mente. Se, por um lado, este terror decorria dos riscos consabidos do acto que tanto me obcecava, por outro lado, havia aquela dose inconfessada de frustração, por nunca me ter aventurado em territórios nos quais outros amigos já se moviam com à vontade. Ocorria-me repetidas vezes, quando estava em casa do meu amigo camiliano, que “nos tínhamos” ali à mão: que, à falta de melhor, poderíamos experimentar um com o outro; quanto mais não fosse, só para treinar. * Assunto afim que nos ocupava, quando não estávamos explicitamente a falar “daquilo”, era o facto, a todos os títulos enigmático, de a profissão 15


de pianista não atrair, entre a juventude lisboeta nossa coetânea, rapazes que se interessassem por raparigas. Discutíamos se haveria alguma coisa de intrinsecamente homossexual no piano enquanto instrumento; se a profissão de pianista seria análoga à de bailarino, que, naquela altura (hoje é diferente), estava como que oficialmente vedada a rapazes heterossexuais. Na cantina do Conservatório, olhávamos à nossa volta. Nos instrumentos de arco, por exemplo, não havia alunos como nós. Violinistas, violetistas, violoncelistas, contrabaixistas: a todos passara ao lado aquilo que chamávamos “a divina inclinação”. Nos sopros, a mesma coisa: nas madeiras (e apesar de, como dizia o meu amigo, eles passarem o dia “de gaita na boca”), não havia alunos divinamente inclinados nas classes de oboé, clarinete, fagote. Nos metais — trompete, trompa, trombone, tuba — muito menos. Tudo o que era gay naquele Conservatório concentrara-se nas classes de piano e canto, aliás com menos incidência nesta do que naquela. Razão tinha um dos contínuos do corredor, quando dizia no seu tom de taxista ordinário: “os pianeiros nesta casa são todos paneleiros”. Contra a probabilidade, por mim defendida, de haver algo de intrinsecamente homossexual no piano enquanto instrumento, contrapunha o meu amigo camiliano a seguinte argumentação: 16


— Qual quê! Não me parece. Mas nada, mesmo nada. De todo! Se fosse esse o caso, recairiam todas as suspeitas sobre a sexualidade dos grandes compositores do nosso repertório, não achas? Quando é certo e sabido que nenhum deles era divinamente inclinado: Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Chopin, Brahms, Liszt, etcetera, etcetera. A lista continua. — Olha que quanto a Schubert e Chopin não estou assim tão certo. — Aliás, se pensares bem, do mesmo modo que pianista é sinónimo de maricas, o mesmo se pode dizer de compositor e machão. O primeiro requisito para se compor uma sinfonia é ser-se casado e pai de filhos. Tirando, claro está, o caso óbvio de Tchaikovsky, mas esse será, quanto a mim, a excepção que confirma a regra. E quando ouvimos a música dele só podemos agradecer o seu estatuto de caso único. Imagina as sonatas de Beethoven, os concertos de Brahms, se eles tivessem sido “assim”… — Inimaginável. — O delico-doce, a denguice… — Mas estás a ver no que estamos a cair, não estás? Como se só o facto de se ser fosse já de si uma coisa para denegrir. — Denegrir, claro! Mas só num compositor. Vá lá, não guinches.

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