A morte é uma flor

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Paul Celan fotografado por Lutfi ร zkรถk, Paris 1963


Título original: Die Gedichte aus dem Nachlass © Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1997 © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1998 Concepção gráfica de João Botelho ISBN 972-8423-15-2


Paul Celan

A Morte É Uma Flor Poemas do Espólio Tradução, posfácio e notas de João Barrento

Cotovia


PAUL CELAN

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A MORTE É UMA FLOR

Índice

De todas as feridas (Aus allen Wunden) A Morte (Der Tod) Negro real (Königsschwarz) Retrato de uma sombra (Bildnis eines Schattens) Na margem negra da tua nostalgia (Am schwarzen Rand deiner Sehnsucht) O outro (Der Andere) Também nós queremos estar (Auch wir wollen sein) Sobre verde carregado (Auf tiefem Grün) Grão-de-lobo (Wolfsbohne) Conversas com cascas de árvores (Gespräche mit Baumrinden) Sem brilho, levado (Glanzloser, ganz) Claridade (Helligkeit) Ricercar (Ricercar) 7

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PAUL CELAN

A dor dorme com as palavras (Der Schmerz schläft bei den Worten) Il cor compunto (Il cor compunto) Quando a distante (Wie das Ferne) A arte paga o seu preço (Die Kunst zahlt den Preis) Este é o momento em que... (Dies ist der Augenblick, da...) Ars poetica 62 (Ars poetica 62) Quando do cântaro de oferendas (Als aus dem Spendekrug) Ouro líquido (Flüssiges Gold) Minado (Unterhöhlt) Em círculo, ouvi (Im Kreis, leer) A corda (Das Seil) O centro vazio (Die leere Mitte) Não te apagues totalmente (Erlisch nicht ganz) Não te escrevas (Schreib dich nicht) Com o vento pelas costas (Den Wind im Rücken) A pequena realidade (Die Kleinzweiige) E quem se não tem (Und wer sich nicht hat) 8

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A MORTE É UMA ÍNDICE FLOR

Poema-fechado, poema-aberto (Gedichtzu, Gedichtauf) Agora juntas ao teu peso (Jetzt wächst dein Gewicht) Oiço tanta coisa de vós (Ich höre soviel von euch) No meu joelho desfeito (In meinem zerschossenen Knie) No inaclarável (Im Unaufhellbaren) Nas soleiras dos espíritos (Auf den Geisterschwellen) As bandeiras guardam as aparências (Die Fahnen wahren den Schein) Vive as vidas (Leb die Leben) Mando o sonho através do crivo (Durchs Schüttelsieb...) Buscas abrigo (Du suchst Zuflucht) Na selva do sangue (Im Blutdschungel) No brilho da terra (Bei Erdschein) Estacas com bandeiras (Fahnige Stecklinge) Escavo o rasto (Ich schachte die Spur) O meu peso (Dir in die un-) No poço do tempo (Im Zeithub) Kew Gardens (Kew Gardens ) 9

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PAUL CELAN

Mundo (Welt) Àquele a quem o que ouviu (Dem das Gehörte) Sem vitória, vives comigo (Sieglos lebst du mit mir)

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Notas Posfácio: João Barrento, Memória e Silêncio

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A MORTE É UMA FLOR

Para a Yvette Centeno, que sabe, como Celan, que a Morte é uma flor…

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PAUL CELAN

AUS ALLEN WUNDEN

Wirf mir den Handschuh der Stille vors Herz: nur einmal im Herbst grünt der Stein — das war gestern; das war, als das Salz auf den Straßen so rot war; so rot, daß man glaubte, die Zeit breche an, der man winkt mit den Mitternachtsschleiern; das Tulpenwetter der Zeit, da der Wunsch eines jeglichen Glas füllt, eines jeglichen Wiege und Sarg, eines jeglichen Fußspur — die Zeit, die dein Aug aus dem Eis führt, dich schürzen läßt deinen Schatten und den Glocken ihr Schweigen entlockt, wenn du tanzt. Wirf mir den Handschuh der Stille vors Herz: das war gestern und liegt mit uns beiden im Blut. (1949/1950)

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A MORTE É UMA FLOR

DE TODAS AS FERIDAS

Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio: Só uma vez no Outono a pedra reverdece — foi ontem; foi quando o sal nas ruas era tão vermelho, tão vermelho que se pensaria que era chegada a hora a que se acena com os véus da meia-noite: o tempo-de-tulipas dessa hora em que o desejo enche o copo de toda a gente, o berço e o caixão de toda a gente, as pegadas de toda a gente — a hora que liberta do gelo o teu olhar, te faz arregaçar a tua sombra e arranca aos sinos o seu silêncio quando danças. Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio: foi ontem e jaz no sangue com nós dois.

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PAUL CELAN

DER TOD

Für Yvan Goll

Der Tod ist eine Blume, die blüht ein einzig Mal. Doch so er blüht, blüht nichts als er. Er blüht, sobald er will, er blüht nicht in der Zeit. Er kommt, ein großer Falter, der schwanke Stengel schmückt. Du laß mich sein ein Stengel, so stark, daß er ihn freut. (13-2-1950)

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A MORTE É UMA FLOR

A MORTE

Para Yvan Goll

A morte é uma flor que só abre uma vez. Mas quando abre, nada se abre com ela. Abre sempre que quer, e fora de estação. E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes. Deixa-me ser o caule forte da sua alegria.

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PAUL CELAN

KÖNIGSSCHWARZ

Nur die Nacht vor den Augen laß reden: nur das Blatt, das hört, wo noch Wind ist; nur die Stimme im Vogelbauer. Nur sie, nur sie allein. Dich aber tritt mit dem Fuß und sprich zu dir selber: Sei tapfer, sei würdig des Steins über dir, bleib Freund mit den Bärten der Toten, füg Blume zu Wurm, hiß den Segel auf Särgen, nimm die Käfer der unteren Fluren an Bord, gib Kunde den Trüben. Gib ihnen zwiefache Kunde: von dir und von dir, von beiden Tellern der Waage, vom Dunkel, das Einlaß begehrt, vom Dunkel, das Einlaß gewährt. Gib Kunde den Käfern, gib Kunde den Trüben, füg Blume zu Wurm, hiß den Segel auf Särgen, bette dein Herz dir zu Häupten. (1948?)

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A MORTE É UMA FLOR

NEGRO REAL

Só a noite deves deixar falar diante dos olhos: só a folha que ouve onde ainda há vento; só a voz na gaiola do pássaro. Só elas, elas e nada mais. Mas a ti mesmo dá um pontapé e diz: sê corajoso, sê digno da pedra sobre ti, não quebres a amizade com a barba dos mortos, junta a flor ao verme, iça a tua vela sobre caixões, traz para bordo os escaravelhos das campinas mais baixas, dá a notícia aos obscuros. Dá-lhes a dupla notícia: de ti e de ti, de ambos os pratos da balança, da escuridão que quer entrar, da escuridão que deixa entrar. Dá a notícia aos escaravelhos, dá a notícia aos obscuros, junta a flor ao verme, iça a tua vela sobre caixões, deita o teu coração à cabeceira.

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PAUL CELAN

BILDNIS EINES SCHATTENS

Deine Augen, Lichtspur meiner Schritte; deine Stirn, gefurcht vom Glanz der Degen; deine Brauen, Wegrand des Verderbens; deine Wimpern, Boten langer Briefe; deine Locken, Raben, Raben, Raben; deine Wangen, Wappenfeld der Frühe; deine Lippen, späte Gäste; deine Schultern, Standbild des Vergessens; deine Brüste, Freunde meiner Schlangen; deine Arme, Erlen vor dem Schloßtor; deine Hände, Tafeln toter Schwüre; deine Lenden, Brot und Hoffnung; dein Geschlecht, Gesetz des Waldbrands; deine Schenkel, Fittiche im Abgrund; deine Kniee, Masken deiner Hoffart; deine Füße, Walstatt der Gedanken; deine Sohlen, Flammengrüfte; deine Fußspur, Auge unsres Abschieds. (1948)

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A MORTE É UMA FLOR

RETRATO DE UMA SOMBRA

Os teus olhos, rasto de luz dos meus passos; a tua testa, lavrada pelo brilho dos punhais; as tuas sobrancelhas, orla do caminho da tragédia; as tuas pestanas, mensageiros de longas cartas; os teus cabelos, corvos, corvos, corvos; as tuas faces, campo de armas da madrugada; os teus lábios, hóspedes tardios; os teus ombros, estátua do esquecimento; os teus seios, amigos das minhas serpentes; os teus braços, álamos à porta do castelo; as tuas mãos, tábuas de juras mortas; as tuas ancas, pão e esperança; o teu sexo, lei do fogo na floresta; as tuas coxas, asas no abismo; os teus joelhos, máscaras da tua altivez; os teus pés, campo de batalha dos pensamentos; as tuas solas, criptas em chamas; as tuas pegadas, olho da nossa despedida.

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PAUL CELAN

AM SCHWARZEN RAND DEINER SEHNSUCHT schläft die Fremde mit julifarbenem Haar. Nicht sie ist dein Sommer: ihr ging der schattige Stern deines Auges nicht früh genug auf. Sie lag, eine Nebelschalmei, im Sand von Marokko, sie lag zwischen Bärten und Messern, als du in den Stein über dir ihr loses, ihr Herz schnittst. Sie ringelt ihr Haar um den Dorn eines Mondstrahls, die schottische Rose, Leslie, das Nest deiner Himmel, Leslie, der Hauch und der Schimmer, Leslie, der Tod, dem du lächelnd das Fußgelenk küßt. (1948?)

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A MORTE É UMA FLOR

NA MARGEM NEGRA DA TUA NOSTALGIA dorme a forasteira do cabelo cor de Julho. Não é ela o teu verão: deu tarde de mais pela frondosa estrela do teu olhar. Estava deitada, charamela de névoa, nas areias de Marrocos, deitada entre barbas e facas, quando esculpiste o leviano, o seu coração, na pedra sobre a tua cabeça. Enrola o cabelo à volta do espinho de um raio de lua, a rosa escocesa, Leslie, o ninho dos teus céus, Leslie, o sopro e o brilho, Leslie, a morte, a quem sorrindo beijas o tornozelo.

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