À procura da escala

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À PROCURA DA ESCALA


Título: À Procura da Escala © António Pinto Ribeiro e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2009 ISBN 978-972-795-289-2


António Pinto Ribeiro

À PROCURA DA ESCALA cinco exercícios disciplinados sobre cultura contemporânea

Cotovia



Índice

Exercício 1. Há, de facto, modos diferentes de governar, inclusivamente na cultura

p. 9

Exercício 2. A interculturalidade: propósitos e ambiguidades

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Exercício 3. Europa-África. E vice-versa?

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Em Ouagadougou, Março de 2009

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Exercício 4. À procura da escala

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Exercício 5. Fragmentos de cidades A propósito de cidades perfeitas Um artista de rua Piscinas Hortas Desempregados Chá Quarto de hotel numa cidade árabe

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EXERCÍCIO 1 HÁ, DE FACTO, MODOS DIFERENTES DE GOVERNAR, INCLUSIVAMENTE NA CULTURA

Durante muito tempo, as políticas culturais da responsabilidade dos governos nacionais classificavam-se politicamente a partir de tradições presumivelmente óbvias: uma política cultural de direita privilegiava o património — que era, em si, um conceito mais político do que histórico, antropológico ou estético —, a música erudita do reportório ocidental até à revolução modernista, e a museologia; das artes performativas tinha a ideia de que haviam de ser entretenimento comercialmente rentável, portanto “deixado” para o mercado; quanto à arte contemporânea (incluindo a literatura), não lhe merecia particular entusiasmo nem qualquer tipo de apoio. Já os governos de esquerda, supunha-se que estimulassem e apoiassem a criação das artes contemporâneas, o cinema de autor, a cultura popular desde que canonizada pela ideologia; o património, dizia-se, estava secundarizado. Em ambos os casos, longamente se excluíram as práticas culturais e artísticas marcadamente urbanas ou de génese suburbana como são a música rock, a pop, o fado, a B.D., o design, ou o grafitti. Convém perguntarmo-nos: de onde vem esta tradição que tanto tempo dividiu, de um modo mecanicista, na Europa, os apoios e as orientações estratégicas dos governos, conforme eram de esquerda ou de direita? 9


EXERCÍCIO 1

As explicações são múltiplas: uma delas, de natureza sociológica, diz que a esquerda reivindicativa da transformação social pela revolução estaria mais próxima da transformação do status e dos cânones artísticos e culturais, do risco, da aventura, privilegiando o futuro como tantas canções o cantavam e suspeitando sempre do mercado. A direita, por seu lado, inclinar-se-ia mais para a manutenção dos cânones sem os discutir ou questionar, para a continuidade dos costumes, a ausência de investimentos com risco, a manutenção do classicismo. Quanto às artes performativas que reclamavam o estatuto de artes efémeras, uma política totalmente liberal deveria corresponder a essa reivindicação de liberdade dos autores. Claro que a excepção era o reportório operático, visto proporcionar — pelo menos nas casas de ópera tradicionais — a encenação do poder, cara, sempre muito cara, e, portanto, a ser paga pelo Estado. Porém, esta tradição bipolar de políticas engloba também algo mais essencialista e que era já visível em Diderot e em Rousseau: a ideia da experiência do cultural como experiência do risco — que, segundo Diderot, valia a pena, e, segundo Rousseau, era de evitar. (Será sempre bom reler Sobre a arte e os artistas de Diderot (1751-1766)1 e Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1753) de Jean-Jacques Rousseau.) Nestes dois autores está já também presente uma noção que irá legitimar alguns 1 Em particular o ensaio Les conditions de l’art, in Diderot, Denis. Ed. Hermann, Présentation de Jean Seznec, Paris 1967. pp. 71.

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acontecimentos culturais da esquerda quando no poder: a ideia de Festa e de Partilha, em particular se acontecer na natureza. Nessa apologia do festivo reconhecer-se-á, com certeza, a origem daquilo que posteriormente ganharia forma nas festas dos partidos comunistas europeus do pós-guerra, de que são exemplo a festa do jornal do Partido Comunista Francês L’humanité ou, até, as primeiras festas do Avante entre nós, ou também a primeira geração de festivais de teatro de Avignon e de Edimburgo. Quanto à direita, se frequentava festivais optava, em princípio, pelo Bayreuth Festspiel, ou pelo Munich Opera Festival e por Wagner, com todos os equívocos associados.2 Retornemos por momentos ao princípio do século XX, que foi quando tudo isto tomou forma, e vejamos alguns outros paralelismos que ajudam a compreender o enraizamento desta bipolarização: Trotzky associa-se ao surrealismo (numa versão radical da esquerda e da cultura), Maiakovsky, tal como Eisenstein, associam-se à revolução bolchevique; vários poetas e pintores associam-se às revoluções sul-americanas, com particular destaque para Diego Rivera, que inventou um género artístico popular (e, “portanto”, de esquerda) — o muralismo; inúmeras personalidades das artes e da esquerda, com Jean-Paul Sartre à cabeça, sentem 2

Ainda a propósito das festas culturais à esquerda ou à direita, recordemos que a Quinzena dos Realizadores em Cannes surgiu em 1968 como revolução dos cineastas (tidos de imediato como de esquerda) face à apropriação e à espectacularidade — fixemos este precioso conceito — daquele festival. 11


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o fascínio e chegam a apoiar a revolução soviética, o Maoísmo, posteriormente, a própria Revolução dos Cravos portuguesa — até às primeiras decepções, de que a invasão de Praga terá sido o início; muito depois, a Queda do Muro de Berlim restauraria alguma confiança nas novas esquerdas da globalização. Pelo meio há André Malraux3, o ministro que o General de Gaulle, então Presidente da França, encarregou de criar, a 3 de Fevereiro de 1959, um ministério dos Affaires Culturelles, um “ministério correspondente ao estatuto do escritor”. Se Rousseau defendera a necessidade de fazer chegar a arte “à mais humilde cabana do menor dos cidadãos”, o primeiro Artigo do Decreto de 24 de Julho de 1959 estipulava que “o Ministério encarregado dos negócios culturais tinha por missão tornar acessíveis as obras capitais da humanidade, e desde já as de França, ao maior número possível de franceses, de assegurar a mais vasta audiência ao nosso património cultural e favorecer a criação de obras de arte e do espírito que enriquecem”. Substitua-se França por Europa, substitua-se franceses por europeus e nenhum governo de esquerda ou partido de esquerda se negaria a subscrever aquele Artigo, cujo conteúdo, aliás, constituiu, durante várias décadas, a premissa fundamental das chamadas políticas culturais de esquerda dos governos europeus — reforçada, posteriormente, à esquerda — com a criação de um estatuto de excepção para o comércio mundial das obras

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André Malraux foi Ministro da Cultura de França de 1959 a 1969, sob a designação de Ministre des Affaires Culturelles. 12


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de arte e passando a incluir, em determinada altura, o apoio à circulação de obras de arte e artistas. Esta política cultural de esquerda — que os governos franceses, até mesmo os de direita, reivindicam terem iniciado — desenvolveu três orientações programáticas ainda hoje presentes nas discussões públicas sobre governos e cultura, apesar do anacronismo de algumas (de que falarei adiante), a saber: 1) a criação de obras (cinema, teatro, dança, música) subsidiadas pelo Estado; 2) a democratização no acesso aos bens culturais, e 3) a descentralização. Foi graças a elas que tantos países europeus (e, depois, muitos outros), influenciados pela grandeza francesa, puderam ver crescer os seus museus, nascer públicos e artistas, e produções no teatro, na dança, na música, e depois na BD, no jazz, na literatura; puderam testemunhar o acesso a essas obras por parte de cidadãos de fora das capitais; e presenciaram o facto de muitos europeus poderem agora assistir, na Europa, às melhores obras americanas — tantas vezes produzidas por produtores, programadores e organizações culturais europeias, que muito sustentaram as obras dos artistas americanos que os EUA não apoiavam4. 4 É sempre com muita perplexidade que ouvimos os liberais falar da autonomia e da auto-sustentabilidade dos artistas americanos, esquecendo três coisas: que, ao contrário do que afirmam, há apoios de organismos governamentais à criação e difusão das artes contemporâneas (o National Endownment for the Arts, por exemplo); que, graças à natureza da própria sociedade americana — que assume uma responsabilidade de cidadania civil em muitos Estados — existe mecenato a várias escalas e isso sustenta parte

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Dada a sua inquestionável importância, vale a pena determo-nos a analisar as referidas três orientações “clássicas” das políticas culturais; até porque, assim, entenderemos melhor as suas consequências – anacrónicas, imobilistas e demagógicas — na actualidade. Sobre a primeira das medidas — a criação subsidiada pelo Estado — o argumento é claro: a criação artística é comparável à criação científica, sem a rentabilidade possível desta última em caso de sucesso, e por isso deve ser apoiada. Já a democratização do acesso aos bens culturais cedo se transformou em massificação (como, aliás, também sucedeu com a educação), e isto porque partia de um pressuposto errado: não basta que todos os cidadãos tenham portas abertas e franquias gratuitas para usufruírem dos bens culturais com prazer e com justiça e, consequentemente, para se tornarem melhores, mais cultos, mais cidadãos. A recepção de uma obra de arte, qualquer que ela seja e qualquer que seja a sua origem (popular ou erudita), requer chaves de leitura, mecanismos de habituação e simpatias estéticas que são independentes das expectativas que cada um terá face ao que vê ou lê ou ouve e face aos possíveis

dessa criação artística; e, por fim, que as produções e co-produções europeias, as tournées de jazz, de música, de dança, de teatro, de artes plásticas organizadas pelos europeus “pagam” a sustentabilidade das artes americanas. Perguntemos aos defensores da auto-sustentabilidade das artes americanas: o teatro decadente da Broadway teria ainda lugar se não fosse pago pelos turistas? Existiria cinema americano se não fosse tão maciçamente pago pelos espectadores europeus e do resto do mundo, mesmo os de direita e liberais? 14


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níveis de leitura; na ausência disto, a massificação (e o seu aproveitamento político comercial) equivale à banalização da recepção da obra e do seu impacto naqueles que passaram a consumir indiferenciadamente e, em regra, os produtos “de mais baixa qualidade”. A terceira grande “bandeira” (para empregar a terminologia usual da esquerda) falhada foi a descentralização, na sua perspectiva mais ortodoxa. Qual era o seu princípio subjacente? Fazer passar pela periferia do país (mais ou menos interior) a cultura e as artes que saíam da capital com o objectivo de fazer justiça no acesso de todos os cidadãos a esses bens culturais. O princípio — que, em abstracto, era de louvar — não considerava, porém, as assimetrias dos equipamentos (que, ou não viabilizavam essas apresentações, ou as viabilizavam em más condições), a pertinência (ou falta dela) da circulação de obras de natureza urbana, industrial ou nascidas num contexto internacional radicalmente diferente e cuja apresentação se afigurava exótica, sem público ou despropositada. Neste ponto, há que dizer que se assistiu sempre a uma desvalorização do contexto, pois a ideologia sobrepunha-se inevitavelmente ao real; e, finalmente, jamais se considerava que uma das vias possíveis para a descentralização seria a de sentido contrário, a saber: a passagem das obras do interior dos países para as capitais (o que, nalguns casos, e novamente considerando o contexto, faria todo o sentido).5 5

Há que dizer que a década de 80 foi palco de alterações importantes neste aspecto, nomeadamente quando se deixou de 15


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Ora, a Queda do Muro de Berlim viria destruir o que ainda restava da crença outrora inabalável na possibilidade de uma sociedade comunista e infligiu um duríssimo golpe na matriz das ideologias de esquerda. A palavra de ordem passou a ser: “É urgente repensar tudo, conservando os valores fundamentais da revolução: Igualdade, Fraternidade, Justiça”. Já antes, Auschwitz trouxera consigo o fim da crença na cultura como caminho para o bem e progresso da humanidade; agora, a Queda relativizava a importância de haver uma ideologia como horizonte e a política como capaz de conduzir o presente para um futuro melhor (ousou dizer-se Utopia).6 O que então aconteceu, e continua a acontecer, foi uma revisitação, tanto do conceito como dos modos operatórios da esquerda quando governo ou poder nas cidades. Tem sido também nítido o esforço para pensar a produção cultural no contexto da globalização (e como nela intervir) — ainda que na actualidade as políticas culturais dos governos da União Europeia apareçam como muito idênticas, diferentes, “apenas”, na percentagem do orçamento atribuída à cultura. Mas neste “apenas” está a substantiva diferença de investimento e empenhamento de quem governa a cultura. É certo que, para alguns governos, o essencial da

pensar a descentralização como circulação de bens de cultura e artísticos e se equacionou a criação de equipamentos descentrados da capital. 6 Sobre esta paisagem de banalização já muitos se tinham visionariamente pronunciado: A sociedade do espectáculo de Guy Debord, ou Jean Baudrillard, ou John Frow, ou Anthony King. 16


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política cultural é o seu aproveitamento em termos de visibilidade, ou seja, o peso do espectáculo das suas acções, na tradição daquilo a que dantes se chamava “as obras do regime”. Daí o papel de relevo que a arquitectura e os arquitectos têm hoje enquanto capital de intervenção governamental, a esteticização da política (sobre a qual Walter Benjamin e a Escola de Frankfurt tanto escreveram) e a importância do audiovisual, ou o entendimento da quantidade de consumidores culturais enquanto potenciais votantes do ponto de vista eleitoral, e clientes do ponto de vista financeiro. A crise recente em França, conhecida como a greve geral dos intermitentes do espectáculo, veio revelar um conjunto de perversões produzido por algumas formas de apoio à criação contemporânea. Não está em causa a maioria das razões que justificaram parte das atitudes dos intermitentes. O que deve ser avaliado é a forma como uma medida tomada pelo governo — originariamente sábia e bondosa como era, em termos gerais, compensar financeiramente e atribuir um estatuto especial na segurança social aos trabalhadores do espectáculo que, pela natureza intermitente do seu trabalho, não têm emprego fixo nem permanente — se transformou numa habilidosa forma de muitos empresários do audiovisual em particular escaparem a contratos de emprego mais permanentes, e como algumas actividades paralelas às dos trabalhadores dos espectáculos oportunisticamente beneficiaram desse mesmo estatuto. Esta soma de pessoas ao abrigo do estatuto de intermitentes gerou fortes tensões sociais, pôs em causa o futuro dos fundos da 17


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segurança social e aligeirou das suas responsabilidades contratuais muitos empregadores. A par desta perversão do apoio à criação contemporânea houve também, muito em particular em França, um abuso do estatuto permanente de jovem criador, que em nada beneficiou as artes nem tão pouco a estética ou a criação contemporânea. Que os critérios estéticos são complexos já o sabemos, tal como sabemos que o Estado não tem como — e desejavelmente não pode — avaliar, segundo esses critérios, o apoio à criação artística. Mas se não forem esses, que critérios justificam o apoio à criação artística contemporânea? Estamos numa zona difusa; na verdade, aqueles são sempre os critérios que acabam por ser considerados determinantes, mesmo quando julgados, não pelo Estado ou pelos governantes, mas por um órgão intermediário de confiança política do Estado e dos governantes. Alegar-se-á sempre que, não fossem os apoios atrás referidos, não haveria criação. Nada mais justo; mas o que tentamos fazer aqui é uma análise das contradições de uma política tradicional de esquerda — com o intuito de encontrar soluções futuras. Até ao momento, este enunciado construiu-se com base num modo tradicional de distinguir (no que pode ser distinguido) as políticas culturais de esquerda e de direita — ao qual deveríamos acrescentar ainda dois pontos: 1) que, de algum modo, há uma ideia consensual de que a esquerda governa melhor os assuntos da cultura porque os seus agentes estão mais no “campo” 18


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do que os governantes e políticos da direita, 2) que parte substancial das políticas culturais depende do maior ou menor fôlego orçamental do governante responsável, questão esta de ordem administrativa mas que é determinante, dada a sistemática precariedade dos orçamentos para a cultura na generalidade dos países. À referida narrativa tradicional deverá acrescentar-se hoje, nesta era da globalização e pós-Queda do Muro, uma outra que, até há pouco, poucas implicações tinha tido nas políticas culturais da esquerda tal como as entendem os governantes, mas que é fundamental na percepção do que poderá ser um novo horizonte de políticas culturais. Nesta outra narrativa estabelece-se que, entre as múltiplas razões para se ser de esquerda está a justiça social, ou seja, o reconhecimento de que todos os seres humanos têm direito a uma cidadania universal, a um nome e a uma história; ora, no caso da cultura, estes valores (intrínsecos à esquerda) apresentam contornos que raras vezes se consideram como tal. Assim: pobres não são só os que não têm paz, pão, habitação, saúde ou educação; pobres são todos os que não se podem pronunciar. Momentos houve em que a estes pobres foi dado, por intermédio de outros, um lugar de visibilidade: nos realismos do final do século XIX, nos vários neo-realismos do século XX, nalguns modernismos sul-americanos, num ou outro reportório do canto ou do cinema documental de intervenção. Mas poucas vezes essa visibilidade se traduziu em política cultural (ou, tão somente, em política). Na excelente expressão de Wal19


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ter Benjamin, estes pobres são os “vencidos”, os que não têm cabido na História porque a História que se tem escrito tem sido a dos vencedores. Lembremos, à laia de exemplo, um dos primeiros intelectuais (na verdade arquitecto e artista fundador da Socialist League, em 1880) a estabelecer uma ponte entre o humanismo romântico e a classe operária: William Morris (1834-1896), que, numa conferência em Novembro de 1894, ao denunciar a escravatura da divisão social do trabalho, afirmava que “enquanto a casa de um trabalhador for feia, será vão desejar belos quadros”. No ambiente revolucionário da época, a reivindicação do direito à cultura e à beleza por parte dos trabalhadores tem uma dimensão excepcional. Morris foi, porém, apenas um dos pioneiros; também Richard Hoggarth (nascido em 1918), Raymond Williams (1921-1988), Edward P. Thompson (1924-1993) e Stuart Hall (nascido em 1932, de origem jamaicana) entenderam dar visibilidade às narrativas dos vencidos. Designado como Nova Esquerda (New Left), o grupo reunido em volta de Hall, com sede na Universidade de Birmingham, “passou a escovar as mangas do casaco no sentido contrário ao que era costume” (para usarmos outra feliz máxima de Walter Benjamin a propósito da necessidade de reescrever a História), dando origem ao que se viria a designar Estudos Culturais. Estes chegaram rapidamente a muitas universidades americanas e, num contexto de reivindicação dos direitos dos negros e das mulheres, acabariam por incentivar os estudos da História da Literatura e da Cultura Negra, os Estudos Feministas 20


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e novas abordagens teóricas no domínio das teorias das culturas e da política. Parece evidente que a nova esquerda e as novas políticas culturais de esquerda não podem ignorar estes contributos tão relevantes; terão, naturalmente, de considerar as novas narrativas provocadas pelas revisões das histórias da arte, da cultura, da literatura, do cinema, das conquistas e dos territórios — que, por sua vez, são consequência do processo de descolonização. Ou seja: também os estudos sobre o Colonialismo e o Pós-colonialismo são insubstituíveis para podermos entender, primeiro, este mundo nebuloso actual e, depois, para actualizarmos o que devem ser as práticas culturais de uma política de esquerda.7 Finalmente, há que rever o próprio conceito de cultura, que é fulcral na constituição de um discurso simbólico. Utilizada por todas as políticas como uma área que abrange objectos, obras e temas que são propriedade de um determinado grupo do qual se tem apenas uma visão estática (uma espécie de depósito a que se vai buscar obras de culto ou chavões de identidades fabri-

7 Não é por acaso que as grandes questões dos Estudos Culturais são novíssimas: para começar, a ênfase sobre o ponto de vista — dos vencidos, repetimos. Depois, o impacto do automóvel e da televisão, ou dos media em geral, na sociabilidade dos trabalhadores; os usos da alfabetização (tema que deu, aliás, título a uma obra de Richard Hoggarth, The Uses of Literacy); a relação do biográfico com o político; a literatura operária ou popular e, de particular importância hoje em dia, a cultura das diásporas.

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cadas), a cultura deve ser pensada como um sistema de inter-relações dos membros de um grupo — entre si, mas também entre as suas práticas e memórias — e não como um armazém ou um banco de dados; um horizonte em permanente revisão e reconstituição, onde também cabem aspectos variados das vidas das comunidades ou dos grupos. Por isso mesmo, todo um conjunto de actividades determinantes para a vida dos cidadãos deve ser considerado prioritário por uma política cultural de esquerda, a saber: a melhoria dos sistemas de transportes, de modo a facilitar o acesso das pessoas às actividades culturais; a alteração dos horários de funcionamento dos equipamentos culturais do Estado, de modo a gerar tempos potencialmente dedicados à cultura; o incentivo à diversidade criativa; o estímulo e a criação de mecanismos de aprendizagem de línguas (não necessariamente as de uso maioritário); a vivificação do património; a revisitação das histórias das artes; a criação de instrumentos de produção múltiplos (ao invés de apoios personalizados). Insistimos na importância da dimensão simbólica do discurso dos governantes de esquerda nas práticas culturais porque esse discurso dignifica e enobrece este tipo de actividades; e mesmo que não seja performativo, ou seja, que não ordene, que não aja, o discurso deve ser incentivador. Uma política cultural de esquerda deve ter como imperativo caminhar no sentido de alterar substancialmente o estatuto do consumidor, transformá-lo num receptor crítico e mais esclarecido, seja quando avalia a prestação de serviços ou aquisição de bens comuns, seja quando consome cul22


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tura. E para este tipo de formação é essencial facultar aos cidadãos o acesso à literacia tecnológica — do mesmo modo que os socialistas do fim do século XIX pugnaram pela alfabetização universal. Voltemos ao início desta reflexão: como era demagógica e irrealista a noção de que uma política cultural deveria sustentar a ideia de que todos temos, ou devemos ter, imaginários semelhantes! Ora, o importante é desenvolver mecanismos que potenciem imaginários diferenciados. Afinal, é isso o que se faz quando se tenta encontrar estratégias de visibilidade e de estatuto profissional legítimo para produções de grupos minoritários, sejam eles de género ou imigrantes.8 A transnacionalidade é hoje uma questão fulcral nas políticas culturais. Não se veja nesta orientação programática uma caricatura do internacionalismo proletário ou uma leviana tentativa de os governos de certos países se imiscuírem noutros países. Mas, dada a condição de viajante que tipifica a maioria dos intervenientes protagonistas da criação cultural, dada a circulação permanente de bens culturais, dada, ainda, a complexa teia de legislação diferenciada nos países 8 Em África, como em vários países da América do Sul, os centros culturais dos governos europeus são muitas vezes as poucas casas de cultura, os poucos equipamentos culturais disponíveis. Criados, em grande parte, num contexto político colonial ou nostalgicamente colonialista, a maioria tem por missão divulgar a cultura e as obras de identidade dos países a que pertencem. Numa atitude de transnacionalidade, seria desejável que esses centros culturais deixassem de ser espaços de divulgação dos países a que pertencem e se transformassem em plataformas de encontro, produção, criação e difusão das obras, dos autores, dos intelectuais dos países onde estão instalados.

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europeus bem como em países terceiros, a concordância numa plataforma mínima para o entendimento entre governos face à mobilidade é um imperativo — mobilidade esta que não deve ser exclusiva da Europa, deve, sim, ser extensível a todos os países e a todos aqueles que desejam circular mostrando as suas obras e criações. A este propósito, há que referir um aspecto aparentemente técnico que tem impossibilitado o acesso dos cidadãos ao usufruto de obras que são património da humanidade e que, dado o seu carácter móbil, poderiam circular. Refiro-me em particular a obras de arte — seja arte erudita, artesanato ou arqueologia — que muitos governos mantêm como reféns nos seus museus, impossibilitando a sua circulação. Exceptuando aquelas cuja enorme fragilidade põe em risco a boa conservação fora do seu espaço habitual, é desejável que todos as possam ver, devendo para isso haver cooperação internacional, obedecendo não apenas ao princípio da cidadania universal mas também a um outro princípio: o de que uma comunidade e uma democracia não existem apenas no espaço público, manifestam-se também nos meios e nos processos de troca e de circulação. Tão importantes como o espaço público, e tão influentes, são os circuitos públicos — ainda que sejam fluidos, isto é, não facilmente identificáveis com um território ou um país. 9 9

A este propósito é oportuno citar a entrevista a Néstor García Canclini “Dilemas de la Globalización: Hibridación Cultural, Comunicación y Política” por Juan de la Haba e Enrique Santamaría, in: Voces y Culturas. Revista de Comunicación, n.º 17, Barcelona, 2001, pp. 143-165. 24


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A separação conservadora entre as políticas de esquerda e de direita atribuía à direita um particular empenho na conservação, na história e no património, e à esquerda alguma desconsideração relativamente a essa dimensão cultural. Tal divisão é, de facto, falsa. Na verdade, o que nitidamente parece estar em causa é a que tipo de história, a que tipo de conservação, nos referimos. Uma história que se narrava a partir da existência de reis e rainhas, etnocêntrica, dogmática e de vocação universal foi, de facto, e durante muito tempo, administrada e protegida pela direita; o mesmo se passou com a forma como se entendia os monumentos, os autores ou feitos clássicos, os cânones — que serviam a direita como inibidores de actualização, como dogmas, fetiches de uma identidade produzida pelo poder. Na verdade, os monumentos ou as obras não contêm em si essa impossibilidade de participarem no presente dinâmico e processual. Uma política cultural de esquerda actual e cosmopolita deve proteger e tratar com particular cuidado e atenção os arquivos: seja os das culturas orais, seja os das culturas escritas; os documentos em papel mas também os documentos em película, ou em disco, ou em pedra. E a abertura à investigação, a par da sua explicitada e contextualizada difusão, fará parte de qualquer prática política de esquerda. Se entendemos que é nas relações que a cultura encontra a sua forma de conhecimento — mais ou menos lúdica, mais ou menos festiva —, então cabe à esquerda incentivar um relacionamento mais estreito entre as artes e as ciências e as novas formas de tecno25


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logia de modo a que se estabeleçam cumplicidades entre todas essas comunidades com vista a transferir conhecimentos entre áreas distintas.

Bibliografia de referência Armand Mattelart e Érik Neveu, Introduction aux Cultural Studies, Ed. Repères, Paris, 2003 Jean-Michel Djian, Politique culturelle: la fin d’un mythe, Ed. Folio, Paris, 2005 Marie Lind e Raimund Minichbauer (editores), European Cultural Policies 2015, Londres, 2005 Néstor García Canclini (entrevista a) “Dilemas de la Globalización: Hibridación Cultural, Comunicación y Política” por Juan de la Haba e Enrique Santamaría, in: Voces y Culturas. Revista de Comunicación, n.º 17, Barcelona, 2001 26


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