A PROCURA DO AMOR
Nancy Mitford fotografada nos degraus de sua casa na Rue Monsieur, Paris VII, 1952. Š Devonshire Collection, Chatsworth. Reproduced by permission of Chatsworth Settlement Trustees
Título original: The pursuit of love Copyright © 1945 by Nancy Mitford The Estate of the late Nancy Mitford Copyright © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2007 Ilustração da capa: César Évora Todos os direitos reservados ISBN 978-972-795-207-6 Os Livros da Raposa são uma chancela dos Livros Cotovia www.livroscotovia.pt
Nancy Mitford
A procura do amor
Tradução de Carla Hilário Quevedo
OS LIVROS DA RAPOSA DONA RAPOSA
1 Existe uma fotografia da tia Sadie e dos seus seis filhos sentados à volta da mesa do chá, em Alconleigh. A mesa está colocada, como antes, agora e sempre, no hall, à frente de um enorme lume feito com toros. Por cima da lareira, despretensiosamente à vista na fotografia, está pendurada uma pá de trincheira, com a qual, em 1915, o tio Matthew matou à pancada oito alemães, um por um, à medida que se arrastavam para fora dos abrigos subterrâneos. Ainda está coberta de sangue e cabelos, objecto de grande fascínio para nós quando crianças. Na fotografia, a cara da tia Sadie, sempre bonita, parece inesperadamente redonda, o cabelo inesperadamente tufado e a roupa inesperadamente desleixada, mas não há dúvida de que é ela quem está ali sentada com o Robin em mares de rendas, refastelado sobre o joelho. Ela parece não saber bem o que fazer com a cabeça do miúdo e a presença da Ama, à espera de o levar dali, embora não esteja visível, é sentida. As outras crianças, entre a Louisa, com onze anos, e o Matt, com dois, estão sentadas à mesa com vestidos de festa ou bibes franzidos, e pegam em chávenas ou canecas, dependendo das idades, todos a olhar fixamente para a câmara com uns grandes olhos, muito abertos por causa do flash, e ar de sonsos. Ali estão, parados como moscas, na cor âmbar do momento — a câmara faz clique e a vida continua; os minutos, os dias, os anos, as décadas afastam-nos cada vez mais daquela felicidade e da promessa de juventude, das esperanças que a tia Sadie terá neles depositado e dos sonhos que eles sonharam para si próprios. Muitas vezes penso que não há tristeza mais dilacerante do que a dos velhos retratos de grupo de família. Em criança, eu passava as férias de Natal em Alconleigh; era uma rubrica regular na minha vida e, embora algumas dessas férias tenham decorrido sem nada muito específico para recordar, outras destacaram-se por causa de acontecimentos dramáticos e ganharam um carácter próprio. Foi a altura, por exemplo, em que houve um incêndio na ala 7
dos criados, a altura em que o meu pónei caiu sobre mim no riacho e quase me afogou (não chegou a acontecer porque depressa o arrastaram dali para fora, embora, segundo consta, haja quem tenha observado umas bolhinhas de ar). Houve drama quando a Linda, aos dez anos, tentou suicidar-se para se juntar a um velho e malcheiroso Border Terrier, que o tio Matthew tinha mandado abater. A Linda apanhou e comeu um cesto cheio de bagas de teixo, foi encontrada pela Ama e obrigada a ingerir mostarda e água para vomitar. Ouviu depois “uma palavrinha” da tia Sadie, levou um puxão de orelhas do tio Matthew, passou vários dias de cama, e ofereceram-lhe um cachorro Labrador, que depressa tomou o lugar do velho Border nos seus afectos. Houve um drama ainda maior quando a Linda, aos doze anos, descreveu às filhas de uns vizinhos que tinham ido tomar chá lá a casa, aquilo que ela julgava serem as “coisas” da vida. A apresentação que a Linda fez dessas “coisas” foi tão macabra que as crianças deixaram Alconleigh num pranto medonho, com os nervos debilitados para sempre e muito reduzidas as hipóteses futuras de uma vida sexual saudável e feliz. O resultado foi uma série de castigos terríveis, desde uma sova, dada pelo tio Matthew, até ficar a almoçar no quarto durante uma semana. Houve as férias inesquecíveis em que o tio Matthew e a tia Sadie foram ao Canadá. As crianças Radlett liam os jornais avidamente, todos os dias, na esperança de verem a notícia de que o navio onde os pais viajavam se afundara com todos os passageiros a bordo; ansiavam por ser órfãos — sobretudo a Linda, que se via como a Katy do livro What Katy Did, com as rédeas da casa nas suas mãos pequenas mas capazes. O navio não embateu contra nenhum icebergue e sobreviveu às tempestades atlânticas; entretanto, tivemos umas férias maravilhosas, livres de regras. Mas o Natal de que me lembro mais distintamente foi o dos meus catorze anos, quando a tia Emily ficou noiva. A tia Emily era irmã da tia Sadie e educou-me desde a infância, uma vez que a minha própria mãe, a irmã mais nova delas, se sentia demasiado bela e demasiado alegre aos dezanove anos de idade para suportar o fardo de uma criança. Abandonou o meu pai quando eu tinha um mês e depois fugiu tantas vezes e com tantas pessoas diferentes que se tornou conhecida na família e entre os amigos como a Fugitiva; entretanto, a segunda mulher do meu pai, bem como agora a terceira, a quarta e a quinta, naturalmente não manifestavam grande desejo de tomar conta de mim. De vez em quando, um destes meus progenitores impetuosos aparecia como um foguete, projectando um brilho artificial no meu horizonte. Tinham ambos muito 8
glamour e eu ansiava por ser apanhada nos seus trilhos luminosos e ser levada dali, embora do fundo do coração eu soubesse como era afortunada por ter a minha tia Emily. A pouco e pouco, à medida que eu crescia, eles foram perdendo todo o encanto que tinham para mim; os foguetes frios e cinzentos desfaziam-se no sítio onde caíam: a minha mãe com um major no sul de França; o meu pai com as propriedades vendidas para pagar as dívidas e uma condessa romena nas Bahamas. Mesmo antes de me tornar adulta, muito do glamour com o qual eles se tinham rodeado esvanecera-se e, por fim, nada restava, nenhum alicerce de recordações de infância que os distinguisse de outras pessoas de meia-idade. A tia Emily nunca foi glamourosa, mas foi sempre a minha mãe e eu amava-a. No entanto, no momento sobre o qual escrevo, eu estava naquela idade em que mesmo a criança menos imaginativa se julga no lugar de uma outra, uma princesa de sangue indiano, Joana d’Arc ou a futura imperatriz da Rússia. Eu suspirava pelos meus pais e fazia caretas, com as quais pretendia transmitir uma mistura de sofrimento e orgulho sempre que os seus nomes eram mencionados, e pensava neles como um par absorto em profundo, romântico e mortífero pecado. A Linda e eu estávamos muito inquietas com o pecado e o nosso grande herói era Oscar Wilde. — Mas o que é que ele fez? — Perguntei ao Fa uma vez e ele rugiu na minha direcção... meu Deus, foi aterrorizador! Disse: “Se voltares a mencionar o nome dessa cloaca nesta casa, castigo-te, ouviste, minha peste?” Perguntei então à Sadie, que me pareceu extremamente vaga: “Oh, meu patinho, eu nunca cheguei realmente a saber, mas o que quer que seja é pior que assassínio, é terrivelmente mau e, querida, não fales dele às refeições, sim?” — Temos de descobrir. — O Bob diz que vai descobrir quando for para Eton. — Ah, óptimo! Achas que ele era pior do que a mamã e o papá? — Não pode ter sido! Ai, tens tanta sorte em ter pais malcomportados!
* Nesse Natal, tinha eu catorze anos, tropecei à entrada de Alconleigh, encandeada pela luz depois de uma viagem de carro de dez quilómetros, desde a estação de Merlinford. Era sempre a mesma coisa todos os anos: viajava no mesmo comboio, chegava à hora do chá e encon9
trava sempre a tia Sadie e as crianças à volta da mesa por baixo da pá de trincheira, tal qual estavam na fotografia. Era sempre a mesma mesa e as mesmas coisas para o chá: o serviço de porcelana com rosas grandes pintadas, a chaleira e a travessa de prata que mantinha os scones quentes sobre umas chamas pequeninas; os seres humanos, é claro, envelheciam imperceptivelmente, os bebés começavam a ser crianças, as crianças cresciam e tinha havido um acréscimo sob a forma da Victoria, agora com dois anos de idade. Esta bamboleava-se com uma bolacha de chocolate cerrada no punho, tinha a cara toda lambuzada de chocolate e constituía uma visão medonha, ainda que através daquela máscara peganhenta brilhasse inequivocamente o azul de dois obstinados olhos Radlett. Mal entrei, ouvi o tremendo ruído das cadeiras a arrojar pelo chão e um grupo de Radletts atirou-se a mim com o entusiasmo e quase a ferocidade de uma matilha de cães a atacar uma raposa. Todos, à excepção da Linda. Era ela quem tinha mais prazer em ver-me mas estava decidida a não o demonstrar. Quando a algazarra sossegou e me sentei com um scone e uma chávena de chá à frente, ela perguntou: — Onde está a Brenda? — A Brenda era a minha hamster branca. — Tinha uma ferida nas costas e morreu — respondi. A tia Sadie olhou preocupada para a Linda. — Andaste montada nas costas dela? — perguntou a Louisa, num tom faceto. O Matt, que fora recentemente entregue ao cuidado de uma preceptora francesa, comentou, fazendo uma imitação estridente da voz dela: — C’était comme d’habitude, les voies urinaires. — Ai meu Deus! — murmurou a tia Sadie. Lágrimas enormes caíam no prato da Linda. Ninguém chorava tanto nem tantas vezes como ela. Qualquer coisa, mas sobretudo qualquer coisa triste sobre animais provocava o choro que, uma vez iniciado, era muito difícil fazer com que parasse. A Linda era uma criança frágil e bastante nervosa, e mesmo a tia Sadie, que vivia num sonho no que dizia respeito à saúde dos filhos, sabia que o choro excessivo a mantinha acordada durante a noite, a levava a perder o apetite e a prejudicava. As outras crianças, sobretudo a Louisa e o Bob, que adoravam provocar, levavam as coisas até aos limites possíveis e eram castigadas com frequência por fazerem com que ela chorasse. Black Beauty, Owd Bob, The Story of a Red Deer e todas as obras de Seton Thompson figuravam na lista de livros proibidos no quarto das crianças por causa de Linda, que, num momento ou noutro, ficara perturbada com aquelas leituras. Era obrigatório escondê-las porque, se fossem deixadas por ali 10
ao acaso, não se podia confiar que a Linda não se entregasse aos prazeres da auto-tortura. A malévola Louisa inventara um poema que provocava sempre rios de lágrimas: Um pequeno fósforo sem abrigo, Sem telhado nem resguardo, Está desamparado, não faz um único gemido, Aquele pequeno fósforo sem abrigo. Quando a tia Sadie não estava presente, as crianças cantavam este poema num coro sombrio. Em certas ocasiões, bastava olhar para uma caixa de fósforos para que a pobre Linda se desfizesse em lágrimas. No entanto, quando se sentia mais forte, mais capaz de lidar com a vida, esse tipo de provação resultava numa gargalhada relutante, vinda do seu âmago mais profundo. A Linda não era só a minha prima de eleição, era também, naquela altura e durante muitos anos, o meu ser humano preferido. Eu adorava todos os meus primos e a Linda emanava, mental e fisicamente, a verdadeira essência da família Radlett. Os seus traços escorreitos, o cabelo castanho liso e os grandes olhos azuis constituíam um tema sobre o qual os rostos dos outros eram mera variação: todos belos, mas nenhum tão absolutamente distinto como o dela. Havia algo de colérico nela mesmo quando se ria, o que fazia com frequência e sempre como se estivesse a ser forçada a isso. Algo que despertava reminiscências das imagens de Napoleão na juventude: uma espécie de intensidade mal-humorada. Percebi que ela se importava mais com a Brenda do que eu. Era verdade que os meus dias de lua-de-mel com a hamster branca há muito que haviam terminado; tínhamos assentado numa relação insípida, uma forma de, por assim dizer, bolor conjugal, e, quando ela apareceu com uma ferida repulsiva nas costas, a única coisa que pude fazer foi comportar-me decentemente e tratá-la com usual humanidade. Apesar do choque que sempre é encontrar algo rígido e frio na gaiola pela manhã, senti um grande alívio quando o sofrimento da Brenda finalmente acabou. — Onde está enterrada? — rumorejou a Linda furiosamente, a olhar para o prato. — Ao lado do pisco. Pus-lhe uma cruzinha amorosa e o caixão foi forrado com cetim cor-de-rosa. — Linda, querida, ouve — disse a tia Sadie — se a Fanny já acabou de tomar o chá, porque é que não lhe mostras o teu sapo? 11
— Está lá em cima a dormir — respondeu a Linda. Mas parou de chorar. — Come uma torrada quente, então. — Posso comer com pasta de anchovas? — perguntou, a aproveitar-se de imediato do estado de espírito da tia Sadie, uma vez que a pasta de anchovas estava guardada exclusivamente para o tio Matthew e pressupunha-se que não era boa para os miúdos. As outras crianças fizeram gala em trocar olhares expressivos, que foram interceptados, como era o objectivo, pela Linda, que desatou num buá-á medonho e correu escada acima. — Só gostava que não provocassem a Linda — disse a tia Sadie invulgarmente irritada, e foi atrás dela. O cimo das escadas já ficava fora do hall. Quando a tia Sadie estava fora do alcance auditivo, a Louisa comentou: — Se desejos fossem riqueza, os pobres seriam ricos. Caça à criança amanhã, Fanny. — Sim, o Josh disse-me. Estava no carro, tinha ido ao veterinário. O meu tio Matthew tinha quatro magníficos mastins, com os quais perseguia os filhos. Dois de nós começavam a correr com um bom avanço para estabelecer o trilho e o tio Matthew e os outros seguiam os cães a cavalo. Era muito divertido. Uma vez, o tio veio a minha casa e caçou-me a mim e à Linda em Shenley Common. Isto provocou uma agitação local imensa e os visitantes de fim-de-semana da região de Kent, que iam a caminho da igreja, ficaram horrorizados ao ver quatro cães enormes a correr a toda a velocidade atrás de duas meninas. O meu tio parecia-lhes um lorde malvado de ficção e eu fiquei mais que nunca envolvida numa aura de loucura, maldade e perigo, excessiva para poder privar com os filhos deles. A caça à criança no primeiro dia da visita de Natal foi um enorme êxito. A Louisa e eu fomos escolhidas como lebres. Corremos pelo campo, as terras altas deslumbrantes e frias de Cotswold, começando logo após o pequeno-almoço, ainda o sol era um globo vermelho que mal se sobrepunha ao horizonte e as árvores estavam incrustadas a azul escuro num céu azul pálido, cor de malva e rosado. O sol nasceu enquanto nós corríamos aos tropeções, ansiando por recuperar a respiração após a excitação do esforço; brilhou e amanheceu lindo, dando uma sensação que mais parecia a de um dia de Outono tardio do que de um dia de Natal. Conseguimos despistar os cães de caça uma vez, correndo pelo meio de um rebanho de ovelhas, mas o tio Matthew depressa fez com que eles recuperassem o faro e, duas horas depois de corrermos vigorosamente, quando já estávamos apenas a cerca de meio quilómetro 12
de casa, as salivantes e uivantes criaturas apanharam-nos e foram recompensadas com pedaços de carne e muitas festas. O tio Matthew estava com um bom humor exultante, apeou-se do cavalo e foi a pé para casa connosco, tagarelando amavelmente. E, o que era ainda menos habitual, estava bastante afável comigo. — Ouvi dizer que a Brenda morreu — comentou. — Não será uma grande perda, deixa-me que te diga. Esse rato fedia que nem se podia. Terás posto a gaiola demasiado perto do radiador... sempre te disse que não era saudável, ou morreu de velhice? O charme do tio Matthew, quando ele decidia activá-lo, era considerável, mas naquela altura eu tinha sempre um medo terrível dele e cometi o erro de lho mostrar. — Devias ter um arganaz, Fanny, ou uma ratazana. São muito mais interessantes do que esses ratos brancos, embora eu tenha de reconhecer, com franqueza, que, de todos os hamsters que alguma vez conheci, a Brenda era, de longe, a mais sombria. — Era enfadonha — acedi, injuriosamente. — Quando for a Londres depois do Natal, compro-te um arganaz. Vi um no outro dia no Army & Navy. — Oh, Fa, isso é muito injusto! — queixou-se a Linda, que passeava o pónei ao nosso lado. — Sabe como eu sempre quis ter um arganaz! “É muito injusto” era o mote perpétuo dos Radlett quando eram crianças. A grande vantagem de viver numa família grande é a lição, aprendida muito cedo, sobre a injustiça fundamental da vida. Com eles, devo dizer, sempre funcionou a favor da Linda, a adorada do tio Matthew. Hoje, no entanto, o meu tio estava zangado com ela e percebi num ápice que a afabilidade dele comigo, a conversa agradável sobre ratos, servia simplesmente para a provocar a ela. — A menina tem animais suficientes — respondeu ele rispidamente. — Não consegue controlar aqueles que tem. E não se esqueça do que eu lhe disse: aquele seu cão vai directamente para o canil quando voltarmos, e vai lá ficar. A cara da Linda franziu-se, lágrimas caíram, tocou o pónei para trote e dirigiu-se para casa. Parece que o cão, o Labby, tinha vomitado no escritório do tio Matthew depois do pequeno-almoço. O tio Matthew, incapaz de tolerar a sujidade dos cães, teve uma crise de fúria e, no meio dessa fúria, estabeleceu como regra a proibição definitiva da entrada do Labby na casa. Isto estava sempre a acontecer, por uma razão ou por outra, a um animal ou a outro, mas como o latido do tio Matthew era invariavelmente muito maior que a sua mordida, o banimento poucas 13
vezes durava mais do que um dia ou dois, a seguir aos quais começava aquilo a que ele próprio chamava o Princípio do Fim. — Ele não pode entrar comigo só enquanto vou ali buscar as minhas luvas? — Estou tão cansada... não consigo ir à cavalariça... por favor, deixe-o ficar só até depois do chá. — Ah, percebo!... o princípio do fim. Está bem, desta vez o cão pode ficar, mas se ele tornar a fazer disparates, se eu o apanhar na vossa cama ou a roer a mobília (consoante o tipo de crime que resultara no banimento), eu dou cabo desse bicho, e não me digam que não vos avisei! Mesmo assim, sempre que a sentença de banimento era pronunciada, a proprietária do condenado visualizava o seu adorado a arrastar-se pela vida na clausura solitária de um canil frio e sombrio. — Mesmo que eu o leve lá para fora três horas todos os dias e vá lá conversar com ele mais uma hora, ainda lhe restam vinte horas sozinho, sem nada para fazer. Ai, porque é que os cães não hão-de saber ler? As crianças Radlett, há que dizê-lo, tinham uma visão bastante antropomórfica dos seus animais de estimação. Hoje, contudo, o tio Matthew estava maravilhosamente bem disposto e quando saímos da cavalariça disse à Linda, que estava sentada a chorar, com o Labby dentro da casota: — Vai deixar esse seu pobre bruto aí o dia todo? Com as lágrimas esquecidas como se nunca tivessem existido, a Linda correu para casa com o Labby colado aos calcanhares. Os miúdos Radlett estavam sempre ou no pico da felicidade ou a afogar-se nas águas negras do desespero; as emoções deles nunca se encontravam num plano vulgar: amavam ou odiavam, riam ou choravam, viviam num mundo de superlativos. A vida deles com o tio Matthew era uma espécie de brincadeira infantil perpétua. Iam até onde ousavam ir, o que por vezes era mesmo muito longe, enquanto outras vezes, por nenhuma razão aparente, o tio atacava logo, praticamente antes de eles terem pisado o risco. Se fossem crianças pobres, talvez tivessem sido tiradas da guarda daquele pai vociferador, enfurecido e autor de uns quantos sopapos, e enviadas para um lar adequado, ou talvez ele lhes tivesse sido tirado, para ser enviado para a prisão por se recusar a educá-los. A natureza, contudo, providencia as suas próprias soluções e não havia dúvidas de que os miúdos Radlett tinham em si mesmos o suficiente do tio Matthew para enfrentarem as tempestades que deixariam outras crianças normais, como eu, completamente aterrorizadas. 14
2 Era um facto aceite em Alconleigh que o tio Matthew me detestava. Esse homem violento, descontrolado, tal como os filhos, não conhecia o meio termo: amava ou odiava e, habitualmente, verdade seja dita, odiava. A mim, ele odiava-me porque odiava o meu pai; eram velhos inimigos de Eton. Quando se tornou óbvio — e tornou-se óbvio a partir do momento da minha concepção — que os meus pais tencionavam abandonar-me, a tia Sadie quis criar-me com a Linda. Éramos da mesma idade, parecia ser um plano sensato. O tio Matthew recusara categoricamente. Odiava o meu pai, disse, odiava-me a mim, mas sobretudo odiava crianças; já era suficientemente mau ter duas que lhe pertenciam. (Claro que então ele não previra vir a ser pai de sete e, na verdade, tanto ele como a tia Sadie viviam num contínuo estado de surpresa por terem ocupado tantos berços; e sobre o futuro dos ocupantes desses berços pareciam não ter uma política específica.) Então, a querida tia Emily, cujo coração fora outrora partido por um monstro malvado e galanteador, e que tencionava por essa razão nunca casar, recebeu-me, fez de mim a obra da sua vida, e eu estou-lhe muito grata por isso. Como acreditava ardentemente na educação das mulheres, deu-se a muitos trabalhos para que eu tivesse uma boa educação, a ponto de ir propositadamente viver em Shenley para estar perto de uma boa escola. As meninas Radlett quase não tinham aulas. Eram ensinadas pela Lucille, a preceptora francesa, a ler e a escrever; embora não tivessem o menor talento musical, eram obrigadas a “praticar” no salão de baile gelado durante uma hora por dia e com os olhos colados ao relógio martelavam o Merry Peasant e algumas escalas; faziam-nas dar um passeio em francês com a Lucille, todos os dias excepto nos de caça, e a educação que lhes davam ficava por aí. O tio Matthew odiava mulheres inteligentes mas defendia que as fidalgas, além de montar a cavalo, deviam falar francês e tocar piano. Embora em criança eu naturalmente as invejasse por estarem libertas da escravidão e das obrigações, dos cálculos e das ciências, sentia, apesar de tudo, uma satisfação virtuosa por não estar a crescer iletrada como elas. A tia Emily poucas vezes me acompanhava a Alconleigh. Talvez julgasse que era mais divertido para mim estar lá sozinha e, para ela, poder passar o Natal com os amigos de juventude e deixar por uns instantes as responsabilidades da idade avançada, representava sem dúvida uma mudança. A tia Emily tinha, na altura, quarenta anos, e nós, as 15
crianças, há muito que renunciáramos por ela ao mundo, à carne e ao diabo. Este ano, no entanto, a tia Emily partira de Shenley antes do início das festas, anunciando que nos voltaríamos a ver em Alconleigh em Janeiro.
* Na tarde da caça à criança, a Linda convocou uma reunião dos Ilustres. Os Ilustres eram a sociedade secreta dos Radlett; qualquer pessoa que não fosse amiga dos Ilustres era um Contra-Ilustre, e o grito de guerra era “Morte aos horríveis Contra-Ilustres”. Eu era uma Ilustre, uma vez que o meu pai, como o delas, era um lorde. Havia também, no entanto, muitos Ilustres honorários; não era obrigatório ter-se nascido Ilustre para o ser. Como a Linda uma vez observou: “Mais vale um bom coração do que um brasão e mais vale ter simplesmente fé do que sangue normando”. Não sei ao certo se nós realmente acreditávamos nisso; éramos uns snobes terríveis naquele tempo mas concordámos com a ideia geral. O chefe dos Ilustres honorários era o Josh, o moço da estrebaria, muito estimado por todos nós e que valia baldes de sangue normando; o chefe dos horríveis Contra-Ilustres era o Craven, o couteiro, contra o qual movíamos uma guerra sem tréguas. Os Ilustres entravam sorrateiramente no bosque e escondiam as armadilhas de aço do Craven, libertavam os tentilhões que, presos em gaiolas de arame sem comida nem água, eram por ele usados como iscos para caçar falcões, proporcionavam um enterro decente às vítimas da despensa do couteiro e, antes da reunião dos cães para a caçada, desobstruíam as tocas que o Craven tão cuidadosamente tapara. Os pobres Ilustres viviam atormentados pelas crueldades do campo; para mim, as férias em Alconleigh significavam a revelação perfeita da bestialidade. A pequena casa da tia Emily ficava numa aldeia, era uma caixa de estilo Queen Anne, tijolo encarnado, revestimento branco, uma magnólia e um perfume fresco delicioso. Entre a casa e o campo havia um pequeno jardim bem cuidado, uma cerca de ferro, um relvado e uma aldeia. O campo que ali se frequentava era muito diferente de Gloucestershire: era amaneirado, protegido, excessivamente cultivado, quase um jardim suburbano. Em Alconleigh, o bosque cruel descia mesmo até à casa; não era invulgar ser acordado pelos guinchos de um coelho a correr em círculos de terror à volta de um furão, pelo uivo misterioso e horrível de um lobo, nem observar da janela do quarto uma galinha viva a ser levada na boca de uma raposa, enquanto 16
o faisão empoleirado e o mocho vigilante preenchiam as noites com ruídos primitivos e selvagens. No Inverno, quando a neve cobria o chão, era possível seguir as pegadas de muitas criaturas. Estas muitas vezes findavam numa poça de sangue, um monte de pêlos ou de penas, testemunhas de uma boa caçada carnívora. No outro lado da casa, a uma distância mínima, ficava o depósito da quinta. Aqui, a matança de aves e porcos, a castração de carneiros e a ferra do gado aconteciam com naturalidade, à vista de quem quisesse ver. Nem mesmo o querido Josh se importou de marcar um cavalo favorito com ferros em brasa, após a época de caça. — Só se pode marcar duas patas de cada vez — sibilava ele, como se nós fôssemos um cavalo e ele nos estivesse a tratar — se não, não aguentam a dor. A Linda e eu não tínhamos jeito para suportar a dor e considerávamos inaceitável que os animais vivessem vidas tão atormentadas e mortes torturadas. (Ainda tenho essa preocupação, muito, até, mas naquele tempo, em Alconleigh, era uma obsessão absoluta para todos nós.) As actividades humanitárias dos Ilustres estavam proibidas, sob pena de castigo, pelo tio Matthew, que estava a todas as horas e indubitavelmente do lado do Craven, o seu criado favorito. Os faisões e as perdizes devem ser preservados, os animais nocivos devem ser eliminados, todos à excepção da raposa, à qual estava reservada uma morte mais excitante. Os pobres Ilustres suportaram muitíssimos castigos: semana após semana, suspendiam-lhes as mesadas, eram mandados para a cama cedo, tinham de fazer trabalhos suplementares; no entanto, persistiam corajosamente nas suas actividades desencorajadas e desencorajadoras. Malas enormes cheias de novas armadilhas de aço chegavam com regularidade das lojas Army & Navy e ficavam empilhadas, até serem precisas, em torno da cabana do Craven, no meio do bosque (uma velha carruagem de comboio era o seu quartel-general, muito inadequadamente localizado entre as primaveras e os arbustos de amoras silvestres de uma pequena clareira encantadora); centenas de armadilhas, que nos faziam sentir como era inútil enterrar, pondo em perigo a vida e a propriedade, apenas umas três ou quatro criaturas. Por vezes, encontrávamos um animal aos guinchos preso numa armadilha; recorríamos a todas as nossas reservas de coragem para chegar perto dele e salvá-lo, para depois o vermos a fugir dali somente com três patas e um horror pendurado de mutilação. Sabíamos que acabaria por morrer de septicemia na toca; o tio Matthew estava sempre a bater na mesma tecla, sem nos poupar a nenhum pormenor agonizante da longa e desgastante 17
provação, mas, apesar de sabermos que seria mais caridoso, nós nunca conseguimos matá-los: seria pedir-nos demasiado. Muitas vezes, de facto, tínhamos de sair dali e vomitar depois desses episódios. O local de encontro dos Ilustres era um armário de lençóis obsoleto, pequeno, escuro e extremamente quente, situado na parte de cima da casa. Como em muitas casas de campo, a maquinaria do aquecimento central em Alconleigh fora instalada nos primórdios da sua invenção, com custos exorbitantes, e estava agora completamente ultrapassada. Apesar da caldeira, que não seria demasiado grande para um transatlântico, apesar das toneladas de carvão que consumia diariamente, a temperatura das salas mal se alterava e todo o calor parecia concentra-se no armário dos Ilustres, que estava sempre abafado. Era aí que nos sentávamos, comprimidos nas prateleiras de ripas, e conversávamos durante horas sobre a vida e a morte. Nas últimas férias a nossa grande obsessão era o nascimento, um tema extasiante sobre o qual nos informaram notavelmente tarde, portanto durante muito tempo julgámos que o estômago da mãe inchava durante nove meses e que depois se abria como uma abóbora madura, expelindo a criança. Quando a verdade se tornou evidente, afigurou-se como uma espécie de anti-climax, até a Linda aparecer, lendo em voz alta e num tom macabro, num romance qualquer, a descrição de uma mulher em trabalho de parto. — A respiração da mulher faz-se em golfadas... o suor cai-lhe nas sobrancelhas como água... os gritos, semelhantes aos de um animal torturado, laceram o ar... e pode este rosto, contorcido pela dor, pertencer à minha querida Rhona...? poderá esta câmara de tortura ser o nosso quarto e este estrado a nossa cama de casal? “Doutor, doutor” gritei, “faça alguma coisa!” e apressei-me a sair para a noite... e assim por diante. Ficámos muito perturbadas com esta descrição, percebendo que havia um excesso de probabilidades de também nós próprias termos de suportar aquela terrível agonia. A tia Sadie, que acabara de ter o sétimo filho, ao ser solicitada não nos sossegou muito. — Sim — disse num tom vago. — É a pior dor do mundo. Mas o mais estranho é, nos intervalos, esquecermo-nos sempre de como ela é. De cada vez, mal começava, eu só tinha vontade de dizer: ai, agora me lembro, parem, parem! Mas, é claro, para parar já era demasiado tarde, só se tivesse sido nove meses antes. Por esta altura, a Linda começou a chorar e a dizer como aquilo devia ser terrível para as vacas, o que acabou com a conversa. 18
Era difícil falar com a tia Sadie sobre sexo; havia sempre alguma coisa que impedia a conversa; os bebés foi o mais próximo a que conseguimos chegar. A tia Emily e ela, ao perceberem, a certa altura, que devíamos saber mais, e por estarem, suspeito, demasiado envergonhadas para serem elas próprias a esclarecer-nos, ofereceram-nos um manual moderno sobre o assunto. Descobrimos algumas ideias curiosas. — A Jassy — comentou um dia a Linda desdenhosamente — está obcecada pelo sexo, coitada! — Obcecada pelo sexo! — exclamou a Jassy. — Não há ninguém tão obcecado como tu, Linda! Pois se me basta olhar para uma ilustração para que tu me digas que sou uma pigmalionista. No fim, acabámos por obter mais informações de um livro com o título Patos e Criação de Patos. — Os patos só podem copular — afirmou a Linda, depois de pensar no assunto durante uns minutos — em água a correr. Pois que tenham sorte! Na noite da consoada reunimo-nos todos no local de encontro dos Ilustres para ouvir o que a Linda tinha para dizer: a Louisa, a Jassy, o Bob, o Matt e eu. — Isto é que é um regresso à barriga — disse a Jassy. — Pobre tia Sadie — comentei. — Não me parece que ela vos quisesse a todos de volta na barriga dela. — Nunca se sabe. Os coelhos, por exemplo, comem as crias; alguém lhes devia explicar que isso é apenas um complexo. — Como é que se pode explicar aos coelhos? Isso é o que é tão preocupante nos animais, eles simplesmente não percebem quando alguém fala com eles, pobres anjinhos. Mas vou contar-te uma coisa sobre a Sadie: ela própria gostaria de voltar ao ventre, porque ela tem um fraco por caixas, e isso é bastante evidente. Quem mais... Fanny, então e tu? — Acho que não, mas se calhar é porque aquele em que estive não foi lá muito confortável, como sabem, além de que nunca mais ninguém teve autorização para lá estar. — Abortos? — perguntou a Linda, interessada. — Bem, pelo menos saltos enérgicos e banhos quentes. — Como é que tu sabes disso? — Uma vez ouvi a tia Emily e a tia Sadie a falar sobre isso quando eu era muito pequenina e depois lembrei-me. A tia Sadie perguntou: 19
Como é que ela consegue resolver o assunto?, e a tia Emily respondeu: A fazer esqui ou a caçar ou simplesmente a saltar da mesa da cozinha. — Tens tanta sorte em ter pais malcomportados! Este era o refrão eterno dos Radlett e, na verdade, os meus pais malcomportados constituíam o motivo principal de interesse que eu tinha aos olhos deles: noutros aspectos, eu era uma miúda muito maçadora. — As notícias que tenho hoje para os Ilustres — anunciou a Linda, pigarreando como um adulto — embora sejam de interesse considerável para os Ilustres em geral, referem-se sobretudo à Fanny. Não vou pedir-vos que adivinhem, porque estamos quase na hora do chá e nunca o conseguiriam fazer, por isso vou contar-vos já de seguida: a tia Emily está noiva. Os Ilustres engasgaram-se em coro. — Linda, estás a inventar isso! — acusei, furiosa. Mas sabia que ela nunca seria capaz de o fazer. A Linda tirou um pedaço de papel do bolso. Era meia folha de papel de carta, obviamente o fim de uma carta, escrita com a letra grande e infantil da tia Emily, e eu olhei por cima do ombro da Linda enquanto ela a lia: — “… não dizer nada às crianças sobre o nosso noivado, o que achas, querida, só no início? Por outro lado, imagina que a Fanny não gosta dele, embora eu não veja como é que ela não poderia gostar, mas as crianças são tão imprevisíveis, não seria um choque maior? Ah, minha querida, não me consigo decidir. Faz o que te parecer melhor, querida, chegamos na quinta-feira e ligo na quarta à noite para saber o que se passou. Beijos da Emily.” Frenesi no armário dos Ilustres.
3 — Mas porquê? — perguntei pela centésima vez. A Linda, a Louisa e eu estávamos amontoadas na cama da Louisa, com o Bob sentado aos pés, a conversar baixinho. Estas conversas à meia-noite estavam rigorosamente proibidas, mas era mais seguro, em Alconleigh, desobedecer às regras no princípio da noite do que em qualquer outra altura das vinte e quatro horas. O tio Matthew ador20
mecia praticamente à mesa do jantar. Depois dormitava no escritório durante cerca de uma hora, antes de se arrastar num transe sonâmbulo para a cama, onde dormia o sono profundo de quem passou todo o dia fora de casa, até ao cantar do galo na manhã seguinte, altura em que ficava muitíssimo desperto. Então começava a sua guerra interminável com as criadas por causa das cinzas. O aquecimento dos quartos em Alconleigh era feito com lareiras com lumes de lenha e o tio Matthew defendia, acertadamente, que, para as lareiras funcionarem bem, as cinzas deviam lá ser deixadas numa grande pilha quente e em brasa. Todas as criadas, no entanto, por alguma razão (talvez devido a algum treino anterior com lareiras alimentadas a carvão), tendiam a retirar toda a cinza. Quando os abanões, as pragas e os ataques ferozes do tio Matthew em camisa de dormir garrida, às seis da manhã, as convenceram de que a tarefa não era exequível, elas decidiram-se definitivamente a retirar, fosse de que maneira fosse, só uma pequena quantidade de cinzas, uma pá cheia ou quase, todas as manhãs. Suponho que achassem que, desse modo, afirmavam as suas personalidades. O resultado foi uma excitantíssima guerra de guerrilha. As criadas são madrugadoras naturais e contam habitualmente com três horas completas, durante as quais a casa lhes pertence exclusivamente. Mas não em Alconleigh. O tio Matthew estava sempre, tanto no Inverno como no Verão, fora da cama às cinco da manhã, e tinha como hábito vaguear pela casa, como o Grande Agripa, em camisa de dormir e beber chávenas e chávenas de chá tirado de um termo até por volta das sete horas, altura em que tomava banho. O pequeno-almoço para o meu tio, a minha tia, a família e os hóspedes era às oito em ponto e a falta de pontualidade não era tolerada. O tio Matthew não era respeitador do sono matinal das outras pessoas e depois das cinco horas não podíamos contar com sossego porque ele andava pela casa a bramar, a fazer barulho com as chávenas de chá, aos gritos com os cães, a rugir com as criadas, fazendo estalar na relva os chicotes que trouxera do Canadá e que produziam um estalido maior do que um disparo, e tudo isto ao som da Galli Curci no gramofone, num volume anormalmente alto, com uma enorme corneta, pela qual se ouvia guinchar Una voce poco fà — A canção da louca, da Lucia — Lo, here the gen-tel lar-ha-hark — e assim por diante, tocado à velocidade máxima, o que fazia com que as entoações fossem mais altas e mais agudas do que as habituais. Nada me faz recordar tanto os meus dias de infância passados em Alconleigh como aquelas canções. O tio Matthew ouviu-as continuamente durante anos, até que o feitiço se quebrou quando ele viajou 21
até Liverpool para ouvir a Galli Curci ao vivo. A decepção que o aspecto dela lhe provocou foi tão grande que daí em diante os discos permaneceram para sempre em silêncio e foram substituídos pelas vozes de baixo mais cavas que o dinheiro podia comprar. Fearful the death of the diver must be. Walking alone in the de-he-he-he-he-epths of the sea ou Drake is going West, lads. Estes temas musicais eram geralmente bem recebidos pela família, por serem menos perfurantes para os tímpanos de madrugada.
* — Por que razão haveria ela de querer casar? — Com certeza que não está apaixonada. Tem quarenta anos. Como todos os muito novos, era mais que certo para nós que namorar era uma coisa facílima. — Que idade achas tu que ele tem? — Cinquenta ou sessenta anos, parece-me. Talvez ela goste da ideia de ser viúva. Fraquezas, sabes. — Ou talvez ache que a Fanny deve ter também uma influência masculina. — Uma influência masculina! — exclamou a Louisa. — Prevejo confusão. E se ele se apaixonar pela Fanny será uma boa salganhada, como o Somerset e a Princesa Isabel... há-de pôr-se com brincadeiras grosseiras e a dar-te beliscões na cama, vais ver se não o faz. — Certamente que não, na idade dele. — Os homens velhos adoram miúdas. — E miúdos — acrescentou o Bob. — Parece que a tia Sadie não vai dizer nada sobre o assunto antes de eles chegarem — comentei. — Falta quase uma semana; pode ser que se esteja a decidir. Ainda vai discutir o assunto com o Fa. Se calhar vale a pena ficar à escuta, da próxima vez que ela tomar banho. Podes ser tu a fazer isso, Bob.
* O dia de Natal passou-se, como era costume em Alconleigh, com abertas de sol e aguaceiros alternadamente. Esqueci, como só as crianças conseguem fazer, as notícias perturbadoras sobre a tia Emily, e concentrei-me nas diversões. Às seis horas, a Linda e eu abrimos os nossos 22