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A TEMPESTADE O MAR E O ESPELHO
William Shakespeare
A TEMPESTADE tradução de José Manuel Mendes Luís Lima Barreto Luis Miguel Cintra seguido de
O MAR E O ESPELHO um comentário de W. H. Auden a A Tempestade de Shakespeare tradução de Daniel Jonas
Cotovia
Título original: The Tempest Autor: William Shakespeare Título original: The Sea and the Mirror Autor: W. H. Auden copyright © 2003 by The Estate of W. H. Auden © Edições Cotovia, Lda., Lisboa 2009 © para os desenhos, Cristina Reis Todos os direitos reservados. ISBN 978-972-795-285-4
Índice
Nota dos tradutores
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Elenco da estreia
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A TEMPESTADE, DE SHAKESPEARE
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O MAR E O ESPELHO, DE W. H. AUDEN
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Nota dos Tradutores de A Tempestade
Têm os tradutores demasiada noção de que é quase impossível uma tradução de A Tempestade que respeite os valores estilísticos do texto original, como aliás acontece com toda a grande poesia. Ao que parece Fernando Pessoa terá tentado e desistiu. Mas A Tempestade é também, como todas as peças de Shakespeare, grande teatro. E ainda que esta tradução não consiga recriar toda a sua qualidade poética, tentámos que, pelo menos, permitisse a recriação da sua poesia dramática na voz de actores portugueses, o que nem sempre acontece com outras traduções que desesperadamente lutam para não perder a fidelidade à letra do texto original e acabam por nem a conseguir nem criar um texto dramático em português. Mas sabemos que esta tradução ficará, como no teatro sempre acontece, datada, e, tendo sido feita para um espectáculo do Teatro da Cornucópia em 2009, terá só a duração que a evolução dos hábitos linguísticos permitir. Será tão efémera como o teatro tem de ser. Que nesta edição aqui fique no entanto o seu registo e oxalá possa ainda servir a outras das muitas encenações que a peça pede e permite. Foi feita pela mesma equipa que, com objectivos e métodos semelhantes, traduziu Cimbelino, Tito Andrónico e Júlio César. Tal como nessas traduções foi importante para nós: 1. Conseguir um texto que, não sendo um pastiche do português do início do século XVII, nunca deixasse esque9
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cer, quer semântica quer sintacticamente, que se trata de um texto antigo, sem receio de recorrer a vocabulário já em desuso ou a construções sintácticas pouco comuns no português contemporâneo. Gostaríamos por exemplo que o vocabulário náutico lembrasse ao espectador português a “História Trágico-Marítima” ou mesmo “Os Lusíadas”. 2. Sem a pretensão de fazer uma “recriação poética” de um texto na sua maior parte em verso, elaborar um texto em português que, pela sua cadência rítmica, conserve alguma da musicalidade e da fluência do “blank verse” original, e mantenha a alternância do texto original com outros trechos em prosa ou em verso rimado. Com essa intenção nos vimos obrigados a uma tradução mais livre nas falas de Íris, Ceres e Juno do espectáculo na cena 1 do 4º acto, ou no epílogo. Mais difíceis foram as opções a tomar para a letra das várias canções que necessariamente terá de ser adaptada à música que se utilizará em cada espectáculo, como aliás aconteceu no espectáculo da Cornucópia. 3. Tentar que os diferentes tipos de linguagem que caracterizam a nobreza de certas personagens e a grosseria de outros não se perdessem na versão portuguesa. Fomos aí obrigados a ceder a alguma “modernidade” na tradução das cenas de Estêvão e Trínculo onde a extrema coloquialidade seria impossível de traduzir de forma mais “arcaizante”. 4. Tentar que não se perdessem pelo menos alguns dos sofisticadíssimos jogos de palavras do texto original, o que nos obrigou em certas cenas, como por exemplo na primeira cena dos nobres (Segundo acto, cena 1), a ir mais longe na adaptação do que seria nosso gosto, sob pena de perder a própria razão de ser do diálogo e uma sua qualquer eficácia cénica. 10
Nota dos Tradutores
5. Não deixar perder a utilização dramática das formas de tratamento do texto original com a oscilação entre o “you” e o “thou”, que fizemos corresponder ao tu e vós portugueses, e que, por exemplo nas cenas de Estêvão e Trínculo, ou na relação Próspero/Fernando, são fundamentais para a própria acção. 6. Adaptar os nomes próprios para português, de forma a não distanciar a comunicação natural com o aparecimento num texto português de nomes “estrangeiros”, o que neste texto não foi difícil, dado que já no texto original os nomes são na sua maioria italianizantes e alguns jogos semânticos que eles permitem (“Miranda” com “admirar”, “Próspero” com o adjectivo homófono, por exemplo) se tornam mais evidentes ainda em português. Ainda que tendo optado, como nas outras traduções de Shakespeare, por um texto com a aparência de uma divisão em versos que o ajude a organizar ritmicamente, não houve a pretensão de o fazer em versos propriamente ditos e julgámos portanto inútil sempre que no texto original um verso é dividido pela fala de duas personagens, manter essa aparência gráfica em português. O início de cada fala corresponde aqui, portanto a um início de linha, o que nem sempre acontece no texto original. Existem algumas variantes entre as diferentes edições críticas da A Tempestade, nomeadamente, como aliás sempre acontece, nas didascálias. Mais do que guiarmo-nos apenas por uma edição, fomos comparando as diferentes edições e sendo o nosso objectivo primeiro o de elaborar um texto para o palco, escolhemos de entre essas variantes a que mais coerente e eficaz nos pareceu. O texto que nos 11
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serviu de base foi, no entanto a edição da Oxford World’s Classics, na leitura de Stephen Orgel (Oxford University Press, 1998). Fomos particularmente sensíveis na nossa leitura de A Tempestade ao poema de W.H. Auden The Sea and the Mirror que lhe inventa mais um epílogo falado por todas as suas personagens com um ponto de vista moderno. Chegámos a pensar acrescentá-lo ao texto de Shakespeare no nosso espectáculo. Não estando ainda traduzido em português pedimos a Daniel Jonas que o traduzisse. Quisemos que a sua edição acompanhasse esta nossa A Tempestade e que, pelo menos, figurasse no mesmo volume como belíssimo comentário ao texto de Shakespeare e pudesse ser conhecido como uma reelaboração do mito que, segundo o próprio Auden, A Tempestade consegue criar.
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Elenco da Estreia de A TEMPESTADE pelo Teatro da Cornucópia no Teatro do Bairro Alto a 12 de Março de 2009 ALONSO SEBASTIÃO PRÓSPERO ANTÓNIO FERNANDO GONÇALO ADRIANO FRANCISCO CALIBAN TRÍNCULO ESTÊVÃO O MESTRE
José Manuel Mendes Ricardo Aibéo Luis Miguel Cintra António Fonseca Vítor D’Andrade Luís Lima Barreto Tiago Matias Pedro Lamas Nuno Lopes Duarte Guimarães João Pedro Vaz Paulo Moura Lopes
MIRANDA Sofia Marques ARIEL Dinis Gomes Transformação de Ariel em Ninfa do Mar Transformação de Ariel em Harpia
Rita Durão Márcia Breia
IRIS CERES JUNO
Rita Durão Dinis Gomes Márcia Breia
Cravista
Marcos Magalhães/José Carlos Araújo
Encenação Cenário e Figurinos Desenho de luz Colaboração musical
Luis Miguel Cintra Cristina Reis Daniel Worm D’Assumpção Marcos Magalhães 13
WILLIAM SHAKESPEARE
A TEMPESTADE
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Personagens ALONSO — Rei de Nápoles SEBASTIÃO — seu irmão PRÓSPERO — o legítimo Duque de Milão ANTÓNIO — seu irmão, usurpador do ducado de Milão FERNANDO — filho do Rei de Nápoles GONÇALO — um velho honrado conselheiro ADRIANO nobres FRANCISCO CALIBAN — um escravo selvagem e disforme TRÍNCULO — um bobo ESTÊVÃO — um despenseiro bêbado O CAPITÃO DO NAVIO O MESTRE MARINHEIROS
{
MIRANDA — filha de Próspero ARIEL — um espírito do ar IRIS CERES personificações de espíritos JUNO NINFAS CEIFEIROS
{
A cena: uma ilha desabitada 17
ACTO I CENA 1 Ouve-se o ruído tempestuoso de um trovão e um relâmpago. Entra o Capitão e o Contramestre do navio. CAPITÃO Mestre! MESTRE Aqui, capitão! Que mandais? CAPITÃO Ouve, fala aos marinheiros. Depressa, manobrai, ou vamos encalhar. Lestos! Lestos! Sai. Entram marinheiros. MESTRE Eia, valentes! Ânimo, Ânimo, companheiros! Depressa, depressa! Arriai a mezena. Atentos ao apito do capitão. (Trovão) — Soprai, ventos, rebentai, mas dai espaço pra manobra! Entram Alonso, Sebastião, António, Gonçalo e outros. ALONSO Cuidado, bom mestre. Onde está o capitão? (Para os marinheiros) Portai-vos como homens. MESTRE Agora, por favor, livrem o convés. 19
A Tempestade
ANTÓNIO Mestre, onde está o capitão? MESTRE Não o ouvis? Estorvais o trabalho. Ide para as cabines — ajudais a tempestade. GONÇALO Meu amigo, calma! MESTRE Quando o mar a tiver. Fora! Que importa o nome de rei às vagas que assim roncam? Para a cabine; calai-vos! Não estorveis. GONÇALO Seja, mas lembra-te de quem tens a bordo. MESTRE Ninguém que eu ame mais do que a mim próprio. Vós sois conselheiro; se conseguirdes mandar calar os elementos e trazer bonança a esta hora, não tocaremos nós em mais nenhuma corda — dai uso à vossa autoridade. Mas se não conseguirdes, dai graças por terdes vivido tanto tempo, e preparai-vos na vossa cabine para a hora fatal, que bem pode suceder. (Para os marinheiros) Coragem, esforçados corações! (Para os nobres) — Saí do caminho, já vos disse. Sai. GONÇALO Estou confiante neste camarada. Não nasceu para morrer afogado; tem mais cara para acabar na forca. 20
Acto I, Cena 1
Apressa-te, Fortuna, com o seu enforcamento, faz da corda que o espera a nossa amarra, já que a nossa nos serve de pouco. Mas se não nasceu para a forca, estamos nós perdidos. Saem. Entra o Mestre. MESTRE Baixa o mastaréu! Depressa! Baixa! Arreia! À capa com a vela grande! (Um grito dentro) Morra de má morte quem está a gritar! Fazem mais alarido que as nossas manobras ou que o temporal. Entram Sebastião, António e Gonçalo. Outra vez? Que fazeis aqui? Paramos e deixamo-nos afogar? Quereis ir ao fundo? SEBASTIÃO Que a sífilis te coma, berrão, blasfemo, cão tinhoso! MESTRE Vinde vós trabalhar! ANTÓNIO Vai-te enforcar, rafeiro, vai-te enforcar, filho da puta insolente, desordeiro! Temos menos medo de morrer afogados do que tu! GONÇALO Garanto que ele não se afoga, nem que a nau fosse casca de noz e mais rota que rameira incontinente. 21
A Tempestade
MESTRE Ponde-a de feição, de feição! Soltai outra vez as duas velas, capear para o largo! Mar adentro! Entram marinheiros molhados. MARINHEIROS Estamos todos perdidos! Rezemos, rezemos! Perdidos. Saem. MESTRE O quê? Quereis que nos arrefeça o céu da boca? GONÇALO O Rei e o Príncipe rezam, vamos acompanhá-los. A nossa causa é a causa deles. SEBASTIÃO Deixei de ter paciência! ANTÓNIO São estes borrachos que nos levam a vida! Ah, tratante desbocado — oxalá te afogassem, Lavado por dez marés! Sai o Mestre. GONÇALO Mas será enforcado, Por mais que cada gota de água pragueje contra ele E o mar escancare a boca para o engolir. Ruído confuso dentro. 22
Acto I, Cena 2
“Misericórdia!” — “A nau está a partir-se, naufragamos!” — “Adeus mulher, adeus meus filhos!” — “Adeus irmão!” — “ Naufragamos! Vamos ao fundo!” ANTÓNIO Afundemo-nos todos com o Rei. SEBASTIÃO Vamos, despedimo-nos dele. Sai com António. GONÇALO Dava agora mil milhas de oceano por um acre de terra ruim — urzes altas, tojo ardido, não importa. Seja feita a vontade dos céus, mas preferia morrer de morte seca. Sai.
CENA 2 A Ilha. Entram Próspero e Miranda. MIRANDA Se por vossa arte, querido pai, pusestes Neste alvoroço as bravas águas, acalmai-as, Por favor. O céu parecia querer derramar Fétido breu, se o mar, subindo à sua face Enevoada, não lhe apagasse o fogo. Ai, o que eu sofri com os que eu vi sofrer! Um tão soberbo barco, tendo certamente 23