Assobiar em público

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ASSOBIAR EM PÚBLICO


Título: Assobiar em público © Jacinto Lucas Pires e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2008 ISBN 978-972-795-268-7


Jacinto Lucas Pires

Assobiar em pĂşblico Antologia de contos

Cotovia



Índice

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Assobiar em público PARA AVERIGUAR DO SEU GRAU DE PUREZA Palavras Sombra e luz Branco O ciúme A voz ou a pedra Dlim dlão O vazio Uns olhos

15 21 27 31 37 41 47 51

ALGO DE ALGODÃO Florença-a-Flor-que-Pensa

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ABRE PARA CÁ O rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia A mulher parada Comédia com final feliz As minhas férias A minha história mal contada Fumo o último cigarro do maço Um pontinho entre os olhos 7

69 79 85 99 111 121 129


E MAIS ALGUMA COISA Tudo e mais alguma coisa Fredi A expressão “dores de crescimento nas sociedades contemporâneas” no âmbito da sociologia actual Tóquio, composição L

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149 205

227 243 267


Assobiar em público

Rosa, um homem muito magro, de cinquenta anos, bigode, fato e gravata, e chapéu à antiga, está na Praça de Espanha, no passeio, à espera do sinal verde para os peões. É quase noite, e os automóveis já passam com os faróis acesos. Rosa pensa pensamentos estranhos que não têm nada a ver com nada enquanto vai olhando as luzes rápidas. Amarelos e brancos. Há uma nuvem por cima dos prédios ao longe, e o homem assobia uma canção de Natal. Talvez seja isso que faz esta história começar. É um risco assobiar em público, ainda para mais quase à noite. Talvez seja isso que lança a personagem Rosa vida adentro. Durante o assobio, virando o rosto ligeiramente levantado para a direita e para a esquerda, à coca de qualquer público possível, seguindo a praxe do assobiador clássico, o homem vê uma coisa a brilhar no chão. À direita, atrás, um brilho no chão escuro. Reformulemos: uma qualquer coisa seja o que for a brilhar como o diabo na relva negra. Rosa hesita, decide ir ver o que é. Os automóveis param e o sinal abre para os peões, mas Rosa dá meia volta e vai em direcção àquela espécie-de-luzinha no chão. Anda e anda, mas o brilho 9


parece cada vez mais longe. Como se andasse parado: Rosa às vezes não percebe mesmo que mundo é este. É este o tipo de frases, acrescentemos em aparte, que o fazem rir, ao nosso pobre indivíduo-Rosa. Na terra escura da Praça de Espanha a coisa do breve brilho aparentemente inalcançável, de modo que o homem muito magro pensa em desistir, diz para si próprio ah não é nada, nunca é nada, mas a verdade é que continua o caminho. Mais um passo e está lá. Mas, ao pôr esse último pé no chão: escorrega, destrambelha-se e malha. Cai na lama e fica na lama. Bate com o rabo e as costas, mas o que começa a doer-lhe é a cabeça, atrás das orelhas e debaixo do cabelo quer-lhe parecer. Com o seu fato bastante, digamos, estragado, arrasta-se até ao tal brilho. Olha-o com atenção. É uma daquelas coisas de metal que se arranca das latas para as abrir e depois se deita fora. Ainda assim, Rosa pensa talvez arranje um uso qualquer pra isto. E levanta-se. Quando se põe de pé é que repara que uma perna está muito mais alta que a outra, há algo de espantosamente errado com a normalmente confiável perna esquerda. Olha para baixo, mas está tudo muito escuro. Caiu a noite na Praça de Espanha há uns minutos. Apalpa com as mãos a própria perna e só assim é que tem a certeza: meteu-a num buraco. Afundou-se até ao joelho. Puxa-a com força, e nada. Volta a puxá-la, nada. Grita e puxa ao mesmo tempo, o velho truque, e nada, nada, nunca nada. O que vale é que Rosa é o tipo de português suave. 10


Faz hum-hum e olha à volta. Não passa ninguém, quase já nem passam carros, só um ou outro rápidos demais. E então senta-se. O rabo fica muito frio assim directamente na lama ou lá o que é aquilo, mas aos poucos vai aquecendo. Rosa habitua-se. Por sorte, traz no bolso umas batatas e uns restos de toucinho. Mas não se atira logo à bruta. Olha as estrelas, ouve barulhos irreproduzíveis aqui. Espera um tempo até ficar com fome mesmo a sério. E só nessa altura é que come. Rosa às vezes tem uns pensamentos bastante estranhos, por exemplo que debaixo da terra bichos iguais a vermes ou como é que se diz comem-lhe a perna devagarinho-docemente até ao osso, e nesses momentos o que faz é pôr uma batata inteira na boca.

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