Autobiografia

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Autobiografia com muitas fantasias

Começo Era numa casa aberta sobre o rio e, na sala, a criança esgueirava-se entre as pernas das aprendizas de costura que, sentadas em roda, se ocupavam com grandes panos de linho, vestidos de noiva e saias floridas para a Primavera. Havia muitos jornais que serviam de moldes, e a criança cortava-lhes as letras, as fotos e soletrava-as como se fossem uma guloseima, como os figos do lado de fora da casa. Havia o compasso na Páscoa e tapetes de flores que cobriam os caminhos. Um pai aparecia vestido de farda branca, com brinquedos japoneses automáticos, e voltava a partir com a sua farda de um branco imaculado. Houve outras casas: casa ao lado de hidroaviões, casa defronte a barcos cinzentos com grandes letras pintadas F234, F769, F189…, casa no cimo de um prédio de muitos andares de onde só se podia sair para outras casas de outros prédios, casa junto ao Ródamo, casa onde se escreviam cartas e se lia em francês, casa cheia de livros e uma cama no meio, casa com um sofá vermelho e uma magnólia — vinda do Japão — na parede, quartos de hotel que eram casas; houve muitas: 7?10?20? Um número infinito de casas e de vidas e de


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pessoas que vinham e iam e deixavam umas vezes alegrias e outras tristezas, livros, canções, desenhos, receitas. Segundo começo A criança e o irmão da criança vestiram-se como se fosse domingo — casaco, calções e gravata — e viajaram horas, muitas horas, num avião com quatro hélices e chegaram a uma cidade cheia de mar e de músicas. Na escola repetiam nomes de serras, estações da linha do Norte e do Vouga e havia meninos que tinham de decorar nomes de terras frias, que não sabiam, repetiam estes nomes saltitando-os. Havia um ecrã gigante e música pop que a criança traduzia para os amigos do terraço, com os quais fez uma banda. Uma tarde, a criança viu a Marcolina, com o cabelo curto e de carapinha, tomar banho na praia em frente à casa e havia de perceber, anos mais tarde, o que sentiu, quando leu um verso que só dizia “…abrasas-me…”. Os rapazes passavam dias inteiros na praia, de calções, tronco nu e sandálias castanhas. O rapaz voltou mais crescido para uma cidade fria e triste, sem músicas, sem praia, sem frutas coloridas e só queria voltar para os bailes no drive-in e passar tardes a ler à sombra de palmeiras gigantes, mas não podia voltar. Quiseram tirar-lhe a pronúncia, aclarar-lhe a pele; a única coisa boa que lhe aconteceu foi descobrir que podia ler dias seguidos um poema longo, complexo, que tinha uma ilha proibida lá no meio. A professora pedia e ele lia todos os dias excertos do livro a que chamavam versos.


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Outro começo O rapaz mudou outra vez de casa e de cidade; deixou de ser um aluno mediano para ser o melhor aluno do liceu: gostava das novas aulas de política, de filosofia, de literatura, de história. Escrevia jornais de parede que eram amarelos e vermelho-vivos. Foi para Filosofia mas poderia ter ido para Literatura ou Cinema. Teve um professor poeta, um outro que lhe dava aulas como se ainda se tratasse de reuniões clandestinas, teve uma professora que se estreava como uma actriz insegura que falava de corpo e sentido e lhe mostrava Cézanne. Um dia, disseram-lhe «vai ser professor de filosofia de turmas difíceis, é muito jovem, tenha cuidado, não os deixe abusar». Ele comprou uns sapatos cor-de-rosa e começou a dar Platão. Foi professor, anos seguidos, gostou, é-o quando pode, sente que é um privilegiado: todos os anos ter de aprender para ensinar, todos os anos receber estudantes com energia nova, carregados de coisas novas, de ideias novas, de dúvidas novas, de crenças novas. Tenta devolver-lhes as suas singulares dádivas e escreve, escreve muitas vezes e de propósito para eles. Eles não sabem… Acaso ou necessidade? Dizem muitos cientistas que as descobertas acontecem ora por acaso ora por necessidade. No caso dele foi assim que aconteceu, é assim que continua a acontecer. Usa apenas um método que combina curiosidade com disponibilidade para o mundo e para o que há-de


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vir. Foi assim que um dia lhe telefonaram de um centro de artes de vanguarda que acaba de abrir em Lisboa a perguntar se poderia reunir com a directora. Ele estranhou mas lembrou-se do seu método; era muito jovem, estava disponível para aprender, viajar, ajudar a organizar a vida dos artistas. Viajou, viu muitos espectáculos, conheceu muitos artistas, a uns ficou a admirá-los muito, com outros teve decepções. Um dia, muitos anos mais tarde, haveria de escrever-lhes dois textos : “Vidas de artistas” e “ A responsabilidade dos artistas”. Aprendeu sobre ritmo de programações, ansiedades do público e as suas pequenas traições, aprendeu muito sobre números, contabilidade, orçamentos, luzes, transportes, seguros, accrochages, produção, redes, comunicação, aprendeu nesses dois anos que aí passou o essencial sobre programação cultural. Alguns anos depois havia de decidir, numa semana, entre partir para uma universidade na Califórnia ou ficar e inventar um centro de cultura que ele queria que fosse contemporânea. Durante doze anos inventou, ajudou a criar, produzir, teve colegas que foram cúmplices anos seguidos e que o ajudaram a desenvolver uma nova comunidade de artes, de artistas. Com eles e com os artistas e com intelectuais, produziu dezenas de obras novas, livros, conferências, filmes. Entendeu que o poder pode ser gerido de um modo afirmativo, pode contribuir para criar testemunhos de presente, materializar ideias, difundir hipóteses, sustentar cidades, evitar que elas morram porque as ideias se renovam, outras obras se criam. Ao fim de doze anos, achou que mais um ciclo tinha terminado. O programa tinha sido maioritariamente cumprido. Havia outras coisas para fazer: parar,


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reflectir sobre o feito. Pensar sobre o que era necessário agora, no século XXI, em Lisboa, em Portugal, na Europa. Novamente o método e um homem atento que lhe propôs que pensasse na formação artística. Criou com uma amiga cúmplice de muitos anos de trabalho rigoroso um programa de formação para artistas que querem ser isso: criadores. São quatro anos de formação artística, de convivialidade com artistas e, outra vez, com dezenas de obras novas que saem dos cursos e de muitos criadores, que saem com os seus métodos, os deles, que utilizarão conforme puderem e desejarem. São anos a pensar que a criação resulta de um trabalho diário, permanente, disciplinado. E é assim uma história cheia de pessoas, cidades, produção e textos; textos com questões permanentes.


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