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TEATRO 1
VOLUMES DA COLECÇÃO
VOLUME I Baal; Tambores na noite; A boda; O mendigo ou O cão morto; Expulsando um demónio; Lux in tenebris; A pesca; Na selva das cidades VOLUME II A vida de Eduardo II de Inglaterra; Um homem é um homem; A ópera de três vinténs; Ascensão e queda da cidade de Mahagonny VOLUME III O voo de Lindbergh; A peça didáctica de Baden sobre o consenso; O que diz sim. O que diz não; A decisão; A Santa Joana dos matadouros; A excepção e a regra; A mãe VOLUME IV As cabeças redondas e as cabeças bicudas; Os sete pecados mortais dos pequeno-burgueses; Os Horácios e os Curiácios; Terror e miséria do Terceiro Reich; As espingardas da Sr.ª Carrar VOLUME V A vida de Galileu; Dansen; Quanto custa o ferro?; Mãe Coragem e os seus filhos; O julgamento de Lúculo; A boa alma de Sé-Chuão VOLUME VI A ascensão de Arturo Ui; O Sr. Puntila e o seu criado Matti; As visões de Simone Machard VOLUME VII Schweyk na Segunda Guerra Mundial; O círculo de giz caucasiano; A Antígona de Sófocles; O preceptor de J.M.R. Lenz VOLUME VIII Os dias da Comuna; Turandot; Aníbal; A queda do egoísta Johann Fatzer; A verdadeira vida de Jakob Gehherda; A vida de Confúcio
Bertolt Brecht
Teatro 1
Cotovia
Baal (1922): © Renewal Copyright 1968 by Helene Brecht-Weigel. Trommeln in der Nacht / Tambores na noite:© Copyright 1953 by Surkamp Verlag, Berlim. Die Hochzeit / A boda: © Copyright Stefan S. Brecht 1966. Der Bettler oder Der tote Hund / O mendigo ou O cão morto: © Copyright Stefan S. Brecht 1966. Er treibt einen Teufel aus / Expulsando um demónio: © Copyright Stefan S. Brecht 1966. Lux in tenebris: © Copyright Stefan S. Brecht 1966. Der Fischzug / A pesca: © Copyright Stefan S. Brecht 1966. Im Dickicht der Städte / Na selva das cidades: © Renewal Copyright 1968 by Helene Brecht-Weigel. Todas as peças in: Bertolt Brecht, Große Kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe. Herausgegeben von Werner Hecht, Jan Knopft, Werner Mittenzwei, Klaus-Detlef Müller. Todos os Direitos: Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main Traduções: Copyright © dos tradutores e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2003. Prefácio: Copyright © Jorge Silva Melo e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2003. Introdução: Copyright © Vera San Payo de Lemos e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2003. Reservados todos os direitos. ISBN 972-795-065-5
Índice
Com Bertolt Brecht. Aprender a impiedade, preparar a amabilidade, por Jorge Silva Melo Definição de um território. Os primeiros trabalhos do jovem Brecht, por Vera San Payo de Lemos
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BAAL Anexo (versão de 1955)
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TAMBORES NA NOITE Anexo (versão de 1953)
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A BODA
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O MENDIGO OU O CÃO MORTO
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EXPULSANDO UM DEMÓNIO
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LUX IN TENEBRIS
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A PESCA
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NA SELVA DAS CIDADES
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Com Bertolt Brecht Aprender a impiedade, preparar a amabilidade
1 De aqui em diante e por muito tempo Não haverá neste mundo mais nenhuns vencedores, Só vencidos. BRECHT, A queda do egoísta Johann Fatzer
“O que quer que pensemos de Brecht, temos pelo menos de reconhecer que o seu pensamento cingiu os grandes temas progressistas da nossa época: a saber, que os males dos homens estão nas mãos dos próprios homens, que o mundo se pode domar; que a arte pode e deve intervir na História, que trabalha no mesmo terreno que as ciências, de cujo esforço é solidária; que queremos agora uma arte da explicação e não apenas uma arte da expressão, que o teatro deve resolutamente ajudar a História desvendando-lhe os processos, que as técnicas do palco são também comprometidas; que, enfim, não há uma essência da arte eterna, mas que cada sociedade deve inventar a arte que a fará gerar melhor a sua própria libertação.” Assim escrevia Roland Barthes no início dos anos 60, varrido ele também pelo furacão Brecht que assolou não apenas o teatro e o seu pó-de-arroz mas toda a estética, filosofia, ética e política do pós-guerra. Mas será ainda assim que podemos pensar na obra interminável deste homem conflituoso, arrogante, multifacetado, imprevisível, heterodoxo e reduzido durante anos à mais ornamental das ortodoxias, múmia de Estado imposto? Será ainda possível pensar com Brecht, contra Brecht, seguindo-lhe ou invertendo-lhe a passada larga, provocatória e sarcástica?
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Jorge Silva Melo Cheguei às cidades nos tempos da desordem Quando aí grassava a fome. BRECHT, Aos que nascerem depois de nós
Foram tempos de trevas aqueles em que viveu Brecht. Nascido em Augsburgo em 10 de Fevereiro de 1898, tinha 16 anos na Primeira Guerra. O mundo ruía, os homens morriam. Mas havia quem pensasse que tudo podia ser de outra maneira. Que a guerra nascia da crise do capitalismo, que a união dos trabalhadores (conquistada, difícil união cheia de cisões) podia dizer não aos patrões, e só assim dizer não à guerra. Foram os anos da mais vibrante produção artística e intelectual. Os anos do pensamento mais livre. Os anos de Rosa Luxemburgo, a judia polaca. E, ao passarmos à curva decrescente da guerra, rebenta Outubro, há-de rebentar a Revolução Espartaquista, hão-de implantar-se os Conselhos de Munique. E matam Rosa. E não é a paz “dos cemitérios” que se lhe segue que irá aclarar as trevas nem os gritos. A Alemanha perde a guerra. E a Revolução perde na Alemanha. Para logo aí começar a grasnar a pestilência nazi.
Quero os campos de tabaco da Virgínia, quero a minha liberdade. BRECHT, Na selva das cidades
Brecht, que chegou às cidades “em tempo de desordem”, viu que “os homens se revoltavam” e “com eles se revoltou”. E aprendeu a não respeitar as leis e a gostar dos canalhas e das vielas, a proclamar, vaidoso, a poesia das tabernas contra o bruxulear dolente das academias, a exigir da vida a aventura ilimitada. Há neste jovem Brecht, nesta avidez, neste leitor incessante de Rimbaud, tocador de guitarra como Wedekind, um ímpeto imparável. Para este Brecht, romântico extremo e anti-romântico por ódio à expressão das almas, o teatro (como para outros, nessa altura ou depois ou ainda agora, o cinema,
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a pintura, a música) nasce da literatura. Por isso, este homem orgulhosamente novo e assombrado por um cio secular tem que arrombar as portas aveludadas dos palcos com a brutalidade da palavra. Pois é na palavra roubada a Villon, no escárnio da pobre língua desse e outros salteadores, que o desejo se produz.
Tens de cortar do corpo o próprio pé. BRECHT, A decisão
Entre Rimbaud e Lenine, o coração vai à tropa. Se Brecht ainda anda perto dos Espartaquistas (a recusa da guerra, a consciência da guerra de classes contra a ideia de guerra nacional, o apelo à deserção), cedo se lhe coloca a questão política da organização, a pergunta “Como fazer?”: como criar a disciplina, como organizar um partido. Como crescer. Entre Baal e Fatzer corre a vida nessa dolorosa passagem até à maturidade. Até se conseguir pensar com a cabeça de muitos, libertos das amarras da individualidade, da sensibilidade, na invenção (sangrenta) do colectivo, do Partido. Para Brecht, a chegada a Berlim — onde descobre Marx e Lenine — é também a passagem de solteiro a pai. Ávido de experiências, hiper-activo, presente em todos os lados, dos cafés às organizações políticas, dos amores às editoras, das pautas aos teatros, inscreve na história recente da Alemanha a tragédia do comunismo e nesta a do seu crescimento individual. E é a aprendizagem da “impiedade” a que cresce na sua obra. Que Rimbaud, o das barricadas e do álcool, conduz ao desespero do terrorismo é uma verdade que a tragédia Baader-Meinhof veio de novo evidenciar. Como sobreviver à revolta? Matando. Mas como, se "depois de nós só haverá vencidos"? Cresce-se matando dentro de nós e matando os outros. Com "humildade", diz-se em Fatzer e arrepia. Porque a questão é aprender a "cortar do corpo o próprio pé". Questão que é posta ora na hesitação anárquica de Fatzer, ora na afirmação bolchevique de A decisão.
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Mas não é este o princípio que justifica todo o poder e os seus abismos? Não foi isso o que foram pelo mundo espalhando Loyola & Francisco Xavier?
Nós, que mudámos mais vezes de terra que de sapatos. BRECHT, Aos que nascerem depois de nós
Dinamarca, Finlândia, Moscovo uns tempos breves, e a América, a América de Nova Iorque mas também a de Los Angeles, a Suíça logo a seguir a MacCarthy, estas as terras do exílio desde que a besta nazi tomou o poder. Exílio em companhia das muitas mulheres, ex-amantes, colaboradoras, filhos, uma verdadeira tribo que viaja e sobrevive e com quem continua a escrever. A escrever poesia, as suas peças maiores, ensaios, diários, tentando escrever romances, polémicas sem cessar. E conversando no quintal com Benjamin. Benjamin mata-se em Port Bou em Setembro de 1940. A vida levará Brecht para Hollywood (“essa nova Weimar”, diz Müller).
Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar; Dizer a verdade e não dizer a verdade; Prestar serviços e recusar serviços; Ter fé e não ter fé; Expor-se ao perigo e evitá-lo; Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo Só tem uma virtude: A de lutar pelo comunismo. BRECHT, A decisão
O comunismo nunca se recompôs da morte de Rosa Luxemburgo. E o diálogo frontal com Lenine, apenas esboça-
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do, logo seria abafado. Sucedem-se-lhe os discursos paralelos de iguais (Stálin/Trotsky) ou opostos (Stálin/Hitler). Ao diálogo sobrevive o monólogo, ao debate a solidão, às massas o leninismo militar. A esta ameaça bolchevique responde a abjecção fascista. E o comunismo desfaz-se até à pizza da netinha de Gorby (ex-KGB). Mas a pergunta continua: como exercer, como conquistar o poder popular? Como guardar a revolta juvenil que surge quando se descobre que o nosso desejo não cabe no mundo? Como fazer ribombar o gesto renovadamente punk dos que se indignam… até casarem? “Ele pensa que, se Marx e Engels tivessem lido o Barco Bêbedo de Rimbaud, tê-lo-iam entendido no sentido do grande movimento histórico em que ele se situa. Teriam claramente percebido que o que ele descreve não é o passeio de um poeta excêntrico mas a luta, a fuga de um homem que não suporta viver dentro das barreiras de uma classe que estava nessa altura a abrir os continentes mais exóticos aos seus interesses mercantis”, anota Benjamin nas Conversas de Svendborg. Com a criação, no pós-guerra, do Berliner Ensemble, Brecht tenta criar — como um modelo — uma comunidade. Uma comunidade, agora, de foras da lei mas dentro do Estado. A sua extraordinária inteligência, o génio táctico, a sua argúcia infinda, a sua capacidade de entusiasmar os melhores ocupou, e com que brilho, os seus últimos anos. Ocupado com uma companhia, com as enormes dificuldades políticas perante os “aparatchiks” que cresciam e por todo o lado se sentavam, Brecht escreve menos: a sua última obra não é literária, é a criação política de uma comunidade. Ora é precisamente na oposição Estado / Comunidade que se centra o debate político. O que ficou por fazer entre Rosa e Lenine, o que apenas se anota nas conversas dinamarquesas entre Benjamin e Brecht. E foi esse debate o que Fascistas e Estalinistas (em campos opostos, repita-se sempre) esmagaram, e com que traições, na Guerra de Espanha. Sempre tentando criar (pelo diálogo, pelo debate, pela incessante polémica) a comunidade ora fora ora dentro do Estado.
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Que podemos fazer nós, artistas, deste gesto inacabado mas agora suspenso por cima de nós? Como criar um colectivo? Como fazer fermentar o exemplo vivo de uma comunidade? Pergunta cristã: a isto respondeu pela vida Francisco de Assis.
Pouco podia fazer. Mas os senhores do mundo Sem mim estavam mais seguros, esperava eu. E assim passou o tempo Que na terra me foi dado. As forças eram poucas. A meta Estava muito longe Claramente visível, mas nem por isso Ao meu alcance. E assim passou o tempo Que na terra me foi dado. BRECHT, Aos que nascerem depois de nós
Na melancolia destes versos não temos um balanço de vida pessoal mas um balanço histórico. A História e os seus meandros, as suas forças em conflito é que estão aqui apontadas. Colocando-se a si sempre no gesto comum aos outros homens, Brecht sabe-se vivendo na contingência. Esse “pouco” que ele diz poder fazer, fê-lo. E, embora pouco e distante da meta, foi feito. Não é por acaso que ao seu diário ele chamou "diário de trabalho". Ele que gostou de publicar textos por acabar, notas, indicações, sugestões, discussões, que foi sempre tornando público o seu pensamento em formação, que abriu os ensaios a quem quisesse por lá passar, não o fez como um "Ecce Homo" mas sim no ruidoso movimento da História. Se a História é o Trabalho é porque o Tabalho é a História. Trabalhemos. Nós que preparámos o terreno para a amabilidade Não pudemos nós ser amáveis. BRECHT, Aos que nascerem depois de nós
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2 olhai para nós com atenção BRECHT, Aos que nascerem depois de nós
E o trabalho agora é editar sistematicamente as peças de teatro de Bertolt Brecht finalmente em português e em traduções a partir do original alemão conformes à edição crítica em 30 volumes publicada em 1989 pela Suhrkamp Verlag (Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe). Terá sido em 1940, nas páginas da revista O Diabo que, em tradução de Mário Fonseca de Azevedo, se publicou em português o primeiro texto de Bertolt Brecht, o ensaio “A coragem de escrever a verdade”. Na Vértice de Agosto-Setembro de 1954, Ilse Losa traduz o conto “A velha inconveniente”. E em várias revistas e jornais da segunda metade dos anos 50, com destaque para O Comércio do Porto, a Vértice, o Diário de Lisboa e o Diário Ilustrado, vão sendo publicados ensaios (traduções de Luiz Francisco Rebello e Redondo Júnior), poesias (em traduções de Jorge de Sena, Egito Gonçalves ou Mário Henrique Leiria). O primeiro texto teatral a ser publicado terá sido, em 1957, A excepção e a regra, tradução de Luiz Francisco Rebello e Fernando Abranches Ferrão na colectânea Teatro Moderno. Caminhos e Figuras. Poesias, excertos de peças, textos teóricos vão sendo entretanto traduzidos por Redondo Júnior, Mário Vilaça e sobretudo Paulo Quintela que, em 1975, reúne, no volume Poesias e Canções, as suas versões. Em 1962, a Europa-América edita o romance Os negócios do senhor Júlio César em tradução de Ramos Rosa e a Portugália Editora inicia, em 1961, a publicação regular do Teatro em traduções de Ilse Losa, com poesias traduzidas por Jorge de Sena e Alexandre O’Neill. A publicação destes volumes, em traduções que, posteriormente, serão de Yvette Centeno e Fiama Hasse Pais Brandão, teve um ritmo regular até 1970, tendo sido
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publicados 5 volumes de Teatro e o volume de Estudos sobre teatro. O sexto volume só será publicado em 1975, numa altura em que a editora já abandonara o projecto de publicar todas as peças. É de 1971 a primeira antologia de poesia, traduzida por Arnaldo Saraiva (Presença). A primeira representação de uma peça de Brecht ocorreu no Teatro Capitólio quando a companhia brasileira de Maria Della Costa trouxe A alma boa de Se Tsuan em tradução de A. Bulhões e J. Campos com direcção de Flaminio Bollini, cuja estreia, a 12 de Março de 1960, provocou violenta intervenção da polícia política e dos intelectuas da extremadireita. Se, nos anos finais da ditadura, alguns grupos universitários (o CITAC, o Grupo do Instituto Superior Técnico, os alunos do Liceu Padre António Vieira, por exemplo) se lançaram na produção de textos de Brecht, é a partir de 1974 e depois da estreia em Almada de Terror e miséria do III Reich pelo Teatro da Cornucópia, a 13 de Julho, que se sucedem montagens de textos de Brecht por grupos profissionais e amadores em espectáculos dirigidos, entre outros, por encenadores como João Lourenço, Mário Barradas, Carlos Avilez, José Gil, Roberto Merino, José Celso Martinez Correia, Luís Varela, Carlos Wallenstein, João Mota, Artur Ramos, Fernando Gusmão, Carlos César, José Peixoto, Joaquim Benite, Antonino Solmer. Curiosamente, esta produção intensa dos textos, que abrandou nos anos 80, não teve correspondência no plano editorial onde passam a ser esporádicas as publicações de algumas das traduções utilizadas. E, a partir desses mesmos anos, é quase só João Lourenço e o Novo Grupo que, em co-produções com o Teatro Nacional D. Maria II e o Teatro Nacional de São Carlos, ou em produções próprias continuam a estrear as obras da maturidade de Brecht em traduções de Vera San Payo de Lemos e João Lourenço. No ano do centenário, a Dinossauro edita uma antologia onde insere dois textos de teatro em tradução de Ana Barradas e são publi-
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cados os poemas eróticos. Um dos mais importantes textos teóricos, A compra do latão, é apenas publicado, pela Vega, em 1999*. Voltemos, então, a Brecht. Com atenção. JORGE SILVA MELO
* Para uma bibliografia exaustiva, consultar os volumes Do Pobre BB em Portugal. Aspectos da recepção de Bertolt Brecht antes e depois do 25 de Abril de 1974 (Aveiro, Editora Estante, 1991) e Do Pobre BB em Portugal. A recepção dos dramas “Mutter Courage und ihre Kinder” e “Leben des Galilei” (Coimbra, Livraria Minerva / Centro Interuniversitário de Estudos Germanísticos, 1998), coordenados por Maria Manuela Gouveia Delille, da editora Estante de Aveiro.
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Definição de um território. Os primeiros trabalhos do jovem Brecht
“De vez em quando assalta-me a ideia de que os meus trabalhos possam ser demasiado primitivos e antiquados, ou toscos e pouco ousados. Ando em busca de novas formas e faço experiências com a minha maneira de sentir como os mais jovens. Mas depois volto sempre a reconhecer que a essência da arte é simplicidade, grandeza e sentimento e a essência da sua forma, frescura.” — anota o jovem Brecht de 22 anos, em 27 de Junho de 1920, nas primeiras páginas do seu diário1. Entre Augsburg, a cidade-natal, onde vive com a família e tem o seu grupo de amigos, e Munique, a cidade universitária mais próxima, onde se inscreve como estudante de Medicina e Filologia e frequenta seminários de Teatro, Brecht tenta afirmar-se como autor, desdobrando-se em experiências de escrita diversificadas: críticas de teatro para o jornal Volkswille de Augsburg, baladas para cantar com os amigos à guitarra, nos bares e nas ruas de Augsburg, sinopses para a arte emergente do cinema e peças de teatro de diferentes géneros, questionando não só o repertório clássico, habitual até hoje na maioria dos teatros institucionais no espaço de língua alemã, como também as novas peças, surgidas com o movimento expressionista. Tanto na reflexão, desenvolvida em cartas, apontamentos, no diário e nas críticas de teatro, como na prática da escrita, Brecht procura definir o seu território e os seus pontos de vista no confronto com os modelos literários e teatrais do passado e do presente. Mais do que ser diferente dos demais apenas por espírito de contradição ou irreverência, o jovem Brecht pretende descobrir o seu lugar, aquilo que realmente lhe interessa e se coaduna com a sua maneira de pensar e sentir
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o mundo e a arte. O receio de que os seus trabalhos possam ser “demasiado primitivos e antiquados, ou toscos e pouco ousados” resulta de duas tendências que o caracterizam e se irão manifestar ao longo de toda a sua obra: o pendor para a simplicidade do que é concreto e material e o afastamento em relação a todo e qualquer excesso de idealismo e sentimentalismo. Nesse sentido, a “nobre simplicidade e silenciosa grandeza”, que segundo Wieland definem as obras clássicas do passado, estariam mais próximas da maneira de sentir e da procura artística de Brecht do que os “esforços extremos” que tanto critica e gostaria de eliminar nos novos dramas expressionistas, como refere em Junho de 1921 no diário, a propósito da peça De manhã até à meia-noite de Georg Kaiser2. Quando Brecht escreve as primeiras peças, Baal, em 1918, Tambores na noite e as peças em um acto, A boda, O mendigo ou O cão morto, Expulsando um demónio, Lux in tenebris, A pesca, em 1919, ou começa em 1921 a trabalhar em Na selva, que se tornará em 1927 Na selva das cidades, o expressionismo polarizava círculos significativos da intelectualidade alemã e parte da juventude, sobretudo a que tinha sofrido a experiência das trincheiras na Primeira Guerra Mundial. Tendo surgido no princípio do século XX como movimento de ruptura em relação às concepções e formas de expressão do naturalismo e do realismo, o expressionismo é inseparável da crise da sociedade alemã, abalada por fenómenos como a industrialização crescente, o aparecimento das grandes cidades, a experiência da guerra e da derrota militar, o fim do império, do peso do seu autoritarismo mas também do conforto das suas crenças seguras, a instauração de uma república de constituição liberal entre os tumultos gerados em Munique e Berlim em 1919 pela perspectiva de uma revolução socialista, à semelhança da Revolução Russa de 1917. Apesar do carácter heterogéneo dos estilos dos expressionistas, o grito de revolta moral e existencial contra uma sociedade de valores abalados e a exigência de um mundo ideal são comuns. Proclama-se a
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necessidade de transformar e humanizar o mundo, regenerando a condição humana. A transformação do mundo, entendida como conversão da humanidade, teria assim de começar pela transformação do homem, pela sua transfiguração num homem novo, ideal, e não pela transformação política e económica da sociedade real. O grito expressionista encontra no teatro o espaço privilegiado para a apresentação do seu ideal de renovação. O palco pode transformar-se numa espécie de tribuna, e a acção dramática e os recursos cénicos dão corpo às ideias. De acordo com o princípio segundo o qual a transformação do mundo passa pela transformação do homem, o herói do drama expressionista desempenha um papel fundamental, pois funciona como suporte de uma ideia e representa o espírito desafiando a matéria. Este princípio determina também a estrutura específica do drama expressionista, o drama em estações, que rompe com a forma fechada do drama clássico, substituindo-a por uma sucessão de episódios, cenas ou quadros que figuram um percurso, ao longo do qual o herói se transforma ou transfigura. A transfiguração do eu ao longo das estações de um calvário e a crença na conversão da humanidade a partir dessa transfiguração, propagados pelo drama expressionista, estão impregnados de religiosidade. Na etapa final do seu percurso, o herói vive a experiência mística das correntes que o ligam à humanidade e descreve a visão de um mundo novo numa linguagem enfática e exclamativa. Começando a escrever numa época ainda impregnada deste ideário e em que os teatros apresentavam muitas peças expressionistas, o jovem Brecht demarca-se desde o início muito claramente do expressionismo e segue um caminho próprio. Apesar das primeiras peças terem surgido na época do expressionismo e apresentarem algumas das suas características, o jovem Brecht e a sua produção dramática não podem ser considerados expressionistas. Vários factores contribuíram para isso. Durante a ascensão do movimento, Brecht
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era ainda estudante de liceu na cidade algo provinciana de Augsburg, onde o movimento pouco se fazia sentir. Mais novo do que os expressionistas propriamente ditos, como Werfel, Becher e Toller, Brecht não participou activamente na guerra que tanto os marcou. Foi chamado para o serviço militar em Outubro de 1918, pouco antes da guerra terminar, e cumpriu-o apenas durante três meses num hospital em Augsburg, a poucos minutos da casa dos seus pais. Não esteve na Frente, nas trincheiras, e, ao contrário de vários expressionistas, também não se envolveu muito nem depositou grandes esperanças nos movimentos revolucionários de 1918/1919. Nessa altura, não era especialmente politizado. O seu interesse fundamental era afirmar-se como escritor, como alguém que tinha algo de novo para dizer. O expressionismo, com o idealismo e a linguagem excessiva que lhe eram próprios, estimulou Brecht à expressão da diferença, a definir, por contraste, as suas próprias ideias sobre a literatura e a arte e a criar uma obra apostada em ser nova, diferente da dos expressionistas. A confrontação do jovem Brecht com o drama expressionista e as ideias que lhe estão subjacentes articula-se nas cartas que escreve aos amigos, no diário que mantém com regularidade entre 1913 e 1922, nos escritos soltos em que desenvolve as suas ideias sobre a literatura e arte, nas críticas de teatro que escreve entre 1919 e 1921 para o jornal Volkswille de Augsburg e nas suas duas primeiras peças, Baal e Tambores na Noite. Numa carta ao amigo Caspar Neher, datada de Junho de 1918, escreve: “Este expressionismo é horrível. Todo o sentimento relativo ao corpo belo, redondo ou magnificamente informe, estiola como a esperança pela paz. O espírito triunfa em toda a linha sobre o que é vital. O que é místico, espiritual, tísico, inchado, extático, aparece empolado e tudo cheira a alho. [...] Vão expulsar-me do céu desses nobres, idealistas e espirituais. [...] E eu proclamo a minha independência e cuspo e estou farto do que é novo e começo a trabalhar
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com o que é muito antigo, com o que foi experimentado mil vezes, e faço o que quero, mesmo que aquilo que quero seja mau. E eu sou um materialista e um malandro e um proletário e um anarquista conservador e não escrevo para a imprensa, mas para mim, para ti e para os japoneses.”3
Nos escritos, as críticas ao expressionismo, sobretudo ao teatro expressionista, são contundentes. Assim, num texto intitulado Über den Expressionismus (Sobre o expressionismo), Brecht apresenta a sua tese logo na primeira frase, afirmando: “Expressionismo significa exagero grosseiro.”4 Num outro texto, com o título Das Theater als sportliche Anstalt (O teatro como instituição desportiva), Brecht vai ainda mais longe e ridiculariza as representações destes dramas no teatro, chamando a atenção para um aspecto que irá desenvolver mais tarde na sua teoria do teatro épico: a importância de o espectador ter espaço e tempo para pensar e poder assumir uma atitude crítica perante aquilo que lhe é apresentado. Considerando que o drama expressionista é excessivo e irrealista e nada diz às pessoas, Brecht escreve: “Os nossos novos reformadores, que ficaram com o governo do teatro (literário) nas mãos, [...] quiseram transformar o teatro [...] num templo. Construíram púlpitos e afixaram cartazes vermelhos que diziam para se ir aos templos, que eles estavam lá. E as boas pessoas vestiram os seus melhores fatos e vieram dos seus negócios, das suas lutas por ovos, amantes e honras, e encontravam-nos nos púlpitos a gritar que o homem tinha de se renovar, [...] que a tirania era extremamente desagradável e ainda por cima desprezível, e alguns deles trespassavam os braços com facas ou engoliam sapos ou cuspiam fogo ou balançavam oitocentos elefantes ou mostravam as varizes. E as pessoas em baixo comportavam-se de forma sossegada e digna, porque pelo menos, felizmente, não percebiam muito bem a linguagem dos reformadores e escancaravam a boca, podia-se-lhes ver o estômago, e lá dentro não tinham nada.
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Mas depois de ficarem a saber que a tirania era desagradável, [...] iam-se embora descansadas e nunca mais voltavam. E contudo estavam apenas a incorrer num erro. Aquelas mesmas pessoas que ali cuspiam fogo e se trespassavam, tê-las-iam divertido imenso se se tivessem apresentado noutro lugar, ou seja, no circo. Aquelas mesmas pessoas que se iam embora, teriam ali despido o casaco e feito apostas e assobiado e ter-se-iam divertido imenso. Mas não podiam fazer isso na igreja… Portanto eu sugiro, [...] imprimam novos cartazes! Convidem as pessoas para o circo. E aí elas podem estar em mangas de camisa e fazer apostas. E assim não precisam de ficar à espera de abalos espirituais e concordar com os jornais, mas ficam a ver como as coisas correm bem ou mal a um homem, como ele é oprimido ou festeja os seus triunfos, e então vão lembrar-se das lutas da manhã […]”5
Baal come, Baal dança, Baal transfigura-se!
A análise das duas primeiras peças de Brecht, Baal e Tambores na noite, demonstra que a crítica ao drama expressionista, que enforma a escrita destas duas peças, questiona, recusa, parodia e inverte fundamentalmente o idealismo das suas concepções. A primeira versão de Baal, datada de 1918, apresenta-se explicitamente como uma réplica a uma peça expressionista, estreada nesse mesmo ano: O solitário, de Hanns Johst, centrada na figura do poeta Christian Grabbe (1801-1836). Ao poeta Grabbe, que se considera um génio, se compara a Goethe e a Cristo, sente em si as forças do espírito divino e quer redimir com a sua obra toda a humanidade, Brecht contrapõe o fazedor de poemas e canções Baal para quem a poesia não é nada de transcendente, mas sim uma actividade tão terrena e vital como comer, beber e amar. Na apresentação das primeiras versões de Baal, Brecht introduz a figura de Baal em
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claro contraponto às características dos heróis expressionistas: “Baal. Não pensem ver nele uma natureza especialmente trágica nem especialmente cómica. Baal tem a seriedade de todos os animais.” Encontra-se o mesmo conjunto de referências no título inicialmente pensado para a peça: “Baal come, Baal dança, Baal transfigura-se!”6 Enquanto Grabbe se transfigura na morte, Baal transfigura-se no prazer material e goza a vida com todos os seus sentidos. Ao louvor do espírito e ao êxtase visionário do génio poético no drama expressionista de Johst, Brecht contrapõe a afinidade de Baal com o reino animal e as forças da natureza. Para Baal, a religião não é um assunto da alma, mas do corpo que vibra com as cores do céu e o vento a soprar por entre as árvores. Enquanto Grabbe se enaltece, escrevendo sobre grandes figuras do passado, como Cristo, Alexandre, Napoleão, Baal desmistifica qualquer auréola da sua habilidade para a poesia, fazendo o louvor da retrete na canção que canta para os carroceiros na taberna ou quebrando o contrato com o cabaret onde actua, porque “Sem aguardente não há poesia.” Em 1919 Brecht escreve uma segunda versão de Baal, a primeira versão de Tambores na noite e as peças em um acto A boda, O mendigo ou O cão morto, Expulsando um demónio, Lux in tenebris e A pesca. Neste conjunto de primeiras peças, revelam-se diversos aspectos que irão caracterizar a obra de Brecht e os seus processos de trabalho ao longo da vida: a capacidade de trabalhar em simultâneo em projectos diversos, a interacção entre a prática de reflexão e discussão sobre a escrita na prática da escrita e do palco, a reformulação das peças em novas versões e a concepção do trabalho da escrita como um processo, dinâmico, experimental, aberto às sugestões e inflexões do mundo em volta, que o levará mais tarde a intitular a publicação dos seus trabalhos como Versuche (Experiências, Ensaios ou Tentativas). Nesta segunda versão, Brecht solta-se do objectivo de réplica cerrada à peça de Johst e re-
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força o carácter selvagem de Baal assim como a sua atitude de desprezo pelas convenções sociais. A abertura da peça com O coral do grande Baal, biografia metafórica da figura, cujo nascer e morrer surge integrado no ciclo da natureza, acentua o contraste com a primeira cena em que Baal surge em sociedade, como um poeta centrado no prazer da comida e da bebida, desafiador dos bons costumes e desinteressado das opiniões tendentes a transformar a sua arte em mercadoria e negócio. Brecht envia esta versão a teatros e editoras na esperança da representação e publicação da peça, mas o fracasso destas diligências leva-o a reformular a peça numa terceira versão entre 1919 e 1920, atenuando a atitude provocadora de Baal e suprimindo cenas, como por exemplo todas as cenas entre Baal e a mãe. É esta versão que, com novas pequenas modificações, acaba por ser publicada em 1922 na editora Kiepenheuer em Berlim, em resultado dos contactos estabelecidos na primeira viagem à capital em Fevereiro de 1920, e estreada no Altes Theater em Leipzig a 8 de Dezembro de 1923. É esta também a versão escolhida para publicação neste volume. A estreia de Baal é recebida com muitos protestos, mas também aplausos por parte do público. A crítica considera Brecht ora “uma grande esperança do drama alemão” ora um mero “epígono espumejante”, a peça “uma balada cénica genial” que o actor principal não soube interpretar à altura, e o espectáculo, no seu conjunto, “muito à beira do escândalo”, com o público “fora de si como nunca”7. Apesar de as críticas negativas serem relativamente moderadas, a peça é retirada de cartaz logo após a estreia. Em 1926 Brecht elabora uma quarta versão com o título Lebenslauf des Mannes Baal (Vida do homem Baal). Concebida como uma biografia dramática, esta versão, muito mais curta, desloca Baal da natureza e contextualiza historicamente os episódios da sua vida (de mecânico que trabalha numa garagem) no período antes da guerra, no advento das grandes
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cidades, entre 1904 e 1912. Com encenação de Brecht e cenografia do seu amigo Caspar Neher, esta versão estreia no Deutsches Theater em Berlim em 14 de Fevereiro de 1926, gerando também algum tumulto entre o público, mas com críticas predominantemente positivas. Com outras duas encenações, uma estreada no Theater in der Josefstadt em Viena em 21 de Março de 1926, outra no Kleines Theater em Kassel em 16 de Novembro de 1927, as três encenações de Vida do homem Baal serão, juntamente com a estreia da versão de 1922 em Leipzig, as únicas apresentações de Baal durante a vida de Brecht. Por volta de 1930, a figura de Baal é novamente trabalhada num texto que ficou fragmento, intitulado Der böse Baal der asoziale (Baal o mau o associal). Em 1953 a editora Suhrkamp, sediada na Alemanha Ocidental, inicia a publicação das obras completas de Brecht com as peças de juventude. Embora Brecht pretendesse introduzir alterações em Baal, não o chega a fazer por falta de tempo e a versão publicada acaba por ser a terceira, surgida em 1922. As alterações vêm a ser feitas pouco depois para a publicação das obras completas na editora Aufbau de Berlim Leste. Em 1955, um ano antes da morte de Brecht, surge a quinta versão de Baal, em que Brecht retrabalha sobretudo a primeira e a última cena. Na primeira cena são introduzidos, por exemplo, poemas expressionistas de Johannes R. Becher e Georg Heym que contribuem para situar a acção de Baal na época em que o jovem Brecht a criou. Por realizar fica o projecto de uma ópera em torno da figura de Baal, referido em 1953 no texto Bei Durchsicht meiner ersten Stücke (Ao rever as minhas primeiras peças). Baal seria aí um “pequeno deus da felicidade” que “vindo do Leste, entraria depois de uma grande guerra nas cidades destruídas e quereria levar as pessoas a lutar pela sua felicidade pessoal e pelo seu bem-estar.”8
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Vera San Payo de Lemos Queriam que o meu corpo apodrecesse numa sarjeta, só para as vossas ideias chegarem ao céu? Estão bêbedos?
Em Fevereiro de 1919, no ambiente conturbado das movimentações revolucionárias em curso em Berlim, Munique e também em Augsburg, desencadeadas com o fim da guerra e do império, Brecht escreve em poucos dias a primeira versão de Tambores na noite à qual dá o título de Spartakus. Nesta peça, Brecht reporta-se aos acontecimentos político-sociais que dominam a actualidade e desenvolve um dos temas recorrentes do drama expressionista: o regresso do soldado a casa depois da guerra e o confronto com um mundo de valores abalados. Andreas Kragler, a personagem principal de Tambores na noite, regressa a casa depois de ter sido mobilizado, feito prisioneiro de guerra e enviado para o Norte de África, de onde, à terceira tentativa de fuga, consegue escapar. Passados quatro anos de ausência, em que tinha sido dado como morto, encontra a noiva grávida de um outro homem, um novo rico que lucrou com a guerra e procura ascender socialmente através do casamento com a filha do proprietário de uma fábrica. A decepção e o desespero em que Andreas cai ao confrontar-se com esta situação levam-no a pensar juntar-se aos revolucionários, mas essa intenção é apenas emocional e momentânea, resulta do seu desespero e não de uma convicção política profunda. Ao ter de optar entre os revolucionários ou a noiva, a política ou a família, a bandeira ou a cama, Andreas opta conscientemente pelo que se lhe apresenta mais cómodo e mais seguro e dirige-se para casa com a noiva, dizendo: “Agora é a vez da cama, a cama grande, branca, larga, anda!” Pegando no tema expressionista do regresso do soldado a casa depois da guerra, tratado por exemplo por Toller em Hinkemann, Brecht sublinha nele aspectos diferentes. Ao contrário de Hinkemann, o soldado da peça de Toller, Andreas Kragler não se transfigura num final trágico nem se agarra a nenhum ideal, mas decide, de uma forma muito pragmática e realista, regressar a casa e procurar construir uma vida possí-
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vel em família. No diário, a 2 de Setembro de 1920, Brecht destaca o desfecho não só como o ponto fulcral de toda a acção, mas também como o motivo fundamental que o levou a escrever a peça: “E o desfecho forte, saudável, não trágico, que a peça teve desde o início, e devido ao qual foi escrita, é o único desfecho, qualquer outra coisa é um arremedo, uma mistura frouxa, capitulação frente ao romantismo. Há aqui uma pessoa que, no auge aparente do sentimento, de repente volta para trás, atira o sentimentalismo patético todo para o lixo, deixa-se gozar pelos seus admiradores e discípulos e vai para casa com a mulher por causa de quem armou aquela trapalhada toda. A cama como imagem final. Qual ideia, qual dever!”9
O que Brecht entende aqui por romantismo é precisamente o idealismo característico dos dramas expressionistas que volta a criticar na opção realista e nada heróica de Andreas Kragler no final. Embora a primeira versão da peça tenha obtido um parecer muito favorável de um autor conceituado e influente como Lion Feuchtwanger, Brecht não consegue que ela seja logo publicada e representada. No verão de 1920 tenta escrever uma nova versão, mas o trabalho não se revela fácil. A principal dificuldade deriva da estrutura clássica, em cinco actos, e da consequente gestão do tempo para o desenvolvimento da acção e a preparação da mudança final. Em Baal, a estrutura tinha sido adoptada do drama expressionista de Johst, era um drama em estações, composto por quadros, que lhe tinha permitido sincopar a linha tradicional da causalidade e criar hiatos de tempo e lugar. A forma clássica, escolhida para Tambores na noite, corrobora a desmistificação operada ao nível do conteúdo. Andreas Kragler não é um verdadeiro herói, o seu drama não chega a ser uma tragédia e o romantismo é desmascarado no fim como falso: “É teatro barato. São tábuas e uma lua de papel e lá ao fundo o açougue, a única coisa verdadeira.”
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Tanto a primeira versão de Tambores na noite, datada de 1919, como o resultado da reformulação empreendida em 1920 desapareceram enquanto documentos. Documentada está a reformulação seguinte, uma versão de palco, feita em 1922 para a estreia da peça, que tem lugar em Munique, no teatro Münchner Kammerspiele, em 29 de Setembro de 1922. É a primeira vez que uma peça de Brecht é representada. A recepção entusiástica por parte do público e da crítica contribui para que lhe seja concedido em Novembro o prémio Kleist, por Baal, Tambores na noite e Na selva, e para que Tambores na noite suba à cena também no Deutsches Theater em Berlim em 20 de Dezembro de 1922. Entre a estreia da peça em Munique e em Berlim, Brecht volta a reformular o texto, desta vez para uma publicação: o quarto e o quinto acto são bastante cortados e as movimentações revolucionárias de Novembro de 1918 e Janeiro de 1919 claramente situadas em Berlim. Esta versão feita para a publicação, também datada de 1922 e utilizada para várias publicações e representações ao longo dos anos vinte, é a que integra este volume. Para a edição das suas obras completas pela editora Suhrkamp, Brecht elabora em 1953 uma nova versão de Tambores na noite, alterando bastante o quarto acto e esboçando a figura de um jovem operário, que tomba como revolucionário e serve de ténue contraponto à atitude de desistência de Andreas Kragler. No texto Ao rever as minhas primeiras peças, o Brecht tardio e politizado confessa ter pensado não incluir no volume das obras completas esta sua peça de juventude e critica o jovem Brecht por nela ter dado expressão ao seu cepticismo quanto à revolução social romantizada, despegada da realidade. Num outro texto, intitulado Meine Arbeiten für das Theater (Os meus trabalhos para o teatro) Brecht justifica-se, recordando o facto de a peça ter sido originalmente escrita para rebater os excessos idealistas que na altura predominavam: “Como minha atenuante poderei talvez dizer que a atitude dos escritores meus contemporâneos e dos seus espectadores, que
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dominavam o teatro, me irritava, porque eles próprios eram todos uns pequeno-burgueses e participavam com o seu palavreado idealista no engano dos Kraglers, surgiam portanto como provocadores, palravam sobre interesses “gerais”, “humanos”, “ideais”, quando também eles não estavam nem por um momento dispostos a dar aos revolucionários proletários, que travavam a verdadeira luta, aquilo de que estes precisavam: a transformação completa das relações de propriedade e de tudo o que fazia parte disso.”10
Agora que encheram a pança, só querem é ir-se embora. Ficamos nós sozinhos e a noite ainda só vai a meio!
As peças em um acto, A boda, O mendigo ou O cão morto, Expulsando um demónio, Lux in tenebris e A pesca, datam todas de 1919 e, com excepção de A boda, que estreou no Schauspielhaus de Frankfurt am Main em 11 de Dezembro de 1926, nenhuma das peças foi publicada ou representada durante a vida de Brecht, mas apenas postumamente, nos anos 60 e 70. Embora pouco se saiba sobre a origem destas peças em um acto, supõe-se que Brecht tenha sido influenciado na sua escrita pelas baladas e pequenas cenas apresentadas nas barracas do Plärrer, uma feira que se realizava todos os anos na primavera e no outono em Augsburg, e pelos momentos cómicos da vida das pessoas simples e os jogos de palavras, característicos dos sketches de Karl Valentin, vistos em Munique. No interesse por este género de pequenas peças, com elementos da farsa popular, reconhece-se também as tentativas de Brecht para ser aceite como autor fora dos circuitos oficiais do teatro. Em A boda, desmascara-se a ilusão da prometida felicidade duradoura e expõe-se a constituição periclitante da nova família na progressiva destruição, durante a festa do casamento, dos móveis que haviam sido construídos pelo próprio noivo para a nova casa. A alegria da boda vai sendo toldada
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por desajustes e tensões, reveladores da farsa de toda a situação. Cenas de casamento com happy end falhado encontramse também em outras peças de Brecht, como Tambores na noite, A ópera de três vinténs, A boa alma de Sé-Chuão, O senhor Puntila e o seu criado Matti, O círculo de giz caucasiano e no filme Kuhle Wampe, cuja cena do casamento revela a influência muito próxima de A boda. O projecto de fazer um filme sobre A boda, que acabou por não se realizar, terá levado Brecht a propor no final dos anos 20, a mudança do título para A boda dos pequeno-burgueses. Na estreia, A boda não obtém especial sucesso: uma parte do público aplaude, outra protesta, e a crítica considera que a peça é mais uma farsa do que uma comédia e que Brecht não revela ter muito humor. O mendigo ou O cão morto recria o ambiente e utiliza personagens próprias de um conto, um imperador e um mendigo, para demonstrar, de forma grotesca, como cada um está preso ao seu mundo e quanto os dois mundos estão separados. A desmistificação dos grandes heróis da história pelo olhar plebeu do mendigo, para quem existe apenas a história quotidiana, irá surgir mais tarde desenvolvida em Mãe Coragem e os seus filhos assim como em outras peças de Brecht. A estreia de O mendigo ou O cão morto ocorre em Berlim Ocidental em 27 de Setembro de 1967 no âmbito de oito estreias de peças curtas de outros autores. Apreciando a peça com base nas obras posteriores de Brecht, a crítica mostra-se desiludida e considera-a mais adequada para exercícios de leitura nas escolas ou apresentação na rádio. Expulsando um demónio apresenta-se como uma pequena peça semelhante às farsas bávaras de Karl Valentin. O diálogo curto e ambíguo, em que o rapaz e a rapariga se provocam, revelando e escondendo os seus medos e desejos, retrata a situação e os comportamentos de forma muito realista e teatral. O desfecho surpreende pelo facto de a ordem abalada, ao nível da família, da igreja e da moral, não ser restabelecida. A peça é estreada por ocasião da abertura do novo teatro
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municipal de Basileia em 3 de Outubro de 1975, no âmbito de uma chamada feira de teatro, em conjunto com vários outros espectáculos. Anunciada como “estreia mundial”, a peça desilude as grandes expectativas da crítica, mas é recebida com agrado pelo público, principalmente devido à encenação. O título de Lux in tenebris reporta-se a Es werde Licht (Faça-se luz), um filme realizado por Richard Oswald em 1917 que, tal como outros filmes destinados a promover a educação sexual da população, teve muito êxito nessa época. Duas continuações em 1918 e um novo filme realizado em 1919, Prostitution (Prostituição), comprovam o interesse suscitado. Outra influência directa resulta provavelmente de uma exposição, mostrada em Augsburg em 1919 pela Sociedade Alemã para o Combate às Doenças Sexuais, em que para além de palestras médicas havia imitações dos fenómenos em cera e quadros explicativos. Entre as peças em um acto, escritas em 1919, Lux in tenebris ocupa um lugar de destaque pelo facto de Brecht expor aqui pela primeira vez o modo como se processam os negócios numa sociedade capitalista. A educação sexual vendida por Paduk e o bordel dirigido pela senhora Hogge são negócios rentáveis e interdependentes. O negócio da tenda de Paduk, expondo as doenças venéreas como consequências da prostituição, não afecta o negócio do bordel da senhora Hogge. O perigo está na possibilidade de um dia a luz tornar claro que o negócio assenta na exploração das raparigas. A peça estreia em Essen em 12 de Junho de 1969 numa encenação que acentua a comicidade do texto e diverte muito o público. A crítica destaca a actualidade do tema e a actuação chaplinesca do intérprete de Paduk, mas considera que o acentuado registo cómico atenuou o ataque à duplicidade da moral burguesa contido na peça. A fábula de A pesca baseia-se num episódio, narrado no canto oitavo, versos 266-366, da Odisseia de Homero. Ares, o deus da guerra, e Afrodite, a deusa do amor, são apanhados a cometer adultério por Hefesto, o marido de Afrodite, e presos
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numa rede, tal como acontece com o Primeiro homem e a Mulher do pescador em A pesca. A comicidade aqui resulta da mistura de registos numa atmosfera com traços realistas e absurdos, em que no torpor da bebida e do sono todos os gatos são pardos e as redes não servem para pescar peixe, mas para punir os pecados da carne. Contudo, a moral dupla não chega propriamente a ser desmascarada. Apesar das referências à Bíblia e das críticas mútuas, nem o pescador nem a mulher se consideram pecadores e cada um procura viver a sua vida como melhor entende, sem se preocupar demasiado com os outros ou com as convenções sociais. A peça estreia em Heidelberg em 11 de Janeiro de 1967, em conjunto com a comédia Astutuli de Carl Orff, num espectáculo que pretendia realçar precisamente dois géneros diferentes de teatro. As críticas são de uma maneira geral positivas, mas, à semelhança do que aconteceu por ocasião das restantes estreias póstumas destas peças em um acto do jovem Brecht, não escondem uma certa desilusão.
Vou levar-me em carne vive lá para fora, para as chuvas geladas. Chicago é fria. Vou lá entrar.
Depois da primeira viagem a Berlim, em Fevereiro de 1920, Brecht começa a interessar-se pela descrição da grande cidade a cuja “hostilidade”, “consistência maligna, de pedra” e “confusão linguística babilónica” quer dar forma, como anota no diário em 4 de Setembro de 1921, quando começa a trabalhar na peça que virá a ser Na selva11. Na “acção metafísica” que se desenvolve entre Garga e Shlink, Brecht irá apresentar uma série de situações que caracterizam a vida nas grandes cidades: a dissolução da família, a solidão, a prostituição que se acentua com a crescente inflação e a procura de contacto humano e evasão num ambiente sentido como frio e anónimo. Embora reconheça estes problemas, o jovem Brecht reconhece também a dimensão mítica da grande cidade enquanto espaço
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representativo da época moderna. No diário, a 24 de Novembro de 1921, Brecht compara as paisagens de Na selva e Baal da seguinte forma: “Uma coisa está na Selva: a cidade. Que tem outra vez a sua natureza selvagem, a sua escuridão e os seus mistérios. Como Baal é o canto da paisagem, o canto do cisne. Aqui fareja-se uma mitologia.”12 Baal morre na floresta entre os lenhadores que todos os dias vão derrubar mais árvores. A paisagem (natural) de Baal tende a desaparecer para dar lugar a um novo tempo e a uma nova paisagem, a paisagem da grande cidade, que Brecht descreve em Na selva como uma problemática existencial. A vida na grande cidade espelha a situação do homem no mundo moderno que Brecht equaciona à escala do universo, designando na peça a cidade de Chicago por “planeta”. A paisagem da natureza e a paisagem da grande cidade contrapõem-se também, em Na selva, na luta entre Garga e Shlink. Os valores de Garga, o apego à infância, à família e às origens no campo e o idealismo do sonho de evasão para o Taiti, são destruídos por Shlink num processo doloroso que promove contudo também a indivuação de Garga e a sua aprendizagem, como pessoa adulta, da vida no espaço da grande cidade. A moderação das emoções e a reflexão lúcida do espectador sobre as situações e as formas de comportamento em palco, mais tarde preconizadas como princípios fundamentais do teatro épico, são curiosamente referidas por Brecht no diário, a 10 de Fevereiro de 1922, logo depois de concluir Na selva: “Espero ter evitado um grande erro de outras obras de arte no Baal e na Selva: o esforço que fazem para arrebatar o público. Instintivamente deixo aqui uma certa distância e cuido para que os meus efeitos (de natureza poética e filosófica) se limitem ao palco. A splendid isolation do espectador fica intacta, não é a sua res, quae agitur, ele não é tranquilizado pelo facto de o convidarem a sentir também, a incarnar-se no herói e, ao mesmo tempo que se contempla simultaneamente em dois exemplares, a actuar de um modo
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indestrutível e significativo. Há uma forma superior de interesse: o interesse pela parábola, pelo outro, pelo que não pode passar despercebido, pelo que nos espanta.”13
A estreia de Na selva tem lugar no Residenz-Theater em Munique em 9 de Maio de 1923, poucos meses antes de uma tentativa de golpe feita por Hitler nessa cidade. O público reage de forma tumultuosa. Num dos espectáculos os nazis chegam a lançar bombas de gás na sala, e a peça é retirada de cartaz depois de seis representações. Thomas Mann explica a reacção de desagrado do público com o facto de este ser conservador e não permitir “arte bolchevista”. Para a estreia da peça no Deutsches Theater em Berlim, em 29 de Outubro de 1924, o texto é encurtado, mas continua em grande medida incompreensível para o público e, embora a actuação do intérprete de Shlink seja apreciada, a peça sai de cartaz depois de cinco espectáculos. Em 1926, já a viver em Berlim, Brecht reformula a peça para publicação e, em 1927, surge a segunda versão de Na selva, agora intitulada Na selva das cidades. É esta a versão publicada neste volume. A nova versão é estreada no Hessisches Landestheater em Darmstadt em 10 de Dezembro de 1927 e, no ano seguinte, apresentada também em Gotha e Heidelberg. As dezasseis cenas da primeira versão, que vem a ser publicada só em 1968, depois da morte de Brecht, são reduzidas a onze. Há aspectos novos na narração da fábula, a luta entre Shlink e Garga adquire maior relevo e a dimensão de parábola é acentuada. As modificações mais significativas verificam-se no final da peça: Garga vence Shlink com uma denúncia feita à polícia, desliga-se da família e, em vez de partir para o campo, opta por Nova Iorque, uma cidade ainda maior do que Chicago. É um final que se enquadra na reflexão anotada no diário no fim de Julho de 1925, em que, depois de fazer um balanço do seu trabalho, Brecht traça perspectivas para o futuro, escrevendo:
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“Como paisagem heróica tenho a cidade, como ponto de vista a relatividade, como situação a entrada da humanidade nas grandes cidades no começo do terceiro milénio, como conteúdo os apetites (demasiado grandes ou demasiado pequenos), como treino do público as gigantescas lutas sociais.”14
Esta definição das coordenadas do território onde se situa e pensa desenvolver os próximos trabalhos surge na sequência da ansiada mudança para Berlim. É aqui, no bulício da grande metrópole, que Brecht irá conseguir afirmar-se como escritor, encenador e dramaturgista, escrever Um homem é um homem, Fatzer, O voo de Lindbergh, as chamadas peças didácticas, A mãe, A santa Joana dos matadouros e Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, ver subir à cena com inesperado êxito A ópera de três vinténs (até hoje uma das peças mais representadas de Brecht), elaborar a teoria do teatro épico, dedicar-se ao estudo do marxismo, interessar-se pelo boxe e pela rádio, realizar com Slatan Dudow o filme Kuhle Wampe, conhecer e colaborar com Helene Weigel, Elisabeth Hauptmann, Margarete Steffin, Kurt Weill, Hanns Eisler, Erwin Piscator, George Grosz, os irmãos Herzfelde, Walter Benjamin – antes de Hitler subir em 1933 ao poder e o levar a sair da Alemanha e a enfrentar duros anos de exílio. Nos volumes seguintes, com novas peças, novas experiências, ensaios e tentativas, essa história poderá ser lida e mais uma vez, de novo, interpretada. VERA SAN PAYO DE LEMOS Todas as citações são retiradas da edição Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe (GkBFA), seguindo-se número do volume e da página. GkBFA, 26, 122. GkBFA, 26, 230. 3 GkBFA, 28, 58. 4 GkBFA, 21, 48. 5 GkBFA, 21, 55 ss.
GkBFA, 1, 18. GkBFA, 1, 534. 8 GkBFA, 23, 241. 9 GkBFA, 26, 151. 10 GkBFA, 24, 23.
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Baal (1922)
Tradução de Jorge Silva Melo, José Maria Vieira Mendes e Vera San Payo de Lemos. Canções traduzidas por João Barrento.
A primeira tradução, da autoria de Yvette K. Centeno, foi publicada no volume Teatro III da Portugália Editora em 1968. A estreia da peça, numa versão de José Fanha e João Lourenço publicada pela Barca Nova Editor em 1982, ocorreu em 14 de Novembro de 1980 com a seguinte ficha técnica: Encenação: João Lourenço; cenário e figurinos: João Vieira; música e direcção musical: Pedro Osório; dramaturgia: Vera San Payo de Lemos; assistência coreográfica: Armando Jorge; interpretação: Mário Viegas (Baal), Irene Cruz (Mãe), João Perry (Ekart), Amílcar Botica, António Banha, Baltazar Terlica, Batista Fernandes, Carmen Santos, Catarina Avelar, Fernanda Lapa, José Eduardo, José Gomes, José Santos, Juvenal Garcês, Luís Pinhão, Lúcio, Manuela Cassola, Maria Emília Correia, Margarida Rosa Rodrigues, Maria José Abreu, Mário Sargedas, Paiva Raposo, Ruy Furtado, Suzana Borges, Vieira de Almeida, Virgílio Castelo, Waldemar de Sousa e os músicos Carlos Bica, Manuel Fatela, Manuel Martins, Mário Laginha, Tomás Pimentel. Produção do Teatro Nacional D. Maria II no Teatro da Trindade. Uma versão da presente tradução serviu de base ao espectáculo dos Artistas Unidos estreado a 7 de Março de 2003 no Teatro Viriato, com a seguinte ficha técnica: Encenação: Jorge Silva Melo; cenário e figurinos: Rita Lopes Alves; interpretação: Miguel Borges (Baal), José Airosa (Ekart); Joana Bárcia (Sophie Barger); Pedro Carraca (Johannes); Rita Durão (Johanna); Paulo Moura Lopes; Américo Silva; Teresa Sobral; Sérgio Gomes; Sérgio Grilo; João Pedreiro; Miguel Telmo; João Meireles; Gustavo Sumpta; João Saboga; Vanessa Dinger; Carla Galvão; António Simão; Vítor Correia; Hugo Samora; Tiago Damião; Isabel Muñoz Cardoso.
Ao meu amigo George Pfanzelt
PERSONAGENS Baal · Mech · Emilie, sua mulher · Johannes · Dr. Piller · Johanna · Ekart · Luise, criada · As Duas Irmãs · A Dona da Casa · Sophie Barger · O Vagabundo · Lupu · Mjurk · A Corista · Um Pianista · O Padre · Bolleboll · Gougou · O Mendigo Velho · Maja, a mendiga · A Jovem · Watzmann · Uma Criada · Dois Guardas · Carroceiros · Camponeses · Lenhadores · Vários homens.
O CORAL DO GRANDE BAAL Já no ventre da mãe Baal crescia Estava o céu grande, baço, em acalmia Cheio de portentos, jovem e sem fundo Como Baal o queria ao vir ao mundo. E o céu ali estava, em tristeza, alegria, Quando Baal dormia, era feliz e não o via. De noite, ele violeta, Baal embriagado: Baal de manhã santo, ele desmaiado. E Baal calcorreia com indiferença Tascas, igrejas, hospitais sem parar, Não há cansaço, minha gente, que o vença, Baal arrasta o céu ao se afundar. No meio da escumalha dos pecadores Rebola-se Baal, nu, sem histeria: Só o céu, mas sempre céu, senhores, Imponente, a nudez lhe cobria. E a grande fêmea, a vida, que se of’rece Rindo àqueles que entre os joelhos aperta Deu-lhe alguns gozos e ele agradece. Mas Baal não morreu: ficou alerta.
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E quando via mortos à sua volta O prazer era sempre a dobrar. Tanto espaço, diz Baal, há pouca malta, Tanto espaço, diz Baal, dentro desta mulher. Se uma fêmea, diz Baal, tudo vos der Deixai andar, que mais não deve ter! Uma mulher com homem não tem mal: Mas crianças teme-as até Baal. Todos os vícios para alguma coisa servem E, diz Baal, também o homem que os tem. Um vício é bom, se souberes p’ra onde vais. Arranja dois: um deles está a mais! Não sejas sorna, que isso não dá prazer! O que qu’remos, diz Baal, é o que tem de ser. Se fizeres merda, diz Baal, essa parada É melhor do que não fazer nada. Mas não sejas tão sorna nem tão dócil Que o prazer, sabe Deus, não é fácil! É preciso membros fortes, experiência: E às vezes não dá jeito a grande pança. Aos abutres anafados que no céu Esperam por Baal morto, ele pisca um olho. Às vezes faz que morre. A ave desceu E Baal, mudo, come-a à ceia com molho. No vale de lágrimas, sob estrelas de outono Baal devora vastos campos, vai mascando. Depois de os limpar, Baal segue cantando Até à eterna floresta, e cai no sono.
O coral do grande Baal
E quando o ventre escuro o chama afinal, O que é o mundo ainda? Baal está farto. Tanto céu sob os olhos tem Baal Que lhe chega de céu, mesmo já morto. E já no escuro da terra apodrecia E estava o céu grande, baço em acalmia Cheio de portentos e jovem e sem fundo Como Baal o quis cá neste mundo.
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