BÚFALO AMERICANO
Título original: American Buffalo David Mamet © 1976 © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2009 ISBN 978-972-795-280-9
David Mamet
BÚFALO AMERICANO
tradução de Telmo Rodrigues
Cotovia
BÚFALO AMERICANO
Personagens: DON DUBROW, um homem na casa dos quarenta, dono da loja de Revenda do Don. WALTER COLE, conhecido por TEACH, um amigo e cúmplice de Don. BOB, moço de recados de Don. Espaço: Loja de Revenda do Don. Uma loja de velharias. Tempo: Uma sexta. O primeiro acto tem lugar de manhã. O segundo acto começa por volta das onze da noite do mesmo dia. Nota: Algumas partes do diálogo aparecem entre parêntesis, marcando uma ligeira alteração na forma de estar de quem fala – talvez uma mudança momentânea para um ponto de vista mais introspectivo. D. M.
PRIMEIRO ACTO
Loja de Revenda do Don. Manh達. O DON e o BOB est達o sentados. DON
E?
Pausa. E ent達o, Bob? Pausa. BOB
Desculpa, Donny.
Pausa. DON
Est叩 bem.
BOB
Desculpa, Donny.
Pausa. DON
Pois. 11
Búfalo Americano
BOB
Se calhar ele ainda está lá dentro.
DON Se achas que sim, o que é que estás aqui a fazer, Bob? BOB
Vim para dentro.
Pausa. DON Tu não vens para dentro, Bob. Tu não vens para dentro até teres acabado o que tens a fazer. BOB
Ele não saiu.
DON O que é que me interessa se ele saiu ou entrou, Bob? Se tens que vigiar o gajo, vigias o gajo. Estou errado? BOB
Eu só fui às traseiras.
DON
Porquê?
Pausa. Porque é que fizeste isso? BOB
Porque ele não saía pela frente.
DON Pois Bob, desculpa lá, mas isto não pode ser assim. Se queres fazer negócio… se nós temos um negócio, não pode ser assim. Vê se te lembras disto. BOB
Sim. 12
Primeiro Acto
DON
Sim, agora… mas e depois?
Pausa. Só uma coisa, Bob. A acção conta. Pausa. A acção põe as coisas a andar e o resto é conversa. BOB
Eu só fui às traseiras para ver se ele saía por lá.
DON
Não te enterres mais com desculpas de merda.
Pausa. BOB
Desculpa.
DON Não me peças desculpa. Não estou chateado contigo. BOB
Não estás?
DON (pausa)
Vamos limpar isto.
BOB começa a limpar o lixo à volta da mesa de póquer. Só te estou a tentar ensinar qualquer coisa. BOB
Está bem.
DON
Põe os olhos no Fletcher. 13
Búfalo Americano
BOB
No Fletch?
DON
O Fletcher, aí está um gajo que se impõe.
BOB
Pois é.
DON
Eu estou-me a cagar. Ele é um gajo que se impõe.
BOB
Pois é.
DON Se pegares nele e o puseres numa cidade qualquer, só com um cêntimo no bolso, à noite ele já tem a puta da cidade na mão. Isto não é conversa Bob, isto é acção. Pausa. BOB
Ele é mesmo bom jogador.
DON Podes apostar que é, Bob, e é aí que eu quero chegar. Jeito. Jeito e talento e tomates para tirares as tuas próprias conclusões. O cabrão ganhou quatrocentos dólares ontem à noite. BOB
A sério?
DON
A sério.
BOB
E quem é que estava a jogar?
DON
Eu…
BOB
Hum, hum… 14
Primeiro Acto
DON
E o Teach…
BOB
(Como é que o Teach se safou?)
DON
(Não muito bem.)
BOB
(Ai não, hum?)
DON
(Não.)… e estava aí o Earl…
BOB
Hum, hum…
DON
E o Fletcher.
BOB
Como é que ele se safou?
DON
Ganhou quatrocentos dólares.
BOB
E mais alguém ganhou?
DON
A Ruthie. Ela ganhou.
BOB
Ela ganhou, hã?
DON
Pois.
BOB
Ela safa-se bem.
DON
Ah pois safa…
BOB
Ela até joga bem.
DON
Pois joga. 15
Búfalo Americano
BOB
Eu gosto dela.
Foda-se, eu também gosto dela. (Não há mal DON nenhum nisso.) BOB
(Não.)
DON
Quer dizer, ela trata-te bem.
BOB
Hum, hum. Como é que ela se safou?
DON
Safou-se bem.
Pausa. BOB
E tu ganhaste?
DON
Safei-me.
BOB
Ai sim?
DON
Sim. Safei-me. Não como o Fletch…
BOB
Não, hum?
DON
Quer dizer, o Fletch joga mesmo.
BOB
Ele é muito esperto.
DON
Podes ter a certeza que é.
BOB
Eu sei. 16
Primeiro Acto
DON
Já nasceu assim?
BOB
Hã?
DON Estou-te a perguntar se ele nasceu assim ou se achas que ele teve que aprender. BOB
Teve que aprender.
DON Podes ter a certeza que teve. E nunca te esqueças disso. Isto é válido para tudo, Bobby: aquilo que te vai acontecer, aquilo que não te vai acontecer, o que importa é que consigas lidar com isso e que aprendas com isso. Pausa. E é por isso que eu te digo para te impores. É igual para todos, não é diferente para ti. Tudo o que eu e o Fletcher sabemos foi aprendido na rua. É isso que faz um negócio… bom senso, experiência e talento. BOB Como quando ele conseguiu sacar aquelas barras de ferro à Ruthie. DON
Quais barras de ferro?
BOB
Aquelas que ele lhe tirou daquela vez.
DON
Quando é que foi isso?
BOB
Na carrinha dela. 17
Búfalo Americano
DON
Eu acho que aquelas barras de ferro não eram dela.
BOB
Não eram?
DON
Aquelas barras de ferro eram dele, Bob.
BOB
A sério?
DON
A sério. Ele comprou-lhas.
Pausa. BOB
Mas ela estava mesmo chateada com ele.
DON
Pois estava.
BOB
Ah, pois.
DON
Ela estava chateada com ele?
BOB
Estava. Por ele lhe ter roubado as barras de ferro.
DON
Ele não as roubou, Bob.
BOB
Não?
DON
Não.
BOB
Ela estava chateada com ele…
DON Bem, até pode ser que sim, Bob, mas a verdade é que aquilo não deixou de ser negócio. É assim que são os negócios. 18
Primeiro Acto
BOB
O quê?
DON
Cada qual a tratar de si. Hum?
BOB
Não.
DON Porque há os negócios e há a amizade, Bobby… há muitas coisas, e quando se anda por aí ouve-se muita coisa e o que se tem que saber é quem são os teus amigos e quem é que te tratou de que maneira. Senão o resto é lixo, Bob, porque vou dizer-te uma coisa. BOB
Está bem.
DON
As coisas nem sempre são o que parecem.
BOB
Eu sei.
Pausa. DON Há muita gente nesta rua, Bob. Querem isto e querem aquilo, e fazem qualquer coisa por isso. Não tens amigos nesta vida… Queres alguma coisa para o pequeno-almoço? BOB
Não tenho fome.
Pausa. DON
Nunca saltes o pequeno-almoço.
BOB
Porquê? 19
Búfalo Americano
DON O pequeno-almoço… é a refeição mais importante do dia. BOB
Não tenho fome.
DON Isso não interessa nada. Sabes quantos nutrientes há no café? Zero. Nem um. Aquilo come-te vivo. Não podes viver de café, Bobby. (E já te tinha dito isto). Não podes viver de cigarros. Até te podes sentir bem, podes sentir-te porreiro, mas há alguma coisa que está a trabalhar demais e quem paga és tu. Vamos lá saber: o que é que me vês comer quando chego aqui todos os dias? BOB
Café.
DON Vá lá Bob, não me fodas. Eu bebo um café… mas o que é que eu como? BOB
Iogurte.
DON
Porquê?
BOB
Porque te faz bem.
DON Podes apostar que faz. E também não te matava se tomasses umas vitaminas. BOB
São muito caras.
DON Não te preocupes com isso. Devias tomar vitaminas. 20
Primeiro Acto
BOB
Não tenho dinheiro para isso.
DON
Não te preocupes com isso.
BOB
Vais comprar-me vitaminas?
DON
Precisas?
BOB
Preciso.
DON Então está bem, eu compro-te umas. O que é que achas? BOB
Obrigado, Donny.
DON
É para o teu bem. Não precisas de me agradecer…
BOB
Está bem.
DON Não me serves para nada se andares por aqui como um morto-vivo. BOB
Eu só fui às traseiras.
DON Não quero saber. Estás a ver? Estás a ver aonde eu quero chegar? Pausa. BOB
Estou.
Pausa. 21
Búfalo Americano
DON
Pois, a ver vamos.
BOB
Desculpa, Donny.
DON
Pois, a ver vamos.
TEACH (aparece à porta e entra na loja) BOB
Bom dia.
Bom dia, Teach.
TEACH (anda um bocado pela loja, em silêncio) Puta da Ruthie, puta da Ruthie, puta da Ruthie, puta da Ruthie, puta da Ruthie… DON TEACH DON
O quê? Puta da Ruthie… … ai sim?
Entro no Riverside para beber um café, certo? TEACH Sento-me na mesa da Grace e da Ruthie. DON TEACH DON
Certo. Só vou pedir um café. Claro.
A Grace e a Ruthie estão a tomar o pequenoTEACH -almoço e já acabaram. Pratos… migalhas por todo o lado… e íamos ficar ali na treta. 22
Primeiro Acto
DON TEACH DON
Pois. A falar do jogo… … hum, hum.
TEACH …e assim. Sento-me. “Olá, olá”. Tiro um bocado de torrada do prato da Grace… DON TEACH
… hum, hum… … e ela sai-se com esta: “Serve-te à vontade”.
Servir-me à vontade. Uma torrada traz quatro bocados, custa cinquenta cêntimos e eu não posso servir-me de metade de um bocado. Eu devia era ter um cêntimo por cada vez que estamos a jogar e eu pago o café… cigarros… bolos… e nunca digo nada. “Bobby, vê se alguém quer alguma coisa”. Hum? Uma puta duma sandes de carne assada. (Para o BOB:) É mentira? (Para o DON:) Que merda. Quando saímos, quantas vezes é que me chego à frente para pagar? Mas (não!), porque eu nunca faço caso disso — não é caso nenhum — e não ando por aí a dizer “Esta é por minha conta” como se fosse uma merda dum pavão, mas parto do princípio que estamos entre amigos e nunca me esqueço quem é quem quando alguém tem um azar, ou precisa de ajuda (hum?) com a puta da renda, ou torra montes de dinheiro nas corridas, ou está doente, ou o que for… DON (para o BOB)
É disto que eu estou a falar. 23
Búfalo Americano
TEACH Só daquela (e digo-te já, Don), só daquela boca de puta fufa sulista, e acho que não estou aqui a insinuar nada, só daquela cabra ingrata é que podia sair esta merda. (Para o BOB:) E não retiro nada do que disse, mesmo sabendo que te dás bem com elas. BOB TEACH BOB
Com a Grace e com a Ruthie? Sim. (Eu gosto delas.)
TEACH Sempre tratei toda a gente por igual, e nunca andei por aí a queixar-me. Não é verdade, Don? DON
É.
TEACH Se alguém tem alguma coisa contra mim, o problema não é meu… comigo posso eu bem e não ando por aí a espetar facas nas costas das pessoas só porque não gosto da maneira como me tratam. (Nem ando por aí a rezar que lhes caia um tijolo na cabeça enquanto vão a andar pela rua.) Mas deixar que aquela merdosa, do nada, atire para o lixo a merda dos bolos todos que comi com elas (será que quando elas os comiam estavam a pensar “este gajo é mesmo um idiota, a gastar uma porrada de dinheiro com os amigos…”) …isso magoa, Don. Magoa-me de tal maneira que nem sei o que fazer. 24
Primeiro Acto
Pausa. DON
Se calhar só estás chateado.
TEACH Podes crer que estou chateado. Estou muito chateado, Don. DON
Elas também têm os problemas delas, Teach.
TEACH
Eu é que gostava de ter os problemas delas.
DON O que eu quero dizer, e não é nada pessoal… se calhar elas estavam, hum, a ter uma conversa sobre qualquer coisa. Então que conversassem. Não, desculpa Don, TEACH mas não posso passar uma borracha por cima disto. Elas tratam-me como se eu fosse um idiota, elas é que são as idiotas. Pausa. A única maneira de ensinar pessoas assim é matá-las. Pausa. DON TEACH DON TEACH
Queres um café? Não tenho fome. Anda lá, vou mandar o Bobby ao Riverside. (Tasco de merda…) 25
Búfalo Americano
DON TEACH
Pois é. (Só deixam entrar idiotas…)
DON
Claro. Anda lá, Teach, o que é que queres? Bob?
BOB
Hã?
Anda lá, ele vai lá de qualquer DON (para o TEACH) maneira. (Para o BOB, entregando-lhe uma nota:) Traz-me um café pingado e não te esqueças do iogurte. BOB
De quê?
Já sabes, natural, e se eles não tiverem, hum, tanto DON faz. E traz qualquer coisa para ti. BOB
O quê?
DON O que quiseres. Mas qualquer coisa para comer… e o que quiseres para beber. E traz um café para o Teacher. BOB TEACH BOB TEACH BOB
Pingado, Teach? Não. Então o quê? Curto. Está bem. 26
Primeiro Acto
DON E traz qualquer coisa para tu comeres. (Para o TEACH:) Ele não quer comer. TEACH (para o BOB) Tens que comer. (E era isto que eu estava a dizer no Riverside.) Pausa. BOB
(Café curto.)
DON E traz qualquer coisa para tu comeres. (Para o TEACH:) O que é que queres comer? Um queque? (Para o BOB:) Traz um queque para o Teach. TEACH
Eu não quero um queque.
DON Traz-lhe um queque e não te esqueças de pedir doce. Eu não quero um queque.
TEACH DON
O que é que queres?
TEACH BOB
Não quero nada. Vá lá, Teach, come qualquer coisa.
Pausa. DON
Se comeres vais sentir-te melhor, Teach.
TEACH (para o BOB) Diz-lhes que mandem uma dose de bacon, bem seco e bem estaladiço. 27
Búfalo Americano
BOB TEACH
Está bem. E diz à gaja que é para mim, que ela manda mais.
BOB
Está bem.
DON
Queres mais alguma coisa?
TEACH DON TEACH DON TEACH DON TEACH DON TEACH BOB TEACH BOB
Não. Meloa? Eu nunca como meloa. Nunca? Dá-me diarreia. A sério? E diz-lhe para não dizer nada à Ruthie. Ele não fazia isso. Não? Pois não, tens razão. Desculpa, Bob. Não faz mal. Estou chateado. Não faz mal, Teach. 28