CAMINHOS DO AMOR EM ROMA
obra publicada com o apoio de Centros de Estudos Clássicos e Humanísticos Fundação para a Ciência e Tecnologia — POCTI
Título: Caminhos do amor em Roma © Carlos Ascenso André e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2006 ISBN 972-795-155-4
Carlos Ascenso André
Caminhos do amor em Roma sexo, amor e paixão na poesia latina do séc. I a. C.
Cotovia
ÍNDICE
PREFÁCIO ..................................................................................
pág. 9
INTRODUÇÃO............................................................................
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Cap. I — Casamento: o contrato e a infracção ......................... 1. Amar sem sobressaltos ........................................... 2. O contrato conjugal ............................................... 3. À margem do contrato: a infidelidade ..................
27 27 32 38
Cap. II — O corpo, o sexo, o prazer .......................................... 1. Sensualidade e erotismo......................................... 2. Cantar os prazeres do corpo.................................. 3. Ovídio, precursor da igualdade entre sexos? ....... 4. O sexo e o poema .................................................. 5. O amante é um guerreiro....................................... 6. Poetas do obsceno..................................................
57 57 66 70 74 81 90
Cap. III — Amor e sedução.......................................................... 1. Virgílio, poeta misógino......................................... 2. A arte da sedução................................................... 3. Ousadia e persistência............................................ 4. O amante, o rival, o marido e os amores furtivos.... 5. Uma questão de atitude ......................................... 6. O ciúme e o medo, ao serviço da sedução............ 7. Elegância: estética e cosmética .............................. 8. Monotonia e ausências...........................................
97 97 100 117 126 134 139 146 170
Cap. IV — O canto do amor homossexual.................................. 1. Uma questão fora de tempo .................................. 2. O amor entre guerreiros: um código épico........... 3. O poeta-amante e os seus amados......................... 4. A sátira da homossexualidade ...............................
175 175 180 187 200
Cap. V — Escravos do amor: a poesia e a paixão...................... 205 1. Tempo de paixão e desvario .................................. 205 2. Também o quotidiano se pode cantar................... 213
3. A fidelidade do amante........................................ 4. Paixão e desvario: o canto do irracional ............. 5. Ao serviço da mulher: humilhação e submissão... 6. Amor e morte ....................................................... 7. Uma espécie de prisão ......................................... 8. Da paixão ao ciúme.............................................. 9. As sementes da revolta: amantes despeitados..... 10. Crises de fúria....................................................... 11. Em busca da liberdade ........................................ 12. Do amor ao ódio ..................................................
218 227 250 279 285 289 303 306 311 334
Conclusão....................................................................................... 347 Bibliografia..................................................................................... 355
PREFÁCIO
Salões deslumbrantes, recamados a mármore. Uma luz imensa, um brilho sem fim, um cenário de mil cores. Enche-se o espaço de melodias de encanto, que marcam o ritmo da dança e dão som aos festins. Recobrem-se as mesas de preciosos tecidos, onde sobressai a púrpura e o ouro e, sobre eles, requintadas iguarias e manjares exóticos. Mulheres de rara beleza volteiam na sala os seus corpos elegantes e a exuberância dos trajos ou reclinam-se, sensualmente, nos leitos dispostos em torno das mesas. O prazer dos sentidos é rei e senhor. Sente-se, nos corpos que se revolvem e se entregam, na festa ou no segredo da alcova. É o festim romano; a mais de vinte séculos de distância, é o quadro mais divulgado de Roma, capital do luxo, sede da degradação, cidade dos prazeres, mãe da luxúria. Esta imagem, que alguma literatura e, sobretudo, o cinema tornaram um lugar comum, precisa, no entanto, de ser datada. É uma imagem da Roma imperial, de quando a ostentação e a riqueza trazidas das terras subjugadas invadiram a capital do Império e começaram a lançar as sementes da degradação e da ruína. E como seria no tempo que o antecedeu, nos anos finais da República? Muito do que se diz do amor em Roma, sensual, arrebatado, obsceno, chegou-nos da observação ou da leitura
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do que se construiu, pintou, escreveu, nos primeiros séculos da era cristã. Mas… como viram o amor, como o cantaram os poetas daquele outro tempo, imediatamente antes deste? Porque, regra geral, é fornecida às pessoas uma imagem deslocada: a Roma que mais se conhece tem um século de diferença em relação à Roma que é a da época de ouro da Literatura Latina. E essa é que foi a mãe da Roma imperial. A verdade é que a literatura latina nunca deixou de celebrar o amor ou sobre ele reflectir. Ele é tema central de várias comédias de Plauto ou de Terêncio. Cícero, em mais do que uma obra filosófica, dedicou-lhe especial atenção. Virgílio, cujas relações com o amor serão sempre envolvidas por um certo mistério, coloca-o em lugar de grande destaque, nas Geórgicas, nas Bucólicas e, mesmo, na Eneida. Horácio canta-o das mais variadas formas, com serenidade. Catulo, Propércio, Tibulo vivem prisioneiros dele e é em função dele que cantam e da irracionalidade com que se manifesta. Ovídio faz dele centro, tema e título de quatro das suas obras, em jeito de quem com ele se diverte. São modos múltiplos e muito diferentes de celebrar o amor e que, na sua variedade, deram origem a um corpus rico, merecedor, por isso, de especial atenção. Foi isso que me levou a escolher o tema e a época para centro de provas académicas. A ideia fascinou-me. Por isso, decidi ir mais longe na leitura e nas reflexões e partilhá-las com os leitores. Que leitores? Roma, nos seus meandros, mormente no que ao amor diz respeito, é demasiado fascinante para
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permanecer desconhecida do grande público. Não devem, pois, as reflexões sobre a Antiguidade ficar reservadas a uma elite de letrados. Daí a feição que este livro assume, numa espécie de compromisso entre o trabalho académico e o ensaio. Tem, do primeiro, desde logo, o aparato bibliográfico, com algum peso (se bem que não exaustivo, tão grande é o acervo de bibliografia sobre o assunto) e as inúmeras remissões para vários estudos. Mas foi a pensar em um outro público, menos erudito no que à Literatura Latina diz respeito, que foram feitas algumas opções: Do ponto de vista do vocabulário, que se pretendeu acessível. No que toca à apresentação dos textos, sempre citados em tradução portuguesa e sem a presença do original latino; mesmo quando se trata de uma só palavra, cuja citação em latim se revela imprescindível, é facultada, de imediato, a sua tradução portuguesa. Enfim, sem prejudicar as características e exigências de um trabalho nascido em contexto universitário, pretendeu-se que outro público, menos académico, mas não menos interessado, a ele pudesse ter acesso. Assim assumo a crença de que a actividade científica e académica não tem necessariamente que evoluir divorciada do cidadão comum nem é incompatível com ele, desde que um e outro tenham, a uni-los um patamar indispensável chamado cultura.
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Uma palavra de gratidão Este livro teve como ponto de partida a lição apresentada no âmbito das provas para obtenção do título de agregado na Universidade de Coimbra. Agradeço ao Professor Doutor José António Segurado e Campos, a quem coube arguir essa lição, as suas pertinentes observações. Durante três anos, muitos dos temas foram sendo por mim discutidos nos diversos seminários por que fui responsável, na Faculdade de Letras de Coimbra, seja no Ramo de Formação Educacional, para licenciados em Línguas e Literaturas Clássicas que realizavam o seu estágio pedagógico, seja nos Mestrados em Cultura Clássica ou em Poética e Hermenêutica. Fico grato aos meus alunos, cujas dúvidas me levaram, não raro, a novas e fecundas reflexões. A publicação, enfim, não teria sido possível sem o pronto acolhimento das Edições Cotovia, uma editora que é um exemplo de persistência no livro de qualidade. Exprimo, por isso, o meu reconhecimento ao Senhor André Jorge, pela forma como acolheu esta proposta, ao meu colega Professor Doutor Frederico Lourenço, que lhe sugeriu a publicação, e ao Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, na pessoa da sua coordenadora e minha colega, a Professora Doutora Maria do Céu Fialho, que aceitou apoiá-la. A minha gratidão, enfim, a quantos nas Edições Cotovia deram o melhor de si para se atingir este “produto final”. Carlos Ascenso André
INTRODUÇÃO
Aparentemente, Virgílio, o poeta maior da literatura latina, o poeta que celebrou Roma, nas suas grandezas e nas suas frustrações, nas suas glórias e nos seus desencantos, Virgílio, o autor do canto épico dos Romanos e de uma das maiores epopeias de sempre, não gostava de mulheres. Ou por outra: o poeta que nos deixou alguns dos mais notáveis retratos femininos da história da literatura, como Dido ou Amata, como Camila ou Eurídice, não gostaria daquilo que, no seu tempo (e no nosso), costumava andar associado à imagem da mulher: o amor, a sensualidade, o deslumbramento dos sentidos, a paixão. Não pode dizer-se, é certo, que fugisse de cantar a mulher, que lhe recusasse a presença nos seus versos; a simples menção de Dido ou Eurídice é prova bastante de que assim não era. Como se não pode afirmar que não apreciava a beleza, a beleza feminina que cativa, enleia, seduz. Lembremos o porte deslumbrante de Helena, em meio da noite troiana, a candura poderosa de Camila, a virgem guerreira, o silêncio sedutor de Lavínia. Esses, porém, são retratos esporádicos, arrastados, dir-se-ia, pela força da narração, pequenos fragmentos em universo povoado de homens. Mesmo assim, ao lado da imensa multidão de rostos masculinos, as mulheres de
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Virgílio não constituem meros acontecimentos episódicos; por escassos que sejam os exemplos, eles desempenham uma função nuclear na poesia virgiliana, nomeadamente na epopeia. Lavínia é um exemplo significativo: não se lhe ouve uma palavra, não se lhe conhece uma reacção, não se lhe assiste a um trejeito que seja, um esgar de repulsa ou um aceno de aprovação; um leve rubor na face é tudo quanto o poeta quer que nela vislumbremos, e apenas por uma vez, uma só. E, no entanto, é por causa de Lavínia que a guerra se desencadeia na segunda parte da Eneida, é por Lavínia que se gera um combate de morte; Lavínia é, digamos assim, o futuro; e é o futuro que Eneias e Turno disputam até ao verso derradeiro, aquele que conduz a alma de Turno para o reino das sombras e que deixa a princesa latina e o herói troiano às portas de uma nova era. Virgílio, aparentemente, não gostava de mulheres. Conduziam à fulguração ilusória dos sentidos, à ameaça perigosa do êxtase, numa palavra, traziam consigo o amor e a paixão que arrebatam os corações e toldam a mente. E o amor virgiliano não sabe ser semente de felicidade, antes é, inevitavelmente, fonte de desgraça. Os anos finais da República, porém, como os do início do Império, justamente a época em que Virgílio viveu, são tempos em que a mulher vinha a adquirir já um lugar mais relevante, ou, pelo menos, não tão secundário, por comparação com os séculos que os antecederam. Na vida, na sociedade, na política, o estatuto da mulher tinha vindo a conhecer algumas modificações. Não que possa dizer-se que a mulher se havia libertado da tutela do homem e da secundarização e menorização
INTRODUÇÃO
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que, desde sempre, a caracterizaram, numa sociedade dirigida por homens, pensada em função do homem, regida por valores e ideais masculinos. Não. Estamos bem longe de qualquer arremedo de emancipação feminina. Basta lembrar dois ou três aspectos: A onomástica, desde logo, é significativa. Ao homem era concedido que tivesse tria nomina, três nomes, isto é, o nome próprio, em segundo lugar o nome gentílico, de sua gens ou família, e, por fim, um terceiro, que podia definir uma característica pessoal ou também associada à família (são os casos de Marcus Tullius Cicero, Gaius Iulius Caesar); à mulher, todavia, só era dado possuir um nome, que jamais era próprio, mas o de seu pai; assim, Tullia seria filha de Tullius, Liuia filha de Liuius, Hortensia filha de Hortensius e assim por diante. Sugestiva é igualmente a fórmula que designava o casamento. A expressão transitiva ducere uxorem (“tomar como esposa”) ou ducere in matrimonium (“conduzir ao matrimónio”) só podia ser utilizada se o sujeito fosse o homem. Em relação à mulher, usar-se-ia o mesmo verbo, mas na voz passiva, ou, em alternativa, o verbo nubere, o qual não era transitivo (regia dativo). A razão é simples: à mulher não cabia nunca um papel activo no casamento; ela era, tão-somente, parte passiva de um contrato. Dir-se-ia, em português, que à mulher não era consentido “desposar” alguém, mas apenas “ser desposada”; ou, para usar a tradução quase literal da expressão latina, só o homem podia “conduzir a mulher ao casamento”, ao passo que a mulher tinha de resignar-se a “ser conduzida”. Outros exemplos poderiam ser aqui citados, quase até à exaustão, mas não é este o lugar para isso.
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Em todo o caso, forçoso é admitir que os últimos séculos da República, bem como os primeiros tempos do Império vieram reflectindo um diferente reconhecimento do papel da mulher e um crescente respeito por algumas mulheres. Cornélia, Fúlvia, Hortênsia, Octávia, Lívia são alguns dos nomes femininos, entre tantos outros, que a sociedade romana se habituou a respeitar e a distinguir. Isto para não falar, já sob outra perspectiva, em Júlia, a filha de Augusto, ou na filha desta, com o mesmo nome, cujos costumes licenciosos, não obstante a repressão do Imperador, documentam um sentido de independência e afirmação pessoal pouco usuais. Não são poucas, aliás, as mulheres que ficaram célebres na história de Roma deste tempo pela sua conduta “duvidosa”; a prática do amor, o culto do prazer e os hábitos menos conformes à moral tradicional que lhes estão associados celebrizaram bem mais que as duas Júlias. O célebre retrato de Semprónia, que a narrativa de Salústio coloca entre os cúmplices de Catilina, é elucidativo. O Império, com o correr dos anos, virá a dar-nos muitos outros exemplos, tanto por boas, como por más razões.1
1 Existe, hoje, abundante bibliografia sobre as mulheres na Antiguidade, bibliografia essa que, de resto, tem vindo a crescer à medida que se vai desenvolvendo, um pouco por todo o mundo, aquilo a que se convencionou já chamar “Women’s studies”. J. P. V. D. BALSDON, Roman women, London, 1962, é já um clássico. Veja-se, mais recentemente: G. CLARK, “Roman women”: Greece & Rome 28.2 (1981) 193-212; E. CANTARELLA, Pandora’s daughters: the role and status of women in Greek and Roman Antiquity, Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, 4.ª ed.,
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Não deve, pois, ser motivo de espanto que assim seja, também, na literatura. A mulher e o amor têm presença relevante na obra dos principais poetas deste tempo, Catulo, Propércio, Tibulo, Horácio, Virgílio, Ovídio, para citar apenas os mais destacados. Virgílio, sim, o poeta aparentemente misógino e avesso ao amor. Por isso mesmo, merece aqui uma especial menção. A obra virgiliana é, de alguma forma, a matriz, o arquétipo da literatura latina do seu tempo (quem sabe se de todos os tempos). Em semente, em vestígio ou, até, em simples alusão, nos seus versos encontramos uma espécie de repositório de quanto foi acolhido pelos demais poetas de então. Por isso mesmo, tem sido objecto, ao longo dos séculos, de tantas e tão variadas leituras, por vezes, mesmo, controversas, não raro surpreendentes. Ele é, por assim dizer, a síntese quase paradoxal do que o precedeu e do que veio depois. Estão lá, por isso, as mulheres. Como está, igualmente, o amor. Também nesse aspecto o autor da Eneida soube “dar voz ao seu tempo”. Daí que tantas vezes seja apelidado de poeta da condição humana.
1993 (título original L’ambiguo malano, 1981), em especial pp. 99-170; P. S. PANTEL (ed.), História das mulheres, vol. I, A Antiguidade, Lisboa, Edições Afrontamento, 1993 (título original Storia delle Donne, 1990), sobretudo pp. 127-199 e 351-407; E. FANTHAM et aliae, Women in classical world: image and text, New York and Oxford, Oxford University Press, 1995, especialmente pp. 207-329; D. M. ENGEL, “Women’s role in the home and the state: stoic theory reconsidered”: Harvard Studies in Classical Philology 101 (2003) 267-288; R. ANCONA and E. GREEN (eds.), Gendered dynamics in Latin love poetry, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 2005.
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Virgílio, bem entendido, não está antes de todos os nomes referidos nem é, igualmente, o último deles. Não pode, pois, dizer-se que a todos influenciou ou que por todos terá sido influenciado. Esta não é, no entanto, uma abordagem que visa o estabelecimento de fontes ou influências. O que importa, aqui, é estudar um tema e a sua presença na literatura latina de menos de um século. Ora, nesse enorme texto que é a literatura produzida em Roma no século I a. C., Virgílio ocupa um lugar privilegiado, o de uma espécie de paradigma de quase tudo; ele pode bem ser, em certa medida, esse mesmo paradigma ou o arqui-texto, também do amor e da mulher. Na sua obra, como se diria em gíria simplista, “está lá tudo”, como se fora a teia imaginária de uma imensa intertextualidade. Por isso se parte aqui da obra virgiliana para estudar, de uma forma transversal, o tema do amor na poesia latina dessa época tão conturbada quanto fascinante que foi a que assistiu ao colapso da República e ao nascimento do Império. Uma leitura atenta de Virgílio permite identificar um conjunto de perspectivas na sua celebração poética do amor: — O amor sereno, sem fulgurações, como é próprio de um poeta formado nas escolas epicuristas: É a formulação mais corrente nas Bucólicas, como é a que caracteriza a relação de Eneias com Lavínia; é, ainda, a que define as situações que podemos designar por contrato conjugal e que são, na Eneida, a que une Dido e o seu antigo marido, Siqueu, a de Amata e Latino e, porventura, o primeiro casamento do herói, Eneias, com Creúsa.
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— O amor sexual: Embora raro (o que permite dizer que o poeta teria dificuldade em lidar com o corpo como espaço de prazer), é o que melhor caracteriza a ligação entre Vénus e Vulcano, na Eneida. Como, também, entre Eneias e Dido, pese embora a visível dificuldade do poeta, como adiante se verá, em assim o retratar. — O amor homossexual: Apesar de não explicitamente assumido, é sugerido nos dois episódios da Eneida de que são protagonistas Niso e Euríalo, como a seu tempo se demonstrará; é, também, o que parece estar subjacente ao canto dos pastores, nas Bucólicas, todos eles homens e muitos deles ligados entre si por especiais laços de ternura e afecto, de amor, para utilizar a palavra ali tantas vezes repetida. — E, finalmente, a paixão, lugar de fascínio e irracionalidade: Essa é, claramente, a situação dos pares Orfeu e Eurídice, nas Geórgicas, Galo e Lícoris, nas Bucólicas, e, na Eneida, Dido e Eneias. Este último, o amor-paixão, é sempre, em Virgílio, fonte de desgraça, princípio de perturbação, factor de desarmonia. O poeta, portanto, recusa-o, abomina-o. Por isso, cada um daqueles três casos tem desenlace trágico: Orfeu, tomado pelas Fúrias e contrariando o que os deuses lhe haviam ordenado, olha para trás, no momento em que trazia Eurídice dos Infernos para a vida, e perde-a para sempre; esse foi, depois, o começo da sua própria morte. Galo abandonou a Arcádia em busca de Lícoris e, dessa forma, matou o ideal arcádico. Não é por acaso que a celebração desses amores corresponde à derradeira das
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dez Bucólicas. Dido, incapaz de aceitar a partida de Eneias, suicida-se. Dificilmente compreenderíamos que fosse de outra forma. Os Romanos, tal como celebrados na Eneida, descendem de Eneias, mais do que da sua mãe divina, Vénus, a deusa da beleza e do amor. E Eneias, o herói, não cedeu ao desejo, antes, segundo a descrição do poeta, prezou, acima dele, o dever e subordinou a este o amor.2 Das mulheres virgilianas, entretanto, algumas há que podem situar-se como que à margem desta “arrumação”. São elas Amata, Lavínia e Camila. Amata, para além da sua relação conjugal e, portanto, contratual, com Latino, parece manter um certo fascínio, jamais suficientemente clarificado pelo narrador, pelo seu prometido genro, Turno. Lavínia virá a ter com Eneias, também, uma relação assente nas leis do contrato conjugal. Foi-lhe prometida, desposá-lo-á. Tudo isso, porém, são factos que acontecem fora do poema e que, nele, apenas se antevêem. No decurso da narrativa, Lavínia é uma não-presença, como acima se sugeriu. Além de um leve rubor na face, a dado momento (e não é Eneias a causa dele, mas, sim, Turno), não se lhe conhece qualquer outra reacção. Finalmente, Camila poderá ser a única mulher que verdadeiramente terá fascinado o poeta, a única, dir-se-ia, que ele amou. É único o retrato que dela é traçado, surpreendente na afectividade que nele o narrador deposita.
2
17, 18.
P. GRIMAL, L’amour à Rome, Paris, Éditions Payot & Rivages, 1995, pp. 14,
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Mas Camila é uma amazona. Não vive o amor. Quase pode dizer-se que não tem sexo. Por isso, ela é protagonista de uma aristeia, não obstante a sua condição de mulher. Ora, a aristeia, como é sabido, é uma narração de proezas de combate cometidas por um guerreiro. Ou seja, o que em Camila se destaca é a sua “virilidade”. Certo é que tem um toque feminino, quando se deixa deslumbrar por despojos de rara beleza, motivo por que persegue o sacerdote que os envergava, para com eles se adornar. Mas não é menos verdade que são esses despojos a causa da sua morte, o mesmo é dizer, é o seu lado feminino que a mata.3 Uma vez mais, é a dimensão trágica a marcar o olhar virgiliano sobre a mulher. Dir-se-á, pois, que a visão virgiliana do amor (e da mulher) é contraditória, quando não, mesmo, paradoxal. É verdade. Mas essa é a própria maneira de ser do poeta, que espelha, na sua obra, as contradições da sociedade do seu tempo e a complexidade de um universo que, situado numa das fronteiras da história, busca, ainda, o seu caminho. Roma experimentou a tentativa de conciliar as exigências morais e sociais, com as quais o amor mantém eterno conflito; não o conseguiu, por certo. Como, porventura, nenhuma sociedade alguma vez logrou consegui-lo.4 Virgílio será, em larga medida, a síntese dessa busca, da incerteza que a envolve, das frustrações que acarreta, dos paradoxos que produz.
3 Eneida, 11.778-782. Cf. A. M. KEITH, Engendering Rome: women in latin epic, Cambridge, Cambridge University Press, 2000, pp, 28-29. 4 P. GRIMAL, L’amour à Rome, cit., p. 201.
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Os poetas de finais da República e começos do Império tratam, todos eles, embora de modo mais desenvolvido e com bem maior empatia, estas manifestações de amor que vislumbramos na obra virgiliana. Sem tibiezas, é verdade, antes com o calor próprio de quem celebra o amor por o ter vivido ardentemente e não, como era o caso do cantor épico, de quem como que o chora, porque o repudia. Escolheram-se os poetas mais significativos deste tempo, todos eles, como pode ver-se, contemporâneos uns dos outros: Catulo (87-57 a. C.); Propércio (54-16 a. C.); Tibulo (54-19 a. C.); Horácio (65-8 a. C.); Ovídio (43 a. C.-18 d. C.); e, naturalmente, Virgílio (70-19 a. C.). Não está em causa, sublinhe-se, se o amor cantado por estes poetas, nomeadamente os elegíacos, é real ou se apenas existe na sua imaginação, para dar origem a uma ficção poética, como desenvolvidamente sustenta, e com argumentos poderosos, Paul Veyne. Afirma, de facto, este professor francês, autor de uma das principais obras de referência sobre o assunto que nos ocupa nestas páginas5, que a elegia é somente um produto de ficção, o que justifica a irregularidade característica das mulheres nela celebradas. Daí que os textos onde muitos pretendem ler um retrato feito na primeira pessoa não passariam de uma pseudo-autobiografia6. Ou, como diz em outro lugar, o poeta disfarça-se, mascara-se; a sinceridade não será, seguramente, uma das suas qualidades7, pelo que, em vez
5 P. VEYNE, L’élégie érotique romaine: l’amour, la poésie et l’occident, Paris, Éditions du Seuil, 1983. 6 IDEM, p. 55. 7 IDEM, p. 127.
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de uma ideologia da elegia, deveríamos, antes, falar em semiótica da elegia8. Por isso, conclui a dado momento, a combinação entre o homem de amor e o poeta de amor é um produto de uma alquimia de ficção.9 Um outro estudioso, Trevor Fear, fala, por seu turno, a propósito dos poetas elegíacos do tempo de Augusto, os que mais celebraram o amor, por vezes com cores espantosamente realistas, numa espécie de conflito “metaficcional” entre as aspirações eróticas do narrador interno e as ambições poéticas do poeta externo. Assim põe em causa, com clareza, do mesmo modo que Veyne, se bem que por outras palavras, a sinceridade intrínseca desta poesia e daqueles que a produziram10. Este ponto de vista é partilhado por muitos dos autores que se têm dedicado à leitura dos poetas de amor latinos, assunto que tem vindo, nos últimos anos, a suscitar interesse crescente entre os estudiosos, nomeadamente no âmbito dos Women studies. 11 Sublinhe-se, a esse respeito, a feliz expressão de Maria Wyke, a propósito da mulher celebrada por um dos poetas, Propércio, a quem chama scripta puella. 12 8
IDEM, p. 39. IDEM, p. 122. 10 T. FEAR, “The poet as pimp: elegiac seduction in the time of Augustus”: Arethusa (Fallax opus: approaches to reading Roman elegy) 33.2 (2000)230. 11 A crescente atenção ao tema por parte de estudiosos modernos é realçada por M. WYKE, em recensão crítica que fez a três obras, todas elas notáveis, vindas a lume na penúltima década: “In pursuit of love, the poetic self and a process of reading: Augustan elegy in the 1980s”: The Journal of Roman Studies 79 (1989) 165-173. As obras objecto de recensão são: P. VEYNE (vd. supra); H.-P. STAHL, Propertius, “love and war”: individual and state under Augustus, Berkeley, University of California Press, 1985; T. D. PAPANGHELIS, Propertius: a hellenistic poet on life and death, Cambridge, Cambridge University Press, 1987. 12 M. WYKE, “Written women: Propertius’ scripta puella”: The Journal of Roman Studies 77 (1987) 47-61. Veja-se, também: D. F. KENNEDY, The arts of love: five 9
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Exactamente porque assim é, será discutível um certo radicalismo feminino, para não dizer feminista, que anima alguns desses estudiosos, quando pretendem ler tais poetas de acordo com padrões que a sociedade e a cultura romanas desconheciam e que lhes seriam totalmente estranhos; o radicalismo, chamemos-lhe assim, vai a um ponto tal que chegam a pôr em causa a capacidade masculina para proceder a uma leitura isenta e objectiva dos poetas de amor latinos, como se a subjectividade não fosse elemento essencial do processo literário, em todos os seus níveis e patamares.13 Tais pontos de vista conduzem-nos, inevitavelmente, a uma perspectiva errada na leitura do texto poético; a verdade é que a questão da sinceridade, no que respeita a estes autores, é um falso problema; porque tem de haver, necessariamente, uma distinção entre poesia e autobiografia.14 Além do mais, todos estes textos, de que se tratará nas páginas seguintes, têm de ser entendidos, não apenas do ponto de vista do homem, que neles se constitui como
studies in the discourse of Roman love elegy, Cambridge, Cambridge University Press, 1993, em especial os caps. 3 (“Love’s figures and tropes”, pp. 46-63) e 4 (“A lover’s discourse”, pp. 64-82); P. LEE-STECUM, “Poet/reader, autobiography deferred: re-reading Tibullan elegy”: Arethusa 33.2 (2000) 177-215; C. A. PERKINS, “Ovid’s erotic uates”: Helios 27.1 (2000) 53-61; A. SHARROCK, “Constructing characters in Propertius”: Arethusa (Fallax opus: approaches to reading Roman elegy) 33.2 (2000) 263-284. 13 Veja-se, por exemplo, L. CAHOON, “Let the muse sing on: poetry, criticism, feminism, and the case of Ovid”: Helios 17.2 (1990) 197-211; menos radical será E. KEULS, “The feminist view of the past: a comment on the ‘decentering’ of the poems of Ovid”: Helios 17.2 (1990) 221-224. 14 S. LAIGNEAU, La femme et l’amour chez Catulle et les Élégiaques augustéens, Bruxelles, Latomus, 1999, pp. 12-13.
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sujeito da expressão poética, mas, também, na perspectiva da mulher, cujo retrato deles se desprende.15 O que está aqui em causa, repita-se, é a leitura da obra de alguns poetas, no que diz respeito ao tratamento do tema do amor e a imagem que em seus versos deixaram, por idealizada que fosse, da mulher ou, se se preferir, dos diversos participantes no amor. Pouco relevante é se o amor que celebraram, sob as mais diversas perspectivas, foi ou não por eles vivido. Teve lugar destacado nos seus poemas, é isso que importa. Porque é esse lugar proeminente que nos permite considerá-lo como algo de essencial, não apenas no pensamento dos poetas que assim o cantaram, como, também, na cultura da sociedade romana de que esse mesmo canto emerge.
15 Cf. S. L. JAMES, Learned girls and male persuasion: gender and reading in Roman love elegy, Berkeley — Los Angeles — London, University of California Press, 2003, p. ix.