Caracteres

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Caracteres


Título: Caracteres do texto: © Frederico Lourenço e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2007 dos desenhos: © Richard de Luchi e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2007

ISBN 978-972-795-217-5


Frederico Lourenรงo

Caracteres com desenhos de Richard de Luchi

Livros Cotovia



para Catarina Lourenรงo



Índice

I. II. III. IV. V. VI. VII. VIII. IX. X. XI. XII. XIII. XIV. XV. XVI. XVII. XVIII. XIX. XX. XXI. XXII. XXIII. XXIV.

Prefácio O burgesso O marquês de Lovelhe O poeta mundano O poeta sensível O gay homofóbico A pata brava A cocker spaniel O piroso O surfista O monárquico de esquerda O padre social O padre socialista O latifundiário alentejano O gay discreto O gay indiscreto O político de esquerda A política de direita O scottish terrier A directora de museu O romancista consensual A catatua A mulher-bicha O médico filosófico A pianista russa

11 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56 58 60 9


XXV. XXVI. XXVII. XXVIII. XXIX. XXX.

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O último imperador A africanófila A pintora chique O lisboeta coimbrão O intelectual vianense O papagaio africano

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Prefácio

N

ão seria exagero afirmar que, a seguir aos diálogos mais literariamente perfeitos de Platão (Protágoras e Banquete), a grande obra-prima da prosa grega é essa jóia que dá pelo nome de Caracteres. Foi composta no século IV antes de Cristo por Teofrasto, escritor natural da ilha de Lesbos, que se estabeleceria em Atenas para estudar com Platão e Aristóteles; consiste numa sequência de trinta caricaturas miniaturais em prosa, que delineiam, em poucas palavras, toda uma personalidade com traço certeiro, sarcástico e genialmente lacónico. Os títulos dos Caracteres de Teofrasto (socorro-me da excelente tradução de Maria de Fátima Silva na editora Relógio d’Água) são, por exemplo, O parolo, O pedante, O forreta, O parlapatão (etc.); e cada pequeno texto do autor grego obedece como que a uma estrutura padronizada comum aos trinta retratos, apresentando marcas retóricas repetidas, que dão, em última análise, coesão à obra. Tomemos, como exemplo, o início de O parolo: “A parolice é uma espécie de desconhecimento das conveniências. 11


Eis o perfil do parolo. É tipo para emborcar umas sopas de cavalo cansado antes de sair para a assembleia…” Ou o início de O parlapatão: “A parlapatice, se se lhe quiser encontrar uma definição, é uma espécie de incontinência do discurso. Eis o perfil do parlapatão. Seja o que for que lhe diga alguém que o encontra por acaso, ele salta logo a reclamar que não é nada disso, que ele é quem está bem dentro do assunto…” Apaixonado, há longos anos, por este milagre de requinte (tanto na observação social como na escrita cinzelada), fui compondo uma sequência de Caracteres em número igual aos de Teofrasto, aportuguesando e modernizando, como é óbvio, as personalidades caricaturadas. Pedi a Richard de Luchi — cujo traço lembra o de dois ilustres conterrâneos seus, Osbert Lancaster e Ionicus, e que já me ajudou na adaptação para jovens da Odisseia — para ilustrar cada retrato; os desenhos dele são literalmente metade do livro (até mais). Cumpre-me dizer que, ao contrário de Teofrasto, incluo, além de retratos “humanos”, outros, zoomórficos, já que, como diz o povo português, a muitos animais “só lhes falta falar” — ao passo que, no respeitante a muitos seres humanos, “mais valia estarem calados”. 12


Finalmente, uma palavra de apreço para James Diggle, que chamou a minha atenção para os Caracteres e cuja edição da obra na Cambridge University Press me deu a conhecer a verdadeira genialidade de Teofrasto; e um agradecimento a Carlos Mendes de Sousa, pelas gargalhadas com que reagiu à leitura em voz alta destes textos. F.L.

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I. O burgesso

O

burgesso não sabe comer à mesa: isso já se sabe. Arrota (“com licença”). Tosse e boceja sem tapar a boca: coisas mais que sabidas. É lúgubre e enxundioso e cheira a sovaco à distância: lugares-comuns. Cospe no chão e assoa-se com os dedos: já se sabe, passemos à frente. Palita os dentes com as unhas e nunca usa o bidé: factos pisados e repisados. Agora o que é absolutamente repugnante é que trate a própria mulher por “filha”. Isso sim, não venham cá com histórias. Isso é mesmo nojento.

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II. O marquês de Lovelhe

O

marquês de Lovelhe é um “titular” inventado pela imprensa cor de rosa e já acredita tanto na história que vive obcecado com o próprio “brasão”. De tal forma que o ostenta em tudo: manda bordá-lo nos boxers e estampilhá-lo no equipamento (emprestado por uma revista) para esqui aquático. O apartamento (emprestado por outra revista) em Cascais onde vive está repleto de garças carrapateiras por todo o lado: nos azulejos na cozinha, no tampo da retrete. Conseguiu a proeza de mandar fazer cuvetes para gelo em forma de coroa de marquês; o único uísque que lá entra em casa é uma marca estranha, que só há no Lidl, chamada Marquess of Kintyre and Lorne. Gosta mesmo muito de ser marquês. Até mandou fazer anel de brasão a condizer com o “título”. Nisso, ao menos, não é diferente dos aristocratas verdadeiros.

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III. O poeta mundano

O

poeta mundano passa o dia ao telemóvel. Telefona de manhã aos críticos, para ver se algum tem tempo livre para almoçar. Encontram-se no Bairro Alto e falam mal dos livros recentes dos outros poetas. A meio da sopa, o poeta mundano já vai em vinte telefonemas e incontáveis sms. Está a organizar encontros de poesia e colóquios e simpósios e jornadas e homenagens e lançamentos e abaixo-assinados. Ainda ontem ameaçaram colocar uma parabólica num prédio onde Fernando Pessoa foi uma vez tomar chá; portanto é preciso ir aos quatro telejornais generalistas, aos canais de cabo e falar nas rádios que contam. Este ano já ganhou três prémios; só lhe falta mais um — se a mulher, também poeta, não o ganhar. Sofre de grafomania. “Mais vale isso do que ser ágrafo”, rebate. Leva sempre um caderno para a cama: a Musa assedia-o muitas vezes a meio da noite. “Agora o que dá sainete é não publicares”, diz a mulher (aguerrida rival do marido) quando, às quatro da manhã, ele acende a luz da mesa de cabeceira. “Cala-te, filha; deixa-me escrever”.

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