Deslocalizar a Europa

Page 1

Índice

Introdução, MANUELA RIBEIRO SANCHES

p. 7

Agradecimentos

23

“Reconsiderando a Teoria Itinerante”, EDWARD W. SAID Tradução de Manuela Ribeiro Sanches

25

“As Ficções da Representação Factual”, HAYDEN WHITE Tradução de Marina Santos

43

“O Tempo e a Escrita sobre o Outro”, JOHANNES FABIAN Tradução de Carlos Branco Mendes

63

“Sobre a Autoridade Etnográfica”, JAMES CLIFFORD Tradução de Carlos Branco Mendes

101

“A Questão Outra”, HOMI K. BHABHA Tradução de Manuela Ribeiro Sanches

143

“Cultura e Poder. Teorias do Discurso Colonial”, NICHOLAS THOMAS Tradução de Fernando Clara

167

“Histórias de Minorias, Passados Subalternos”, DIPESH CHAKRABARTY Tradução de Manuela Ribeiro Sanches

209

“Transculturação e Autoetnografia: Peru 1615/1980”, MARY LOUISE PRATT Tradução de João Catarino

231

“O Artista como Etnógrafo”, HAL FOSTER Tradução de Manuela Ribeiro Sanches

259

Bibliografia

297


INTRODUÇÃO Manuela Ribeiro Sanches

O objectivo da teoria é [....] viajar, indo para além dos seus limites, emigrar, permanecer em certo sentido no exílio. EDWARD W. SAID, “Reconsiderando a Teoria Itinerante”.

Edward W. Said, figura incontornável nos estudos póscoloniais, propõe, em “Reconsiderando a Teoria Itinerante”, artigo com que se inicia esta recolha de textos, alguns tópicos e uma abordagem fundamentais para o volume que aqui se apresenta. Trata-se, por um lado, de repensar o modo como as teorias se transformam, são lidas diferentemente consoante o momento e o lugar em que a sua recepção ocorre. Dito de um modo mais preciso, para Said a questão do momento histórico em que essas teorias surgiram não é a única que importa. Também a geografia detém um papel decisivo. Daí a noção central de viagem para sublinhar a tensão entre o lugar em que as teorias são produzidas e aquele em que são lidas, nomeadamente as transformações que sofrem nesse processo de recepção local. Revendo o pessimismo de um artigo anterior, “Teoria Itinerante”, onde salientara que as teorias perderiam sempre algo do seu radicalismo quando transferidas para outro contexto (Said 1983), Said propõe agora uma concepção diferente, incluindo na viagem de História e Consciência de Classe de Georg Lukács não só a recepção dos autores que, de um modo mais ou menos evidente, são tributários da obra — como é o caso de Lucien Gold-mann e de Raymond Williams — mas também a de Th. W.


8

DESLOCALIZAR A EUROPA

Adorno e Frantz Fanon, em particular, o modo como este último, dada a sua localização geográfica, propõe uma leitura radicalmente inovadora dos pressupostos hegelianos que haviam inspirado a viragem na recepção lukácsiana de Marx. Deste modo, a herança europeia surge contextualizada e reequacionada por um autor, tal como Said, parcialmente inserido nessa tradição. Fanon, nascido na Martinica, companheiro de estrada de Sartre, psiquiatra ao serviço da administração francesa na Argélia — onde desenvolveria a recusa mais absoluta do domínio colonial — lê a tradição ocidental de um ponto de vista forçosamente diferente, porque perspectivada a partir da história colonial e dos processos de violência racial e económica a ela associados, sabendo, ao mesmo tempo, que estes constituem parte integrante da história metropolitana. Através desta releitura das viagens da teoria, Said propõe assim uma deslocalização decisiva, uma mudança de perspectiva, introduzindo aquilo que se pode designar de ponto de vista póscolonial. Falar de um ponto de vista pós-colonial, a partir de uma perspectiva europeia, corresponde a sublinhar não tanto o fim efectivo do colonialismo quanto, sobretudo, um outro modo de ler o passado e o presente. A perspectiva pós-colonial corresponde menos a uma mudança no objecto de estudo do que a uma outra forma de interpretar a tradição europeia, lendo-a, como Fanon, de um ponto de vista simultaneamente exterior e interior à “Europa”. A abordagem póscolonial questiona as certezas epistemológicas e as metodologias disciplinares, a linearidade de um tempo histórico centrado no “Ocidente”, ao mesmo tempo que se apropria criativamente da sua teoria a fim de recuperar outras subjectividades e narrativas silenciadas pelo eurocentrismo, assinalando o papel central da violência colonial na constituição das totalidades que o pósmodernismo viria a questionar e a pós-colonialidade a interpretar de um modo alternativo. Num momento em que a divisão entre aquilo que é da ordem do familiar e do estranho, do “mesmo” e do “outro” parece ter adquirido uma nova virulência, tanto mais necessário se torna considerar os caminhos que insistem em viver nos interstícios das culturas, nações e disciplinas, rejeitando quaisquer formas de pensamento maniqueísta. As viagens da teoria constituem


INTRODUÇÃO

9

exemplos desses intercâmbios culturais, nomeadamente do modo como os lugares também determinam a sua produção e recepção, assim recusando um ponto de vista omnisciente, totalizante, nesses processos de influência recíproca e de direcções múltiplas. * 1. O presente volume reúne um conjunto de propostas que, desde os anos setenta, têm vindo a marcar profundamente não só uma série de áreas disciplinares — tais como a literatura, a história, a antropologia, a história da arte — mas também a desestabilizar as fronteiras entre elas ou a propiciar o diálogo entre os saberes organizados em seu torno. Contudo, essa desestabilização não pode ser entendida como o mero resultado de rearticulações disciplinares em si mesmas, mas constitui também uma resposta aos contextos histórico-sociais que as possibilitaram e que elas, por sua vez, ajudaram a definir. Não basta, porém, salientar o tempo em que essas transformações surgiram. Há que atender igualmente, retomando a proposta de Said, ao lugar em que elas se manifestaram e ao modo como as teorias foram transformadas pelo lugar da sua recepção. É, pois, tomando em consideração estes dois vectores — o temporal e o espacial, o histórico e o geográfico — que se sugerem algumas reflexões e se expõem algumas motivações para a sua tradução e reunião num volume. As reflexões que se seguem são assim necessariamente mediadas por uma proposta de leitura, de uma construção de sentido possível, a partir de uma perspectiva espáciotemporal particular. Não se pretende propor uma história das ideias, assente em algumas figuras basilares das mutações que terão conduzido à perspectiva pós-colonial, embora as influências recíprocas entre autores possam ser um filão a seguir; não se trata também de uma genealogia da viragem pós-colonial, outro itinerário possível. Mais decisiva é a justaposição de textos, que, dialogando de modo mais ou menos explícito entre si, apontam para temas comuns, atravessam disciplinas clássicas, olhando de um modo oblíquo, descentrado, os seus objectos tradicionais. A selecção é também pensada como uma síntese provisória do estado da questão em áreas diversificadas, tendo em mente públicos distintos, mais ou menos fiéis às áreas tradicionais. O certo é que a tendência para a especialização necessária é, por vezes, contrariada pelos interesses interdisciplinares ou


10

DESLOCALIZAR A EUROPA

pluridisciplinares que o volume não só representa como reúne. Tanto os estudos culturais como os estudos pós-coloniais — de que os textos aqui apresentados são alguns dos mais importantes exemplos — caracterizam-se precisamente pela tentativa de questionar as fronteiras entre saberes, ao mesmo tempo que sugerem a produtividade do recurso a ferramentas alheias propiciadoras de um novo modo de olhar os seus objectos clássicos. Mas esta deslocação só pode ser entendida adequadamente se se considerar tanto os diálogos transnacionais/globais como os contextos locais em que estes se desenvolveram, o que equivale a sublinhar os problemas de tradução que qualquer viagem de teorias implica: como pensar questões de identidade nacional, transnacional (a identidade europeia numa UE alargada agora não apenas a Sul, mas também a Leste) perante a crescente mobilidade, nomeadamente a dos ex-colonizados para as antigas metrópoles? No caso concreto de Portugal, que questões se levantam no que respeita à sua identidade, não só face à inserção na União Europeia, mas também à presença crescente de ex-colonizados dentro do seu espaço nacional? Quais as estratégias e as responsabilidades disciplinares perante estas mesmas transformações no campo das humanidades? Como pensar novos modos de transmitir e leccionar as disciplinas clássicas, surgidas em torno da invenção da nação, tomando em conta os desafios da pós-colonialidade? Que outras temporalidades podem ser pensadas para além de uma narrativa centrada na nação, na “Europa”, no “Ocidente”? Estas são algumas das questões que motivam a apresentação do conjunto de textos traduzidos. 2. No decurso dos anos setenta ocorreram viragens decisivas nos estudos antropológicos, históricos e literários. A narrativa e periodização que a seguir se propõe pretendem exactamente evocar uma série de condicionalismos, simultaneidades temporais e espaciais que contribuíram para essa alteração de perspectiva. Em 1973, Talal Asad publica um conjunto de estudos intitulado Anthropology and the Colonial Encounter cujo tema central é a responsabilidade da antropologia no contexto da história da Inglaterra imperial. A antropologia deixava assim de surgir como uma disciplina que tinha como objecto de estudo as sociedades humanas distantes do centro europeu para passar a ser


INTRODUÇÃO

11

vista como uma aliada dos desígnios e práticas da administração colonial. Um processo paralelo pode ainda ser observado do outro lado do Atlântico. No ano de 1978 é publicado Orientalismo, com consequências inimagináveis para o seu autor. O livro, com repercussões tanto mais amplas quanto fora escrito a partir do próprio centro hegemónico — num momento em que as cisões entre Oriente e Ocidente se haviam tornado particularmente virulentas devido ao acentuar do conflito israelo-palestiniano — marcaria uma viragem central nos estudos literários, multiplicando-se a designação “estudos pós-coloniais” no mundo anglófono. Já nos anos setenta, antes da publicação de Orientalismo, se assistira, também nos EUA, ao proliferar da recepção de autores franceses, na senda da importante viragem estruturalista. O estruturalismo, na centralidade concedida ao estudo e papel do discurso, levava não só a que se questionasse as assunções que tradicionalmente haviam organizado os estudos literários — de modos diferentes, é certo, consoante os contextos nacionais e as respectivas tradições — mas também a propor a transposição de fronteiras em torno da questão aglutinadora da linguagem. Esta tendência levaria não só a que conceitos fulcrais como o de “Sujeito”, “Homem”, “Autor”, ou o de “origens” viessem a ser questionados, mas também a que as próprias premissas do estruturalismo fossem problematizadas. Emblemático, neste sentido, pode ser considerado o ensaio de Jacques Derrida “La Structure, le Signe et le Jeu dans le Savoir Anthropologique” (1967), onde o autor propõe a problematização da existência — implícita na grelha de significação ou tabuleiro de xadrez do estruturalismo — de um centro organizador que trairia o eurocentrismo dos modelos universalistas de Lévi-Strauss. Questionar a centralidade em torno da qual o pensamento estruturalista ainda se organizava, correspondia também a questionar o fundamento primeiro em torno do qual o pensamento da estrutura fora construído, nomeadamente a interrogar a relação convencional e estável entre significante e significado (Saussure), que seria gradualmente substituída pela ideia da disseminação de sentidos e desestabilização da univocidade. Será exactamente esta desestabilização que se fará também


12

DESLOCALIZAR A EUROPA

sentir nos estudos historiográficos, designadamente na abordagem de Hayden White, ao propor que a história seja analisada segundo convenções retóricas. Para White, estas constituem a “alma do discurso, um mecanismo sem o qual o discurso não pode exercer o seu labor ou atingir a sua finalidade” (White 1978:2). Contrariamente às interpretações que mais tarde se fariam da sua obra, White não questiona os limites entre facto e ficção, como o demonstra o artigo inserido no presente volume. A sua abordagem é mais consistente e, por isso, tanto mais ameaçadora para os estudos historiográficos. Trata-se, sobretudo, de pensar a história não como categoria objectiva mas como um processo necessariamente construtivista, uma prática predominantemente discursiva que tem de recorrer a uma estrutura narrativa para organizar os acontecimentos — não os factos — que constituem o seu ponto de partida. É interessante verificar como, num momento em que Lyotard propõe a exaustão das grandes narrativas, White recupera a noção da centralidade da intriga, plot e emplotment na historiografia. Não há, contudo, qualquer contraste significativo nesta proposta: se a narrativa constitui um princípio estruturante da história, uma condição necessária para que esta adquira inteligibilidade, essa mesma narrativa, exposta nos seus artifícios, modalidades e afinidades com diferentes géneros literários, prova que a história não é objectiva, mas constitui um contructo que não pode reclamar a transparência das suas representações. Contudo, esta corrosão dos fundamentos de uma disciplina — que desempenhara na Europa um papel central em termos da invenção da tradição (Hobsbawm/Ranger 1983) — não é pensada por White para além dos limites da disciplina enquanto saber ocidental (Said 1978, Burke: 1997: 83). Isto torna-se evidente, se justapusermos os debates historiográficos à publicação, em 1983, de um texto que passará a constituir uma referência central para a antropologia e para os estudos culturais, Time and the Other de Johannes Fabian (1983). A obra de Fabian apresenta, tal como a de Asad ou a de Said, um olhar simultaneamente a partir de dentro e de fora sobre a disciplina de que é praticante. Antropólogo, tendo obtido a sua formação inicial na Alemanha, Fabian exercerá grande parte da sua actividade nos EUA. Time and the Other é a sua obra mais influente, como o atesta a sua reedição no ano de 2003, decorridos


INTRODUÇÃO

13

vinte anos sobre a primeira publicação. Fabian introduz uma perspectiva tanto mais produtiva sobre os métodos e contextos de poder da antropologia quanto olha a disciplina de um ponto de vista particular, associando a tradição anglo-americana à teoria alemã. Baseando-se no conceito de tempo, desenvolvido no pensamento histórico-filosófico desde o século XVIII, Fabian expõe não só a estreita associação entre antropologia e filosofia da história como evidencia criticamente as implicações dessa mesma associação para a constituição da alteridade. Articulando essa leitura com as propostas do estruturalismo, Fabian produz uma obra com afinidades com a de White, no sentido de propor uma revisitação dos fundamentos epistemológicos da sua disciplina. Acres-centa-lhe, contudo, uma vertente mais corrosiva, ao centrar a sua crítica da antropologia nas representações da alteridade, e ao desmontar, tal como Said, os procedimentos discursivos e as estratégias retóricas que haviam contribuído para transformar os povos estudados em “objectos” passivos, em “diferença” absoluta. O tempo do “Outro” é, consequentemente, o tempo de uma distância temporal que lhe recusa uma contemporaneidade efectiva, pois vive num tempo “primitivo” ou “arcaico”, no passado do “Ocidente”. O presente etnográfico em que as etnografias são es-critas constitui um dos procedimentos formais que contribuem para essa reificação, a par de outras estratégias tais como a colectivização, não dando assim voz à singularidade e particularidade daqueles que são descritos como protótipos de uma diferença, que é menos objecto de respeito do que um modo de explicar o presente do “Homem Branco” a partir da origem e infância que esse Outro representa e ilustra. Desse modo, Fabian questiona os métodos, práticas de escrita e epistemologias da disciplina da antropologia e abre caminho à crítica dos momentos aparentemente emancipadores subjacentes à aliança entre primitivismo e modernismo. Por outro lado, como sublinha no texto aqui publicado, a análise dos processos discursivos não invalida que os contextos de poder em que os textos são produzidos sejam equacionados: é exactamente na correlação fundamental entre referente e jogos de significação que se abre o espaço de denúncia desses processos “orientalizantes” (Said).


14

DESLOCALIZAR A EUROPA

Se Talal Asad questionara os fundamentos da antropologia social no contexto britânico, o volume co-editado por George E. Marcus e James Clifford Writing Culture. The Politics and Poetics Ethnography (1986) será fundamental para prolongar o debate em torno da disciplina, alargando o diálogo a outras áreas do saber e centrando-o no contexto dos EUA e da especificidade da tradição da antropologia cultural. Menos inaugural, pese embora o tom quase de manifesto que ecoa na introdução, do que balanço, citando as transformações que diversas disciplinas (as ciências sociais, históricas, literárias) sofreram, o autor sublinha a importância dos elementos que propiciam o questionamento das epistemologias e fronteiras disciplinares. Trata-se de pensar, a partir das mudanças operadas tanto pelo estruturalismo e pelo pós-estruturalismo como pelos estudos culturais, o modo como os núcleos duros das disciplinas se foram revelando como constructos. Mas não se está apenas perante uma proposta textualista, contrariamente à interpretação muitas vezes dada ao volume, quando se ignora o modo como os processos poéticos não podem ser dissociados dos contextos políticos, como o subtítulo do livro sublinha. Assim, a “autoridade etnográfica”, título e tema do artigo de James Clifford incluído neste volume, é pensada sob duas perspectivas: por um lado, a importância da escrita da etnografia, apelando-se à etimologia da palavra, a escrita ou a fixação por escrito da diferença; por outro, o modo como esse acto de escrita não se reduz a um mero artifício literário mas é também resultado e pressuposto de um discurso, a um tempo, constitutivo e legitimador de domínio colonial. A autoridade etnográfica resulta assim tanto de um contexto colonial como de procedimentos retóricos e narrativos inerentes ao acto de escrita, duas componentes que finalmente têm de ser entendidas na sua interdependência. A proposta converge em certa medida com a leitura tropológica da historiografia de White. Mas, no caso de Clifford, as questões de poder e da pós-colonialidade são decisivas para a revisão dos procedimentos da disciplina. O questionamento dos respectivos métodos articula-se também com as transformações decorrentes da hibridização das culturas, face ao impacto da modernidade e do capitalismo cada vez mais globais, bem como


INTRODUÇÃO

15

ao emergir dos “objectos” da antropologia como interlocutores, sujeitos, que fazem ouvir crescentemente a sua voz. O olhar etnográfico, o estar dentro e fora da cultura (Clifford 1988), é também uma componente decisiva de outros dois representantes da chamada teoria pós-colonial. As abordagens de Homi K. Bhabha e Gayatri Spivak caracterizam-se exactamente por, à semelhança de Edward W. Said, terem introduzido uma perspectiva pós-colonial não a partir de núcleos disciplinares “periféricos”, mas antes dos seus “centros”: a partir das disciplinas do Inglês e da Literatura Comparada. A obra de ambos reflecte a formação recebida: no caso de Bhabha, a presença central de Lacan nos estudos literários britânicos; no de Spivak, a influência de Derrida — que ela própria traduziu — nos EUA. Trata-se ainda de dois exemplos de emigração da Índia para os centros metropolitanos. Há ainda a sublinhar o facto de a obra de Bhabha, antes de se transferir para os EUA, ter constituído sobretudo uma resposta à situação de um Reino Unido pós-colonial, a braços com os problemas identitários resultantes do fim de um império, com a migração proveniente das antigas colónias e a manifestação de antigas e novas etnicidades (Hall 1997), tanto a nível de lutas políticas como em termos das suas primeiras manifestações de visibilidade na música, na arte, no cinema e na literatura (de que o caso Rushdie é apenas o exemplo mais conhecido). É neste contexto que Homi K. Bhabha introduzirá alguns dos seus mais importantes conceitos, nomeadamente os de terceiro espaço, intersticialidade (in-betweenness) e mimetismo (mimicry). O conceito de terceiro espaço remete para uma liminaridade que se esquiva a pensar as identidades nacionais em termos substancialistas, centradas em torno de uma cultura homogénea, ao mesmo tempo que recusa aceitar a ideia da diferença segundo a noção de um mosaico multiculturalista. A abordagem do estereótipo por Homi K. Bhabha, de que o texto incluído na presente colectânea dá conta, permite rever concepções essencialistas de diferença cultural e, sobretudo, reforça a ideia de que a discriminação não pode ignorar factores de ordem psicológica. Seguindo a orientação lacaniana, Bhabha entende que os processos discursivos são centrais na constituição da alteridade ou da diferença racial ou cultural, não podendo a estereotipificação ser explicada através de um mero processo de


16

DESLOCALIZAR A EUROPA

deturpação da “realidade”. Recusando esta forma de conceber o estereótipo, e assinalando a necessidade de se entender sobretudo os seus procedimentos discursivos, realça a importância da ambivalência no processo de relacionamento com a alteridade para desconstruir não só as concepções clássicas (que se atêm a uma concepção mimética da realidade) como os limites claros que separariam o Mesmo do Outro. A hibridez, conceito central na obra de Bhabha, constitui, a um tempo, uma característica da nação pós-colonial e um modo de questionar as narrativas da historiografia clássica da nação, salientando-se assim o modo como aquelas sempre estiveram ligadas às histórias coloniais. A mimicry, esse processo de apropriação corrosivo e não meramente reprodutor, “quase o mesmo, mas não tanto [...]. Quase o mesmo mas não branco” (Bhabha 1994: 89), constitui uma resposta irónica e subversiva — e não meramente inversora — ao processo de civilização do Ocidente, bem como uma proposta que impossibilita qualquer forma de binarismo entre Mesmo e Outro, Ocidente e Oriente. Esta manipulação da diferença equivale a uma maneira de recusar qualquer mito da pureza originária, identificação ou recusa absoluta, fantasia narcisista ou fetichista que funda a ambivalência do discurso colonial como o texto aqui traduzido o explicita. A recepção destes temas na antropologia tem-se revelado produtiva e polémica. O texto de Nicholas Thomas aqui traduzido fornece um exemplo do modo de a antropologia lidar com essa influência, dos debates surgidos em torno desses temas comuns, mas perspectivados a partir de experiências e tradições disciplinares diferentes. Baseando-se sobretudo na experiência do Pacífico, Thomas aponta para as possibilidades e limites de algumas das abordagens surgidas nos estudos pós-coloniais. Um dos argumentos decisivos resulta de uma recepção local, recepção essa que demonstra que as teorias não só se transformam quando viajam, como poderão mesmo não viajar. Os limites da aplicação da teoria pós-colonial e do conceito de hibridez de Bhabha são acentuados face à diversidade das experiências (pós)coloniais e das suas histórias e geografias específicas (Dirlik 2000, Clifford 2000, 2001), ao mesmo tem-po que são sublinhados os perigos de uma universalização de teorias e conceitos.


INTRODUÇÃO

17

Um argumento central avançado é a ideia de que o colonialismo deve ser analisado não só como discurso mas igualmente como processo cultural. Thomas salienta também a necessidade de se reconhecer que existem diversos discursos coloniais consoante os diferentes contextos históricos. Assinala ainda a importância de se reconhecer o modo como os colonizados se apropriam dos modelos impostos pelo colonialismo para os contrariar. Em suma: insiste na complexidade do processo colonial, dando ênfase à diversidade das histórias e das administrações coloniais. Se algumas das críticas avançadas por Thomas derivam sobretudo de uma abordagem epistemológica diferente daquela que inspira Bhabha, ela mostra claramente o modo como a apropriação recíproca de temas e o intercâmbio entre disciplinas, cada qual com ênfases próprias, tem vindo a caracterizar a recepção dos temas da pós-colonialidade. Acima de tudo, estas tendências na recepção indicam a importância do diálogo interdisciplinar no contexto de temas tão complexos como os que são aqui abordados. As questões epistemológicas tanto mais decisivas se afiguram quando a apropriação recíproca de métodos e conceitos se faz, por vezes, ignorando a erosão a que estes foram submetidos. Assim, os estudos culturais apropriam-se do conceito e prática da etnografia, ignorando a crise da representação etnográfica, os estudos literários propõem contextualizações históricas sem considerar o modo como a “história” e a “cultura” foram também elas objecto de questionamento. Por outro lado, o traçar de fronteiras e a demarcação da invasão de uma epistemologia estranha à disciplina é feita exactamente com base num entendimento não problematizado desses conceitos ou teorias itinerantes/nómadas. A desconfiança da história ou da antropologia face às contaminações literárias ou as da literatura face aos estudos culturais ou históricos baseia-se frequentemente nesse equívoco. A revisão do objecto da disciplina da história e dos seus fundamentos epistemológicos constitui o pano de fundo contra o qual se desenvolve o texto de Dipesh Chakrabarty que tem como principal tema a questão dos impasses e aporias do projecto do Grupo de Estudos do Subalterno. Este projecto desenvolvido por historiadores radicados na Índia, mas com importantes ramificações na sua diáspora, teve


18

DESLOCALIZAR A EUROPA

como principal objectivo contestar a historiografia nacionalista, exactamente pelo facto de esta acabar por reproduzir o modelo ocidental, presa que se encontrava da epistemologia do colonizador. As propostas do Grupo vão assim no sentido de escrever as histórias daqueles que tiveram um papel activo na resistência ao colonizador, histórias essas ignoradas pela historiografia clássica, predominantemente nacional. Marcado pelo pensamento de Foucault, o Grupo de Estudos do Subalterno teve como principal objectivo minar as bases dessa narrativa, com alguns problemas como aqueles que Gayatri Chakravorty Spivak assinala no texto “Can the Subaltern Speak?” A (im)possibilidade de se dar voz ao subalterno, categoria que o Grupo vai buscar a Antonio Gramsci, é, com efeito, o tema central desse texto de Spivak que se tornou um ‘clássico’ dos estudos pós-coloniais. O ensaio enuncia as aporias a que os historiadores do subalterno são conduzidos, a braços com as narrativas dos colonizadores e das classes dominantes. Spivak debruça-se sobretudo sobre a questão do género do subalterno, a sua omissão e silêncio, nomeadamente através do exemplo do sati, a imolação da viúva de acordo com a tradição hindu. Segundo Spivak, a mulher subalterna vê-se relegada ao silêncio. O texto aponta sobretudo para a complexidade dos processos de representação, ao recusar um conceito de representação transparente que leva à constituição de um Outro homogéneo e, em última instância, à recuperação de um Sujeito incólume que a autora identifica com o Ocidente. Usando paradigmas aparentemente incompatíveis, jogando na tensão entre um Marx, que desconstrói, e Derrida, Spivak ensaia — ideia reforçada numa reformulação mais recente do mesmo texto (Spivak 1999: 199-311) — formas de pensar até ao limite as possibilidades de enunciação da voz do subalterno para sublinhar a responsabilidade e as aporias dos teóricos que a pretendem restaurar, atendendo aos contextos geo-políticos e académicos em que a teoria pós-colonial, em particular, e os estudos pós-coloniais, em geral, se tornaram crescentemente audíveis. Os limites e possibilidades do projecto de dar voz ao subalterno estão também presentes no texto de Dipesh Chakrabarty aqui incluído. Sublinhando que a crítica das narrativas teleológicas é, a um tempo, um projecto de provincialização da Europa e um modo de buscar outras formas de nos relacionarmos com os passados subalternos, o autor propõe


INTRODUÇÃO

19

uma reflexão sobre os contextos epistemológicos e geopolíticos do ensino e do estudo da história. Socorrendo-se da tradição hermenêutica ocidental e buscando um modo alternativo de pensar a temporalidade — esse conceito central da historiografia — Chakrabarty propõe um modelo que permita pensar produtivamente a tensão entre as ferramentas do saber ocidental universalizado e as especificidades das histórias locais, minoritárias. Trata-se de recuperar uma hermenêutica que transcenda o modelo clássico, na medida em que o círculo hermenêutico requer uma reconstrução tanto mais cuidadosa dessa alteridade quanto ela parece escapar radicalmente à experiência e aos pressupostos teóricos do historiador. O texto sublinha também a necessidade de se manter a tensão entre tradição e modernidade, desmontando as dicotomias a ela associadas, salientando a necessidade de, na sequência de anteriores reflexões propostas pelo grupo de Estudos do Subalterno, se pensar até ao limite os pressupostos epistemológicos que precedem as práticas disciplinares, neste caso os da história. Assinalando as vantagens da visibilidade das minorias na escrita da história, mas também, como Spivak, o risco da sua cooptação dentro de uma disciplina que em última instância não é abalada por essa inclusão, Chakrabarty enfatiza a necessidade de se pluralizar as abordagens, criando tensões entre aquilo que é da ordem da explicação racional — aquilo que, poderia dizer-se, é narrável — e aquilo que escapa a essa explicação: é, no momento de identificação (a Einfühlung que a tradição hermenêutica clássica pressupõe) que o acto de historicizar também tem de se basear. Esta identificação pressupõe menos a criação de uma distância permanente, que a estratégia de narração assegura, do que a sua abolição, numa interrupção do tempo a lembrar as “Teses sobre a Filosofia da História” de Walter Benjamin. A temporalidade não é pensada como uma estrutura a priori ou universal, mas contém uma diversidade de tempos que escapam à sua organização numa inteligibilidade totalizante, como esses “nós temporais” que o texto evoca. Esses “nós temporais” são a condição de possibilidade da História e das histórias, ou seja: sem o momento de identificação, a hermenêutica do passado não é possível. Mas são ao mesmo tempo, a garantia de que o historicizar tem limites, que os


20

DESLOCALIZAR A EUROPA

passados subalternos escapam à lógica das narrativas historiográficas e que é essa impossibilidade que funda o respeito por esses passados. A questão da voz do subalterno e do cruzamento de histórias surge em alguns conceitos-chave propostos por Mary Louise Pratt: o de zona de contacto e o de auto-etnografia. Menos limite a ser superado do que espaço de conflito e de negociação, estes conceitos que a autora articula com o de transculturação (Ortiz) prolongam e completam outras teorias de hibridização cultural, recusando a ideia de assimilação ou mesmo de aculturação, como forma de tornear a violência do processo colonial (Leclerc 1971: 90). A zona de contacto não possui um sentido único, mas presta atenção a questões de agencialidade por parte dos colonizados, nomeadamente aos seus testemunhos escritos, orais, pictóricos (Mirzoeff 1999). As auto-etnografias constituem respostas a esses contactos, usando e manipulando as armas dos conquistadores, traduzindo culturas, acto de imitação e transgressão cultural que demonstra que a autenticidade tanto pode ser uma armadilha como uma arma para os colonizados. O modo como o texto faz cruzar várias disciplinas — a antropologia, a literatura e a história — leva a que estas se iluminem reciprocamente. A questão de se saber quem, em que contextos de poder, escreve a história ou define o que é “cultura” ou “arte” converge com as interrogações surgidas nos debates em torno da historiografia, da antropologia e da teoria pós-colonial. Pratt propõe ainda um estudo de caso particularmente pertinente, a partir das crónicas de Guamán Poma e da arte indígena nos Andes contemporâneos, tentando, através dessa leitura densa, decifrar a voz do subalterno em contextos específicos. O olhar etnográfico deixa, assim, de ser pertença exclusiva do observador europeu. A “viragem etnográfica”, o papel decisivo da antropologia auto-reflexiva e dos seus diálogos com outras disciplinas, bem como da perspectiva pós-colonial na arte contemporânea, constituem o tema do texto de Hal Foster. O modo como o crítico de arte dialoga com estas tendências revela uma ambivalência central nas suas reflexões: por um lado, explora as afinidades entre os projectos modernistas e o primitivismo no início do século XX e o interesse pela alteridade que caracteriza a viragem etnográfica na arte, nomeadamente em trabalhos surgidos a partir


INTRODUÇÃO

21

da década de sessenta (como é o caso das obras do artista plástico Lothar Baumgarten); por outro, denuncia, nas abordagens etnográficas, as formas de autenticidade que a “nova antropologia” de James Clifford teria recuperado, evidenciando o cepticismo face à possibilidade de se recuperar a voz do subalterno. Existem algumas afinidades entre esta crítica e as objecções de Spivak. Mas aquilo que Foster não reconhece, a não ser parcialmente, é o facto de esse “regresso do real” (tendência que, segundo o autor, atravessa a arte contemporânea e dá o título ao volume de que o ensaio é extraído) ser feito sobretudo a partir de uma problematização dos conceitos de identidade e cultura clássicos, constituindo a auto-reflexividade um elemento decisivo nesses projectos de pendor etnográfico. Consequentemente, a “au-tenticidade” é, para grande parte destes autores que fazem da diferença etnográfica um momento central da sua obra, mais um acto performativo do que uma aposta na reprodução da diferença absoluta. É exactamente nesse sentido que a perspectiva etnográfica converge com a da arte site specific (Coles 2000) na medida em que assume a parcialidade da sua perspectiva, sem complacência para com as visões panópticas e totalizantes das vanguardas do modernismo, minando, através dessa deslocação contextualizada, tanto o espaço do museu (Fred Wilson) como as hierarquias civilizacionais ou as barreiras entre o “Mesmo” e o “Outro”. Foster reconhece o papel da auto-paródia na obra de muitos desses artistas, que não só introduzem o “Outro” no Ocidente, como estilhaçam as fronteiras rígidas entre ambos. Mas insiste em entender este cruzamento como uma manifestação do capitalismo tardio, segundo a leitura de Fredric Jameson do pós-modernismo (Jameson 1990), hesitando entre os seus momentos inovadores e críticos da arte etnográfica e a mercadorização da diferença. O certo é que o pós-colonial penetrou de forma intensa os espaços de exibição ocidentais (Fisher 1994, Read 1996, Hall e Healy, 2001, Hassan e Dadi 2002), como foi o caso de Roterdão Capital da Cultura em 1999, da Documenta de Kassel em 2002 e, mais recentemente, de Lisboa, com a exposição itinerante Looking both Ways (Farrell 2003, Dias 2005). Se as reservas de Foster fazem sentido, elas mantêm-se dependentes de um ponto de vista excessivamente centrado num


Ocidente que acaba por surgir como interlocutor principal, num óbvio “desconforto face à mudança de paradigmas na prática artística e nas fronteiras disciplinares da academia” (Gonzalez). Pode colocar-se a seguinte questão: terá o Ocidente prevalecido mais uma vez, neste campo, ou estar-se-á perante novas zonas de contacto a exigir o alargamento de conceitos e pressupostos? * É exactamente este duplo movimento de deslocação e de localização que este volume propõe. Partindo de pressupostos, metodologias, áreas disciplinares diferentes, os textos aqui reunidos praticam, com diferentes ênfases, essa deslocalização. “O objectivo da teoria é assim viajar, indo para além dos seus limites, emigrar, permanecer em certo sentido no exílio”, escreve Said no ensaio que abre este volume e serve de epígrafe a esta introdução. Também por isso, este trabalho se vê mais como ponto de partida, do que como balanço, conclusão, ou canonização; mais como proposta de reflexão do que monumento a um passado, competindo ao leitor encontrar outras filiações, outras justaposições, outras genealogias e, sobretudo, a tradução para os contextos que lhe pareçam relevantes.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.