Do princípio

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DO PRINCÍPIO


Título: Do princípio © Pedro Braga Falcão e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2009 Concepção gráfica de João Botelho ISBN: 978-972-795-286-1


Pedro Braga Falcão

Do princípio

Cotovia



À minha mãe Ana Bela, por me ensinares o silêncio do poeta.



ÍNDICE

LIVRO PRIMEIRO ODES DE UMA JOVEM AUSÊNCIA I — Era chegado o momento da nossa tristeza II — Trouxe-te até aqui III — Aquela casa tinha outras portas IV — O violinista trazendo degraus V — Onde está essa parte de nós VI — Sempre genuinamente longe VII — Diana, louvo-te e és sem luz VIII — Ofereço-te hoje o frio desta areia IX — Despeço-me agora X — A sinceridade dessa gata XI — A morte, segura-a em meus braços XII — Que mais nos resta do que falar dos astros? XIII — Mãos ásperas, tão pouco tuas XIV — Em cada valsa uma jovem XV — Dentro da carruagem XVI — As feiras têm ciganos XVII — Quando virá o deus XVIII — E agora, soldado, o que levas? XIX — Numa feira deste tempo XX — Essa pouca esperança, arrogante XXI — O velho sábio senta-se no banco XXII — É verdade, confesso XXIII — As veias nocturnas do ébano XXIV — Se houvesse faróis suficientes XXV — Ah, o que fôramos! XXVI — O sono pesou

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15 17 19 20 21 23 25 26 29 30 31 32 33 35 36 37 38 39 40 42 44 46 47 48 49 50


XXVII — Se a loucura soubesse meu nome XXVIII — Espelhos há que nos devolvem quartos XXIX — Pai, a morte vem XXX — Quando será que nos esqueceremos? XXXI — São estações os crepúsculos XXXII — Ele esperava um lado sombrio XXXIII — Todos esses jovens XXXIV — E afinal as pontes são nevoeiro

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LIVRO SEGUNDO A ARTE DA FUGA I — Sempre lhe é possível II — Ao louvor de todos III — Entra a voz rouca IV — Pasme-se o mundo V — Não VI — Trazem de Espanha VII — Vem lá tu, enganador VIII — A alma cai IX — Disseste-lhe tu que o vazio X — O fado XI — Esta gente cai como chuva XII — Aqui XIII — É a tua rotina XIV — A agonia da bússola XV — Considera XVI — Farás do sofrimento XVII — O espaço mora no sítio onde ficaste XVIII — Procuras demais nas esferas XIX — Vem o cais no movimento XX — O desleixo tomou conta deste riso XXI — Prémios, honras

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LIVRO TERCEIRO O MONÓLOGO DE CASSANDRA I — VERDADE II — LUCIDEZ III — SORTE IV — MEDIOCRIDADE V — FINGIMENTO VI — NOBREZA VII — APARÊNCIA VIII — PREVER IX — QUEDA X — PAZ XI — SOMBRA XII — VOCAÇÃO XIII — FEITIÇO XIV — POSSIBILIDADE XV — TREVAS XVI — VASSALAGEM XVII — APOLO A CASSANDRA XVIII — RUÍNA XIX — POBREZA XX — CULPA XXI — LIBERTAÇÃO

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89 91 92 94 97 98 100 104 104 106 107 108 110 112 113 114 115 116 118 119 120



LIVRO PRIMEIRO ODES DE UMA JOVEM AUSÊNCIA



ODES DE UMA JOVEM AUSÊNCIA I Era chegado o momento da nossa tristeza, não fora junto que partíramos, tarde que sem fortuna chegámos? No quintal em que havia árvores pouco te imaginei minha, a terra tinha a cor do saibro, moldava-se como sólida areia, aí nem suspiro te deixava oferenda outra que não o pinheiro. A partir de um momento, perdido no espírito das horas, houve algo que me fez querer ter um nome com que te encontrasse. Nesses primeiros dias o teu hálito de virgem teve o sabor do primeiro beijo, ficava acordado no teu perfume de encantada profecia, o teu corpo como mistério era arca de um tesouro, escondido tanto mais que revelado. Mas os versos fizeram-me ter um tu por companheira, decidi ocupar o teu lugar com os cantos prometidos, 15


com hinos e lugares estranhos de um sinistro andamento. Antes essa primeira música, esses seres que para mim tocavam, seduziam-me até à lembrança, evitava essas sinfonias e os sinos por querê-los demais em mim. Foste tomando um rosto ignoto, o macio espelho de um nada. E eu longe me fui tornando firmemente estabelecido em verbos que nunca conjugaria. Esse último indolente aceno, esse confortável e submisso adeus, encarei-o como nova demanda, um novíssimo rumo sem naufrágio, mastros de sereias amarradas por minha voz de regressado. Mas o tempo foi destruindo amargo o que pouco restava da decisão, por máxima culpa de fugitivo o teu nome difuso se foi tornando. Todas as letras lembradas de nada valiam que não um nada, uma massa inane de sons que tua pele não me ofereciam. Chegara a ausência e a privação, e fui-me ausentando até agora, que nada neste mundo sem esteiros 16


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leva a água que de ti choveu. Agora danço as felizes palavras que um dia te diria ao ouvido, escrevo-as sedento de teu corpo numa orgia privada de carne. No momento da escolha, amor dos amores, tentei ainda que tivesses vida, procurei dar testemunho de tudo o que em mim feneceu. Nesse derradeiro aceno de despedida, de um fôlego, sem ar, achei-me desamparado, posto entre as muralhas que minha pena fez levantar, sem máquinas outras que teu desaparecimento.

II Trouxe-te até aqui. Junto a este bosque — onde outrora os raios de um deus caíram — ergo-te de encontro a uma voluptuosa árvore. O teu sorriso de leoa 17


estendida sobre um animal tinha silhuetas de sangue. Agarrada numa orgia de multidão negra ouço-te batendo o pé, ferindo a escuridão. Os cálices com que brindam fazem de mortos. O corpo enorme e languidamente esguio tem um ventre. Sofrendo de loucura, num acesso de espasmos ele faz tremer o palco, e ela, desprotegida, foge seguida de preto. Cada pulsar russo tem ébano nas veias, despedaçado em som as oblongas pernas adejam tangerinas. São um mesmo corpo. Placidamente nus, com a violência do machado percutem o homem com tom exagerado. E esmagados ouvimos nocivas formas de dançar. Tudo isto me dá apetite, 18


de te ver as pernas e sentir teus seios. Mas a distância — tão curta como plateia — afasta o meu desejo. E os tons menores são rumores, e a percussão já quase não seria a Sagração da Primavera.

III Aquela casa tinha outras portas, os cortinados eram mais leves, o porteiro tinha canoa de vime, as horas eram portentos de cristal. Como nos recordamos desse bosque onde os raios caíam sem pressa, e daquele loureiro vestido de árvore com ares de animal de outro mundo, e, lá ao fundo, onde agora é mar, aquele mágico e sedoso templo repleto de preces de últimas virgens. E agora, o cinzento não tem cor, as searas perderam a vontade, e o vizinho alegre já não sorri. 19


Quantos touros serão precisos, quanta força, quantas juntas, para empuxar tão pouca caravana? Viemos cansados e sem fôlego, dormindo uma espécie de sonho, com luzes quentes e ásperas como um búzio fechado na areia. Agora já não há tréguas. Semicerrando as pálpebras os uivos de outros lupanares são casas de perdição. Porque não surgiu essa outra que parecia tudo perguntar? E porque surge essa menina sem encanto outro que sorriso? A casa já era outra e abandonámo-la. Aqui junto à costa espero já outro algo, como se todo este lodaçal tivesse um fim.

IV O violinista trazendo degraus a uma imensidão de violetas. Efémero esse toque, efémera a vastidão deste tudo, somos todos acordes sobre novas flores. 20


A sua juventude de árvore carrega os raios de um novo deus, os seus dedos rangendo madeira são eternamente mãos. Quando será perene seu gesto, quando será idosamente músico, quando tomará a canície sua vívida tez? Perguntamos também a essa jovem que ouve com olhos de anteontem se seremos juntos essa dança. O seu arco entretanto feito vindima é servido em cálices divos, sacramente plenos. Ouçamos sempre prontos as noites que nos fogem como madressilvas entre os dedos.

V Onde está essa parte de nós, quando deixámos de querer tudo, tão meninos que éramos, e esperámos, esperámos, sem sobressalto, e cada criação era nossa, e tu tinhas um estranho nome e a nossa dança era outra. Entretanto, 21


já o ocaso nos servia de agasalho, já um velho hirsuto declamava palavras de outro mundo. E nós, que éramos nós, ouvimos não sem delícia outras letras, outros gestos, outras pradarias, outras savanas, como se a nossa quase leda utopia não conhecesse compassos ou medida. Tão sem rumo — queria que me dissesses, tão festivamente única. E eu tentava tomar-te em meus braços e explicar-te o porquê de haver navios, saber como e quando haveria outros mares. Desejáramos outrora estar contigo, agora uma mera ténue brisa era fogo, e os tempos dos verbos sem sujeito eram predicados de teus beijos. Como se alguma vez pudesses ter desejado as muralhas, as cidades, as fortalezas que tão desapaixonadamente deixáramos, entre desajeitadas flores e festas, sem espaço para o que fosse, perdidos, entregues a uma perdição de amar. Mas esse tempo fora outro. Perdera o desejo. Entre nada mais do que manhãs aparecias e logo te queria assim mais perto, menos surpresa, mais surpreendida. Era de manhã, o tempo de Estio 22


sobre a humidade de teu corpo adejava. Num maravilhoso treno de luz. Sem naufrágio pouco nos perdemos e o branco quase infinito dos nautas não tinha sorrisos. Morrêramos pouco, mas já demais para um último beijo, o teu rosto de outros encantos já se teria demasiado conhecido. E ele, invejoso cárcere das horas, roubava-nos tuas palacianas vestes. Nus de ti deixámos de adormecer. Que assim seja, bela algoz, que descanses então sem mim e que a barca te não leve de outro mundo. Nem sempre teremos aqui de navegar.

VI Sempre genuinamente longe, grata à minha pena, sempre transformada em espelho vendo-te uma outra ainda a ti. Fora de certo universo, precisamente sem sorrisos, insinuando searas de trigo com olhares antigos, colhendo de cada cor 23


a forma e ideia de tudo. Escondes-te, eu conheço, sempre fazendo montanhas reunidas em cordilheiras. Teus braços cândidos, nitentes como no alvo mar rutila o rio, são tanto como não são, inexpressivo ribeiro luminoso. A cada voragem de teu sopro uma finita loucura acaba, a cada arcada decantada em sonho alarga-se o verso, as áureas Musas do desencontro suspiram-te cantos bonitos. Não há sempre, apenas este começo, há um quando gemido, um confuso início que se confunde com teus braços. Tão facilmente bonita, estese pura sem sentidos, fórmula de distante magia. Musicalmente suspensa, cadência pura, sem sons, concebida e dirigida à pulsação das enseadas. Desejo possuir o belo quando não te toco, ser náufrago nauta 24


sem me parecer contigo; o Hades paradoxalmente perto num exercício de estar vivo. Que cânticos podereis evocar, inspirados seres de poeta, que apazigúem esta sede, iniciada e concluída sem ti, apesar de tudo ínvia floresta. No que seja este caminho estarei só, contigo, em teu regaço de sombras.

VII Diana, louvo-te e és sem luz. Noctívaga, dizem-te sem peso, e no entanto uma outra renasces corpórea como sede. Que serão de teus bicornes laços quando a chama rarear teus dedos, que serão de tuas silentes odes quando os amantes dormirem ouro? Quando será o amor o desejo de te possuir, violentamente sem noite? Quando serei dentro de teu corpo, lua sem esteios? 25


Adivinho o indistinto atro véu de tua lucidez, mensageiro não da Primavera mas de um seco Outono. Quando, pergunto chorando em tua ara, serás minha noiva, celebrada em uníssono? Tua cris face em evidência surge como oriente.

VIII Ofereço-te hoje o frio desta areia, ofereço-te este lânguido modo de desejo, entrego-te o Inverno desta praia, composto como monólogo sem teatro. E dou-te a forma como o vento toca com gélido halo em meu cabelo, o meio súbito como fugi de tudo por um pôr-do-sol que por pouco via. Oferto-te este quase, estas estradas, esta pressa de entrar sozinho, esta volúpia de escrever só, este som que está comigo, que me beija. Ofereço-te cada segundo em que te espero, o modo como menos e menos 26


a luz me diz o que imprimo, a minha dádiva é tua, obedeço-te, cada preciosidade deste mar, cada instante, cada sorriso, cada abandono, cada finito. Generoso herói com tudo te presenteio, antes mais foras que existisses, o mundo, cada espaço desta distância, cada espuma que adivinho, o horizonte, o escuro modo de estar aqui, a lua cheia que ainda não surge, e cada cabo, cada enseada, cada frémito, e os beijos dormentes, os lábios frios, e o meu corpo entorpecido, minhas mãos, minhas letras, meus desatinos, meus nadas. Que tanto te conhecesse que te pudesse reconhecer. Não te avisto, cada esquina dói, cada verso em que quase te descubro, cada ser de estar longe, cada nota que não acaba em cântico. Escurece, vejo-te ainda mais como não vejo. A hora tardia arrasta-se. As dunas morrem. Só esta brisa hirta de gelo, só este amor sensual de te tocar como um último pecado, sombrio, só este modo de se ir acompanhado me impele, me incita, me comove. A alma morta é muda. O corpo, privado disso a que chamam escolha, 27


tem a certeza de que jamais é nunca, de que cada página escrita perece como eu te minto, que não te conheço. E uma umbrosa forma de estar sentado, de procurar adivinhar no que de ti creio ainda uma réstia, um pouco, um fôlego, um querer, um mentir, uma voz quente, que me leve daqui, destes sítios que enterram, onde meus ossos se despem de ti, onde vou acreditando que não, onde a Esperança, débil deusa, pouco sabe de Orfeu. Por isso desço e faço ressoar da lira os derradeiros infernos da minha redenção. Por isso não existe deus que me eleve, findou-se o poeta que leio, acabou de existir a música mais longa de um universo. Por tudo isso o sentimento é fraco, esvai-se como cego, sem estrelas, sem rotações, sem planetas, sem Copérnicos, por isso desisto a dado desejo novo porque encontro ainda um outro. Todos somos sem caminhos. E que se descubra, que se desenhe, que nada será como um silêncio. Que os astros serão fixos e imóveis para além de um jazigo. Que deus não chora. Que os filhos de tão pequenos e bonitos 28


além de nossos existirão pouco. Que nada do que escrevo diz, antes deixa por encontrar a nova mulher, o novo homem, um novo verbo que nos una, que nos deixe como que alquebrados, embalados e fingidos por um mau sonho. Não me esqueço, apenas não conheço as frases quase hinos da nossa solidão.

IX Despeço-me agora. Por momentos coloridas sombras eram cor em teus olhos, enquanto furtiva me abraçavas. Quis dizer-te um último verso — que era afinal simples palavra — mas já o agudo silvo do comboio, qual ramo de oliveira, falava em nosso nome. Ficou-me o teu último gesto, a forma subtil como te voltaste, deixando-me só com este cântico. Quando voltarás? Jamais este segundo terá a tua pronúncia, 29


jamais um beijo próximo nos unirá surpreendidos. Como leve cerva, rainha de um nada, apareceste pronta a viajar. E eu guardei dentro de mim cada memória de teu corpo, carreguei a mala onde levavas o que seria o nosso encontro. Reúno agora, num agora que ontem foi, nítidas imagens de tua nuca; tarde chegaste, cedo partiste, amante minha de perdição.

X A sinceridade dessa gata, de um tigrado quase infinito, delicada como alegre jogo de crianças adormecidas, lembra-me, à tarde, quando ouço pianistas, uma única varanda e uma única janela. Como solstícios de inferno o repuxo abre-se em luz. 30


Tomara o canto fosse nosso sem searas e sem ciprestes.

XI A morte, segura-a em meus braços. Sabes que danças anunciam nosso noivado, que negras vestes dobram nossa perdição. E tu sem cor, tão infinita, tu com ar de flores e de alfazema, tu a quem nem o luar faria sombra. Danço. Quero dançar contigo. Teu passo mórbido é longínquo, teu esgar de planeta à beira-rio valsa comigo. Eu só espero que o breu sem forma tome teus vernantes pés, que teu dorso subjugado seja um dativo adormecido. Então soergues-te ligeira e ensinas-me para sempre a norma e a regra e a lei com que julgados devemos ser. Despeço-me. É noite e tu morres sempre. Deus, apraz-me trovejar sempre que tua dolosa chuva me lembra outros lugares. 31


XII Que mais nos resta do que falar dos astros? Da forma como hoje a nuvem encoberta tinha a pouca luz de uma noite, de como a lua surgia sem céu num universo de quase estrelas, de quando estávamos juntos e os teus olhos queriam e fugiam. Que mais há para além de tudo? Como pode a esperança engendrar notícias de uma morte não natural, como podem os cães sem tomba uivar as horas que por nós passam? E esses raivosos mosquitos que silvam nossos gritos? Serão todas as paisagens ecos e todos os ecos sem ruído? Tenho pena desse leão que ruge rochas e pedras com movimentos de mármore. Cada animal fora nosso antes deste melancólico Estio: é que os verbos levantam muros maiores do que muralhas.

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