ÉPOCA DE ACASALAMENTO
P. G. Wodehouse escrevendo no escrit贸rio de sua casa em Long Island NY, em 1974, cerca de um ano antes da sua morte. 漏 John Marmaras - john@marmaras.com
NOTA DO EDITOR: Alexandre Soares Silva, autor desta tradução para português do Brasil, colaborou na sua adaptação para português de Portugal, feita por Carla Hilário Quevedo e Fernanda Mira Barros.
Título original: The Mating Season Copyright © tbc The Estate of P. G. Wodehouse Copyright © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2007 Venda exclusiva na Europa © do prefácio: Alexandre Soares Silva Ilustração da capa: César Évora Todos os direitos reservados ISBN 978-972-795-209-0 Os Livros da Raposa são uma chancela dos Livros Cotovia www.livroscotovia.pt
P. G. Wodehouse
Época de acasalamento
Tradução de Alexandre Soares Silva
OS LIVROS DA RAPOSA RAPOSA MATREIRA
PREFÁCIO
Alguns escritores gostam de caçar elefantes, seduzir sobrinhas, fundar movimentos, virar ministros da cultura, se viciar em anfetaminas, elogiar Staline, beber bastante e depois chutar bandejas das mãos de velhinhas francesas — essas coisas todas. P. G.Wodehouse (1881 -1975) gostava de escrever, e passou a vida escrevendo. Acordava às sete da manhã, fazia os exercícios diários e se trancava no escritório. Depois do almoço dava um passeio, e na reentrada em casa torcia para não encontrar nenhuma visita porque isso significaria perder uma tarde de trabalho. Escrevia duas mil palavras por dia, sete dias por semana. Quando chegou perto dos cem anos, reduziu a cota diária para mil palavras. Escreveu noventa e seis livros. Escreveu também letras para a Broadway, trabalhando com Cole Porter e Jerome Kern. Fez dinheiro desde jovem, fez amigos, teve um bom casamento; e se não teve filhos, teve algo melhor que isso, que são poodles. Para um autor cômico, foi muito respeitado, sendo comparado várias vezes a Shakespeare pelo domínio da linguagem e a Dickens pela criação de personagens. Uma vez li um verbete de enciclopédia sobre Tennyson que tinha no meio a frase “teve uma vida idílica e feliz”. Honestamente não acho que isso tenha sido verdade sobre Tennyson, mas está muito perto de ter sido verdade sobre Wodehouse. Estou dizendo isso porque cada vez que alguém escreve sobre a vida de Wodehouse dá um destaque enorme a um episódio que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, como se esse fosse o momento culminante da vida dele. As pessoas fazem isso porque foi o único mo-mento relativamente dramático da vida de Wodehouse: preso pelos alemães na França, passou um ano em campos de prisoneiros na Polônia e na Alemanha, jogando críquete e escrevendo; não muito sabia7
mente, fez alguns programas engraçados de rádio em Berlim, contando para o público americano como era a vida no campo de prisioneiros, e acabou sendo acusado de traição na Inglaterra. Foi defendido por Evelyn Waugh e George Orwell, entre muitos outros, e atacado por Winston Churchill e o então Ministro das Informações, Alfred Duff Cooper. Essa foi uma acusação que demorou anos para ser desfeita, mas não acho que o episódio tenha tido a importância que a maioria dos biógrafos acham que teve; o tom geral da vida de Wodehouse foi de um não-dramatismo contente e pachorrento, e mesmo o período passado no campo de prisioneiros foi descrito por Wodehouse como “realmente não desagradável”. Mas contei o episódio porque há dois detalhes divertidos em Época de Acasalamento relacionados a ele. Entre as pessoas que acusaram Wodehouse estava A. A. Milne, o autor de Winnie the Pooh e dos versos infantis de Christopher Robin. O “horrendo Milne”, como o chamou anos mais tarde Auberon Waugh, comentando o episódio, havia sido amigo de Wodehouse antes da guerra, e foi especialmente venenoso nos artigos que escreveu contra ele. Wodehouse se vingou depois da guerra: em Época de Acasalamento, de 1949, Milne aparece como o autor de versos infantis tão embaraçosos que nem Bertie Wooster nem uma criança querem ser vistos recitando-os num palco. Também é divertido notar que, quando o bebedor inveterado de sumo de laranja Gussie Fink-Nottle vai preso por caçar salamandras na fonte de Trafalgar Square, dá à polícia não o seu próprio e magnífico nome, mas o de outro dos acusadores de Wodehouse: Alfred Duff Cooper. É preciso amar uma pessoa que se vinga de maneira tão caracteristicamente inocente e benigna. A.S.S. São Paulo, Maio de 2007
8
Época de acasalamento
1 Embora eu não chegue ao ponto de dizer que tinha o coração pesado como chumbo, tenho de admitir que, na véspera de começar a cumprir a minha pena em Deverill Hall, eu não estava realmente lá muito animado. Encolhia-me de horror ante a perspectiva de ser recambiado para uma casa que mantinha relações piegas com uma rufia como a minha tia Agatha, ainda para mais debilitado como eu estava depois de ter tido o filho dela, o Thomas, que é um dos mais proeminentes diabos em forma humana, entregue aos meus cuidados durante três dias. Mencionei isto ao Jeeves, que concordou que o programa poderia ter sido mais apelativo. — Mesmo assim — disse eu, tentando acertar, como sempre faço, no lado bom das coisas — é muito lisonjeiro, claro. — Senhor? — Ser o Eleito do Povo, Jeeves. Ver essa gente toda a andar por aí a cantar “Queremos o Wooster”. — Ah, sim, senhor. Precisamente. Deveras gratificante. Mas, esperem aí um minutinho. Esqueci-me de que não fazem a mais pálida ideia do que tudo isto seja. É o que normalmente acontece quando se começa a contar uma história. Uma pessoa sai a correr à frente, todo alegre e bem disposto como um garboso cavalo de batalha prestes a dar início à rotina diária e, quando uma pessoa se dá conta, os clientes estão de pé nas patas traseiras a gritar por notas de rodapé. Deixem-me engatar a marcha-atrás e pôr-vos ao corrente das coisas. A minha tia Agatha, aquela tia que mastiga garrafas de vidro e mata ratazanas à dentada, chegou subitamente a Londres, vinda do seu ninho rural com o filho Thomas, e ordenou-me, com a autoridade que a caracteriza, que o instalasse durante três dias no meu apartamento, enquanto o Thomas ia a dentistas e a teatros e fazia outras coisas preparatórias para a sua saída de casa e entrada na escola em Bramley11
-on-Sea. Ordenou-me também que, terminadas essas tarefas, eu seguisse para Deverill Hall, em King’s Deverill, Hampshire, que é a casa de uns amigos quaisquer que ela tem, e oferecesse os meus serviços ao sarau da aldeia. Ao que parece, eles queriam elevar o nível do programa com um cheirinho de talento metropolitano, e a sobrinha do vigário recomendou-me a mim. E assunto arrumado, é claro. Seria inútil dizer à minha tia agora que eu não me queria nem aproximar do jovem Thos e que não suporto encontros às cegas. Quando a tia Agatha emite as suas ordens, uma pessoa cumpre. Mas, como referi, eu estava ciente de uma certa apreensão quanto ao rumo que as coisas podiam tomar, e o panorama não me pareceu mais risonho quando fiquei a saber que o Gussie Fink-Nottle estaria entre os presentes em Deverill Hall. Quando se está encurralado na caverna dos conspiradores, precisa-se de alguma coisa bem melhor do que o Gussie para manter a pose. Ponderei um bocadinho. — Queria ter mais informações sobre essa gente, Jeeves — disse eu. — Em alturas como esta, gosto de saber o que é que vou enfrentar. Até agora, só percebi que vou ser o convidado de um terra-tenente chamado Harris ou Hacker ou talvez Hassock. — Haddock, senhor. — Haddock, hã? — Sim, senhor. O cavalheiro que será o seu anfitrião é um tal Mr. Esmond Haddock. — É estranho, mas esse nome parece-me familiar, como se já o tivesse ouvido algures. — Mr. Haddock é o filho do dono de um remédio muitíssimo conhecido chamado EliminaDor de Cabeça Haddock, senhor. Talvez esse nome em concreto lhe seja familiar, senhor. — Claro. Conheço muito bem. Não é tão sensacionalmente bom quanto aqueles teus tónicos, mas mesmo assim é um excelente apoio para o dia seguinte. Então o homem é um desses Haddocks, hã? — Sim, senhor. O falecido pai de Mr. Esmond Haddock casou-se com a falecida Flora Deverill. — Antes de falecerem ambos, é claro? — A união entre eles foi considerada um tanto uma mésalliance pelas irmãs da menina Flora. Os Deverill são uma família muito antiga na região e, como acontece com tantas outras nos dias que correm, encontram-se na pobreza. 12
— Já estou a ver o filme. O Haddock, embora não seja de origem muito fina por parte do pai, é quem paga as contas semanais? — Sim, senhor. — Bom, com certeza é porque pode. Esse EliminaDor de Cabeça é ouro puro, Jeeves. — Tendo a imaginar que sim, senhor. Ocorreu-me uma ideia que quase sempre me ocorre quando estou a dar dois dedos de conversa com esta excelente criatura: a saber, que ele parecia saber a potes do assunto. Mencionei este facto, e ele explicou-me que foi uma dessas coincidências extraordinárias que lhe permitiu conhecer a história por dentro. — O meu tio Charlie ocupa o cargo de mordomo em Deverill Hall, senhor. É dele que provêm as informações que possuo. — Não sabia que tinhas um tio Charlie. Charlie Jeeves? — Não, senhor. Charlie Silversmith. Acendi um cigarro bastante apetecido. A história começava a ficar clara. — Bom, é mesmo muita sorte. Vais poder fornecer-me todos os factos salientes, se saliente é a palavra que eu queria usar. Que tipo de lugar é Deverill Hall? Agradável? Caminhos de cascalho? Paisagens a perder de vista? — Sim, senhor. — Boa comida? — Sim, senhor. — E, falando no pessoal. Por acaso existe uma Mrs. Haddock? — Não, senhor. O jovem cavalheiro é solteiro. Reside na casa com cinco tias. — Cinco? — Sim, senhor. As meninas Charlotte, Emmeline, Harriet e Myrtle Deverill, e Dame Daphne Winkworth, viúva do falecido P. B. Winkworth, o historiador. A filha de Dame Daphne, a menina Gertrude Winkworth, pelo que percebi, também habita na casa. Quando o Jeeves me deu a deixa das “cinco tias” os meus joelhos fraquejaram um pouco, porque a ideia de confrontar tamanha alcateia de tias, mesmo sendo as tias de outra pessoa, era enervante. Lembrando a mim mesmo que nesta vida não são as tias que contam mas a coragem com que as enfrentamos, recompus-me. — Percebo — disse eu. — Nem rasto de companhia feminina. — Não, senhor. — A companhia do Gussie pode até ser um alívio. 13
— Muito provavelmente, senhor. — Mesmo sendo o que é. — Sim, senhor. Pergunto-me, aliás, se se lembram deste Augustus, cujas actividades já tive ocasião de mencionar uma ou duas vezes. Façam a vossa mente retroceder. Trapalhão até às guelras, cara de peixe, óculos de tartaruga, bebia sumo de laranja, coleccionava salamandras, noivo da maçadora-mor de Inglaterra, de seu nome Madeline Bassett... Ah, já se lembram de quem ele é? Óptimo. — Diz-me lá, Jeeves — continuei — como é que o Gussie se foi envolver com essas bactérias? Não é um mistério impenetrável que também ele esteja a caminho de Deverill Hall? — Não, senhor. Foi o próprio Mr. Fink-Nottle quem me informou disso. — Tu viste-o, então? — Vi, senhor. Mr. Fink-Nottle veio cá quando o senhor estava fora. — E como é que ele estava? — Desanimado, senhor. — Como eu, encolhe-se todo ante a possibilidade de visitar aquela horrível cabana? — Sim, senhor. Mr. Fink-Nottle julgava que Miss Bassett iria acompanhá-lo, mas Miss Bassett mudou de planos à última hora e foi residir em The Larches, Wimbledon Common, com uma velha amiga de escola que sofreu recentemente uma desilusão amorosa. Segundo Miss Bassett, a amiga precisava de alguém que a animasse. Eu estava longe de compreender como é que a companhia da Madeline Bassett podia animar fosse quem fosse, sendo ela, da cabeça aos pés, a mulher que Deus esqueceu, mas omiti este comentário. Só opinei que isso deve ter feito o Gussie espumar um pouco. — Sim, senhor. Mr. Fink-Nottle expressou aborrecimento com a mudança de planos. Na verdade, e isto eu conclui a partir dos comentários de Mr. Fink-Nottle, pois Mr. Fink-Nottle teve a gentileza de se abrir comigo, em resultado disso instalou-se uma certa frieza entre Mr. Fink-Nottle e Miss Bassett. — Meu Deus! — exclamei. E já vos explico por que razão exclamei “Meu Deus!”. Se se lembram do Gussie Fink-Nottle, provavelmente também se lembrarão da sequência de circunstâncias que levaram, se é que sequências levam mesmo, a que essa terrível Bassett acreditasse firmemente, na sua cabecinha oca, que o Bertram Wooster estava a definhar de amores por ela. 14
Não vou agora entrar em pormenores, mas ela estava convencida de que, se um dia quisesse romper com o Gussie, bastaria chamar-me de urgência, que eu iria a correr ter com ela, pronto para pagar a licença e encomendar o bolo de casamento. Portanto, conhecendo a minha opinião sobre essa Bassett, M., compreenderão imediatamente por que razão este paleio sobre friezas me arrancou um alarmado “Meu Deus!”. O pensamento do perigo que eu corria nunca me largou e a minha alma só se iria realmente descontrair quando aqueles dois estivessem a caminho do altar. Só depois de o padre ter pronunciado a frase definitiva é que o Bertram iria respirar livremente outra vez. — Ah, bom — disse eu, esperando que tudo corresse pelo melhor. — Só um arrufo de namorados, com certeza. Estão sempre a acontecer, estes arrufos de namorados. A esta hora, provavelmente já se deu uma reconciliação completa e o Deus do Amor está de volta à cena, risonho e saltitante. Ah! — continuei, enquanto alguém tocava à campainha da frente — está alguém lá fora à espera. Se for o jovem Thos, diz-lhe que eu espero que ele esteja pronto, todo limpinho e rosadinho, às sete e quarenta e cinco esta noite, para ir comigo a uma representação de O Rei Lear no Old Vic, e ele que não tente fugir. A mãe dele disse que ele tem de ir ao Old Vic, e portanto ele vai ao Old Vic de certezinha. — Creio ser mais provável que seja Mr. Pirbright, senhor. — O Comida-de-Gato? Porque achas tu que é ele? — Mr. Pirbright também cá esteve durante a sua ausência, senhor, e disse que voltaria mais tarde. Vinha acompanhado da irmã, Miss Pirbright. — Santo Deus, é verdade? A Corky? Eu pensava que ela estava em Hollywood. — Julgo que a menina veio a Inglaterra de férias, senhor. — Serviste-lhe um chá? — Sim, senhor. O menino Thomas fez de anfitrião. E posteriormente Miss Pirbright levou o jovem cavalheiro a ver um filme. — Gostava tanto de não me ter desencontrado dela! Não vejo a Corky há séculos. Ela estava bem? — Sim, senhor. — E o Comida-de-Gato? Como estava ele? — Desanimado, senhor. — Estás a confundi-lo com o Gussie. Era o Gussie, se bem te lembras, que estava desanimado. — Mr. Pirbright também. 15
— Parece haver muita desanimação aos pulos por aí, ultimamente. — Atravessamos dias difíceis, senhor. — É verdade. Bom, arrasta-o até cá. O Jeeves desapareceu da sala, e momentos depois reapareceu na sala. — Mr. Pirbright — anunciou. O Jeeves acertara. Uma olhadela ao meu jovem visitante foi o suficiente para eu perceber que ele estava desanimado.
2 E, atenção, não é frequente encontrarmos o nosso objecto de estudo nestas condições. Um tipo excepcionalmente esfuziante, em regra. De facto, considerado no seu todo, eu diria que, de todos os tipos foliões do Drones Club, o Claude Cattermole Pirbright talvez seja o mais folião, tanto no palco como fora do palco. Digo “no palco” porque é sob os holofotes que ele aufere o envelope semanal. Pertence a uma família célebre no teatro. O pai foi o homem que escreveu a melodia para The Blue Lady e outros grandes sucessos que eu infelizmente perdi, por estar no berço nessa época. A mãe era a Elsie Cattermole, que foi durante muitos anos uma estrela em Nova York. E a irmã, a Corky, arrebata a clientela com a sua garra e a sua espièglerie, se é que é esta a palavra que eu quero usar, desde os dezasseis anos. Foi quase inevitável, portanto, que, quando saiu de Oxford e se pôs a olhar à volta à procura de um modo de vida que lhe permitisse três refeições diárias completas e tempo para jogar um bocado de críquete, ele tivesse escolhido os tamancos e os coturnos. E hoje em dia é a primeira escolha dos directores quando têm de pôr em palco uma comédia de costumes e querem alguém para fazer de Freddie, o amigo folgazão do herói, envolvido na segunda trama amorosa. Se num espectáculo desses aparecer um tipo esguio, flexível como um salgueiro-chorão, aos saltos com uma raquete na mão e a gritar “Olá, meninas!” pouco depois de o pano ter subido, nem vale a pena procurar no programa. É o Comida-de-Gato. Nessas ocasiões, ele começa animado e continua animado até chegar ao fim, e o mesmo sucede na vida privada. Também aí, animação 16
é o epíteto dele. O Pongo Twistleton e o Barmy Phipps, que interpretam todos os anos no Drones o estridente diálogo cruzado de comédia “Pat e Mike”, do qual ele é autor e produtor, contaram-me que quando ele os está a ensaiar nas falas e na mímica é mais parecido com o Groucho Marx do que com qualquer outro ser humano. No entanto, agora, como digo, o Comida-de-Gato estava desanimado. Percebia-se a milhas. Tinha o sobrolho tingido pela palidez do pensamento e o ar de um homem que, se dissesse “Olá, meninas!”, o diria como a personagem de um drama russo que anuncia que o avozinho se enforcou no celeiro. Cumprimentei-o cordialmente e disse-lhe que lamentava ter estado fora quando ele me veio visitar, sobretudo porque ele tinha vindo acompanhado da Corky. — Adoraria ter conversado com a Corky — acrescentei. — Não fazia a menor ideia de que ela estava de volta a Inglaterra. Agora receio bem que me tenha desencontrado dela. — Não, não te desencontraste. — Desencontrei-me, sim. Parto amanhã para um lugar chamado Deverill Hall, em Hampshire, para dar uma ajudinha no sarau local. Parece que a sobrinha do vigário insistiu em me incluir na trupe, mas a mim o que me confunde é como é que essa criatura de Deus ouviu falar de mim! Uma pessoa não imagina que a sua reputação chegue tão longe! — Mas que idiota me saíste tu, é a Corky! — A Corky? Fiquei embasbacado. Há poucas criaturas na vida melhores do que a Cora (“Corky”) Pirbright, com quem eu mantenho a mais amicíssima das relações desde a infância, pois nesses anos de formação frequentámos as mesmas aulas de dança, mas nada no seu comportamento me deu alguma vez a ideia de que ela fosse aparentada com o clero. — O meu tio Sidney é o vigário lá no sítio, e a minha tia está fora, em Bornemouth. É a Corky que toma conta da casa na ausência dela. — Meu Deus! Coitado do Sid! E ela arruma-lhe o escritório, aposto? — Provavelmente. — Endireita-lhe a gravata? — Não me surpreenderia. — E diz-lhe que ele fuma demais, e sempre que ele se instala confortavelmente num cadeirão, ela puxa-o dali para fora para lhe ajeitar as almofadas. Ele deve estar a sentir-se como que a viver no Livro das Revelações! E a Corky não acha o presbitério muito monótono, depois de ter estado em Hollywood? 17
— Nada disso. Adora aquilo. A Corky é diferente de mim. Eu não seria feliz fora do show business, coisa de que ela nunca gostou realmente, embora tenha feito tanto sucesso. Acho até que ela nunca teria sequer subido ao palco se não fosse a Mãe querer tanto. O sonho da Corky é casar com alguém que viva no campo, e passar o resto da vida enterrada em vacas e cães e nessas coisas. Suponho que é o efeito do sangue de tantos terra-tenentes nas nossas veias. O meu avô era agricultor. Mal me lembro dele. Era só patilhas, e estava sempre a lamentar-se por causa do estado do tempo. Andar numa azáfama na paróquia e a organizar espectáculos locais é o que a Corky gosta mesmo de fazer. — Tens alguma ideia do que ela quer que eu faça para os campónios de lá? Não é a “Cantiga do Casamento do Guarda”, espero? — Não. Vais ficar com o papel de Pat no número de diálogo cruzado que eu escrevi. Isto chegou com o rótulo de notícia agradabilíssima. Com demasiada frequência, nestas orgias os oficiais de alta patente que comandam a coisa mandam-nos tocar a “Cantiga do Casamento do Guarda” que, por algum motivo, desperta sempre os piores sentimentos nos selvagens que ficam de pé, atrás da última fila do teatro. Mas, que se saiba, nunca houve um único rústico desses sempre-em-pé que não devorasse um bom número de comédia. Há qualquer coisa na cena do Actor A a bater na cabeça do Actor B com um guarda-chuva e do Actor B a espetar a barriga do Actor A com um instrumento igualmente pontiagudo que parece falar ao mais profundo dessa gente. Disfarçados com uma barba verde, e com a ajuda apropriada do resto do elenco, eu podia prever com toda a segurança que teria os frequentadores habituais a rebolar de riso pelos corredores. — Certo. Óptimo. Esplêndido. Posso agora encarar o futuro de coração leve. Mas se a Corky queria alguém para o papel de Pat, porque é que não te escolheu a ti? Sendo tu um profissional experiente. Ah, já percebi o que deve ter acontecido. Ela ofereceu-te o papel a ti e tu armaste-te em bom, achaste que estavas muito acima destas coisas de amador. O Comida-de-Gato abanou o coco melancolicamente. — Não foi nada disso. Nada me daria mais prazer do que actuar no sarau de King’s Deverill, mas nem tive essa oportunidade. As mulheres lá do salão de festas odeiam-me de morte. — Então já as conheces? Como é que elas são? Um harém de megeras, imagino. 18
— Não, ainda não as conheci. Mas estou noivo da sobrinha delas, a Gertrude Winkworth, e a ideia de que ela se vai casar comigo deixa-as doentes. Se eu aparecesse a um quilómetro de distância de Deverill Hall, elas largavam os cães atrás de mim. Por falar em cães, a Corky comprou um hoje de manhã, no canil de Battersea. — Deus a abençoe — disse eu, distraído, porque estava concentrado neste romance em que ele se metera e estava a tentar separar o novelinho de lã dele daquele emaranhado que era o gangue das tias e sei-lá-mais-quem que o Jeeves mencionara. Até que percebi quem ela era. A Gertrude, filha de Dame Daphne Winkworth, viúva do falecido P. B. Winkworth, o historiador. — É por isso que vim ver-te. — Por causa do cão da Corky? — Não, por causa desta história da Gertrude. Preciso da tua ajuda. Vou contar-te a história toda. Mal ele entrara, eu oferecera ao Comida-de-Gato um hospitaleiro uísque com soda, do qual até agora ele tinha tomado umas duas sorvidelas e um gole. Agora, o Comida-de-Gato emborcava o resto de um só trago, e a coisa parece ter sortido efeito porque, tendo o uísque descido goela abaixo, ele falou com animação e fluência. — Queria começar por dizer, Bertie, que, desde que o primeiro ser humano saiu a rastejar das lamas primordiais e a vida começou neste planeta, nunca ninguém amou ninguém como eu amo a Gertrude Winkworth. Digo isto porque quero que compreendas que aquilo a que estás a assistir não é um desses namoricos leves de Verão, é uma verdadeira paixão, digna de um Teatro Nacional. Eu amo-a! — Isso é bom. Onde é que a conheceste? — Numa casa em Norfolk. Estavam a pôr em cena umas peças amadoras e chamaram-me para as produzir. Meu Deus! Aqueles crepúsculos no velho jardim, com os passarinhos a cantar sonolentos nos arbustos e as estrelas a começarem a espreitar no… — Muito bem. Continua. — Ela é maravilhosa, Bertie. Não faço a menor ideia porque é que ela me ama. — Mas ama-te? — Ah sim, ama-me! Ficámos noivos e ela voltou a Deverill Hall para dar a notícia à mãe. E o que achas tu que aconteceu quando ela deu a notícia à mãe? Bom, a verdade é que ele tinha revelado o final da história logo no início. 19
— A mãe esperneou? — Deu um berro que se conseguia ouvir em Basingstoke. — E Basingstoke fica… — A uns trinta quilómetros, em linha recta. — Conheço Basingstoke. Abençoado seja, sim, conheço bem. — Ela… — Passei um tempo lá quando era miúdo. Uma velha ama minha vivia em Basingstoke numa casa geminada chamada “Balmoral”. Ela chamava-se Hogg, por estranho que pareça. A ama Hogg. E tinha soluços. Os modos do Comida-de-Gato começaram a ficar um pouco tensos. Parecia um rufia sempre-em-pé de aldeia a ouvir a “Cantiga do Casamento do Guarda”. — Olha, Bertie — advertiu — que tal não falarmos sobre Basingstoke nem sobre a tua ama? Para o diabo com Basingstoke e para o diabo com a tua maldita ama! Onde é que eu ia? — Parámos na altura em que Dame Daphne Winkworth estava a dar um berro. — Isso mesmo. As irmãs dela, quando lhes disseram que a Gertrude queria casar com o irmão da Miss Pirbright lá da paróquia e que esse irmão era actor de profissão, também começaram aos berros. Brinquei com a ideia de perguntar se esses berros se teriam também ouvido em Basingstoke, mas conselhos mais ajuizados prevaleceram. — Elas não gostam da Corky e não gostam de actores. Quando elas eram jovens, durante o reinado da Rainha Isabel, os actores eram considerados uns canalhas e uns vagabundos, e elas não conseguem meter naquelas cabecinhas que o actor moderno é um cidadão com recursos que ganha as suas sessenta libras por semana e investe a maior parte em títulos do Tesouro muito seguros. Ai, se eu conseguisse pensar numa maneira de enganar o pessoal dos impostos, seria um homem rico! Não conheces nenhuma maneira de enganar o pessoal dos impostos, pois não, Bertie? — Não, lamento. Duvido até que o Jeeves conheça. Então mandaram-te passear? — Pois foi. Recebi uma carta triste da Gertrude a dizer que não dava. Se quiseres, podes perguntar porque é que não fugimos juntos. — Ia perguntar agora mesmo. — Não consegui dar-lhe a volta. Ela teme a ira da mãe. — Difícil de lidar, essa mãe? 20
— Dificílima. Foi directora de uma grande escola para raparigas. A Gertrude pertenceu a esse grupo de condenadas e nunca recuperou da experiência. Não, fugirmos os dois parece estar fora de questão. E o pior é isto, Bertie. A Corky conseguiu um contrato para mim com o estúdio dela em Hollywood e eu posso ter de viajar a qualquer momento. É uma situação terrível. Fiquei calado por um momento. Estava a tentar lembrar-me de uma coisa que eu tinha lido nalgum sítio sobre uma coisa não poder extinguir outra coisa, mas não consegui lembrar-me do quê. A ideia geral era a de que se uma rapariga te ama e tu és obrigado a pô-la de lado durante algum tempo, ela ficará à tua espera, portanto usei este argumento, mas o Comida-de-Gato disse que isso era muito bonito e tal mas que eu não sabia tudo. O enredo, garantiu-me, ia começar a complicar-se. — Chegamos agora — anunciou ele — ao demónio do Haddock. E é aqui que eu preciso da tua ajuda, Bertie. Eu disse que não estava a perceber a essência da questão, e ele disse que era claro que eu não estava a perceber o raio da essência da questão, mas será que eu não podia esperar um segundo, caramba, e dar-lhe uma oportunidade de me explicar, e eu respondi-lhe, Ah, pois claro, certamente. — O Haddock! — resmungou o Comida-de-Gato entre dentes e exibindo outros sinais de emoção. — O Haddock, o Destruidor de Lares! Tu sabes alguma coisa acerca desse parasita de primeira, Bertie? — Só sei que o seu falecido pai era o dono daqueles EliminaDor de Cabeça. — E deixou-lhe dinheiro suficiente para levar alguém à falência. Não estou a sugerir, é claro, que a Gertrude se casaria com ele por dinheiro. Ela desprezaria um acto tão ignóbil como esse. Mas além de ter mais dinheiro do que a gente sequer imagina, o homem parece uma espécie de deus grego e é extraordinariamente magnético. É o que diz a Gertrude. E, pior que isso, deduzo pelas cartas dela que a família a está a pressionar. E tu podes imaginar como é a pressão de uma mãe e quatro tias. Comecei a entender o espírito da coisa. — Queres dizer que o Haddock está a tentar entrar na jogada? — A Gertrude escreve-me e diz-me que ele lhe proporciona os momentos mais excitantes que já viveu. O que te dá uma ideia da espécie de pinga-amor que aquele miserável é. Ainda não há muito tempo estava a proporcionar à Corky a mesma coisa. Pergunta-lhe, quando 21
a vires, mas com cautela, porque ela é sensível como um abcesso em relação a isso. Estou a dizer-te, o homem é uma ameaça pública! Deviam mantê-lo acorrentado, em prol da pureza das mulheres! Mas nós vamos dar-lhe uma lição, não vamos? — Ai vamos? — Ora se vamos. Ouve lá o que eu quero que tu faças. Hás-de concordar que, mesmo um tipo como o Esmond Haddock, que parece ser a coisa mais próxima do Don Juan que alguma vez já existiu, não pode agir completamente à vontade à tua frente? — Estás a dizer que precisa de privacidade? — Exacto. Então, assim que tu chegares a Deverill Hall, começas logo a estragar-lhe o joguinho sinistro. Ficas sempre ao pé da Gertrude. Juntinho a ela, como se tivesses cola. Atento para que ele não se encontre com ela sozinho no jardim das rosas. Se houver planos para visitas ao jardim das rosas, tu fazes-te incluir. Estás a perceber, Bertie? — Estou a perceber, pois — respondi, um tanto ou quanto na dúvida. — O que tens em mente é qualquer coisa na linha do cordeirinho da Maria. Não sei se tu por acaso conheces o poema (eu costumava recitá-lo quando era pequeno) mas, no geral, a questão era que a Maria tinha um cordeirinho cuja lã era branca como a neve, e onde quer que a Maria fosse, o cordeirinho ia sempre atrás. Ora, tu queres que eu baseie a minha técnica na do cordeirinho da Maria? — É isso. Ficas à coca a cada segundo, que o perigo é tenebroso. Bom, para te dar uma ideia, a sugestão mais recente dele é que, numa destas manhãs, ele e a Gertrude peguem numas sanduíches e vão a cavalo até um sítio que fica a uns vinte quilómetros de distância, à beira de penhascos e coisas do género. E sabes o que é que ele pretende fazer quando chegarem lá? Mostrar-lhe o Salto dos Amantes. — Ai sim? — Não digas “Ai sim?” dessa maneira displicente. Pensa, homem. Vinte quilómetros de ida, depois o Salto dos Amantes, depois vinte quilómetros de regresso. A imaginação fica tonta só de pensar nos excessos que um tipo como o Esmond Haddock pode cometer numa cavalgada de quarenta quilómetros com um Salto dos Amantes pelo meio. Não sei para que dia terá sido planeada a expedição mas, seja lá qual for, tu tens de estar presente do princípio ao fim. Se possível, a cavalgar no meio deles. E, pelo amor de Deus, não afastes os olhos dele nem por um segundo, sobretudo no Salto dos Amantes. Aí é que vai ser a zona de perigo. Se notares a menor tendência por parte dele, lá no Salto dos Amantes, para se inclinar sobre ela e lhe segredar ao ouvido, tu inter22
rompes a cena como um relâmpago. Olha que eu conto contigo, Bertie. A minha felicidade depende de ti. Bom, é claro, se um homem com quem estivemos na escola particular, no colégio e em Oxford nos diz que conta connosco, não temos outra alternativa a não ser deixar que ele conte connosco. Afirmar que a tarefa me agradava seria exagerar os factos, mas respondi Muito bem, muito bem, e ele agarrou-me na mão e disse que se existissem mais tipos como eu o mundo seria um lugar melhor, o que era uma visão que diferia muito da da minha tia Agatha, e que, palpitava-me, iria diferir muito da do Esmond Haddock. Talvez umas quantas almas em Deverill Hall viessem a amar o Bertram, mas eu apostava que o nome de E. Haddock não estaria no rol. — Bom, tiraste-me um peso dos ombros — disse o Comida-de-Gato, tendo soltado a minha mão e depois voltado a agarrá-la e a espremê-la. — Saber que tu vais estar em campo, a trabalhar como um mouro pelos meus interesses, é coisa que não tem preço. Não me tenho alimentado bem ultimamente, mas esta noite vou jantar com gosto. Quem me dera que houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer por ti, em troca. — E há — respondi. Passara-me pela cabeça um pensamento, sem dúvida causado pela menção da palavra “jantar”. Desde que o Jeeves me contara da frieza que havia entre o Gussie Fink-Nottle e a Madeline Bassett, eu estava mais que preocupado com a ideia de o Gussie jantar sozinho naquela noite. Quero dizer, sabem como é quando se acabou de passar por um desses arrufos de namorados e depois se vai jantar sozinho. Começa-se a matutar na rapariga durante a sopa e a indagar se não terá sido uma idiotice envolvermo-nos com ela. Com o prato de peixe, esse sentimento intensifica-se, e quando já se terminou o poulet rôti au cresson e estamos a pedir o café, provavelmente já chegámos à conclusão definitiva de que a rapariga não passa de um trapo e de um esqueleto e de um tufo de cabelo, e que seria perfeita loucura contratá-la como parceira para a vida toda. Aquilo de que precisamos nestas ocasiões é de uma companhia alegre, que nos afaste os pensamentos sombrios, e parecia-me a mim que aqui estava a oportunidade para a proporcionar ao Gussie. — E há — insisti. — Conheces o Gussie Fink-Nottle? Ele anda desanimado, e eu tenho motivos para querer que ele não fique sozinho esta noite a matutar. Podias jantar com ele? 23
O Comida-de-Gato mordeu o lábio. Eu sabia o que lhe estava a passar pela cabeça. Ele estava a pensar, como outros já pensaram, que o primeiro requisito para um jantar agradável é que o Gussie não esteja presente. — Jantar com o Gussie Fink-Nottle? — Isso mesmo. — Porque é que não vais tu? — A minha tia Agatha quer que eu leve o filho dela, o Thomas, ao teatro. — Mas podes faltar. — Não posso. Ela nunca mais me ia deixar em paz. — Bom, está bem. — Que os céus te abençoem, Comida-de-Gato — disse eu. E isto fez com que o Gussie me saísse da cabeça. Foi de coração leve que me recolhi para descansar naquela noite. Mal sabia eu, como se costuma dizer, o que a manhã me reservava.
3 Se bem que, na verdade, na fase inicial a manhã trouxe umas coisas bastante boas. Como geralmente acontece nestas ocasiões em que se está frito lá pela noitinha, o dia começou extremamente bem. Sabendo que às 2h53m eu ia despachar o jovem Thos para a cidadezinha costeira de Borstal, tomei o pequeno-almoço a cantarolar, e ao almoço, lembro-me bem, estava igualmente num excelente estado de alma. Levei o Thos à estação de Vitória, empurrei-o para dentro do comboio, dei-lhe uma libra e fiquei a acenar a minha mão de primo até deixar de o ver. A seguir, depois de passar pelo Clube da Rainha para um joguito ou dois de squash, voltei para casa ainda animadinho. Até aí tinha tudo corrido bem. Ao pôr o chapéu no cabide dos chapéus e o guarda-chuva no suporte para guarda-chuvas, pensava que se Deus não estava no Céu e se nem tudo estava bem na Terra, estava-se tão perto disso que não fazia diferença. Não tinha sequer o menor indício de um palpite, se é que me entendem, de haver à espreita, numa esquina, o amargo despertar, com um saco cheio de chumbo na mão, pronto para me rachar o occipital. 24