Peças escolhidas, vol.II

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PEÇAS ESCOLHIDAS


As traduções inclusas neste volume contaram com o apoio financeiro do Instituto Italiano de Cultura

Traduções: copyright © dos tradutores e Edições Cotovia Lda., Lisboa 2009 Prefácio: copyright © Maria João Almeida e Edições Cotovia Lda., Lisboa 2009 Posfácio: copyright © Jorge Silva Melo e Edições Cotovia Lda., Lisboa 2009 Todos os direitos reservados

ISBN 978-972-795-266-3


Carlo Goldoni

Peรงas escolhidas volume 2

Cotovia



Índice

Prefácio por Maria João Almeida

p. 9

OS RÚSTICOS

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A CASA NOVA

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AS ZARAGATAS EM CHIOZZA

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Goldoni em Portugal nestes últimos anos por Jorge Silva Melo

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Prefácio

Quando ingressou no Teatro di San Luca, na Quaresma de 1753, Goldoni iniciava a última fase da sua actividade dramática associada ao campo teatral veneziano. Os cerca de nove anos que decorreram até à partida para Paris, em 1762, viriam a revelar-se dos mais difíceis da sua carreira profissional, mas foi também durante os últimos anos desse mesmo período que escreveu grande parte daquelas que são hoje consideradas pela crítica as suas obras-primas, entre as quais figuram as três comédias incluídas neste volume. A transição do Teatro di Sant’Angelo para o San Luca, propriedade dos irmãos Vendramin, propiciou-lhe condições contratuais bem mais vantajosas. A elas se contrapunham, todavia, as dificuldades de vária ordem que teria de enfrentar no mais recente palco de trabalho, tal como a falta de preparação dos seus novos actores, com carreira feita na Commedia dell’Arte, para a declamação do premeditado no quadro de uma dramaturgia do texto escrito. O que terá significado para o comediógrafo empenhar-se, uma vez mais, em esforços didáctico-pedagógicos canalizados para combater tiques e convenções da velha prática teatral baseada no jogo das máscaras e no improviso. Uma tarefa certamente árdua porque, até então, os cómicos do San Luca tinham trabalhado sem director nem autor, em plena autonomia artística. Para dificultar a Goldoni o desempenho das referidas funções, de director e de autor, contribuíram também as frequentes alterações a que esteve sujeita a companhia na composição do seu efectivo, bem como a pouco eficiente gestão patronal dos Vendramin no que tocava à contratação de novos actores. As próprias dimensões do San Luca1, 1

A antiga sala de espectáculos dos Vendramin, também conhecida à época por Teatro di San Salvador, é hoje o Teatro Goldoni.


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a maior e mais importante sala de espectáculos no território da República Veneziana e em toda a Península Itálica, impunham ao dramaturgo coordenadas materiais tão vastas que «les actions simples et délicates, les finesses, les plaisanteries, le vrai comique y perdoient beaucoup»2. Para além destas dificuldades com que lidava dia a dia no tablado do San Luca, e enquanto se ia aplicando na construção do seu perfil de autor dramático em sucessivos empreendimentos editoriais3, Goldoni travou mais batalhas, de índole diversa, que se constituíam em outros tantos factores de perturbação com incidência, por certo, na sua vida laboral. Em primeiro lugar, talvez, o conflito judicial despoletado pela primeira edição das suas comédias (Veneza, 1750-1757) que o opunha a Girolamo Medebach (capocomico da companhia sediada no Teatro di Sant’Angelo) e ao editor Bettinelli, em nome da reivindicação dos seus direitos de propriedade literária. Paralelamente a este litígio, que se arrastaria por alguns anos com decisões dos tribunais favoráveis aos seus opositores, Goldoni estava directamente implicado na polémica teatral, com origem nos finais da década de 1740, que ficou conhecida na praça veneziana por “guerra dos teatros”. Esta querelle, que dividia inicialmente o público de teatro dramático em duas facções, os “Goldonisti” (partidários de Goldoni) e os “Chiaristi” (partidários de Pietro Chiari), ganhou outra amplitude a partir de 1761, ano em que o conde Carlo Gozzi estreou a sua primeira Fiaba (L’amore delle tre melarance) no Teatro di San Samule hostilizando de modo declarado Chiari e, sobretudo, Goldoni. Os rivais de Gozzi estavam ambos no teatro em pé de igualdade, como profissionais, integrados naquele circuito de 2

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C. Goldoni, Mémoires de M. Goldoni pour servir à l’histoire de sa vie et à celle de son théâtre, introduction et notes par Norbert Jonard, Paris, Aubier, 1992, p. 320. Em 1753, começou a sair dos prelos do impressor Paperini, em Florença, a segunda edição das comédias goldonianas. No ano em que a Paperini se completou (1757), teve início, em Veneza, a edição Pitteri, e antes de esta chegar ao seu termo (1763) Goldoni lançou, também na cidade da laguna, a mais ambiciosa das suas edições, a Pasquali (1762-1780).


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produção e consumo, tão exigente em Veneza, que ligava autores, empresários, actores e público, enquanto o conde, um aristocrata conservador e de ideologia anti-ilumista, se assumia como diletante e crítico acérrimo do teatro comercial. À campanha que Gozzi contra ele movia, em vários escritos, desde os últimos anos da década de 17504 e, depois, à concorrência directa da fórmula dramatúrgica das Fiabe, um modelo teatral que vinha dar renovado alento às máscaras e aos virtuosismos da Commedia dell’Arte, contrapunha Goldoni as suas grandes comédias do triénio 1760-1762. Entre outras criações deste período, I rusteghi, La casa nova e Le baruffe chiozzotte constituem precisamente o ponto de chegada, e dir-se-á insuperável, da reforma do teatro cómico tão denegrida por Gozzi, momento em que Goldoni «raggiunge la fase più raffinata delle sue qualità espressive e massima è l’omogeneità Teatro-Mondo»5. A primeira das três comédias, concebida para fechamento da temporada de Carnaval, subiu à cena a 16 de Fevereiro de 1760, com o título La compagnia dei salvadeghi, o sia I rusteghi, abreviado para o actual quando o texto foi dado à estampa. Composta em prosa e dialecto, tal como as outras duas comédias, configura um ambiente burguês colhido na intimidade do espaço doméstico e tem como personagens principais os quatro «rusteghi», «hommes difficiles, farouches, qui suivent les usages de l’ancien tems, et détestent les modes, les plaisirs, et les sociétés du siècle»6. Estes burgueses erguem-se, portanto, contra qualquer sinal de mudança que possa provir da evolução dos hábitos sociais, prisioneiros voluntários de uma visão demasiado estreita do progresso. Mais do que ciosos dos seus «bezzi», estes homens, abastados, são sovinas e controlam com a mesma mesquinhez a vida dos familiares, impondo-lhes, nestas circunstâncias, a cegueira obstinada das suas forças retró4 5

6

Cf. Franca Angelini, Vita di Goldoni, Roma-Bari, Laterza, 1993, p. 171-172. Siro Ferrone, Carlo Goldoni. Vita, opera, critica, messinscena, Firenze, Sansoni, 1990, p. 84. C. Goldoni, op. cit., p. 392.


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gradas. Fazem-lhe de contraponto as mulheres e os filhos que, como representantes de uma concepção mais moderna das relações familiares e sociais, não se conformam com a ideia de um casamento combinado à moda antiga pelos rústicos em mais uma prova do seu autoritarismo. Num enredo sem grandes complicações, tudo se resolve a favor da felicidade dos jovens que, por mérito essencialmente do bom senso de Felice, encontram maneira de se conhecerem antes do matrimónio destinado pelos respectivos progenitores. Como algumas leituras da comédia têm posto em evidência, recortam-se nela dois universos: um interior, o asfixiante mundo doméstico confinado às quatro paredes da casa onde os rústicos mantêm a família em situação de quase clausura; e o exterior, o espaço social da cidade, no caso Veneza, que logo no início da comédia se torna presente na conversa entre Margarita e a enteada, Lucietta, pela referência aos teatros, ao «Ridotto», ao «Liston» e à «Piazzetta» onde se festeja o fim do Carnaval. Para Mario Baratto, Veneza é mesmo «la vera interlocutrice dei rusteghi, anche se è scenicamente assente, e verbalmente esorcizzata solo in alcuni aspetti di costume: è rispetto alla città, e contro di essa, che i rusteghi si definiscono innanzi tutto, fin dalla prima predica di Lunardo sulla vita del “tempo d’ancuo” (I, 2).»7 E é através do disfarce, um mecanismo de marca teatral e, ao mesmo tempo, emblema da folia carnavalesca, que Veneza se introduz na casa de Lunardo, abrindo caminho para o final feliz da comédia, depois da resistência dos rústicos ceder à força das circunstâncias e, mais ainda, aos argumentos da «desmestega» Felice. Mas a sua derrota é apenas aparente porque consubstanciada em cedências pontuais e, na verdade, «nulla li [rústicos] dichiara pronti a mutare.»8 A dicotomia entre interior e exterior, entre o microcosmo doméstico repressivo e o festivo espaço do consórcio civil, esta7

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M. Baratto, La letteratura teatrale del Settecento in Italia (studi e letture su Carlo Goldoni), Vicenza, Neri Pozza, 1985, p. 166. Idem, p. 167.


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belece uma relação de homologia contrastiva com o espaço familiar, entre os já referidos valores de conservadorismo retrógrado dos quatro burgueses, por um lado, e os valores liberais e de abertura à mudança defendidos pelas mulheres e pelos jovens, por outro. Atendendo a esta contraposição temática reiterada, é possível deduzir que a proposta ideológica inscrita no texto se faz portadora dos valores de inovação sem que se possa contudo afirmar que nega os valores positivos da tradição. Os rústicos fornecem uma imagem nova, no corpus da comediografia goldoniana, da burguesia veneziana que se repercute em A casa nova e noutras comédias do triénio 1760-1762. Pouco resta nas personagens dos quatro rústicos e, em especial, de Lunardo, da exemplaridade que distinguia o Pantalone das comédias da década de 1750, quer na condução dos negócios, quer na direcção da vida doméstica. Nas personagens da peça de 1760, as posições de defesa obstinada da tradição e dos velhos costumes, assim como a rejeição de tudo o que não se quadra com o seu horizonte de valores conservadores, pondo em evidência o agora descabido menosprezo pelas aspirações e desejos dos parentes mais próximos, revelam-se constituir um risco para a harmonia familiar, tão fervorosamente preservada pelo velho Pantalone. Como observa Franco Fido, os quatro burgueses «diventano ora veramente dei personaggi da commedia»9 e os «principî dell’uomo prudente10 sono diventati fissazioni da rustego: non piú virtú, ma astinenza dall’eccesso che tende all’eccesso opposto»11. Compreensível por isso o repto que Felice, porta-voz da nova burguesia, mais liberal, lança aos rústicos «Sede um pouco mais civilizados, tratáveis, humanos.» (III, última cena). Em A casa nova, estreada a 11 de Dezembro de 1760, a relação entre inovação e conservação, observada em Os rústicos, complexifica-se através de novos sentidos que reconfigu09

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Franco Fido, Guida a Goldoni. Teatro e società nel Settecento, Torino, Einaudi, 1977, p. 40. L’uomo prudente é uma comédia de Goldoni dos finais da década de 1740. Franco Fido, op. cit., p. 42.


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ram a crise e o mal-estar instalados no seio da família burguesa. Tal como o título sugere, a comédia constrói-se em torno de um episódio trivial do quotidiano e vai inspirar-se na experiência dos «embarras» do «déménagement»12 por que passou o próprio autor no Outono de 1760. A nova casa onde vão habitar os recém-casados Anzoletto e Cecilia mais a irmã do primeiro, Meneghina, constitui-se como pólo centrípeto de múltiplas tensões que, ao se acumularem, ensombram a família com a ameaça de falência económica e moral, até à intervenção in extremis do tio Cristofolo. Anzoletto faz parte da nova burguesia citadina que vive das rendas amealhadas pelas gerações mais velhas na prática do comércio e acalenta o desejo de promoção social. Por conta dessas ambições sociais, no que também satisfaz os caprichos da esposa pretensiosa, Anzoletto caracteriza-se por manias de ostentação e de luxo de que são exemplo a mudança para nova habitação com porta sobre o canal, que cumpre essencialmente a função de representação de um novo status, ou a circunstância de o casal dispor de gôndola e «lugares reservados em todos os teatros» (II, 9); elementos estes com os quais o texto significa, acima de tudo, a importância atribuída pelo casal à sua visibilidade no espaço social, com a particularidade de no recinto público fechado do teatro poderem ver e darem-se a ver. Sobre estes sinais exteriores de riqueza, manifestações pontuais e efémeras de um parecer avidamente cultivado, pretende o jovem burguês construir uma identidade social que não tem correspondência na sua própria realidade de «quem vive do arrendado, vive necessitado» (II, 3). O facto de Anzoletto persistir em viver muito acima das suas reais possibilidades económicas quando já delapidou praticamente todo o património familiar no jogo e em outros gestos perdulários (III, 3), escondendo da mulher a precariedade da sua situação financeira, qualifica-o, até certo momento da acção, como uma personagem com determinados atributos de valor que o tornam incapaz de reconhecer a miragem de efeitos ruinosos em que vive. 12

C. Goldoni, op. cit., p. 417.


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Assim se justificam as dívidas sobre dívidas acumuladas, as despesas com obras na nova residência, completamente inconsideradas porque Anzoletto se sabe desprovido de meios para custeá-las, e até a dissipação do dote da irmã Meneghina de que ela se ressente como uma traição. Anzoletto define-se, enfim, como um predador de riqueza que não gerou, desenhando-se no texto uma oposição nítida entre a sua axiologia, que não assenta visivelmente no valor do trabalho, e a do seu tio Cristofolo, homem rico e de meia-idade, representante daquela outra velha burguesia operosa, ex-comerciante de produtos lácteos que sempre se manteve solidamente ligado à sua actividade profissional e fiel aos valores do trabalho e da produção de riqueza. Depois do conflito entre homens e mulheres em Os rústicos, Goldoni explora agora na sua dramaturgia focada na representação do ambiente burguês um conflito geracional que coloca em posições antagónicas Anzoletto e Cecilia, de um lado, e Cristofolo, do outro. Este tem traços de rusthego no seu perfil. Comportamento austero e conservadorismo no respeito intransigente pelos velhos costumes fazem dele, tal como afirma o seu criador, uma personagem «un peu farouche»13. Mas Cristofolo tem um coração bom, movido por aquele toque de humanidade que Felice diagnosticara em falta nos rusteghi. Pelo mesmo valor de positividade se caracteriza a personagem de Checca, a mulher de um seu amigo que vive no andar por cima da família de Anzoletto. Aproxima-os ainda a solidez moral e o rigor do comportamento que, no caso dela, ao assumir a forma do recato, propicia um paralelismo por contraste com Cecilia. O já referido Mario Baratto, analisando a representação da família burguesa em algumas das últimas comédias da carreira veneziana do autor, nomeadamente em Os rústicos, A casa nova e Sior Todero Brontolon, afirma que «Suggerendo la necessità di difendere la struttura familiare, il Goldoni è costretto via via a mutare i criteri del giudizio, a parteggiare ora per la moderata 13

Idem, p. 419.


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libertà di Felice, ora per la severa autorità di Cristofolo. Appare innovatore nelle vecchie famiglie, conservatore nelle nuove. Ciò significa che la realtà sfugge a una precisa norma morale, che la vita della famiglia è il riflesso di una vita sociale più vasta.»14. Reinterpretando Baratto, diremos que no conjunto das duas comédias Os rústicos e A casa nova Goldoni põe em movimento uma axiologia de suficiente abrangência para englobar uma vasta e densa gama de valores humanos, aparentemente contraditórios quando reduzidos a uma dicotomia de termos exclusivos. No entanto, se relacionarmos as personagens mais representativas em função dos valores que as afectam e lhes dão sentido de relação, teremos: Lunardo (Os rústicos), antiga burguesia — valores negativos VS Cristofolo (A casa nova), antiga burguesia — valores positivos // Anzoletto (A casa nova), nova burguesia — valores negativos VS Felice (Os rústicos), nova burguesia — valores positivos. Reduzindo a questão ao essencial, torna-se clara a valoração simbólica em forma de medalha: em vez das simples oposições por “contradição” entre “antiga burguesia” e “nova burguesia”, as faces das medalhas que as representam expõem, pelo contrário, a “contrariedade” inerente ao carácter humano dotado, ao mesmo tempo, de valores positivos, num sentido, e negativos, noutro sentido. Por definição “ambíguas”, estas pesonagens dão corpo à máxima que se pode formular como “os valores bons não se encontram só num lado, e os valores maus no outro, porque há bons e maus em cada um dos lados”. Na penúltima das comédias escritas antes de deixar Veneza, Goldoni põe em cena o “popolo minuto” de uma colónia de pescadores de Chioggia. Embora já tivesse centrado o seu interesse dramatúrgico no espaço do mundo popular em peças como Le massere e Il campiello, é com As zaragatas em Chiozza que, no entender de Mario Baratto, o autor assume o povo «in tutti gli aspetti della sua vita, come corale “soggetto” 14

Mario Baratto, «Mondo» e «Teatro» nella poetica del Goldoni, Venezia, Stamperia di Venezia, 1957, p. 63.


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di commedia»15. A «imitação da natureza»16 na representação dos costumes e do dialecto do povo de Chioggia, de que a comédia retira, segundo Goldoni, um dos seus méritos, extrai muita da sua matéria-prima de um património de memórias autobiográficas17 a que o autor dá vida teatral através da reconstrução «minuziosa, quasi filologica, dell’ambiente chiozzotto»18. Quando, nas Mémoires, o comediógrafo opta por não apresentar o «extrait» de As zaragatas em Chiozza (ao contrário do seu procedimento habitual em relação a muitas outras comédias), invocando a circunstância de o seu «fond» não ser nada19, atesta a relativa simplicidade do enredo da acção factual o que, por outro lado, não nega o adensamento da intriga no plano psicológico como vivência de sentimentos, de afectos, de emoções e de sentidos de vida. A acção, em que parece que nada ou pouco se passa em termos de factualidade concreta, articula-se em três grandes sequências que podem ser esquematizadas do seguinte modo: i) — estabelecimento de uma situação de conflito entre as mulheres em torno do ciúme, em relação à qual, na iminência da chegada dos homens, é feito um pacto de sigilo; ii) — quebra do pacto de sigilo por delação e consequente alargamento do conflito (em torno do ciúme) aos homens até ao limite da ameaça de agressão física; iii) — transposição do conflito para a esfera judicial que, sob diversas formas, restabelece a ordem por reconciliação entre todos os litigantes. 15 16

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Idem, p. 66. C. Goldoni, Prefácio (“Do autor a quem ler”) de As zaragatas em Chiozza, in Peças escolhidas 2, p. 197. Em 1721, quando adolescente, Goldoni acompanhava o pai nas suas visitas médicas em Chioggia, e alguns anos depois, entre 1727 e 1728, exerceu aí o cargo de “aggiunto al coadiutore” na “Cancellaria Criminale”. Cf. Franca Angelini, op. cit., p. 34 e 44. Marzia Pieri, “Introdução” a Le baruffe chiozzotte, in Il Teatro Italiano, Vol. IV, Carlo Goldoni, Teatro, T. III, a cura di M. Pieri, Torino, Einaudi, 1991, p. 979. C. Goldoni, Mémoires de M. Goldoni pour servir à l’histoire de sa vie et à celle de son théâtre, idem, p. 421.


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Na origem de todas as querelas que se vão sucedendo encontra-se a personagem de Checca, a mais jovem das mulheres solteiras que, logo no início da acção, interfere no par amoroso já estabilizado de Lucietta e Titta-Nane. Da triangulação amorosa que assim irrompe com o protagonismo das mulheres resulta o ciúme gerador de rivalidades tão fortes em consequências que acaba por envolver muitas outras personagens, a começar por Toffolo. Com aspirações matrimoniais que já se inclinam para Checca, o jovem barqueiro, ao ensaiar modos galantes com as raparigas, propicia a Lucietta a razão para esta provocar a rival, acabando ele por agir contra os seus próprios interesses e, ao mesmo tempo, funcionar como catalisador da zaragata generalizada a todas as mulheres. Neste quadro denso de relações humanas, onde os temas eternos do amor, do ciúme e do casamento são intensamente vividos à flor da pele, tudo se passa como no efeito de dominó. O ciúme que envolve Lucietta e Checca em antagonismo declarado repercute-se sobre Toffolo e este, por sua vez (em virtude dos falatórios maliciosos das mulheres) torna-se fonte dos ciúmes de Beppo e Titta-Nane, com a particularidade de um segundo par amoroso (Beppo e Orsetta, à beira da união matrimonial) ficar agora também implicado na trama do ciúme. Embora sem fundamento, são estas suspeitas insinuadas sobre o comportamento de Lucietta e Orsetta que irão pôr em risco os respectivos relacionamentos amorosos e desencadear as hostilidades dos homens contra Toffolo. Como o Coadjutor da Chancelaria Criminal bem viu, ouvidos os testemunhos de Checca e Orsetta, não havia no caso levado à justiça por Toffolo «coisa de maior…» (II, 8). Ou seja, não havia matéria de delito, mas tão-somente um transbordo de ânimos exaltados e de emoções exacerbadas devido a um caso de amor e ciúme. A intervenção de Isidoro, único representante na comédia do estrato burguês e, portanto, de um mundo exterior ao pequeno microcosmo da colónia piscatória, orienta-se por isso no sentido da pacificação através de actos pedagógicos conduzidos fora do espaço institucional da


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Chancelaria Criminal. No seu exercício desta função pacificadora, expressiva de um misto de simpatia, afecto e também de alguma curiosidade que o fazem interessar-se por aquele “popolo minuto”, acaba ainda por englobar as mulheres e os dois pares amorosos (Lucietta e Titta-Nane; Orsetta e Beppo) e, principalmente, por conciliar Toffolo e Checca com os seus bons ofícios. A reposição da ordem e da harmonia expressas nos três casamentos que se ajustam e realizam no espaço onde todos os conflitos eclodiram, a rua, vem assim pôr em evidência o valor que assume no texto a instituição do matrimónio, assente no amor (Lucietta e Titta-Nane; Orsetta e Beppo), ou na estabilidade (Toffolo e Checca). Sobre a extraordinária eficácia da construção dramatúrgica de As zaragatas em Chiozza poucos especialistas da dramaturgia goldoniana se terão dado conta com tanta agudeza como Giorgio Strehler, a quem coube a responsabilidade pela memorável montagem da comédia para o Piccolo Teatro de Milano, em meados da década de 1960. São suas as palavras: «Goldoni arriva ad una perfezione di costruzione per me incredibile. Attraverso proprio la cosa più semplice: racontando la storia come una sequenza di fatti che egli non inverte o sovrappone ma segue nella sua logica naturale, uno dopo l’altro, con le relative conseguenze e conclusioni. Una scena cade nell’altra e questa in quella successiva, come il tempo umano cade nel momento dopo, continuamente, senza sosta.»20 Com base nas folhas das receitas do Teatro di San Luca relativas às temporadas de Outono e Carnaval dos anos de 1758 a 1770, publicadas por Nicola Mangini21, é possível tirar como conclusão que o público veneziano coevo acolheu muito favoravelmente as três comédias, em especial La casa nova que subiu treze vezes à cena na temporada da estreia. Le baruffe chiozzotte e I rusteghi contabilizaram, respectivamente, oito 20

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Giogio Strehler, “Introduzione”, in Carlo Goldoni, Le baruffe chiozzotte, a cura di Piermario Vescovo, Venezia, Marsilio, 1993, p. 15. Cf. Nicola Mangini, I Teatri di Venezia, Milano, Mursia, 1974, p. 117.


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e quatro récitas, tendo sido ambas retomadas, porém, nas estações teatrais seguintes. Estas cifras tornam-se significativas quando confrontadas com o número de récitas que cabia ao restante repertório da companhia do San Luca. Segundo Nicola Mangini, esse repertório, não goldoniano, englobando canovacci da Commedia dell’Arte, tragicomédias e farsas, raramente ultrapassava mais de uma reposição22. Nos séculos XIX e XX, em Itália, a «tradizione del teatro goldoniano, degli attori e dei registi»»23 alicerçou-se precisamente nestas três comédias e noutras grandes criações do último triénio do autor em Veneza, tais como Un curioso accidente, Le smanie per la villeggiatura, Le avventure della villeggiatura, Il ritorno della villeggiatura, Sior Todero Brontolon e Una delle ultime sere di Carnovale24. Do século em que Goldoni foi mais traduzido e representado em Portugal, o tempo setecentista do próprio autor, chegou-nos apenas uma versão manuscrita de A casa nova mas não subsistiu qualquer notícia atestando a sua ida à cena25. Embora Goldoni não seja, nos tempos modernos, «dos autores mais representados e mais assíduos nos palcos portugueses»26, contam-se ainda alguns espectáculos criados a partir dos textos das três comédias, no período compreendido sensivelmente entre meados da década de 1980 e 2006, cabendo o maior número de encenações a As zaragatas em Chiozza, seguida de Os rústicos27.

22 23 24 25

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Idem, p. 117-118. Franca Angelini, op. cit., p. 181. Cf. ibidem. Cf. Maria João Almeida, O Teatro de Goldoni no Portugal de Setecentos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007, p. 296. Rui Pina Coelho, “A dramaturgia goldoniana em Portugal no século XX: O Mundo e o Teatro”, Estudos Italianos em Portugal, Lisboa, Instituto Italiano de Cultura em Lisboa, NS, n.º 2, 2007, p. 96. Cf. CETbase — Base de dados para a história do teatro em Portugal do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras de Lisboa em http://www.fl.ul.pt/CETbase/default.htm.


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As três comédias foram impressas pela primeira vez na edição veneziana Delle Commedie di Carlo Goldoni Avvocato Veneto pela empresa livreira e editorial de Giambattista Pasquali, I rusteghi no t. III (1762), La casa nova no t. X (1767) e Le baruffe chiozzotte no t. XV (1776-1777)28. Até à data, apenas a última comédia foi publicada pela casa editora Marsilio (Veneza) que iniciou, em 1993, a grande edição nacional de toda a obra dramática de Goldoni em volumes individuais, com a fixação dos textos e o rico aparato histórico-crítico ao cuidado dos maiores especialistas do autor. Maria João Almeida

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Cf. Anna Scannapieco, “Scrittoio, scena, torchio: per una mappa della produzione goldoniana”, Problemi di critica goldoniana, diretti da Giorgio Padoan, VII, Ravenna, Longo Editore, 2000, p. 182, 183, 185 e 231-232.



Os rústicos

Tradução de José Peixoto A partir da edição: I Capolavori, vol. III, Carlo Goldoni. A cura di Giuseppe Ortolani, Milão, Arnoldo Mondadori Editore, 1970. Comédia veneziana em três actos e em prosa, representada pela primeira vez em Veneza, no Carnaval do ano de 1760.


PERSONAGENS Canciano, cidadão1 • Felice, mulher de Canciano • Conde Riccardo • Lunardo, mercador • Margarita, mulher de Lunardo em segundas núpcias • Lucietta, filha do primeiro casamento de Lunardo • Simon, mercador • Marina, mulher de Simon • Maurizio, cunhado de Marina • Filippetto, filho de Maurizio

A acção decorre em Veneza. 1

Cidadão no sentido de originário. Canciano é o único citadin, quer dizer que pertence ao nível mais alto da burguesia, onde se recrutavam os homens da confiança do Estado. Felice faz alusão às preocupações e às graves ocupações do marido. Canciano é de facto o mais próximo do meio aristocrático, é por isso que Felice é na comédia a mulher mais livre e mais inventiva, e com mais à-vontade, e por quem as outras têm uma mistura de admiração, ciúme ou inveja. O casal é símbolo de um certo movimento. (N. do T.)


Do autor a quem ler

I rusteghi em língua veneziana não é o mesmo que i rustici em língua toscana. Em Veneza chamamos rustego a um homem áspero, tosco, inimigo da civilidade, da cultura e da conversação. Depreende-se do título da comédia que não se trata de um só protagonista, mas de vários ao mesmo tempo, e de facto são quatro, todos com o mesmo carácter, mas delineados com várias cores, coisa dificílima para dizer a verdade, pois seria de parecer que vários caracteres iguais numa mesma comédia pudessem aborrecer mais do que deleitar. Desta vez aconteceu-me o contrário: o público divertiu-se muitíssimo e posso dizer desta peça que é uma das minhas mais afortunadas porque logrou agradar não só em Veneza, mas por todos os lados onde até agora foi representada pelos cómicos. Quer isto dizer que o comportamento ridículo das personagens é do conhecimento de todos e pouco perde a comédia pela particularidade da linguagem. Embora tenha sido representada com êxito fora daqui, tenho a certeza absoluta de que nem todos os nossos termos, nem todas as nossas frases podem ser compreendidas, no entanto, com o maior cuidado que me foi possível, pus em pé de página a explicação2. Muitos desejariam um dicionário de veneziano para entender esta língua, e eu próprio pensei fazê-lo; mas creio que os leitores ficam mais bem servidos se lhes der de imediato a explicação, do que se os distrair da leitura para recorrerem ao dicionário, que nem sempre está à mão quando é necessário. Não acreditava verdadeiramente que devesse incluir logo nos primeiros tomos desta edição2 comédias em língua veneziana. Fi-lo pela razão mencionada na precedente epístola2 dedicatória, e não me arrependo de o ter feito, já que me 2

Trata-se da edição italiana. (N. do T.)


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parece ter esclarecido com as anotações mais necessárias aquilo que era de compreensão mais difícil. Dei a explicação de todos os termos e frases que não podem ser encontrados pelos estrangeiros nos dicionários italianos; mas as palavras que têm alguma analogia com a dicção toscana deixei-as tal como eram, podendo quem tiver um pouco de talento reconhecer a sua derivação e ultrapassar a pequena diferença. Por exemplo, as conjugações dos verbos são bastante diferentes, mas percebem-se facilmente: farava em lugar de farei; son andà em lugar de sono andato; se savessi em lugar de se sapeste, não são modos tão estranhos que precisem de explicação, nem o dicionário bastaria para sua explicação, seria necessária também a gramática. A própria ortografia veneziana altera por vezes o significado, mas quem presta atenção entende-a, e é a ortografia que se regula de acordo com a pronúncia. Nós, por exemplo, não dizemos bello, mas belo, não dizemos perfetto, mas perfeto; e é regra geral pronunciar todas as consoantes duplas com se fossem simples. Porém nalguns termos as letras simples tornam-se duplas, em lugar de cosa dizemos cossa, mas são muito raros. Os pormenores têm algumas diferenças em relação aos toscanos. Os mais evidentes são io, que se diz mi, tu, que se diz ti, egli, que se diz elo. Também é evidente a expressão dos verbos, que tanto no singular, como no plural, se dizem da mesma maneira. Por exemplo io andavo: mi andava; quelli andavano: queli andava. Muito haveria ainda para dizer a este propósito. Por agora chega. Pode ser que noutra oportunidade diga mais qualquer coisa.


PRIMEIRO ACTO

CENA I Quarto em casa de Lunardo. Margarita que fia, Lucietta que faz meia, ambas sentadas. LUCIETTA Senhora minha mãe. MARGARITA Minha filha. LUCIETTA O Carnaval está quase a acabar. MARGARITA E o que quer dizer com isso, que nos divertimos muito? LUCIETTA Céus! Nem uma mísera comédia se viu.3 MARGARITA E está espantada? Eu não. Faz agora dezasseis meses que estou casada; o senhor seu pai já me levou a algum lado? LUCIETTA Pois é! Sabe, não via a hora em que ele se tornasse a casar. Quando estava sozinha em casa dizia cá para mim: eu perdoo-lhe, ao senhor meu pai; ele não me quer acompanhar e não tem ninguém com quem me mandar; se se casar, irei com a senhora minha madrasta. Ele tornou a casar mas, pelo que vejo, não temos direito a nada, nem eu nem a senhora. 3

A época teatral, que atingia o auge com o Carnaval, começava em Veneza no início de Outubro e continuava, com uma interrupção de dez dias pelo Natal, até ao último dia de Carnaval, o que significava até Fevereiro ou Março do ano seguinte. (N. do T.)


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MARGARITA É um urso, minha filha; não se diverte ele, nem quer que nos divirtamos nós. Pois é, sabe, antes de me casar, passatempos não me faltavam. Fui bem criada. A minha mãe era uma mulher perspicaz e, se alguma coisa não lhe agradava, sabia dar um grito e levantar a mão. Mas na altura certa, dava-nos os nossos divertimentos. Imaginem só, no Outono ia-se duas ou três vezes ao teatro; pelo Carnaval cinco ou seis. Se lhe ofereciam a chave de um camarote, levava-nos à ópera, se não, ao teatro e ela comprava o seu camarote e gastava o seu dinheiro. Procurava ir onde sabia que havia boas comédias, onde podia levar as filhas, e ia connosco, e divertíamo-nos. Íamos, imaginem só, algumas vezes ao Ridotto4, um bocadinho ao desfile das máscaras no Liston5, um bocadinho às astrólogas da Piazzetta6, aos fantoches, e um par de vezes por ano às barracas de feira. E depois quando ficávamos em casa tínhamos sempre as nossas visitas. Vinham parentes, vinham amigos, e até alguns jovens; mas daí não vinha nenhum mal, imaginem só! LUCIETTA (à parte) Imaginem só, imaginem só; até agora já disse seis vezes. MARGARITA Não digo que eu seja daquelas que gosta de andar todo o dia na boa vai ela. Mas, sim senhor, algumas vezes também me agradava a mim. LUCIETTA E eu, desgraçada, que nunca saio fora da porta? E não quer que vá nem sequer um pouco à varanda? Outro dia debrucei-me assim, um bocadinho de escapada, viu-me aquela parva da mulher da mercearia, foi dizer-lhe e pensei até que me batia. 4 5

6

Ridotto: Casa de jogo, numerosas em Veneza. (N. do T.) Liston: Lugar da Praça de S. Marcos onde se fazia tradicionalmente o desfile de máscaras. (N. do A.) Piazzetta: Pequena praça que precede a Praça de S. Marcos. Está situada entre o Palácio dos Doges e a antiga Biblioteca. É lá que estão as duas colunas, uma com a estátua de S. Teodoro e a outra com o famoso leão alado, símbolo de S. Marcos. (N. do T.)


Acto I.1

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MARGARITA E a mim quanto já não me disse por sua causa? LUCIETTA Irra! O que é que eu faço? MARGARITA Pelo menos, minha filha, vai casar-se, mas eu vou ficar assim até ao fim da minha vida. LUCIETTA Diga-me, senhora minha mãe, vou casar-me? MARGARITA Creio bem que sim. LUCIETTA Diga-me, senhora minha mãe, quando vou casar-me? MARGARITA Vai casar-se, imaginem só, quando o céu quiser. LUCIETTA O céu vai casar-me sem que eu o saiba? MARGARITA Que despropósito! Também há-de saber. LUCIETTA Até agora ninguém me disse nada. MARGARITA Se não lhe disseram, vão dizer-lhe. LUCIETTA Há alguma coisa no ar? MARGARITA Sim e não; o meu marido não quer que lhe diga nada. LUCIETTA Minha querida, diga-me. MARGARITA Absolutamente nada, minha filha. LUCIETTA Querida, só uma coisinha. MARGARITA Se digo o que quer que seja, ele salta-me com uns olhos de um demónio! LUCIETTA Diga-me, que meu pai não vai saber de nada! MARGARITA Oh, imaginem só, se não vai dizer-lhe! LUCIETTA De certeza, imaginem só, que não lhe digo. MARGARITA A que propósito vem este “imaginem só”? LUCIETTA (ironicamente) Nem eu sei, tenho este hábito, digo sem dar por isso. MARGARITA (à parte) Tenho cá a impressão que esta atrevida está a divertir-se à minha custa. LUCIETTA Diga-me, senhora minha mãe. MARGARITA Vamos, ao trabalho, ainda não acabou essa meia? LUCIETTA Já acabo. MARGARITA Se ele chega a casa e a meia não está pronta, vai dizer que foi para a varanda, e eu não quero, imaginem só… (À parte:) Ai que maldito vício este!


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LUCIETTA Veja como me despacho. Diga-me qualquer coisa desse noivo. MARGARITA Qual noivo? LUCIETTA Não disse que me ia casar? MARGARITA Pode ser. LUCIETTA Senhora minha querida mãe, se sabe qualquer coisa… MARGARITA (um pouco zangada) Não sei de nada. LUCIETTA Nada, então nada, nada mesmo! MARGARITA Estou farta. LUCIETTA (com raiva) Que lhe dê uma coisa! MARGARITA Que maneiras são essas? LUCIETTA Não tenho ninguém neste mundo que goste de mim. MARGARITA Gosto até demais, atrevida. LUCIETTA (a meia voz) Amor de madrasta. MARGARITA O que é que disse? LUCIETTA Nada. MARGARITA (com fúria) Ouça-me, sabe, não me aborreça, que acabo mesmo com isto… Já aguento demais nesta casa. Tenho um marido que me massacra todo o dia, só me faltava ser atazanada também, imaginem só, pela enteada. LUCIETTA Olha, a senhora minha querida mãe ferve em pouca água! MARGARITA (à parte) Ela quase tem razão. Eu não era assim, tornei-me uma bruta, não há remédio; quem vive com um lobo aprende a uivar.

CENA II Lunardo, e as mesmas. Lunardo entra e vem para junto delas pé ante pé, sem falar. MARGARITA (levanta-se e diz à parte)

Cos diabos, aqui está ele.


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