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Fernando Mora Ramos, “Goldonis”, in Peças escolhidas 3, Carlo Goldoni.

Peças escolhidas 3 As manias da vilegiatura Uma das últimas noites de Carnaval O leque Goldoni Peças 3 Retrato de Carlo Goldoni por: Alessandro Longhi, Museo Civico Correr, Veneza

LIVROS COTOVIA

www.livroscotovia.pt

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PEÇAS ESCOLHIDAS DE CARLO GOLDONI EM 3 VOLUMES VOLUME 1 O servidor de dois amos A estalajadeira O Campiello VOLUME 2 Os rústicos A casa nova As zaragatas em Chiozza

ISBN 978-972-795-319-6

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E agora, senhoras e senhores, como o autor diria a quem lê, estas peças merecem ainda ver a luz do dia pois contam casos vivos e divertidos, nada inactuais como compreenderão pela leitura. Uma leitura que será certamente agradável, como diria o Goldoni, repisando um conceito de época. Uma visão do mundo que continua penetrante e válida. Um mundo que continua muito aparentado ao nosso porque fala de gente muito parecida connosco, já muito metida pelas problemáticas do aparente, do dinheiro, dos penteados, das roupas, dos negócios, do capitalismo e do quotidiano burguês.

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A presente edição contou com o apoio do MINISTERO DEGLI AFFARI ESTERI ITALIANO Direzione Generale per la Promozione e la Cooperazione Culturale

Traduções: copyright © dos tradutores e Edições Cotovia Lda., Lisboa 2011 Prefácio: copyright © Fernando Mora Ramos e Edições Cotovia Lda., Lisboa 2011 Todos os direitos reservados ISBN 978-972-795-319-6


Carlo Goldoni

Peรงas escolhidas volume 3

Cotovia



Índice

Goldonis por Fernando Mora Ramos

p. 9

AS MANIAS DA VILEGIATURA

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UMA DAS ÚLTIMAS NOITES DE CARNAVAL

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O LEQUE

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O meu primeiro contacto com Goldoni, para além de lê-lo — na Civilização e na Seara Nova, A estalajadeira, O leque e Os apaixonados, e na Seara, A estalajadeira, em nova tradução, tudo o que me chegou em português nesse remoto princípio de setentas — foi o arlequim do Arlequim servidor de dois amos e de repetidamente o admirar nas fotos da reinvenção da commedia dell’arte pelo Piccolo Teatro, a partir de 1947. Esta reinvenção foi, na verdade, o renascer de uma forma e técnica teatrais: aquele extraordinário voo do Soleri, entrando pelas cortinas que faziam a parede de fundo do estrado dos cómicos, num salto acrobático de pernas abertas, tocando com os dedos das mãos nos dos pés, não mais me saiu da cabeça, como também me ficaram na cabeça os olhos abertos, espelhando um mundo hostil por detrás da máscara felina, do Marcello Moretti, de quem ouvi dizer a um técnico do Piccolo, o Giancarlo Fortunato, que era um arlequim mais humano e menos técnico do que o Soleri, e que essa humanidade vivia no olhar. Entrei portanto pela porta errada no teatro certo, isto é, entrei pela commedia dell’arte a caminho do teatro reformado, essa invenção do realismo pelo Goldoni, realismo que eu procurava então em todas as formas teatrais, incluindo novos modos de fazer os clássicos, pois procurava fundamentalmente perceber o mundo. Simultaneamente descobri no Conservatório Nacional (João Bénard da Costa, Rui Mário Gonçalves, Eduardo Prado Coelho, Mário Barradas, Richard Demarcy, Teresa Mota, Gaston Jung eram professores), por alturas da experiência da reforma pedagógica de 71/74, que a universalidade de um teatro dos signos corporais, alta-


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mente codificado, era a de ser um teatro sem fronteiras culturais, o que ao Goldoni não diria nada, pois a sua globalização era de modo cerrado europeia, europeia até à Rússia, diria, e não compreenderia como culturas, civilização, o que entretanto as modas das antropologias práticas foram incluindo no mundo global de hoje, por vezes turismo, e vistas de cá, Europa projectando-se no outro. Um teatro, a commedia dell’arte, só supostamente do improviso, no sentido em que os que vendiam as suas virtudes o afirmavam, de uma instantânea liberdade sempre criativa do actor no palco, liberdade demiúrgica saída sabe-se lá de onde, talvez daquela ideia ranhosa da inspiração, desejo óbvio de criatividade genética que os espíritos amadores defendem, muitas vezes com horror do que o rigor e a repetição obrigam a suar. Todos sabemos, ou sabíamos no tempo das referências comuns, agora substituído pelo zapping das aleatórias no fluxo constante das ficções que virtualizam o real, que Goldoni era o coveiro da dell’arte mas que, contraditoriamente — e o Arlequim servidor de dois amos é a prova — é também o autor do renascimento da dell’arte na contemporaneidade, que, de modo estratégico, enquanto sociedade do espectáculo, valoriza tudo o que for pelo corpo contra a palavra pois conhece os poderes da palavra, e certamente os vícios do corpo, como nenhuma outra idade o soube. Portanto, bem vistas as coisas, entrei no Goldoni conscientemente pelas duas vias, a da negação da dell’arte como teatro incapaz de revelar a realidade, teatro fabuloso como o Gozzi continuou a fazer contra o Goldoni em Veneza, e a da comédia reformada que tentava apanhar aquela burguesia veneziana num retrato dinâmico das cenas domésticas e profissionais da gente honrada e trabalhadora que a constituía e que viria a destronar a aristocracia do poder veneziano pelo poder crescente dos seus negócios. Depois tive o privilégio de trabalhar directamente com o Ferrucio Soleri, no Piccolo Teatro, na sala de ensaios junto ao sótão no palácio da Via Rovello, acompanhando a sua en-


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cenação de Arlequim e os outros, montagem de canovacci do Lunari, e que Strehler visitou em dois ensaios com o Soleri a tremer de entusiasmo nervoso. E aí percebi, como nunca percebera, como a commedia dell’arte era uma arte de ofício, isto é, uma arte do ofício do corpo treinado até à exaustão, como em qualquer prática desportiva de alta competição. Os actores, pela mão do Soleri, eram verdadeiras marionetas e mesmo o gesto de apanhar uma flor, uma pantomima, repetir-se-ia diante dos meus olhos as vezes necessárias para, pela repetição, ganhar fulgor poético de um modo muito pouco improvisado. A relação entre o mecânico e o poético, entre a repetição e a leveza, revelava-se no fim de contas bem mais ilustrativa das virtudes da imaginação criativa a partir da repetição, do que uma vaga ideia de imaginações do corpo construídas num descontrole absolutamente amadorístico e culturalmente analfabeto — há um analfabetismo das referências plásticas que enforma as imaginações das escritas do corpo e as virtudes do espontâneo não chegam, deste ponto de vista, para superar o que na escrita possa ser mais rico pela via referente, mais requintado mesmo que elementar. Quando chego portanto ao meu primeiro Goldoni encenado, em 1981 (fiz outros três, As manias, Os Rústicos e O anel mágico), já levava algo na bagagem, a que entretanto acrescentara as edições da Rizzoli com os estudos introdutórios do Lunari e as fotografias dos espectáculos do Piccolo, mais os programas que adquirira do Arlecchino servitore di due padroni, da Trilogia da vilegiatura, do Campiello e das Baruffe chiozzotte. Fiz pois o Amante militar em tradução do italiano, comparada com aquela, ao gosto português como lá vinha, que o meu querido amigo e já falecido Alexandre Passos descortinara na Biblioteca da Ajuda, depois revista pelo Jorge Silva Melo — essas pesquisas do Alexandre mereceriam mesmo um seguimento consequente hoje, pois percebemos na altura, e tive oportunidade de o escrever, que o Goldoni feito em Portugal “ao gosto português” era um continente de peças que superava a produção teatral escrita da


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mesma época em português, razão por que eu propunha que o nacionalizássemos, cobrindo cronologicamente um buraco negro da nossa produção dramática. Tantas vezes feito, só poderia ter a ver com uma identificação dos espectadores da Lisboa de então — Portugal, para todos os efeitos — com as temáticas e ambientes do Goldoni “ao gosto português” (lembro-me de que o Dr. José da Costa Miranda, ilustre goldonista, falava, numa dada peça, da substituição da tripla Veneza, Treviso, Chioggia pela tripla, Lisboa, Almada, Cascais ou Barreiro, cito de cor com probabilidade de algum equívoco, sem adulterar a ideia canhestra da lógica adaptativa). Nesse Amante militar lá estavam o Victor Santos, a Clara Joana, o José Bessa, o Alegria e tantos outros que continuaram a vida a fazer teatro nas nossas bandas ocidentalíssimas. Um espectáculo, com cenário do Manuel Dias, que tinha uma ponte — a do Rialto, claro — que se deslocava, feita em ferro na metalurgia das Portas de Arraiolos, sob a orientação do querido mestre Galhano! E do Amante ficou, ficou-nos, a vontade de outros Goldonis que mais tarde vieram: As manias da vilegiatura, A casa nova, Os Rústicos, A Estalajadeira, Uma das últimas noites de Carnaval e Zaragatas em Chioggia que o Luís Varela encenou como experiência de teatro comunitário em 2010 na Nazaré, com produção e equipa do Teatro da Rainha. Algumas destas peças encenei, como referi atrás, outras vi encenar e outras ajudei a traduzir — O café, tradução da Isabel Lopes, que o Corsetti fez no São João —, as Manias da edição presente, que fiz também com a Isabel, na descoberta constante de uma proximidade de humores que o Sul contém para além da nossa costela macambúzia e do extremo gesticular dos italianos. Somos de facto da mesma matriz latina e as afinidades linguísticas são mais comportamentais do que aquilo que possamos imaginar — nada mais comum, por exemplo, do que esta complacência animada e reconhecida, recheada de anedotário a propósito, face à corrupção.


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Uma coisa quero dizer: os Goldonis feitos em democracia, de modo não aleatório, a uma família — desavinda, claro — o devemos: ao Mário Barradas, em primeiro lugar — para alguma coisa se é, se foi, o mais velho e mais teimoso — e certamente ao José Peixoto, ao Luís Varela, à Isabel Lopes, ao José Carlos Faria, ao Gil Nave e a outros que deram o corpo ao manifesto nas peças aqui enunciadas. E agora, senhoras e senhores, como o autor diria a quem lê, estas peças merecem ainda ver a luz do dia pois contam casos vivos e divertidos, nada inactuais como compreenderão pela leitura. Uma leitura que será certamente agradável, como diria o Goldoni, repisando um conceito de época. Uma visão do mundo que continua penetrante e válida. Um mundo que continua muito aparentado ao nosso porque fala de gente muito parecida connosco, já muito metida pelas problemáticas do aparente, do dinheiro, dos penteados, das roupas, dos negócios, do capitalismo e do quotidiano burguês. Nada mais actual que aquelas figuras dos rusteghi, verdadeiros antepassados dos banqueiros actuais, esses criadores dos produtos que nos intoxicam pela acumulação da sua condição especulativa até ao valor fetiche insustentável. Pois as três peças que aqui revêem a luz são de facto extraordinárias. As manias da vilegiatura, a mais próxima talvez porque o mundo das férias se tornou, para nós, consumidores porventura mais que cidadãos, uma obsessão, supostamente um outro relaxante do trabalho mas que, como na peça, se vem paulatinamente transformando no que contamina toda a vida contemporânea de uma imposição a todo o tempo e em todo o terreno das práticas aquisitivas. A ditadura do consumo espreita já nestas Manias de um modo que carreia também perspicácia psicológica na definição das personagens. Estão vivas e aqui connosco. Uma das últimas noites de Carnaval, escrita em dialecto veneziano, é o adeus à pátria antes da partida para Paris, numa viagem que, ao contrário do que sugere a alegoria da peça, não terá regresso. Goldoni parte em 1762, a convite dos comediantes italianos, aí instalados


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há muito, decidido a encontrar uma fórmula que pudesse “agradar às duas nações”. O reformador do teatro de máscaras estará, a partir daí, condenado a ceder ao gosto dos homens da dell’arte para os quais escreve canovacci que hesitam entre o italiano e um francês que não domina por completo (O anel mágico, por exemplo). No entanto, a promessa que deixa em Uma das últimas noites de Carnaval irá ser cumprida e, pouco depois da sua chegada a Paris, enviará para Veneza O leque. Diz Luigi Lunari, o teórico, dramaturgista, dramaturgo e tradutor que acompanhou o percurso goldoniano de Strehler — o mais eminente encenador contemporâneo de Goldoni — a propósito de O leque, na introdução à edição da Rizzoli de 1980: “Goldoni renuncia à sua própria experiência de reformador para construir uma comédia toda feita de objectos, de acções, de didascálias, de apartes, de tal forma que — subordinadas ao mecanismo — as personagens não tenham mais o tempo nem a necessidade de falar, nem necessitem mais de um aprofundamento psicológico e sociológico.” Tive a oportunidade de ouvir Giorgio Strehler falar de O leque justamente como mecanismo, apelidando a peça de relógio suíço. Creio que é esse exactamente o seu interesse, o de uma característica perfeccionista de construção das acções numa intriga que funciona como uma verdadeira engrenagem. É, como diz também Lunari, uma daquelas peças que só se pode ler vendo-a. Boas leituras. Fernando Mora Ramos


As manias da vilegiatura

Tradução de Fernando Mora Ramos e Isabel Lopes A partir da edição: Le smanie per la villeggiatura, Carlo Goldoni. A cura di Guido Davico Bonino, Note di Sergio Bullegas e Guido Davico Bonino, Milão, I Grandi Libri, Garzanti, primeira edição, de Agosto de 1976. Representada pela primeira vez em Veneza, em 1761.


PERSONAGENS Filippo, cidadão velho e jovial • Giacinta, sua filha • Leonardo, apaixonado de Giacinta • Vittoria, irmã de Leonardo • Ferdinando, papa-jantares • Guglielmo, apaixonado de Giacinta • Fulgenzio, amigo idoso de Filippo • Paolo, camareiro de Leonardo • Brigida, criada de quarto de Giacinta • Cecco, criado de Leonardo • Berto, criado de Leonardo

A acção decorre em Livorno, parte em casa de Leonardo e parte em casa de Filippo.


Do autor a quem ler

O inocente divertimento do campo tornou-se nos nossos dias uma paixão, uma mania, uma desordem. Virgilio, Sannazzaro e tantos outros panegiristas da vida campestre fizeram despertar nos homens o gosto pelo retiro; mas a ambição penetrou nas florestas: os veraneantes trazem consigo para o campo a pompa e o tumulto da cidade e envenenaram o prazer dos camponeses, que ficam a conhecer a soberba dos seus amos juntamente com a sua miséria. Este argumento é tão fecundo de ridículo e extravagâncias que me forneceu matéria para compor cinco comédias, todas elas fundadas na realidade e que, no entanto, não se assemelham. Depois de ter dado ao público Os descontentes e A Vilegiatura, a primeira no terceiro tomo e a segunda no quarto tomo do meu Teatro Cómico da edição Pitteri, encontrei ainda com que me satisfazer e com que armar, não sei se devo dizer o meu capricho se o meu zelo, contra um tal fanatismo. Concebi ao mesmo tempo a ideia de três comédias consecutivas. A primeira intitulada As manias da vilegiatura, a segunda As aventuras da vilegiatura e a terceira O regresso da vilegiatura. Na primeira, vêem-se os insensatos preparativos; na segunda, a louca conduta; na terceira, as consequências dolorosas que daí advêm. As personagens principais destas três representações, que são as mesmas, pertencem àquele género de pessoas que eu quis ter debaixo de mira, isto é, de uma classe social nem nobre nem rica, já que os nobres e os ricos estão autorizados pela origem e pela fortuna a fazer mais alguma coisa do que os restantes. A ambição dos pequenos faz com que queiram medir-se com os grandes e é este o ridículo que eu tentei pôr a nu para o corrigir, se possível. Estas três comédias, igualmente afortunadas pelo seu sucesso e pelo agrado geral do público, foram representadas


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separadamente com alguma distância entre elas, tendo sido compostas de tal forma que cada uma pode figurar sozinha, e todas as três juntas se unem na perfeição. Podia, por essa mesma razão, separá-las nos tomos da minha nova edição, contentando-me com a apresentação de uma comédia inédita em cada um deles. Mas examinei o fundo de comédias novas de que ainda disponho e vejo que posso esbanjar sem receio de que me faltem e agrada-me oferecer unido um quadro que será mais agradável. Assim, o leitor poderá observar melhor a continuidade das personagens desenvolvidas em três acções; e se uma das dificuldades do Drama consiste em desenvolver as personagens numa só obra, mais agradará vê-las desenvolvidas em três.


PRIMEIRO ACTO

CENA I Sala em casa de Leonardo. Paolo, que põe fatos e roupa branca num baú; depois Leonardo. LEONARDO Que fazeis aqui nesta sala? Há um cento de coisas para fazer e vós perdeis tempo e nada está pronto. PAOLO Perdoai-me, senhor. Creio que fazer as malas é uma das coisas que é necessário fazer. LEONARDO Preciso de vós para um assunto mais importante. O baú, tratai de pôr as mulheres a acabar de o encher. PAOLO As mulheres andam à volta da senhora. Estão ocupadas com ela e não há possibilidade de lhes pôr sequer a vista em cima. LEONARDO É esse o defeito da minha irmã. Nunca está satisfeita. Gostaria de ter sempre a criadagem às suas ordens. Para irmos de veraneio não lhe chega um mês de preparativos. Duas mulheres ocupadas com ela durante um mês. É insuportável. PAOLO Acrescentai que, não lhe bastando as duas mulheres, chamou ainda outras duas para ajudar. LEONARDO E o que é que ela faz com essa gente toda? Estão a fazer-lhe em casa algum vestido novo?


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PAOLO Não, senhor. O vestido novo está o costureiro a fazê-lo. Em casa pôs as mulheres a modificar os vestidos usados. Pô-las a fazer mantilhas, manteletes, toucas para o dia e toucas para a noite, uma quantidade de enfeites de renda, de fitas, de florinhas, um arsenal de coisas; e tudo isto para ir para o campo. Hoje em dia faz-se mais cerimónia no campo do que na cidade. LEONARDO Sim, infelizmente, é verdade: quem quer causar boa impressão em sociedade deve fazer como fazem os outros. A nossa casa de campo no Montenegro é uma das mais frequentadas e com maiores obrigações. As pessoas com quem se vai estar são de cerimónia. No entanto, vejo-me na necessidade de fazer mais do que gostaria. Mas preciso de vós. As horas passam, temos que sair de Livorno antes da noite e quero que tudo esteja prestes e que nada falte. PAOLO O senhor manda e eu farei tudo o que puder. LEONARDO Primeiro que tudo, deitemos as contas ao que há e ao que seria necessário. Receio que os talheres sejam poucos. PAOLO Duas dúzias deverão ser suficientes. LEONARDO Para o dia-a-dia, também acho que sim. Mas quem me garante que não virão grupos de amigos? No campo é costume ter sempre a mesa posta. Convém estarmos preparados. Os talheres mudam-se frequentemente e dois faqueiros não bastam. PAOLO Peço-vos que me desculpeis, se falo demasiado livremente. Vossa senhoria não é obrigada a fazer tudo o que fazem os marqueses florentinos, que têm feudos e terras enormes, funções e cargos grandiosos. LEONARDO Eu não necessito que o meu criado arme em pretensioso. PAOLO Perdoai-me; não digo mais nada. LEONARDO Na situação em que me encontro tenho de ultrapassar as dificuldades. A minha casa de campo é contígua à do senhor Filippo. Ele está acostumado a tratar-


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-se bem. É um homem esplêndido, generoso: as suas temporadas no campo são magníficas e eu não quero ter de me envergonhar, não posso fazer má figura diante dele. PAOLO Fazei tudo aquilo que a vossa prudência vos ditar. LEONARDO Ide ao monsieur Gurland e pedi-lhe da minha parte que faça o favor de me emprestar dois faqueiros, quatro pires e seis castiçais de prata. PAOLO Vossa senhoria manda. LEONARDO Depois ide ao meu merceeiro, ele que vos dê dez libras de café, cinquenta libras de chocolate, vinte libras de açúcar e um sortido de especiarias para a cozinha. PAOLO É para pagar? LEONARDO Não. Dizei-lhe que lhe pagarei no meu regresso. PAOLO Lamento, disse-me anteontem que esperava que saldasse a conta antiga antes de partir para o campo. LEONARDO Nem pensar. Dizei-lhe que pagarei no meu regresso. PAOLO Muito bem. LEONARDO Tratai de ver se há baralhos de cartas suficientes para seis ou sete mesas de jogo; e sobretudo que não faltem velas de cera. PAOLO A fábrica de velas de Pisa também gostaria de liquidar a conta antiga antes de abrir uma nova. LEONARDO Comprai velas de Veneza. Custam mais mas duram mais e são mais belas. PAOLO Pago a pronto? LEONARDO Que vos dêem o que é necessário; pagar-se-á no meu regresso. PAOLO Senhor, quando regressardes tereis uma multidão de credores a importunar-vos. LEONARDO Vós importunais-me mais que todos. Há dez anos que estais comigo e cada ano sois mais impertinente. Vou acabar por perder a paciência. PAOLO Vós sois senhor de me mandar embora; mas se falo, faço-o pelo afecto que vos dedico.


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LEONARDO Empregai o vosso afecto a servir-me e não a aborrecer-me. Fazei o que vos disse e mandai-me Cecco. PAOLO Às vossas ordens. (À parte:) Oh! Não falta muito para que as grandezas do campo o reduzam à miséria na cidade. (Sai.)

CENA II Leonardo, depois Cecco. LEONARDO Até eu percebo que faço mais do que posso. Mas se os outros o fazem, eu não quero ficar atrás. Aquele avarento do meu tio podia ajudar-me, mas não quer. Mas se as minhas contas não falham, há-de rebentar antes de mim; e se não quiser fazer uma injustiça ao seu próprio sangue, hei-de ser o herdeiro dos seus bens. CECCO Às vossas ordens. LEONARDO Vai ao senhor Filippo Ghiandinelli; se estiver em casa, dá-lhe os meus cumprimentos e diz-lhe que mandei vir os cavalos da posta e que partiremos juntos por volta das duas horas. Depois passa pelos aposentos da senhora Giacinta, a filha dele, e diz-lhe, ou manda dizer-lhe pela sua criada de quarto, que lhe envio os meus cumprimentos e mando saber se teve uma noite repousada e que dentro de algumas horas estarei em sua casa. Entretanto, repara se por acaso lá estará o senhor Guglielmo e informa-te bem com o pessoal da casa: se lá esteve, se mandou alguém e se julgam que poderá por lá passar. Faz tudo como deve ser e volta com a resposta. CECCO Vossa senhoria manda. (Sai.)


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CENA III Leonardo, depois Vittoria. LEONARDO Não posso sofrer que a senhora Giacinta conviva com Guglielmo. Ela diz que tem de tolerá-lo para agradar ao pai, que é um amigo da casa, que não tem qualquer inclinação por ele; mas eu não me sinto obrigado a acreditar em tudo e esta convivência não me agrada. O melhor será acabar eu próprio o baú sem mais demora. VITTORIA Senhor meu irmão, é verdade que haveis encomendado os cavalos e que se há-de partir esta noite? LEONARDO Sim, decerto. Não foi o que combinámos ontem? VITTORIA Ontem disse-vos que esperava estar pronta para partir mas agora digo-vos que não estou e mandai suspender os cavalos porque hoje é absolutamente impossível partirmos. LEONARDO E porque é que hoje é absolutamente impossível partirmos? VITTORIA Porque o costureiro ainda não acabou o meu mariage. LEONARDO Que diabo é esse mariage? VITTORIA É um vestido da última moda. LEONARDO Se não está pronto, poderá enviá-lo para o campo. VITTORIA Claro que não. Quero que ele mo prove e quero vê-lo acabado. LEONARDO Mas não se pode adiar a partida. Foi concertado partirmos juntamente com o senhor Filippo e com a senhora Giacinta e combinámos para hoje. VITTORIA Tanto pior. Sei que a senhora Giacinta tem bom gosto e não quero fazer má figura diante dela. LEONARDO Vestidos, tendes vós em abundância; podeis fazer boa figura a par de quem quer que seja.


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VITTORIA Não tenho senão umas antiguidades. LEONARDO Também não mandastes fazer um novo o ano passado? VITTORIA De um ano para o outro não se pode dizer que os vestidos continuem na moda. É verdade que os mandei modificar quase todos. Mas é preciso um vestido novo, é necessário e sem isso não se pode passar. LEONARDO Este ano então é o mariage? VITTORIA Sim, claro. Trouxe-o de Turim madame Granon. Até agora em Livorno não creio que alguém tenha visto um e espero estar entre as primeiras. LEONARDO Mas que vestido é esse? É preciso tanta coisa para o fazer? VITTORIA Uma coisa de nada. É um vestido de seda, de uma só cor, com as guarnições entrelaçadas a duas cores. Tudo consiste no bom gosto de escolher as cores certas; que liguem bem, que se realcem e não se confundam. LEONARDO Ânimo, não sei que vos diga. Desagradar-me-ia ver-vos descontente mas seja como for temos de partir. VITTORIA Eu não vou de todo. LEONARDO Se vós não ides, vou eu. VITTORIA Como? Sem mim? Tendes a coragem de me deixar em Livorno? LEONARDO Virei buscar-vos mais tarde. VITTORIA Não, não acredito. Sabe Deus quando vireis; e se fico aqui sozinha tenho medo que aquele tísico do nosso tio me obrigue a ficar em Livorno com ele. E se tivesse que ficar aqui enquanto os outros vão para o campo, havia de adoecer de raiva e desespero. LEONARDO Então resolveis vir. VITTORIA Ide ao costureiro e obrigai-o a deixar tudo e a terminar o meu mariage. LEONARDO Eu não posso perder tempo. Tenho um cento de coisas para fazer. VITTORIA Maldita desgraça a minha!


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LEONARDO (irónico) Oh, grande desgraça, não haja dúvida! Um vestido a menos é uma desgraça plangente, intolerável, extrema. VITTORIA Sim, meu senhor, a falta de um vestido na moda pode desacreditar quem tem fama de bom gosto. LEONARDO Ao fim e ao cabo sois solteira e as solteiras não têm de se comparar com as casadas. VITTORIA Também a senhora Giacinta é solteira e leva tudo o que é moda e com toda a pompa das casadas. E hoje em dia não se faz distinção entre as solteiras e as casadas. Uma rapariga que não faça como as outras passa por rústica, por antiquada; e muito me espanta que tenhais destas máximas e que me queirais aviltada e destruída a tal ponto. LEONARDO Tanto barulho por causa de um vestido? VITTORIA Preferia ter uma doença a ficar aqui ou a partir sem o meu vestido. LEONARDO O céu vos conceda essa graça. VITTORIA (com desprezo) De cair doente? LEONARDO Não, que o vestido esteja pronto e que fiqueis satisfeita.

CENA IV Berto e os mesmos. BERTO (para Leonardo) Meus senhores, o senhor Ferdinando deseja cumprimentar-vos. LEONARDO Que entre, que entre. A casa é dele. VITTORIA Ouve. Vai imediatamente ao costureiro, o Monsieur de la Réjouissance, e diz-lhe que acabe já o meu vestido, que o quero antes de partir para o campo; caso contrário terá de se haver comigo e não voltará a ser costureiro em Livorno.


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BERTO A senhora manda. (Sai.) LEONARDO Vá, acalmai-vos e não deixeis que o senhor Ferdinando vos veja assim. VITTORIA Que me importa o senhor Ferdinando? Eu não lhe devo nenhuma obrigação. Imagino que este ano, mais uma vez, vá assentar arraiais em nossa casa. LEONARDO Com certeza, deu-me esperanças de vir connosco e entende que é uma honra que nos faz. Mas como é dos tais que se insinuam por todo o lado e cujo mérito consiste em relatar seja onde for as coisas alheias, convém acautelarmo-nos e não lhe dar tudo a conhecer, porque se soubesse dos vossos caprichos por causa do vestido era capaz de vos meter a ridículo em todos os grupos e em todas as conversas. VITTORIA E porque é que quereis levar connosco essa praga conhecendo o seu carácter? LEONARDO Vede bem: no campo é necessário ter companhia. Todos procuram ter tanta gente quanta for possível e depois ouve-se dizer: um tal tem dez pessoas, outro tem seis, outro ainda tem oito; e quem mais tiver mais estimado é. E além do mais, Ferdinando é uma pessoa que agrada imenso. Joga todos os jogos, está sempre alegre, diz graças, come bem, faz as honras da mesa, suporta os gracejos e não leva nada a mal. VITTORIA Sim, sim, é verdade; no campo estas personagens fazem falta. Mas onde é que ele se meteu que não aparece? LEONARDO Ei-lo que sai da cozinha. VITTORIA O que é que terá ido fazer à cozinha? LEONARDO Curiosidade. Quer saber tudo. Quer saber o que se faz, o que se come e depois di-lo por todo o lado. VITTORIA Do mal o menos, de nós não poderá contar misérias.


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