William Shakespeare
Júlio César Tradução José Manuel Mendes Luís Lima Barreto e Luis Miguel Cintra
Cotovia
Título original: Julius Caesar © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2007 © para os desenhos, Cristina Reis Concepção gráfica de João Botelho ISBN 978-972-795-190-1
Índice
Nota dos tradutores
p. 9
Personagens
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Elenco da estreia
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JÚLIO CÉSAR
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Nota dos Tradutores
1. Esta tradução de Júlio César de Shakespeare, como as traduções de Cimbelino e Tito Andrónico pelos mesmos autores, foi elaborada para um espectáculo do Teatro da Cornucópia e obedeceu ao mesmo critério das traduções anteriores: criar um texto em português contemporâneo tão fiel ao texto original quanto possível mas com aquela clareza sintáctica e rítmica que, sem ceder a quaisquer injustificáveis “modernizações”, o tornasse compreensível na voz de actores de hoje. Não encontrámos essa clareza noutras traduções já existentes e por isso nos decidimos a elaborar outra que melhor servisse esta sua encenação. Não teremos conseguido transpor para o nosso português toda a perfeição retórica do texto shakespeareano. Mas quisemos que o texto conservasse a “memória” de um texto que é antigo, escrito quase integralmente em verso, sem o vulgarizar. Tentámos não ceder a facilidades lexicais que não existem para qualquer leitor do texto original e, como vai já sendo nosso hábito, mais do que tentar uma tradução em verso com o rigor métrico que isso implicaria, tentámos uma tradução com alguma cadência rítmica capaz de sugerir a sensação do verso original por oposição aos trechos em prosa. 2. Seguimos a edição de Arthur Humphreys para os Oxford World’s Classics da Oxford University Press, Oxford New York, 1994, que reedita a edição para a Clarendon Press de 1984 e que segue basicamente o texto da primeira edição da peça, o Folio de 1623, acrescentando-lhe algumas 9
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didascálias que facilitam a leitura. Às didascálias apresentadas por Humphreys acrescentámos nós outras que, pelas mesmas razões, têm vindo a ser acrescentadas em edições modernas. Todas as didascálias que não figuram no Folio vêm assinaladas por parêntesis rectos ou curvos. 3. A um abuso nos permitimos nas formas de tratamento: por razões estritamente teatrais, não respeitámos a distinção entre o “you” e o “thou”, e não a fizemos sistematicamente corresponder à diferença entre “vós” e “tu”. Para que, a um espectador moderno, as relações entre personagens de idêntico estatuto social não soassem demasiado formais, utilizámos nesses casos quase sempre o tratamento na segunda pessoa do singular, reservando o “vós” para tratamentos de inferior para superior. 4. Seguindo o critério de Humphreys, conservámos no texto da cena IV.2 as duas versões do anúncio da morte de Pórcia (pelo próprio Bruto e por Messala), tal como aparece no Folio, mas que alguns editores consideram serem duas versões de Shakespeare para o mesmo momento da peça. 5. Tal como tínhamos feito para Cimbelino, aportuguesámos os nomes romanos, de acordo com a tradição portuguesa, para que a pronúncia de cada nome não provocasse um indesejável efeito de estranheza. 6. Para a edição, adoptámos o título de JÚLIO CÉSAR por que normalmente a peça é conhecida. Ao espectáculo do Teatro da Cornucópia que leva à cena esta tradução, demos, no entanto, o nome de A TRAGÉDIA DE JÚLIO CÉSAR, recuperando o título com que aparece no Folio, com a ideia de focar o espectáculo no tema da responsabilidade política que, em nosso entender, torna a peça particularmente interessante para um público contemporâneo. 10
Personagens JÚLIO CÉSAR MARCO ANTÓNIO OCTÁVIO CÉSAR LÉPIDO MARCO BRUTO CAIO CÁSSIO CASCA DÉCIO BRUTO CINA METELO CIMBRO TREBÓNIO CAIO LIGÁRIO
}
}
Triúnviros depois da morte de JÚLIO CÉSAR
Conspiradores contra JÚLIO CÉSAR
PÓRCIA, mulher de Bruto CALPÚRNIA, mulher de César FLÁVIO MARULO
} Tribunos do povo
CÍCERO PÚBLIO POPÍLIO LENA
}
Senadores
UM ADIVINHO ARTEMIDORO, um professor de retórica CINA, poeta OUTRO POETA (IV.2) 11
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LÚCIO, criado de Bruto UM CARPINTEIRO UM SAPATEIRO
} Plebeus
UM CRIADO DE CÉSAR UM CRIADO DE MARCO ANTÓNIO UM CRIADO DE OCTÁVIO OUTROS PLEBEUS LUCÍLIO TITÍNIO MESSALA JOVEM CATÃO VOLÚMNIO ESTRATÃO
}
Militares amigos nos exércitos de Bruto e Cássio
PÍNDARO, um escravo liberto de Cássio VARRÃO CLÁUDIO CLITO
}
Soldados nos exércitos de Bruto e Cássio
DARDÂNIO, um criado de Bruto no exército MENSAGEIRO (V.1) OUTROS SOLDADOS O FANTASMA DE CÉSAR
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Esta tradução foi estreada numa co-produção entre o S. Luiz-Teatro Municipal e o Teatro da Cornucópia no dia 21 de Março de 2007, no Teatro S. Luiz, em Lisboa, com o título: A TRAGÉDIA DE JÚLIO CÉSAR Encenação Cenário e figurinos Desenho de luz Música original
Luis Miguel Cintra Cristina Reis Daniel Worm d’Assumpção Vasco Mendonça
Interpretação: Júlio César Marco António Octávio César Lépido Marco Bruto Caio Cássio Casca Décio Bruto Cina Metelo Cimbro Trebónio Caio Ligário Pórcia, mulher de Bruto Calpúrnia, mulher de César Flávio Marulo Cícero Públio Popílio Lena Um Adivinho
Luis Miguel Cintra Nuno Lopes Vítor de Andrade Hugo Tourita Dinarte Branco Ricardo Aibéo Luís Lima Barreto Joaquim Horta Pedro Lacerda Ivo Alexandre Tónan Quito Luís Lucas Rita Durão Teresa Sobral Vítor de Andrade Luís Lucas José Manuel Mendes José Manuel Mendes Martim Pedroso Dinis Gomes 13
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Artemidoro, um professor de retórica Cina, poeta Outro Poeta (IV.2) Lúcio, criado de Bruto Um carpinteiro Um sapateiro Criado de César Criado de Marco António Criado de Octávio 4 Plebeus na cena III.3
Nuno Gil Dinis Gomes José Manuel Mendes Edgar Morais Tiago Matias Ivo Alexandre Filipe Costa Tiago Matias Pedro Lamas André Silva, Filipe Costa, Hugo Tourita, Martim Pedroso Lucílio Luís Lucas Titínio Luís Lima Barreto Messala Joaquim Horta Jovem Catão Tonã Quito Volúmnio Pedro Lacerda Estratão Ivo Alexandre Píndaro, um escravo liberto de Cássio Nuno Gil Varrão Filipe Costa Cláudio Pedro Lamas Clito Tiago Matias Dardânio, um criado de Bruto no exército Martim Pedroso Mensageiro Dinis Gomes Plebeus na cena I.1 Filipe Costa, Pedro Lamas, André Silva Soldados na cena V.4 e V.5 André Silva, Filipe Costa, Hugo Tourita, Pedro Lamas
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JÚLIO CÉSAR
ACTO I
CENA I [Roma. Uma rua.]
Entram para o palco Flávio, Marulo e alguns populares, um carpinteiro, outro sapateiro. FLÁVIO Fora daqui! Preguiçosos! Vão trabalhar! É dia santo? Não sabeis, Artesãos, que não devíeis andar a passear Num dia de trabalho sem a insígnia Da vossa profissão? Diz lá, qual é o teu ofício? CARPINTEIRO Eu, senhor? Sou carpinteiro. MARULO Onde tens o avental de couro e a tua régua? Que fazes com a tua melhor roupa? E o senhor, qual é o seu ofício? SAPATEIRO Pois, senhor, comparado a um bom artesão, não passo, diríeis vós, de um mau remendão. MARULO Mas qual é o teu ofício? Responde sem rodeios. 17
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SAPATEIRO Um ofício, senhor, que espero exercer em boa consciência. E que é, senhor, ajudar a andar melhor. MARULO Mas que ofício tens, tratante? Que ofício, calaceiro? SAPATEIRO Ai, senhor, peço-lhe que não saia fora de si por minha causa; mas olhe que se andar mal eu posso dar-lhe conserto. MARULO Que queres dizer com isso? Consertar-me, insolente? SAPATEIRO Porquê, senhor? Pôr-lhe meias solas. FLÁVIO Ah, então és sapateiro… SAPATEIRO É verdade, senhor, é da sovela que eu vivo. Não me meto na vida de homens de negócios nem na vida de mulheres. Mas sou cirurgião de qualquer sapato velho, senhor: trato-lhes da saúde quando estão em risco. Não há homem que ande em sapatos de bom couro que não ponha os pés em cima do trabalho das minhas mãos. FLÁVIO Mas porque não estás hoje na oficina? Porque trazes tanta gente para a rua? 18
JÚLIO CÉSAR 1.1
SAPATEIRO Olhe, senhor, para gastarem as solas e me darem mais trabalho. Pois bem, senhor, fazemos folga para vermos César e festejarmos o seu triunfo. MARULO Festejar porquê? Que conquista traz para casa? Quantos tributários traz para Roma, Ornamentando agrilhoados as rodas do seu carro? Ó cepos, ó calhaus, piores que as coisas insensíveis! Ó corações empedernidos, homens cruéis de Roma, Não conhecestes Pompeu? Quantas e quantas vezes Não trepastes vós para os muros e muralhas, Para as torres e janelas, sim, até para as chaminés, E aí vos sentastes, com os filhos nos braços, Todo o santo dia, esperando com paciência Ver passar pelas ruas de Roma o grande Pompeu? E mal vistes surgir o seu carro, Não fizestes uma aclamação universal, Que fez tremer o Tibre no seu leito, Ao ouvir o eco dos vossos gritos, Soando nos côncavos das suas margens? E vestis agora os vossos melhores fatos? E fazeis agora feriado? E semeais agora de flores o caminho Do que chega em triunfo sobre o sangue de Pompeu? Ide-vos daqui! Correi para vossas casas, ajoelhai-vos, E suplicai aos deuses que suspendam a praga Que por força há-de nascer da vossa ingratidão. FLÁVIO Ide, ide, bons concidadãos, e por este erro, 19
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Reuni todos os infelizes como vós; Levai-os para as margens do Tibre e vertei lágrimas vossas No seu leito, até que as mais profundas águas Beijem as suas margens mais altas. Saem todos os populares. Vê como o mais vil metal se deixa derreter. Esmorecem, com a língua atada ao remorso. Vai por esse lado para o Capitólio; Eu vou por este. Limpa as estátuas, Se as encontrares ornadas com insígnias. MARULO Poderemos fazê-lo? Sabes bem que é a festa Lupercália. FLÁVIO Não importa. Que não haja estátuas Enfeitadas com os troféus de César. Vou por aí Expulsar o povo das ruas. Faz o mesmo, quando vires ajuntamentos. Arranquemos estas plumas que crescem nas asas de César, E ele há-de voar mais baixo. Se não, é acima da vista dos homens que ele há-de pairar, Para nos manter a todos no terror mais servil. Saem.
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