CURSO BREVE DE LITERATURA BRASILEIRA é uma colecção de dezasseis volumes concebida para formar, no seu conjunto, uma selecta ou manual de estudo de acordo com um itinerário de leitura coerente e organizado. Não se propõe, é claro, oferecer qualquer visão global ou representativa de dois séculos de Literatura Brasileira; mas também não se reduz a alguma escolha parcialíssima determinada por critérios individuais de eleição crítica ou gosto. O critério primordial de selecção privilegia as obras que acrescentam a sabedoria literária ocidental, mas acolhe também aquelas que contribuíram decisivamente para dar à Literatura Brasileira a configuração própria enquanto literatura nacional autónoma. Daí resultando ainda um conjunto largamente excessivo, a definição dos dezasseis volumes exigiu outros critérios. Desde logo, a opção de conjugar a edição autónoma e integral de obras indispensáveis com antologias de períodos, movimentos ou géneros. Procurou-se também privilegiar obras ou autores pouco conhecidos ou de todo desconhecidos em Portugal. Como em qualquer curso, todos os volumes incluem indicações bibliográficas. CURSO BREVE DE LITERATURA BRASILEIRA pode levar, e é desejável que assim seja, ao reexame da condição da Literatura Brasileira em Portugal. Direcção: Abel Barros Baptista
LEMBRANÇAS DO PRESENTE.
Título: Lembranças do presente. O conto contemporâneo © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2006 © da organização, notas e apresentação: Alcir Pécora Todos os direitos reservados. Capa: Livros Cotovia ISBN 972-795-168-6
Lembranças do presente. o conto contemporâneo
Antologia organizada e apresentada por Alcir PĂŠcora
volume quinze Curso Breve de Literatura Brasileira
Livros Cotovia
Índice
Apresentação por Alcir Pécora
p. 11
JOSÉ J. VEIGA A usina atrás do morro
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OSMAN LINS Conto barroco ou unidade tripartita
59
DALTON TREVISAN O primo Cemitério de elefantes Morte na praça Cena doméstica O senhor meu marido O fantasma da ópera Palácio dos prazeres
81 86 89 98 110 114 118
RUBEM FONSECA A força humana O desempenho Relato de ocorrência Feliz ano novo Passeio noturno parte I Pierrô da caverna
127 153 160 164 174 177
SAMUEL RAWET Conto de amor suburbano Uma velha história de maçãs A luta Fé de ofício
201 216 222 227
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ÍNDICE
HILDA HILST Gestalt Teologia natural O grande-pequeno Jozu
233 235 237
JOÃO ANTÔNIO Joãozinho da Babilónia Maria de Jesus de Souza (Perfume de gardênia)
257 280
SÉRGIO SANT’ANNA O albergue Pela janela Composição I O submarino alemão
295 315 325 338
EVANDRO AFFONSO FERREIRA Estrabuleguice Lanfranhudo Evoé! Bancarrota Paíba Onan Corê-corê Labéu Ímpeto Brazabum Abrenúncio! Coscuvilhice
365 366 367 369 370 371 373 375 376 378 379 380
Bibliografia
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APRESENTAÇÃO
ALCIR PÉCORA é professor livre-docente de literatura na Unicamp, onde leciona desde 1977. Autor de estudos de literatura colonial brasileira, e, em particular, do sermonário do Padre Vieira. Crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Entre as suas publicações, destacam-se: Teatro do Sacramento (Edusp/Editora da Unicamp, 94); Máquina de Gêneros (Edusp, 2001); As Excelências do Governador (Companhia das Letras, 2002); Rudimentos da Vida Coletiva (Ateliê, 2003). Organizou dois volumes de Sermões (Hedra, 2000/ 2001), além das antologias A Arte de Morrer (Nova Alexandria, 1994) e Escritos Históricos e Políticos (Martins Fontes, 1995), todos a propósito da obra de Vieira. É organizador da edição das obras completas de Hilda Hilst e Roberto Piva pela Editora Globo. Co-editor da revista de poesia Sibila.
Apresentação
O conto é gênero que, no Brasil, teve um pico de qualidade nos anos 60 e 70. Depois disso, o seu interesse foi diminuindo, até a quase inanição dos dias de hoje. Isto posto, a tarefa de organizar uma antologia do conto contemporâneo me parece implicar basicamente um exercício de memória daqueles anos de força do gênero. Mas não uma memória estritamente pessoal. Gostava de pensar no caso como uma memória mais ampla, geracional e cultural, ligada sobretudo ao impacto público daqueles contos, naquelas décadas. Assim determinado, conquanto deixe registrado em nota, para eventual informação do leitor português, alguns nomes interessantes de contistas surgidos no Brasil nos últimos 50 anos1, do ponto de vista de minha escolha essencial de autores, reduzi as indicações ao mínimo possível.
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Citaria, entre vários outros, Adélia Prado, André Sant´Anna, Antonio Torres, Autran Dourado, Bernardo Carvalho, Bernardo Elis, Caio Fernando Abreu, Carlos Heitor Cony, Carlos Süssekind, Domingos Pellegrini, Edla Van Steen, Fernando Sabino, Furio Lonza, Herberto Sales, Hermilo Borba Filho, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, João Gilberto Noll, João Ubaldo Ribeiro, José Cândido de Carvalho, Juliano Garcia Pessanha, Luiz Ruffato, Luiz Vilela, Lygia Fagundes Telles, Marcelo Mirisola, Márcia Denser, Moacir Scliar, Murilo Rubião, Nélida Piñon, Nelson Motta, Nelson de Oliveira, Olga Savary, Orígenes Lessa, Otto Lara Resende, Raduan Nassar, Roberto Drummond, Rubens Figueiredo, Silviano Santiago, Tânia Jamardo Faillace, Valêncio Xavier, Wander Piroli, Wilson Bueno e Zulmira Ribeiro Tavares. Clarice Lispector e Guimarães Rosa ficam fora da antologia por terem livros à parte na coleção.
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ALCIR PÉCORA
Ao proceder dessa maneira, não tive senão de reler alguns dos textos dos quais guardava ainda alguma impressão de quando os lera pela primeira vez (em geral, acompanhado de mais gente, a trocar idéias apaixonadas sobre as revelações decisivas que pareciam fazer), e então selecionar aqueles que desejaria apresentar mais detidamente nesta antologia. Entre eles, selecionei José J. Veiga, Osman Lins, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Samuel Rawet, Hilda Hilst, João Antônio e Sérgio Sant’Anna, sobretudo porque forneceram modelos de efetuação do gênero, que permanecem até hoje. Além deles, para que não fique a impressão de que o gênero esteja extinto enquanto possibilidade de escrita, selecionei um autor cuja produção mais forte se inicia nos anos 2000, Evandro Affonso Ferreira. Fica aqui como representante solitário da persistência do gênero. José J. Veiga— ao lado de Murilo Rubião, por exemplo — é um dos poucos autores, no Brasil, que produziram um tipo de literatura próximo do chamado “realismo mágico”, que vingou por toda a América latina, principalmente durante as décadas a que me referi. De modo geral, o gênero tendia a alcançar resultados bem medíocres, com a confusão do pitoresco, do anedótico e do erótico, muitas vezes grosseirão, com a idéia de autenticidade cultural e de resistência política latino-americana contra o imperialismo internacional, totalizado como anódino, hegemônico e autoritário. Tal estrutura maniqueísta, favorável a um estilo grandiloqüente e simplista ao mesmo tempo, ganhou força justamente ao unir a fantasia turística internacional a respeito de um suposto modo de vida primitivo e sexualizado latino-americano com a polarização política 12
APRESENTAÇÃO
que resultou da violência das ditaduras militares, que se alastravam desgraçadamente por todo o continente, no período. Os contos de Os cavalinhos de Platiplanto, de 1959, produzem uma mistura, nem sempre bem resolvida, de fábula moral e perplexidade diante das mudanças no modo de vida tradicional pelo advento do novo ritmo imposto pelo surto industrial, muito sensível no interior do Brasil, a partir dos anos 50. Narrativas de sonhos ou memórias infantis significam, aí, uma espécie de último refúgio da humanidade, ameaçada por mecanismos incompreensíveis, violentos, que progressivamente parecem invadir as cidades e os corpos dos conhecidos, como vampiros de almas. No caso de “A usina atrás do morro”, o conto mais bem sucedido do conjunto, há curiosamente uma semelhança qualquer com o clima dos filmes B, do cinema americano dos anos 50. A história segue um andamento de incômodo e terror crescentes: os pacatos moradores de uma cidadezinha tranqüila vêem a sua vida virar do avesso com a chegada de um misterioso casal estrangeiro, que compra terras no lugar, repudia qualquer contato amistoso com os locais e prepara a vinda de outros grupos de homens, encarregados de construir uma enorme usina na região. Sobretudo a mulher chocava por seus modos pouco femininos. Em pouco tempo, já não resta vestígio da antiga tranqüilidade. Os moradores que não adotam os procedimentos da nova ordem ditada pela usina vão sendo expulsos, atropelados ou mortos. A ameaça toma a forma de uma espécie de ataque alienígena da industrialização, repentino e desnecessário, cuja eficiência se traduz na completa desorganização das antigas formas de convívio e na irrup13
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ção de hábitos estranhos, cruéis e sonambúlicos, cristalizados nas máquinas. Embora escrito antes do golpe militar no Brasil, que é de 1964, também este conto foi maciçamente lido na chave da literatura de oposição à ditadura do período subseqüente. O esquematismo evidente de sua concepção é apenas matizado pela amplificação própria da visão do narrador juvenil e pela construção paulatina de atmosfera inquietante e sombria, mantida consistentemente, do começo ao fim, pela sobriedade estilística, que resiste à exuberância kitsch muito comum no gênero fantástico. A obra de Osman Lins ainda está longe de ser bem conhecida, pelo público ou pela crítica. Talvez seu ecletismo, talvez a fugacidade das modas do realismo mágico e do estruturalismo, a que teve seu nome ligado, talvez a complexidade experimental de sua prosa, talvez até a sua morte prematura — qualquer coisa conspirou contra a impermanência da notoriedade que alcançou nos anos 70. “Conto Barroco”, entre outros contos de Nove Novena, é um exemplo do experimentalismo que marca parte considerável da sua prosa. Especialmente interessante nele é a construção de uma narrativa que apresenta, dentro do seu próprio enunciado, possibilidades diversas de seu desenvolvimento— procedimento emprestado do nouveau roman francês, mediado talvez pelas narrativas interativas de Júlio Cortázar. Osman Lins o aplica, aqui, de modo a que o desnudamento do arcabouço narrativo do conto não impossibilite a continuidade da sua tensão narrativa, mantida por certa crueldade erótica e pela expectativa do desenlace da missão do pistoleiro. 14
APRESENTAÇÃO
Outro aspecto interessante do modo narrativo de Osman Lins é que, ao situar a ação em cidades históricas de Minas Gerais (Congonhas, Ouro Preto, Tiradentes), usualmente associadas à produção de obras ditas “barrocas”, o autor também cria, de modo pertinente, descrições que emulam artifícios recorrentes nesse estilo artístico, como o efeito de trompe l´oeil e a síntese das diversas artes num único objeto. Assim, várias passagens do conto mesclam as ações das personagens ao cenário que está pintado nos quadros, desenhado nas tapeçarias, esculpido nas esculturas, erigido nas fachadas, de modo a confundir irreparavelmente a realidade narrada com a visão distorcida do narrador. Amplificado, o procedimento embaralha irreparavelmente as idéias de arte e de real, sendo ambos construídos, ambos vertiginosos e enganadores. Esse traço geral da narrativa associa-se ainda a dois procedimentos ostensivos empregados no conto. De um lado, está a descrição visionária das passagens que se referem à memória, que nunca é linear ou cronológica, mas escavada por associações livres, quase surrealistas, quase psicodélicas. De outro, e isto talvez seja o mais surpreendente, porque é também o mais tradicional possível nas narrativas regionalistas brasileiras, o eixo do conto se sustenta sobre um típico “causo” sertanejo, uma dessas histórias anônimas, de terror excitante, a respeito do pistoleiro profissional contratado para executar em alguém, até então insuspeito, a sentença de morte proferida, quiçá, por algum poderoso melindrado. Não é alguém assim, entretanto, que se revela sob o poder oculto a controlar o desfecho da história. O que surge por trás da sentença de morte é uma estrutura de mise en abîme, que produz uma indistinção progressiva entre o carrasco e suas vítimas, o 15
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“eu” e o “outro”, sob o arbítrio do autor que exibe suas hesitações. A composição do conto concorre então como principal matéria da narrativa, ou talvez seja mais justo dizer que concorre com a matéria mais tradicional do ajuste de contas ou do encontro marcado. Dalton Trevisan, ao lado de Rubem Fonseca, é a principal referência do conto contemporâneo no Brasil, desde ao menos o início dos anos 70, quando sua obra, que há anos já era confeccionada e distribuída artesanalmente pelo autor na área de Curitiba, torna-se então nacionalmente conhecida. A sua literatura, como a de Nelson Rodrigues em relação aos subúrbios cariocas, está vinculada à criação de caracteres extremos, isto é, arquetípicos, atemporais, e, ao mesmo tempo, marcadamente locais e datados. A articulação é possível por meio de uma estrutura melodramática na qual os lugares comuns da narrativa romântica e realista são retomados como paródia e, mais ainda, na qual a grandeza de seus temas universais vai sendo diminuída até o mais cruamente provinciano e mesquinho. Dalton Trevisan mostra extraordinário talento para descobrir o sórdido na ação mais corriqueira e, por isso mesmo, para revelá-lo na mesma área semântica do pitoresco, do típico e do doméstico. Mais precisamente, a sua especialidade é o patetismo cruel que se pode extrair da vida familiar, boçal e provinciana. Vale dizer, o tipo de miséria exsudada na tortura do casamento, nas seduções baratas de profissionais da sedução, na sexualidade recalcada, no falso moralismo, nas taras sistemáticas, etc. A fórmula gera uma personagem exemplar da criação de Trevisan, o vampiro curitibano. Misto de malandragem e 16
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vulgaridade, de esperteza matuta e ignorância invencível, a sua marca é a perversidade, o gosto— em tudo contrário ao gosto —de se alimentar dos clichês a que a mesquinhez da vida acostuma. Prêmio da virgindade roubado pelo incontornável primo violador; resgate impossível da mulher desonrada; murmuração da cidade cuja pacatez solicita escândalo, sangue e morte violenta; contemplação mórbida do suave e seguro crescimento dos tumores; memória ressentida de velhos; sapato marrom de biqueira branca, bala de mel, mágica de baralho, cueca de seda, matinê de domingo, papel de bala azedinha, motociclista de circo, tais são os lugares onde bebe o vampiro. Todo esse tipo de coisa extinta e empalhada, ordinária e abjeta, sobretudo porque repassada de ternura. Do ponto de vista das ações, os contos de Dalton Trevisan raramente exigem mais do que a da imaginação fermentada na impotência. As suas personagens pequenas e sem capacidade de vingança do desdém sofrido ou fantasiado recalcam a ação em ódio contumaz e ressentido — ódio que (aristotelicamente) já não é paixão que se possa fartar na vingança pessoal e determinada contra alguém, mas que se dissemina fantasticamente pela vontade de destruição do gênero inteiro até tocar a loucura. Nessa mecânica afetiva baixa explorada por Trevisan, o detonador da vingança adiada em ódio e insânia pode ser, por exemplo, a imaginação desvairada dos ciúmes. Um azedume inoculado sutilmente — um beijo do irmão do noivo na noiva afogueada—que, de uma hora para outra, se metamorfoseia no monstro a que nada sacia, mas que garante vida lenta e dolorosa. Esse mesmo desejo de vingança sem escape se revela também no ódio implacável aos animais, que se entregam passivelmente à tortura do 17
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dono, bem como no espelho do relógio parado, que assegura ao lar a sua exclusão dos eventos, da história, da vida. Neste cenário claustrofóbico, de barraco de duas peças, não há saída, a não ser a morte. De modo que os seres desenganados e devotados à morte são os que com mais dignidade são representados aqui. Como os bêbados terminais de rua que, com a sabedoria dos elefantes, tomam o caminho revelado do cemitério. Apenas nessa hora ressuma uma pálida dignidade de vida, que, entretanto, não dura. Desde os anos 70, ao menos, Rubem Fonseca é o mais conhecido, lido e imitado contista brasileiro. Talvez seja o único autor na Literatura Brasileira que imprimiu real interesse ao gênero do romance policial, do qual forneceu o modelo mais emulado até hoje no país, sem que se produzisse, entretanto, nada próximo em qualidade. O próprio autor, que, ao longo de sua produção, evolui da narrativa brutalista, seca, para o esquemático e programaticamente escandaloso, parece ter perdido a mão na feitura dos contos, confundindo-os com roteiros cinematográficos ou com crônicas jornalísticas mais ou menos apelativas. Curiosamente, o mesmo trajeto, não muito feliz, deu-se com aquele que, como disse antes, foi o seu único verdadeiro competidor no Brasil em matéria de êxito crítico e popular no gênero do conto: Dalton Trevisan. Também este, ao repisar as mesmas fórmulas que o fizeram excelente, tendeu a reduzir a sua narrativa a traços mínimos, mas não àqueles mais distintivos de seu núcleo amargo, único, e sim aos tiques mais pitorescos, aproximando-a de sketches de sitcom. Este aspecto cronístico, aliás, de relato de acontecimento ligeiro com fixação 18
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— e dispersão — em detalhes anedóticos, talvez seja a grande praga da produção brasileira do gênero nos últimos 30 anos, que se mostra incapaz de sustentar a tensão, o nervo central que faz a força do conto. Nesta antologia, porém, trata-se de representar o formidável narrador que Rubem Fonseca revelava ser nos anos 60 e 70. Os contos aqui apresentados dão uma amostra de suas melhores virtudes de contista: a construção de um narrador boçalizado ou indiferente, que parece alienar-se de todo afeto em favor de atividades brutas, maquinais ou descabeçadas, mas que, ao mesmo tempo, sob uma capa soturna, carregada de silêncios, deixa ver a iminência de uma explosão de dor e ódio mal recalcados. O vocabulário técnico das lutas-livres e quebras-de-braço, dos treinos nos ginásios de halterofilismo do centro (muito antes de que estes se tornassem academias para moças de bairro nobre), bem como os idiotismos dos relatórios burocráticos alterna-se, sem hierarquia, com a composição de cenas de amor canhestras, incompletas, e dos gestos maquinais na sala de jantar e TV. Desse modo, Rubem Fonseca constrói, com paradoxal elegância, com corte rigoroso da frase, uma imagem de mundo irremediavelmente ordinária e perversa. O relato alheado e frio deixa transparecer um tremendo esforço de contenção do pesar, da dor da inadaptação à vida. Tanto maior a frieza da narrativa, tanto mais evidencia a catástrofe, o desastre, a degradação. Nada aqui tem a ver, portanto, com o velho parnasiano que empesteia a prosa brasileira; nada a ver também com nenhum maneirismo afrancesado e reflexivo; nada a ver enfim com a literatura denuncista que, por conta da oposição à ditadura militar 19
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da maior parte do período, ganhava rapidamente, em geral abusivamente, status de boa literatura. Pode-se dizer também que Rubem Fonseca tornou-se mestre em obter o efeito de um qualquer lirismo que, entretanto, só existe quando gerado em concomitância com o sórdido. A ternura que resta está definitivamente lesada por um desastre iniciado no illo tempore e que, agora, apenas aguarda o tempo de seu anúncio espetacular, como surto de dor e ira. Até lá, tudo o que ocorre é conversa fiada, tempo que escoa a condensar a explosão iminente, que, quando ocorre, se dá sempre de forma teatral, em proporções amplificadas de violência, sexo e sangue. Por vezes, alguma nostalgia existe, nos relatos, como fantasia de um dia perfeito, no qual a vida simples se deposita sobre gestos puros, sem telos fúnebre a repassar os eventos de dor. Nessas ocasiões, algum sentimentalismo breve se derrama sobre o relato factual, cronológico, inexorável. Outras vezes, queda resumido num dito sentencioso, numa máxima de ocasião, que, por isso mesmo, diz mais respeito ao moral, à atitude na hora da ação, do que à moral, no sentido ético. Aliás, quando tudo é apenas sinal do desfecho atroz que se aproxima, a idéia de ética inexiste nos contos: quando muito aparece como citação, ornamento e, portanto, como cinismo. Especialmente notável nos melhores contos de Rubem Fonseca é a falta de solidariedade em todas as relações pessoais, e ainda mais nas da multidão. Muito longe dos relatos de remissão coletiva, como os de Guimarães Rosa, por exemplo, nos quais a multidão sempre sabe ou adivinha o que cada um, em separado, desconhece, os contos de Rubem Fonseca mostram mais similitude com os juízos aristocráticos a propósito da canalha. Nos contos, nada 20
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pode ser mais volúvel e sem caráter do que a multidão, que age sempre covardemente, como massa caprichosa dominada pelos piores instintos —, ou, pensando bem, por um único instinto: menos o de sobrevivência que o de destruição. A frieza dos narradores dos contos, como no caso de “Relato de ocorrência”, pode se impessoalizar até tomar a forma de um relatório de ocorrência policial: um mero formulário burocrático, notarial, que não descreve nada além do vazio intrasponível entre os eventos brutais e a compreensão deles. Rancor pessoal, ódio social e indiferença burocrática são diferentes emanações da realidade degradada. Curiosamente, quanto mais neutra é a máquina enunciativa, mais cômico, e mesmo nonsense, é o efeito narrativo. A idéia de nonsense articula-se com a de niilismo. Nos contos de Rubem Fonseca, se os marginais são sempre toscos e violentos, os ricos são cruéis, a classe média é alienada e inútil. Em comum, têm o gosto da novela, a literatura comum nacional, e o tesão do crime — seja ele notícia, como no caso da classe média; hábito ou forma de vida, como no dos marginais; esporte e mesmo arte, no caso dos ricos e dos intelectuais. A rigor, não há elite: só ralé humana. O simbolismo básico, anotado pelo escritor, é o produzido por pessoas se matando mutuamente. O que sempre me impressionou nos contos de Samuel Rawet, acima mesmo de quaisquer outras virtudes de sua literatura bem particular, são as aberturas deles: os seus primeiros estonteantes parágrafos. Ninguém, no Brasil, tem inícios como os dele. Começa-se a ler e, ao fim da primeira frase, já se descobre embarcado numa vertigem, 21
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na qual simetrias estranhas invadem e perturbam as referências concretas do enunciado. Aberturas in medias res, que misturam movimentos de coisas e elementos geométricos. Há uma insinuação cubista quase, mas as descrições são dramáticas demais para que a observação formal analítica se desenvolva: antes, as aberturas se detêm e concentram num tom denso, no qual o leitor se descobre a meio. Mal começada a leitura, já não há como recusar o corte alucinatório ou paranóico da descrição, com seu bloco de sombras em expansão. Aos poucos, a vertigem se acalma, ou melhor, descobre um plano básico de estabilidade. As personagens se distinguem, definem, os cenários são bem determinados: tais ruas do centro ou do subúrbio, os itinerários dos ônibus, um café, uma varanda. Dos movimentos distorcidos iniciais resta, entretanto, um traço: uma espécie de torpor que imprime ao narrador de primeira pessoa ou à personagem principal uma ineludível separação de todos os grupos a que poderiam pertencer. Família, amigos, ambientes ruidosos do bar, conversas com a namorada… tudo é estrangeiro e, enfim, incomunicável. A vertigem, portanto, se desfaz em existencialismo—mas existencialismo não programático, sincero. Muitas vezes, a dissipação da vertigem abriga alguma explicação sociológica, de distância social ou preconceito de raça; mas invariavelmente a explicação é menos palpável do que o efeito de torpor que se instala na narrativa. Como entendê-lo? A sua natureza é meditabunda, o devaneio é sua outra face. Espaços determinados, particulares, abrem-se imprevistamente para longes terras da memória. Duas ou mais narrativas simultâneas se sustentam no fio do enunciado, enquanto o presente perde sentido veloz22
APRESENTAÇÃO
mente. Algum incidente simples, uma morte súbita, gera, sem alarde, uma peripécia total, que empurra as ações não no sentido contrário do que vinham, mas para a evidência da falta de consistência de tudo o que havia de mais seguro. As personagens nada podem contra essas inversões abstrusas: são tímidas, hesitam, não formam idéias completas das operações nas quais estão envolvidas. O sentimento de pequenez, sim, é ostensivo, como o torpor. Ambos evidenciam que se rompeu definitivamente o fio da ligação com os outros, o que também se projeta como ruptura consigo próprio. O que se segue daí é um tipo de narrativa cujo protagonista admite sempre um duplo violento e hostil. Nos gestos e hábitos mais corriqueiros— como quando a mulher, em “Uma velha história de maçãs”, serve a sopa ao marido e vai comer, silenciosa, no outro cômodo — a descrição minuciosa dos gestos automáticos produz o estranhamento do quotidiano inteiro. A narrativa, neste ponto, é a construção sistemática da alienação: os músculos do corpo se autonomizam e são observados de fora, como formas e ritmos estranhos, por vezes com absoluta indiferença. No mesmo movimento de evidência dos processos de alheamento de si próprio, a narrativa de Rawet é especialmente atenta à perda progressiva das escolhas e da idéia de futuro, até a descoberta de que real é apenas a coisa sórdida e bruta. Mantém-se algum sentimento nostálgico ou romanticamente niilista na hipótese de que, na loucura, talvez, residisse ainda a grandeza perdida, mas é um instante apenas: a tendência dos contos é reconhecer que a loucura não se sustenta na grandeza que inventa. O desengano, nesse caso, vem, em geral, na forma do fluxo de consciência, que pode produzir-se como vozes imperativas 23
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e autoritárias que ocupam o lugar da falta de ânimo, do corpo exausto, ou então como torrente incontida de lembranças. Nos dois casos, o seu efeito último é devastador, como perda do sentido do diálogo, inimizade consigo mesmo, horror à vida. Também cabe dizer que, curiosamente, o pathos existencialista e paranóico dos contos de Rawet estrutura-se sobre elementos minimalistas, beckettianos, que, por vezes, suscitam até alguma leitura alegórica, tamanha a redução de seus elementos aos mínimos necessários e, mesmo, aos esboços do necessário. De certa maneira, como em “A Luta”, essa estrutura minimalista se reduz à agonia de dois contendores cara a cara até o ponto de paranóia em que um e outro são o mesmo. Hilda Hilst, que começa a ter sua obra editada em Portugal, escreveu Pequenos Discursos. E um Grande, em 1977, de onde foram extraídos os três textos constantes deste volume. Não é o seu livro mais conhecido, nem o mais celebrado criticamente, mas do ponto de vista do impacto de sua obra em minha memória — desta vez, temo dizer, estritamente pessoal—foi o que primeiro imaginei relacionar para esta antologia de contos. Num momento imediatamente posterior à derrota da luta armada contra a ditadura militar, a qual, por sua vez, começava a desgastar-se publicamente e começava a buscar alguma institucionalização, os contos desse pequeno volume declaravam que as batalhas mais decisivas, os problemas mais cruciais ainda estavam longe de ser enfrentados por quaisquer dos lados da trincheira. Nesse âmbito, Pequenos Discursos. E um grande, como conjunto, constitui um vigoroso grupo de ensaios políticos 24
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quase, embora produzidos em torno de questões diferentes de tudo o que se escrevia em termos de política e de literatura política no Brasil, à época. Os contos, com maior ou menor nitidez, guardam traços marcantes do gênero deliberativo, isto é, aquele cujo foco está posto na decisão urgente a tomar-se face ao futuro que se apresenta. Eles querem discutir, por exemplo, as condições de legitimidade de uma escrita radicalmente pessoal e livre numa época de tirania e, portanto, de injustiça sistemática e irreparável, na qual apenas a denúncia da opressão ou das causas da revolta social parece, no pensamento usual de esquerda, constituir-se como tema ético ou responsável. Também querem saber, por exemplo, se há direito na construção individual de uma imagem de Bem, quando a situação coletiva parece absorvê-la inteiramente, em termos afetivos e morais. Na forma extrema dessa perplexidade, os contos de Hilda Hilst perguntam se está ainda no âmbito do que se reconhece como humano ser-se só e absolutamente inútil para qualquer causa, como a personagem que estabelece morada no fundo de um poço seco, forrado de excrementos, a ouvir vozes interiores vindas não se sabe de onde. Querem saber, portanto, se é punível com o desprezo universal quem consome o tempo da própria vida com inutilidades ou incompreensibilidades. E fazem questão de pagar a conta de sua dívida, se não for legítimo ou ético dedicar-se a um amor insignificante, o único que os contos podem compreender. Admitem essas narrativas ensaísticas que, se fosse possível escolher, talvez escolhessem a igualdade, a segurança do comum, o tema da poesia mais útil à ocasião, mas o problema subseqüente é que não conseguem convencer-se de que essa escolha pode realmente ser feita. Se a escrita e a literatura não são antes um vício da diferença em vez de 25
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um programa de resistência da comunidade. Ou melhor: se o programa de resistência da comunidade pode ser efetivamente empreendido com o expurgo da singularidade irredutível de seus membros. Neste ponto, o discurso político admite também uma linha argumentativa desenvolvida a contrapelo, que está manifesta nas narrativas nas quais personagens de classe média bem assentada, conservadora e atinente à ordem, entregam-se a um amour fou tardio, esquecendo-se de todos os tabus ou obrigações de grupo, da família à nação. Tais personagens terminam pagando o preço das relações socialmente intoleráveis com patetismo, humilhação e morte brutais. Há ética em ser tomado por uma tal paixão? Há moral ajustada ao desejo? Existe algo mais improvável do que propor-se um arrebatamento desse tipo como uma política, seja ela qual for, mesmo uma política de resistência da paixão ou do desejo? Numa visada mais abrangente das questões encenadas em Pequenos Discursos, cabe perguntar: é legítimo distinguir-se tão radicalmente quando a distinção fere o senso comum da vida socialmente ajustada, o destino convenientemente acomodado à esquerda ou à direita? Uma vez aqui, parece justo dizer que, nesses livros, legitimidade e ética não bastam para pautar uma existência cuja destinação está basicamente fora de controle. Política, igualmente, não basta. Para Hilda, “literatura” ou “paixão” apenas podem dar nome a esse descontrole, desde que não chegue a ser natural, e nem mesmo um programa de direitos da humanidade. A literatura de João Antônio nunca foi facilmente reconhecida no Brasil justamente por aqueles de quem 26
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podia esperar simpatia: os grupos mais politizados, aliados potenciais na formulação de um discurso de crítica social. A razão não é difícil de compreender: qualquer coisa soava populista e sentimental nas suas crônicas do submundo. Hoje, se a crítica permanece válida, João Antônio está já perfeitamente absorvido como autor que forneceu a matriz de um tipo de narrativa de vida fora-da-lei, muito imitada nos últimos anos. É certo, entretanto, que a sua geografia básica, entre Lapa e Copacabana, nas zonas decadentes da cidade, ostenta um evidente paradoxo temporal. Ao acompanhar a perambulação de personagens miseráveis, lúmpens, em busca de trocados para a sobrevivência, a narrativa invariavelmente faz remontar a imaginação para uma mítica Época de Ouro da malandragem, na qual, dotados de rigoroso código moral, tendo como arma eficaz mais a astúcia que a violência, os mais engenhosos acabavam recompensados com vida boa e aventurosa, mesmo se nem sempre com final feliz. Ou seja, há em cada conto de João Antônio um verdadeiro elogio do malandro, de matriz carioca, que hoje não é menos popular do que antes. Esse triste traço de encômio subdesenvolvido impregna não apenas a literatura ou a música popular brasileiras, mas a própria mentalidade oferecida e celebrada difusamente como identidade nacional. Aparentemente, no Brasil, isso não tem cura. Tornando, entretanto, à estrutura específica do conto de João Antônio, nota-se que as narrativas são geralmente em primeira pessoa, conduzidas por personagens da rua e da noite, cujo fluxo de consciência, alterado pelo álcool, pelas drogas, ou pelo sentimento machucado, ostente profusamente gírias da malandragem, ditos populares, frases 27
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curtas e narrativas simultâneas, numa sintaxe saborosa, quando não ornamental e amaneirada. Curiosamente, é comedido no calão. O tom predominante é aquele da malandragem respeitosa e conhecedora dos limites da baixaria. Vige nas histórias uma espécie de moral antiga, atinente às regras daquela Idade de Ouro da malandragem, articulada ao imperativo da valentia, da réplica sutil, do domínio de si na cara neutra e disfarçada. O efeito geral é anedótico, pitoresco, melodramático, com personagens e situações sentimentais típicas. Brutamontes sensíveis, maltrados pela dor de cotovelo; contos do vigário; bate-boca gabola ou galantaria chinfrim; bares e boates, que são prostíbulos; camburões de polícia, vestíbulos da delegacia; o lugar e o tempo nenhum entre o fim da farra e o início do expediente: esta a geografia espiritual dos melodramas de João Antônio. No conjunto, predomina certo romantismo da boca do lixo, com sua poesia de bar e sabedoria de dito popular. Partes inteiras da narrativa concentram-se em aforismos e sentenças, vazadas sempre no léxico peculiar da vadiagem, que, para o autor, compreende um verdadeiro código — lingüístico, moral, filosófico — oculto sob a incultura. Desse modo, não é impróprio conceber a sua literatura como uma espécie de colunismo social da baixa sociedade. O problema é que o valor desse tipo de literatura se baseia na possibilidade de o narrador apresentar-se legitimamente como testemunho de uma forma de vida. Isto significa que ela está dependente da sinceridade do relato e da possibilidade de a linguagem do conto poder falar pelos que não falam nele. A despeito de João Antônio ter sido ele próprio um freqüentador dos ambientes que des28
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creve, nem sempre o que se dá a ler, de forma estilizada e sentimental, parece uma forma adequada de conceber a violência desmedida das guerras urbanas travadas no Brasil. Está mais para fantasia urbana, fábula moral e mesmo para comédia de costume, do que para narrativa realista, como pretendia ser. Assim repensada, creio também que possa ser melhor apreciada, pois, em termos realistas, já não é tão fácil engolir a pílula do romantismo malandro, como lugar de resistência da vida pura em meio à sociedade institucional desumana, assim como não parece fácil traduzir o rancor social e o desejo de vingança na área semântica da carência afetiva. De todos os contistas aqui relacionados, Sérgio Sant´Anna é o menos especializado num único tema ou estilo, e o que alcança maior amplitude ou variedade de registros discursivos e situações narradas— a despeito do mencionado ecletismo de Osman Lins. No entanto, se tivesse de apontar um único traço distintivo de sua obra, indicaria a acuidade e o fôlego analítico que, por vezes, tomam forma deliberadamente ensaística, narrativamente fragmentária e desestruturada. O diapasão analítico afina tanto narrativas mais confessionais, centradas na memória pessoal, quanto aquelas mais próximas de situações típicas, ou de costume: em ambas se aplica com êxito. Assim, em “O albergue”, a lógica analítica se exerce sobre as personagens de um quarto de cortiço, cujo fechamento, absolutizado pela narrativa, suscita mesmo uma interpretação alegórica, extensiva à sociedade e à vida humana, nos termos absurdos de sua matriz kafkiana. O enclausuramento, aí, também significa o isolamento de um campo experimental mínimo, que é examinado pelo 29
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narrador de maneira minuciosa e mórbida, uma vez que as situações isoladas revelam, em geral, um movimento de acentuada decadência—que surge também, com diferentes nuanças, em Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, João Antônio e Samuel Rawet. O extraordinário é que a análise, no caso, não implica perda de tensão ou desinteresse pela narrativa, ao contrário: é a análise a principal linha de força a tensionar o enunciado dos fatos, que, de outro modo, à distância, seguramente passariam desapercebidos no caos urbano habitual das grandes cidades ou na desordem afetiva, igualmente habitual, de seus habitantes. A operação analítica cerrada que conduz a narração, entretanto, não tende a reforçar—desta vez, ao contrário de Kafka — a potência alegórica ou hermenêutica das situações, mas o próprio caminho, errático, casual e muitas vezes dispersivo, tomado pela análise. Ao fim do caminho não se tem bem estabelecida uma lógica, mesmo do absurdo, ainda que o raciocínio não se afrouxe. Ao fim dele, fica-se com uma lembrança viva da ocorrência de certo caminho particular, apenas isso, cujas peças nem se ajustam bem, nem se contradizem de modo lógico. Fica-se, para usar uma imagem especialmente elucidativa de “O Submarino Alemão”, com um mapa flutuante em meio a um monte de cadáveres trazidos pela memória. Mas para que serve um mapa flutuante? A que pode levar a sua interpretação? Apenas à constatação de sua própria flutuação insólita e eventualmente dos picos afetivos que a balizam. O desfecho a que levam os contos é, por isso mesmo, invariavelmente deceptivo, de tom menor, de acomodação à perda de significação do particular, mais do que à compreensão da falta de sentido do universal. Quer dizer, 30
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não atinge o trágico, raramente atinge o dramático. Quando se chega ao fim, o fim já havia sido pouco a pouco destrinçado e estava lá, apenas esperando para se declarar, sem peripécia: são rasteiros os limites daquela existência, conquanto única. A sua forma de vida estreita, no melhor dos casos, alcança avivar uma lembrança aparentemente perdida do tempo de menino, ou de momentos intensamente afetivos, que parecem romper com o fechamento da vida banal. Uma tal literatura não se pensa como capaz de produzir iluminação ou consciência do verdadeiro estado das coisas; ela é mais um gesto de conseqüência, ou de reação, isto é, um movimento a mais de adaptação —talvez deva dizer animal, ou vital, mais que humana— às mais estreitas limitações, que condicionam e estruturam a existência. Nesse aspecto, nos contos de Sérgio Sant´Anna, o seu próprio espaço raciocinado de composição se entende como parte do continuum de vida — não apenas prosaica ou baixa, mas menor do que qualquer valor: trata-se de vida orgânica, mínima, simples, a respirar não um projeto, não um propósito, mas o seu imperativo orgânico de adaptação à sobrevivência e ao vazio que se condensa progressivamente nela. Evandro Affonso Ferreira é o caso mais bem sucedido de efetuação de um sub-gênero do conto, bastante difundido no Brasil, no início deste novo século: o miniconto. Embora Dalton Trevisan já o explorasse pioneiramente nos anos 70, ele o fazia sobretudo como experimentação minimalista que impunha cortes sucessivos à narrativa antes extensa. Esta se reduzia então a fórmulas indicativas de situações-clichê de seus contos, o que lhe dava nítido 31
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acento auto-referencial. Com Evandro Ferreira, a composição é bem diferente e tem dois pontos certeiros onde apoiar o seu eixo. O primeiro deles está na forma precisa de compor a disposição ou seqüência das ações. O espaço do conto avança apenas o estritamente necessário para produzir um tipo bem particular de peripécia e reconhecimento— não trágicos, mas cômicos ou melodramáticos—no desfecho da ação. Ambos se obtêm por meio de um monólogo ou diálogo interiorizado, cujo tempo do enunciado avança até o presente da enunciação e, uma vez aí, coincide com a revelação da identidade imprevista do protagonista do conto ou da situação esdrúxula em que se encontra. Assim a fala de uma mulher sobre a sua antiga beleza se descobre como esclerose da mãe que já não reconhece o próprio filho; o monólogo saudoso de um viúvo se desmascara como a alegria vingativa de urinar no túmulo da consorte autoritária; as lembranças do hospício revelam o duro ofício de Papai Noel, e assim por diante. Enfim, todo conto traz consigo uma surpresa e uma reviravolta em relação a suas personagens ou circunstâncias. O segundo ponto em que se apóia a literatura de Evandro A. Ferreira, ainda mais decisivo que o anterior, é a sua linguagem peculiar. Desde Guimarães Rosa não se via um escritor aplicado em criar um vocabulário e uma sintaxe tão característicos, no caso, o grogotês — que inclusive se mantém também em todos os seus romances, e mesmo na sua correspondência privada. Apesar da aparência de neologismo, todo o léxico grogotês está dicionarizado; a sintaxe é única, calcada maciçamente em trejeitos orais, expressões interjetivas, redundâncias e anafóricos. O efeito colorido, pitoresco, do conjunto favo32
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rece, em especial, a produção de uma linguagem de caráter afetivo, sentimental, mas também ensimesmado e resmungão — numa palavra, sistemático, no sentido regional mineiro do termo, isto é, a meio caminho entre o lunático, o obsessivo e o caduco. O grogotês, por isso mesmo, é linguagem sempre simpática à dor humana, mediação piedosa entre o sofrimento dos loucos da rua ou do hospício e a linguagem neutra e exterior da normalidade, forma mais alarmante de loucura. Nas inversões próprias do seu jargão, por vezes, um nonsense rasgado se instala: razão vira adivinha, ciência vira palavras-cruzadas, sofrimento desvairado se identifica com sublime parnasiano, poesia se confunde com letras de música brega, e tudo, bem somado, é literatura, entendida como fingimento da loucura que efetivamente se tem. No conjunto, nos contos de Evandro A. Ferreira, tudo parece sintoma da falta de medida ridícula, mas ridículo comovente, porque mede a fraqueza e a derrota de todos. A julgar por eles, a loucura é o que melhor explica a forma do mundo. E a incongruência da gente é sempre mezinha de desengano face às ilusões desgraçadas de felicidade. Uma nota final, apenas para reforçar o que ficou dito no início: o conjunto de contos e autores aqui selecionados não resultou de uma leitura extensiva dos contos produzidos contemporaneamente no Brasil, mas de um conjunto top of head do gênero, em seu período de maior impacto no Brasil. Nesse aspecto, “contemporâneo”, aqui, se reduz drasticamente a “anos 60 e 70”. Isso quer dizer, especificamente, que o material que o leitor português recebe em suas mãos, hoje, remete a um mesmo período 33
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de apogeu do gênero, tal como se consolidou no Brasil, mais do que a um conjunto de obras isoladas, individuais que satisfaçam um juízo estético formulado no ano de 2006. Na prática, quase me obriguei a renunciar a um juízo, em favor da memória de algumas balizas da vida literária daqueles anos. Há perda notável nessa escolha, ao menos no que respeita a leituras mais diversificadas de obras de qualidade. As vantagens, porém, me pareceram maiores, no âmbito de uma apresentação a um público estrangeiro: compõe-se, aqui, um grupo de obras que dialoga ostensivamente entre si; que vive e pensa, sob diferentes ângulos, questões afins; que participa e produz parte significativa do debate cultural de uma época na qual este foi excepcionalmente profícuo. Sobretudo, me pareceu interessante refazer ou retomar um conjunto no qual os diferentes contos contextualizam-se uns aos outros. Ao mesmo tempo, dessa maneira, pode-se conhecer, com profundidade, os parâmetros de criação dos autores do gênero mais decisivos culturalmente, os quais, de outra forma, ficariam diluídos num leque muito mais aberto de autores. A esperança, em todo caso, é que o leitor, por meio desse grupo relativamente coeso entre si, aqui privilegiado, se entusiasme a ponto de procurar, por si próprio, outros autores e obras excelentes. A. P.
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J. J. [José Jacintho Pereira] VEIGA nasceu em Corumbá de Goiás (GO), em 1915. Cursou Humanidades no Liceu de Goiás. Durante parte da década de 40 viveu na Inglaterra, trabalhando na BBC de Londres. No retorno ao Brasil, passa a viver no Rio de Janeiro, trabalhando como jornalista. Torna-se responsável pelo sector editorial da Fundação Getúlio Vargas. Teve actividade regular de tradutor. Foi vencedor, em 1997, do Prémio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Morreu no Rio de Janeiro, em 1999. O conto antologiado pertence à primeira colectânea de contos do autor, Os cavalinhos de Platiplanto (1959, seguindo o texto da 18.ª edição). Outras obras: A hora dos ruminantes (1966); A estranha máquina extraviada (1968); Sombras de reis barbudos (1972); Os pecados da tribo (1976); O professor Burrim e as quatro calamidades (1978); De jogos e festas (1980); Aquele mundo de Vasabarros (1982); Torvelinho dia e noite (1985); Tajá e sua gente (1986); A casca da serpente (1989); O risonho cavalo do príncipe (1992); O relógio Belisário (1995); Objetos turbulentos (1997).
A USINA ATRÁS DO MORRO Lembro-me quando eles chegaram. Vieram no caminhão de Geraldo Magela, trouxeram uma infinidade de caixotes, malas, instrumentos, fogareiros e lampiões, e se hospedaram na pensão de D. Elisa. Os volumes ficaram muito tempo no corredor, cobertos com uma lona verde, empatando a passagem. De manhãzinha saíam os dois, ela de culote e botas e camisa com abotoadura nos punhos, só se via que era mulher por causa do cabelo comprido aparecendo por debaixo do chapéu; ele também de botas e blusa cáqui de soldado, levava uma carabina e uma caixa de madeira com alça, que revezavam no transporte. Passavam o dia inteiro fora e voltavam à tardinha, às vezes já com o escuro. Na pensão, depois do jantar, mandavam buscar cerveja e trancavam-se no quarto até altas horas. D. Elisa olhou pelo buraco da fechadura e disse que eles ficavam bebendo, rabiscando papel e discutindo numa língua que ninguém entendia. Todo mundo na cidade andava animado com a presença deles, dizia-se que eram mineralogistas e que tinham vindo fazer estudos para montar uma fábrica e dar trabalho para muita gente, houve até quem fizesse planos para o dinheiro que iria ganhar na fábrica; mas o tempo passava e nada de fábrica, eram só aqueles passeios todos os dias 37
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pelos campos, pelos morros, pela beira do rio. Que queriam eles, que faziam afinal? Encontrando-os um dia debruçados na grade da ponte, apontando qualquer coisa na pedreira lá embaixo, meu pai cumprimentou-os e puxou conversa; eles olharam-no desconfiados, viraram as costas e foram embora. Meu pai achou que talvez eles não entendessem a língua, mas depois vimos que a explicação não servia: quando encontraram o preto Demoste de volta do pasto com a mula do padre eles conversaram com ele e perguntaram se lobeira era fruta de comer. E como poderiam viver na pensão se não conhecessem um pouco da língua? Por menos que falassem, tinham que falar alguma coisa. O que me preocupou desde o início foi eles nunca rirem. Entravam e saíam da pensão de cara amarrada, e o máximo que concediam a D. Elisa, só a ela, era um cumprimento mudo, batendo a cabeça como lagartixas. Aprendi com minha vó que gente que ri demais, e gente que nunca ri, dos primeiros queira paz, dos segundos desconfie; assim, eu tinha uma boa razão para ficar desconfiado. Com o tempo, e vendo que a tal fábrica não aparecia — e não sendo possível indagar diretamente, porque eles não aceitavam conversa com ninguém — cada um foi se acostumando com aquela gente esquisita e voltando a suas obrigações, mas sem perdê-los de vista. Não sabendo o que eles faziam ou tramavam no sigilo de seu quarto ou no mistério de suas excursões, tínhamos medo que o resultado, quando viesse, pudesse não ser bom. Vivíamos em permanente sobressalto. Meu pai pensou em formar uma comissão de vigilância, consultou uns e outros, chegaram a fazer uma reunião na chácara de Seu Aurélio Gomes, do 38
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outro lado do rio, mas Padre Santana pediu que não continuassem. Achava ele que a vigilância ativa seria um erro perigoso; supondo-se que os tais descobrissem que estava havendo articulações contra eles, o que seria de nós que nada sabíamos de seus planos? Era melhor esperar. Naquele dia mesmo ele ia iniciar uma novena particular, para não chamar atenção, e esperava que o maior número possível de pessoas participasse das preces. Na sua opinião, essa era a providência mais acertada no momento. Estêvão Carapina achou que um bom passo seria interceptar as cartas deles e lê-las antes de serem entregues, mas isso só podia ser feito com a ajuda do agente André Góis. Consultado, André ficou cheio de escrúpulos, disse que o sigilo da correspondência estava garantido na Constituição, e que um agente do correio seria a última pessoa a violar esse sigilo; e para matar de vez a sugestão falou em duas dificuldades em que ninguém havia pensado: a primeira era que, nos dias de correio, só um dos dois saía em excursão, o outro ficava de sobreaviso para ir correndo à agência quando o carro do correio passasse; a segunda dificuldade era que as cartas com toda certeza vinham em língua que ninguém na cidade entenderia. Que adiantava portanto abrir as cartas? Era mais um plano que ia por água abaixo. Sem dúvida o perigo que receávamos nesses primeiros tempos era mais imaginário do que real. Não conhecendo os planos daquela gente, e não podendo estabelecer relações com eles, era natural que desconfiássemos de suas intenções e víssemos em sua simples presença uma ameaça a nossa tranqüilidade. Às vezes eu mesmo procurava explicar a conduta deles como esquisitice de estrangeiros, e lembrava-me de um alemão que apareceu na fazenda de 39
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meu avô de mochila às costas, chapéu de palha e botina cravejada. Pediu pouco e foi ficando, passava o tempo apanhando borboletas para espetar num livro, perguntava nomes de plantas e fazia desenhos delas num caderno. Um dia despediu-se e sumiu. Muito tempo depois meu avô recebeu carta dele e ficou sabendo que era um sábio famoso. Não podiam esses de agora ser sábios também? Talvez estivéssemos fantasiando e vendo perigo onde só havia inocência. Imaginem portanto o meu susto e a minha indignação com o que me aconteceu uma tarde. Eu tinha ido à pensão receber o dinheiro de uns leitões que minha mãe havia fornecido a D. Elisa e na saída aproveitei a ocasião para dar uma olhada nos caixotes empilhados no corredor. Levantei uma beirada da lona e vi que eram todos do mesmo tamanho e com os mesmos letreiros que não entendi. Ia puxando novamente a lona quando notei uma fenda em um deles, e como não passava ninguém no momento resolvi levar mais longe a minha inspeção. Abri o canivete e estava tentando alargar a fenda quando senti o corredor escurecer. Pensei que fosse a passagem de alguma nuvem, como às vezes acontece, e esperei que a claridade voltasse. Voltou mas foi uma mão pesada agarrando-me pelo pescoço e jogando-me contra a parede. O puxão foi tão forte que eu bati com a cabeça na parede e senti minar água na boca e nos olhos. Antes que a vista clareasse, um tapa na cabeça do lado esquerdo, apanhando o pescoço e a orelha, mandou-me de esguelha pelo corredor até quase a porta da rua. Apoiei-me na parede para me levantar, e um pontapé nas costelas jogou-me esparramado na calçada. Erguendo a cabeça ralada do raspão na laje, vi o homen de culote e blusa cáqui em pé na porta, 40
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com as mãos na cintura, olhando-me mais vermelho do que de natural. Com a cabeça tonta, o ouvido zumbindo e o corpo doendo em vários lugares, e o canivete perdido não sei onde, não me senti com disposição para reagir. Apanhei umas coisas caídas dos bolsos, bati o sujo da roupa e desci a rua mancando o menos que pude. Felizmente não passava ninguém por perto. Se alguém soubesse da agressão haveria de querer saber o motivo, e como poderia eu contar tudo e ainda esperar que me dessem razão? Para não chegar em casa com sinais de desordem no corpo e na roupa desci até o rio, lavei o sangue dos ralões do punho e da testa e o sujo do paletó e dos joelhos da calça, enquanto pensava um plano eficiente de vingança. Uma pedrada bem acertada na cabeça, ou uma porretada de surpresa, resolveria o meu caso. Ele não perderia por esperar. Mas eu estava enganado quando supunha que ninguém tinha visto. Em casa encontrei mamãe aflita. Meu pai tinha saído à minha procura, armado com a bengala de estoque. Fiquei sabendo então que D. Lorena costureira tinha visto tudo de sua janela do outro lado da rua e fora correndo contar à vizinha dos fundos — e a notícia espalhou-se como fogo em capim seco. Foi por isso que meu pai, ao dobrar a primeira esquina, foi cercado por um grupo de amigos que não o deixaram prosseguir. Achavam todos, e com razão, que ele não devia agir enquanto não me ouvisse. Tive então que contar tudo, mas achei bom não dizer que tinha sido apanhado escarafunchando o caixote; disse apenas que tinha dado uma palmada nele por cima da lona. 41
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Isso trouxe uma longa discussão sobre o possível conteúdo dos caixotes, e concordamos que devia ser qualquer coisa muito preciosa, ou muito delicada, a ponto de uma palmada por fora deixar o dono alarmado. Mas que coisa poderia ser que preenchesse essa ampla hipótese? Meu pai achou que estávamos perdendo tempo em aceitar a situação passivamente, enquanto em algum lugar, sabe-se lá onde, gente desconhecida podia estar trabalhando contra nós; era evidente que aqueles dois não agiam sozinhos. As cartas que recebiam e os relatórios que mandavam eram provas de que eles tinham aliados. O que devíamos fazer sem demora, propôs meu pai, era procurar o delegado ou o juiz e pedir que mandasse abrir os caixotes, devia haver alguma lei que permitisse isso. Se não fosse tomada uma providência, as coisas iriam passando de mal a pior, e um dia quando acordássemos nada mais haveria a fazer. O delegado, como sempre, estava fora caçando. O juiz foi compreensivo, mas disse que dentro da lei nada se podia fazer, e acrescentou, mais aconselhando que perguntando: — Naturalmente não vamos querer sair fora da lei, não é verdade? Quanto à agressão, se meu pai quisesse fazer uma queixa, o delegado teria que abrir inquérito — desde que houvesse testemunhas. Como a única pessoa que tinha visto parte do incidente era D. Lorena, meu pai foi o primeiro a reconhecer que contar com ela seria perder tempo. D. Lorena era dessas pessoas que têm medo até de enxotar galinha. No inquérito, na presença do agressor, ela cairia em pânico e 42
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juraria nada ter visto. Assim, a despeito de toda atividade continuávamos sem um ponto de partida. De repente a situação começou a evoluir com rapidez, e fomos percebendo para onde éramos levados. O primeiro a se passar para o outro lado foi o carpinteiro Estêvão. Estêvão tinha uma chácara do outro lado do rio, atrás do morro de Santa Bárbara. Quando os filhos chegaram à idade de escola ele alugou a chácara a Seu Marcos Vieira, escrivão aposentado, e veio morar na cidade. Seu Marcos vinha insistindo com Estêvão para vender-lhe a chácara, mas Estêvão recusava, dizia que quando os filhos estivessem mais crescidos deixaria o ofício e voltaria para a lavoura. Pois não é que Estêvão achou de vender a chácara para aqueles dois, num negócio feito em surdina? Meu pai disse que o procedimento dele não tinha explicação, nem pela lógica nem pela moral. Houve mistério na transação, isso era fora de dúvida. Apertado um dia por meu pai, Estêvão respondeu com estupidez, disse que fez o negócio porque a chácara era dele e ele não tinha tutor; depois, vendo o espanto de meu pai, seu amigo de tanto tempo, caiu em si e disse: — Vendi porque não tive outro caminho, Maneco. Não tive outro caminho. Quando meu pai insistiu por uma explicação mais positiva, ele abriu a boca para falar, mas apenas suspirou, virou as costas e foi-se embora. Seu Marcos teve que se mudar a bem dizer a toque de caixa. Quem fez a exigência foi o próprio Estêvão, que já estava servindo como uma espécie de procurador dos compradores. Seu Marcos pediu um mês de prazo, queria colher o milho e o feijão e precisava de calma para arran43
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jar uma casa em condições na cidade. Estêvão respondeu que não estava autorizado a conceder tanto tempo, que uma semana era o máximo que podia dar. Quanto às plantações, Seu Marcos não se incomodasse, os compradores indenizariam o que ele pedisse; e se Seu Marcos tivesse dificuldade em encontrar casa, poderia mudar provisoriamente para a do próprio Estêvão, que ia para a chácara ajudar os compradores nas obras. Todo mundo reprovou o procedimento dos compradores, e mais ainda o de Estêvão, que na qualidade de antigo proprietário e amigo poderia ter dito uma palavra em favor do velho Marcos; mas Estêvão era agora todo do outro lado, e nada mais se poderia esperar dele. Meu pai achou que não se devia dizer mais nada na frente de Estêvão, pois não seria de admirar que ele estivesse contratado para espião. Se quiséssemos nos organizar para a resistência, convinha não esquecer essa hipótese. No mesmo dia que Seu Marcos, triste e ressentido, arriou seus pertences na casa desocupada por Estêvão, o caminhão de Geraldo Magela roncou na subida da ponte levando os estrangeiros na boléia e o carpinteiro Estêvão atrás, em cima da carga. Ao vê-los passar em nossa porta, meu pai virou o rosto, enojado; disse que nunca vira um espetáculo mais triste, um homem de bem como Estêvão, competente no seu ofício, largar tudo para acompanhar aquela gente como menino recadeiro. Mas não deixou de ser um alívio vê-los fora da cidade. Agora podíamos novamente freqüentar a pensão de D. Elisa, conversar com os hóspedes, saber quem chegava e quem saía, sem necessidade de falar baixo nem de nos esconder. 44
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Durante muitos dias, quase um mês, não vimos aqueles dois nem tivemos notícias deles. Estêvão de vez em quando vinha à cidade, mas não sei se por influência dos patrões, ou se por vergonha, ou remorso, não conversava com ninguém; fazia o que tinha de fazer, ia ao correio apanhar a correspondência, sempre uns envelopes muito grandes, e voltava no mesmo dia. Nem passava mais por nossa porta, que seria o caminho natural; dava uma volta grande, passando pela rua de cima. Outro que também sumiu foi Geraldo Magela, parece que agora estava trabalhando só para os estrangeiros. Quando íamos pescar bem em cima no rio, ou apanhar cajus no morro, podíamos ouvir o ronco do caminhão trabalhando do outro lado. Uma vez eu e Demoste saímos escondidos para apurar o que estava se passando na chácara, mas quando chegamos na crista do morro achamos melhor não continuar. Haviam levantado uma cerca de arame em volta da chácara, muito mais alta do que as cercas comuns, e de fios mais unidos, e vimos sentinelas armadas rondando. Ficamos de voltar outro dia levando a marmota do padre, mas nem isso chegamos a fazer porque soubemos que o André gaguinho, que andara apanhando lenha do outro lado, fora alvejado com um tiro de sal na popa. Um dia correu a notícia de que o casal não estava mais na chácara, havia subido o rio à noite num barco a motor. Devia ser verdade, porque Geraldo Magela voltou a aparecer na cidade. Achamos que agora, com ele ali à disposição íamos afinal saber o que se passava na chácara de Estêvão. Geraldo sempre fora amigo de todos, deixava a meninada subir no caminhão, trazia encomendas para todo mundo, e quando o padre organizava passeios para 45
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os alunos de catecismo, fazia questão de contratar Geraldo, não aceitava oferecimento de nenhum outro, nem que tivéssemos de esperar dias quando calhava de Geraldo estar viajando. Mas não levamos muito tempo para descobrir que Geraldo também era agora do outro lado. Ele que fora trabalhador e prestativo, sempre preocupado em poupar a mãe — desde que comprara o caminhão exigiu que D. Ritinha deixasse de lavar roupa para fora — agora ficava horas no bilhar jogando ou bebendo cerveja e zombando dos pexotes. Quanto às obras que estavam sendo feitas na chácara, ele não dizia coisa com coisa. A meu pai ele disse que estavam apenas armando um pari, a outro disse que estavam instalando uma olaria. Quando Seu Marcos o interpelou com energia, ele deu uma resposta malcriada: — Vocês esperem. Vocês esperem que não demora. E ficou olhando para Seu Marcos e assoviando, uma coisa que se D. Ritinha visse haveria de chorar de desgosto. Vendo-o ali bebendo, fazendo gracinhas, faltando ao respeito com os mais velhos, e dando cada hora uma resposta, achei que ele estava apenas querendo fazer-se de importante, de sabedor de coisas misteriosas, talvez pelo desejo de imitar os patrões. Foi essa também a opinião de Padre Santana quando soube da resposta de Geraldo a Seu Marcos. Foi mais ou menos nessa época que D. Ritinha apareceu lá em casa para desabafar com mamãe. Começou rodeando, falando nas mudanças que estava havendo em toda parte, e entrou no capítulo do procedimento dos filhos quando crescem. 46
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— Para muita gente, ter filhos resulta num castigo, D. Teresa — disse ela. — Os desgostos acabam sendo maiores do que as alegrias. Vi que mamãe ficou embaraçada, com medo de dizer alguma coisa que pudesse magoar D. Ritinha. Por fim, disse vagamente: — Os antigos diziam que filho criado, trabalho dobrado. — Muito certo, D. Teresa. Veja o meu Geraldo. Um rapaz bem criado, inveja de muitas mães; de repente, esquece tudo o que eu e o pai lhe ensinamos. Mamãe procurou consolá-la dizendo que o procedimento de Geraldo devia ser resultado de uma influência passageira. A culpa era daqueles dois, que deviam estar enfiando coisas na cabeça dele; quando ela menos esperasse, ele mesmo ia abrir os olhos e arrepender-se. D. Ritinha tivesse paciência e confiasse em Deus. Aí D. Ritinha caiu no choro, disse que a culpa era dela, que o aconselhara a ir trabalhar para aquela gente. Ele não queria, mas ela insistira porque o ordenado era bom, até falara áspero com ele. Agora estava aí o resultado. De que adiantava o dinheiro sem a consideração do filho? Quando mamãe começou a chorar também, eu fiquei meio encabulado e sai sem destino. Ao passar pelo chafariz encontrei Geraldo divertindo-se com um gato que havia jogado dentro do tanque. O bichinho esgoelava e pelejava para sair, e cada vez que ia chegando à beirada Geraldo cercava e dava-lhe um papilote na orelha. Fiquei olhando, com medo de salvar o pobrezinho e ter de brigar com Geraldo. Mas quando o pobrezinho veio subindo no ponto onde eu estava, e Geraldo gritou para eu cercar, eu estendi o braço e apa47
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nhei-o pela nuca, como fazem as gatas. Pensei que Geraldo ia querer tomá-lo, mas ele apenas olhou e foi-se embora dando gargalhadas e imitando o miado do gato, parecia coisa de louco. Geraldo sabia o que estava dizendo quando mandou Seu Marcos esperar, porque um belo dia chegaram os caminhões. Chegaram de madrugada, e eram tantos que nem pudemos contá-los. A nossa lavadeira, que morava no alto do cemitério, disse que desde as três da madrugada eles começaram a descer um atrás do outro de faróis acesos. Atravessaram a cidade sem parar, descendo cautelosamente as ladeiras, sacudindo as paredes das casas nas ruas estreitas, passaram a ponte e tomaram o caminho da chácara como uma enorme procissão de vaga-lumes. Daí por diante não tivemos mais sossego. Desde que amanhecia até que anoitecia eram aqueles estrondos atrás do morro, tão fortes que chegavam a chacoalhar as panelas nas cozinhas apesar da distância, nas paredes não ficou um espelho inteiro. Mamãe vivia rezando e tomando calmante, não queria mais que eu fosse além da ponte em meus passeios. Achei que fosse receio exagerado dela, mas verifiquei depois que a proibição era geral, de todas as mães. Geraldo andava ocupado novamente lá do outro lado, e quando aparecia na cidade era guiando uns caminhões enormes, de um tipo que ainda não tínhamos visto, e sempre com uns sujeitos esquisitos na boléia, uns homens muito altos e vermelhos, os braços muito cabeludos aparecendo por fora da manga curta da camisa. Ficavam olhando para tudo com olhos espantados, entortavam o pescoço até o último grau para olhar a gente quando o caminhão já ia lá adiante. Paravam no botequim ou no 48
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armazém e metiam caixas e mais caixas de cerveja para dentro do caminhão, latas grandes de bolachas, caixotes de cigarros. Uma vez levaram todo o sortimento de cigarros da praça e os fumantes tiveram que picar fumo e enrolar palha durante quase um mês. Quando os caminhões paravam em alguma casa de comércio e nós fazíamos grupos de longe para olhar, Geraldo ficava na frente fazendo palhaçadas para nos provocar. Seu Marcos disse que ele havia perdido toda a compostura, e se não fosse por causa de D. Ritinha, era o caso de se dar uma surra nele. E toda noite agora era aquele ruído tremido que vinha de trás do morro, parecia o ronronar de muitos gatos. Não dava para incomodar porque não era forte, mas assustava pela novidade. De dia não o ouvíamos, talvez por causa dos barulhos da cidade, mas quando batia a Ave-Maria, e todo mundo cessava o trabalho, lá vinha ele. Então a gente olhava para os lados da chácara e via um enorme clarão no céu, como o de uma queimada vista de longe, só que não tinha fumaça. Mas a grande surpresa foi quando Geraldo veio à cidade montado numa motocicleta vermelha. Não vinha mais de roupa cáqui de trabalho e botina de vaqueta, mas de parelho de casimira azul-marinho, sapatos de verniz e gravata. Parou no bilhar, cumprimentou todo mundo e convidou para tomarem cerveja. Uns aceitaram, outros ficaram de longe, ressabiados. Ele disse que não havia motivo para malquerenças, reconhecia que havia se excedido nas brincadeiras, mas não fizera nada com a intenção de ofender. Os tempos agora eram outros, acabaram-se as brincadeiras. Ele estava ali como amigo para dar uma notícia que devia contentar a todos. Aí os mais desconfia49
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dos foram se chegando também, Geraldo mandou uns dois ou três saírem na porta e convidarem quem mais encontrassem por perto. Num instante o salão estava cheio, quem estava jogando parou, havia gente até do lado de fora debruçada nas janelas. Quando viu que não cabia mais ninguém, Geraldo subiu numa das mesas e comunicou que fora nomeado gerente da Companhia e que estava ali para contratar funcionários. Os ordenados eram muito bons, havia casa para todos, motocicletas para os homens, bicicletas para as crianças e máquinas de costura para as mulheres. Quem estivesse interessado aparecesse no dia seguinte ali mesmo para assinar a lista. Como ninguém estava preparado para aquilo, ficaram todos ali apalermados, se entreolhando calados. Quando alguém se lembrou de pedir explicações sobre as atividades da Companhia, Geraldo já ia longe na motocicleta vermelha. Após muita confabulação ali mesmo no bilhar, depois nas muitas rodas formadas nos pontos de conversa da cidade, e finalmente nas casas de cada um, muitos se apresentaram no dia seguinte, acredito que a maioria apenas para ter uma oportunidade de saber o que se passava na chácara. Já no segundo dia os caminhões vieram buscá-los, e foi a última vez que os vimos como amigos: quando começaram a aparecer novamente na cidade, ninguém os reconhecia mais. Entravam e saíam como foguetes, montados em suas motocicletas vermelhas, não paravam para falar com ninguém. Essas máquinas eram uma verdadeira praga. Ninguém podia mais sair à rua sem a precaução de levar uma vara bem forte com um ferrão na ponta para se defender dos 50
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motociclistas, que pareciam se divertir atropelando pessoas distraídas. Nem os cachorros andavam mais em sossego, quase todos os dias a Intendência recolhia corpos de cachorros estraçalhados. E quanta gente morreu embaixo de roda de motocicleta. O caso que mais me impressionou foi o de D. Aurora. Um dia eu ia atravessando o largo com ela, carregando um cesto de ovos que ela havia comprado lá em casa para a festa do aniversário do padre, quando vimos dois motociclistas que vinham descendo emparelhados. Já sabendo como eles eram, D. Aurora atrapalhou-se, correu para a frente, depois quis recuar, e um deles separou-se do outro e veio direito em cima dela, jogando-a no chão, e trilhando-a pelo meio. Quando me abaixava para socorrê-la, ouvi as gargalhadas dos dois e o comentário do criminoso: — Você viu? Estourou como papo-de-anjo. D. Aurora morreu ali mesmo, e eu tive de voltar com o cesto de ovos para casa. A impressão que se tinha era a de haver pessoas ocupadas unicamente em perturbar o nosso sossego, com que fim não sei. Ainda bem não havíamos tomado fôlego de um susto, outro artifício era aplicado contra nós. Mas não havendo motivo para tanta perseguição, também podia ser que os responsáveis pelas nossas aflições nem estivessem pensando em nós, mas apenas cuidando de seu trabalho; nós é que estávamos atrapalhando, como um formigueiro que brota num caminho onde alguém tem que passar e não pode se desviar. Depois do estrago é que vinha a curiosidade de ver como é que estávamos resistindo. Foi o que verificamos quando as nossas casas deram para pegar fogo sem nenhum motivo aparente. Primeiro era um aquecimento repentino, os moradores começavam 51
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a suar, todos os objetos de metal queimavam quem os tocasse, e do chão ia minando um fumaceiro com um chiado tão forte que até assoviava. Pessoas e bichos saíam desesperados para a rua engasgados com a fumaça, sem saberem exatamente o que estava acontecendo. Ouvia-se um estouro abafado, e num instante a casa era uma fogueira. Tudo acontecia tão depressa que em muitos casos os moradores não tinham tempo de fugir. Depois de cada incêndio aparecia na cidade uma comissão de funcionários da Companhia, remexia nas cinzas, cheirava uma coisa e outra, tomava notas, recolhia fragmentos de material sapecado, com certeza para examiná-los em microscópios. Pelo destino dos moradores não mostravam o menor interesse. Para não perder tempo em casos de emergência, passamos a dormir vestidos e calçados. Embora sem muita esperança, meu pai foi procurar o delegado para ver se conseguia dele uma providência contra a Companhia. O delegado estava assustado como coelho, piscava nervoso e repetia como falando sozinho: — Uma providência. É preciso uma providência. Meu pai quis saber que espécie de providência ele pensava tomar, e ele não saía daquilo: — É, uma providência. É preciso uma providência. Meu pai sacudiu-o para ver se o acordava, ele agarrou meu pai pelo braço e disse desesperado, quase chorando: — Eu estou de pés e mãos amarradas, Maneco. De pés e mãos amarradas. Que vida! Quanta coisa! Os espiões eram outra grande maçada. Não sei com que astúcia a Companhia conseguiu contratar gente do nosso meio para informá-la de nossos passos e de nossas conversas. O número de espiões cresceu tanto que não 52
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podíamos mais saber com quem estávamos falando, e o resultado foi que ficamos vivendo numa cidade de mudos, só falávamos de noite em nossas casas, com as portas e janelas bem fechadas, e assim mesmo em voz baixa. Eu estava quase perdendo a esperança de voltarmos à vida antiga, e já não me lembrava mais com facilidade do sossego em que vivíamos, da cordialidade com que tratávamos nossos semelhantes, conhecidos e desconhecidos. Quando eu pensava no passado, que afinal não estava assim tão distante, tinha a impressão de haver avançado anos e anos, sentia-me velho e deslocado. Para onde nos estariam levando? Qual seria o nosso fim? Morreríamos todos queimados, como tantos parentes e conhecidos? Passávamos os dias com o coração apertado, e as noites em sobressalto. Ninguém queria fazer mais nada, não valia a pena. As casas andavam cheias de goteiras, o mato invadia os quintais, entrava pelas janelas das cozinhas. Nos vãos do calçamento, que cada qual antigamente fazia questão de manter sempre limpo em frente a sua casa, arrancando a grama com um toco de faca e despejando cal nas fendas, agora cresciam tufos de capim. O muro do pombal desmoronou numa noite de chuva, ficaram os adobes na rua fazendo lama, quem queria passar rodeava ou pisava por cima, arregaçando as calças. Não valia a pena consertar nada, tudo já estava no fim. Mas a esperança, por menor que seja, é uma grande força. Basta um fiapinho de nada para dar alma nova à gente. Eu estava remexendo um dia na tulha de feijão à procura de uma medalha que caíra do meu pescoço e encontrei umas caixas de papelão quadradinhas, escondidas bem no fundo. Abri uma e vi que estava cheia de cartuchos de dinamite. Guardei tudo depressa e não disse 53
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nada a ninguém nem deixei meu pai saber, porque não queria colocá-lo na triste situação de ter de prevenir-se contra mim. Tudo era possível naqueles dias. Agora que nada mais há a fazer, arrependo-me de não ter falado abertamente e entrado na intimidade dos planos, se é que havia algum. Hoje é que imagino a aflição que minha mãe deve ter passado na noite em que em vão esperamos meu pai para a ceia. Com uma indiferença que não me perdôo eu tomei a minha tigela de leite com beiju e fui domir. Mamãe ficou acordada fiando, e quando tomei-lhe a bênção no dia seguinte notei que ela estava pálida e com os olhos vermelhos de quem não havia dormido. Não tenho muito jeito para consolar, fiquei remanchando em volta dela, bulindo numa coisa e noutra, irritando-a com o meu nervosismo inarticulado. Ela mandava-me sair, passear, fazer alguma coisa fora, mas eu tinha medo de deixá-la sozinha estando tão deprimida. Não me lembro de outro dia tão triste. Uma neblina cinzenta tinha baixado sobre a cidade, cobrindo tudo com aquele orvalho de cal. As galinhas empoleiradas nos muros, nos galhos baixos dos cafezeiros, ou encolhidas debaixo da escada do quintal, pareciam aguardar tristes notícias, ou lamentar por nós algum acontecimento que só elas sabiam por enquanto. Em frente a nossa janela de vez em quando passava uma pessoa, as mãos roxas de frio segurando o guarda-chuva, ou um menino em serviço de recado, protegendo-se com um saco de estopa na cabeça. E nos quintais molhados os sabiás não paravam de cantar. Em dias de sol nós ainda podíamos resistir, podíamos olhar para os lados da usina e apertar os dentes com ódio, e assim mostrar que ainda não havíamos nos entregado; 54
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mas num dia molhado como aquele só nos restava o medo e o desânimo. A notícia chegou antes do almoço. Uns roceiros que tinham vindo vender mantimentos na cidade encontraram o corpo na estrada, a barriga celada no meio pelas rodas de uma motocicleta. Depois do enterro mamãe mandou-me esconder as caixas de dinamite num buraco bem fundo no quintal, vendeu tudo o que tínhamos, todas as galinhas, pelo preço de duas passagens de caminhão e no mesmo dia embarcamos sem dizer adeus a ninguém, levando só a roupa do corpo e um saquinho de matula, como dois mendigos.
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