Penélope/ O Chat/ O Novo Dancing Eléctrico

Page 1


indd 1

livrinhos de teatro / 62

Enda Walsh nasceu em Dublin em 1967 e vive agora em Londres. Frequentou a mesma escola secundária onde Roddy Doyle leccionava. O primeiro trabalho criativo de Enda apareceu quando se mudou para Cork e colaborou com o encenador Pat Kiernan do Corcadorca em adaptações muito livres de A Clockwork Orange e A Christmas Carol. À primeira peça original de Enda Walsh, The Ginger-Ale Boy, seguiu-se Disco Pigs (1996), que viria a ser traduzida para todas as mais importantes línguas europeias. Seguiram-se Sucking Dublin (1997) e misterman (1998). Acamarrados foi a primeira peça de Enda Walsh a ser dirigida por ele próprio. Enda também tem escrito para rádio e cinema, nomeadamente o argumento de Fome (Câmara de Ouro em Cannes), em parceria com o realizador Steve McQueen. Para os Artistas Unidos, escreveu o sketch Lyndie Tem uma Arma, para o espectáculo de homenagem a Harold Pinter Conferência de Imprensa e Outras Aldrabices (2005). Também de 2005 são As Pequenas Coisas e O Chat. Em 2007 apresentou A Farsa da Rua W, com a companhia irlandesa Druid, com quem veio a dirigir O Novo Dancing Eléctrico em 2008. Nesse ano, escreveu uma versão de Os Irmãos Karamazov, a que deu o título Delirium e a peça curta Gentrification. Penélope estreou no Traverse de Edimburgo em 2010. Os Artistas Unidos estrearam, de Enda Walsh, Disco Pigs (2007) , Lyndie Tem uma Arma (2005), Acamarrados (2008) e A Farsa da Rua W (2011).

03-04-2012 15:30:58


indd 2

©

JORGE GONÇALVES

03-04-2012 15:31:18


indd 3

enda walsh

Penélope O Chat O Novo Dancing Eléctrico Tradução de Joana Frazão

ARTISTAS UNIDOS COT OVIA

03-04-2012 15:31:19


indd 4

títulos originais: Penelope © 2010 Enda Walsh Chatroom © 2005 Enda Walsh Primeira edição da peça por Samuel French 52 Fitzroy Street, Fitzrovia, London W1P 6JR The New Electric Ballroom © 2008 Enda Walsh Todas as peças foram editadas por Nick Hern Books Ltd, 14 Larden Rd. London W3 7ST autor: Enda Walsh tr a dução: Joana Frazão r ev isão: Madalena Alfaia © desta edição: Artistas Unidos/ Livros Cotovia, Lisboa, Abril de 2012 Traduções realizadas com o apoio de Ireland Literature Exchange (Fundos para a Tradução), Dublin, Irlanda. www.irelandliterature.com | info@irelandliterature.com

ARTISTAS U NIDOS R. Campo de Ourique, 120 1250 — 062 Lisboa www.artistasunidos.pt artistasunidos@artistasunidos.pt

LI V ROS COTOV IA Rua Nova da Trindade, 24 1200 — 303 Lisboa www.livroscotovia.pt geral@livroscotovia.pt

03-04-2012 15:31:19


indd 5

ÍNDICE 7 Penélope 63 O Chat 111 O Novo Dancing Eléctrico

03-04-2012 15:31:19


indd 6

03-04-2012 15:31:20


indd 7

PENÉLOP E

03-04-2012 15:31:20


indd 8

P E RSONAGE NS Burns, pelos trinta e cinco Quinn, pelos quarenta e cinco Dunne, cerca de cinquenta Fitz, pelos sessenta e cinco … e Penélope, vintes.

Penelope estreou no Theatre Oberhausen a 27 de Fevereiro de 2010, com encenação de Tilman Knabe e interpretações de Manja Kuhl, Torsten Bauer, Hartmut Stanke, Peter Waros e Michael Witte. Foi em 13 de Julho de 2010 que a versão original estreou no Druid Lane Theatre, em Galway, com direcção de Mikel Murfi e interpretação de Karl Shiels, Niall Buggy, Denis Conway, Tadhg Murphy, Olga Wehrly. A presente tradução estreou no Teca, a 11 de Maio de 2012, com interpretações de Joana Barros, João Vaz, José Neves (do elenco do TNDMII), Pedro Luzindro e Pedro Carraca, encenação de Jorge Silva Melo, cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves, luz de Pedro Domingos, numa produção dos Artistas Unidos/Teatro Nacional S. João.

03-04-2012 15:31:20


indd 9

Passado um bocadinho percebemos que estamos a olhar para uma piscina esvaziada, em estado de delapidação. Há duas escadas ao fundo da piscina, por onde os actores entram. Ao fundo e por cima da piscina vemos uma grande porta deslizante, de vidro, que dá para uma vivenda. Há um telão que nos permite ver lá para dentro, quando for oportuno. A piscina foi transformada em sala de estar, e parece funcionar assim há anos. Há cinco cadeiras de piscina de diferentes marcas e feitios (algumas insufláveis), todas elas em mau estado, uma mesa de snooker em miniatura, uma mesa de cavaletes atulhada de cerveja, vinho, bebidas espirituosas e aperitivos. Há uma aparelhagem portátil para CD. Há também um grande balão de hélio em forma de coração que dança por cima da mesa. Por baixo da mesa, um monte de tralha. Há um biombo, num canto ao fundo, suficientemente grande para uma pessoa mudar de roupa atrás dele sem ser vista. Há uma grande e reluzente barbacoa Taunton Deluxe em cima de uma palete de madeira, mesmo no meio da piscina. Mais importante que tudo, na piscina há uma câmara de vigilância que transmite em circuito fechado e está apontada para baixo, para os homens. Quando as luzes se acendem, temos tempo para assimilar tudo isto, visto que os dois homens em cena estão muito quietos. Podíamos estar a olhar para um quadro. 9

03-04-2012 15:31:20


indd 10

Um dos homens está de pé ao lado de uma das escadas; tem na mão uma esponja cheia de espuma cor-de-rosa. Acabou de limpar uma longa faixa de sangue na parede de azulejo junto à escada, e olha fixamente para as gotas que escorrem pela parede. Ele é Burns. É um homem dos seus trinta e cinco anos, traz um roupão turco de piscina, curto, ténis gastos e óculos escalavrados. Parece forte e capaz, mas comporta-se de modo subserviente. O outro homem está de pé a olhar intensamente para a barbacoa Taunton Deluxe. Ele é Quinn. É um homem dos seus quarenta e cinco anos, de constituição possante. Com o cabelo pintado de preto e impecavelmente arranjado, aparece imediatamente como um homem de alguma vaidade. Usa uma tanga Speedo vermelha, justa, e uns mocassins castanhos, elegantes. A quietude é interrompida quando Quinn caminha rapidamente até à barbacoa. Burns vira-se e olha para ele. Quinn estende a mão e põe-na acima do grelhador para testar a temperatura. Como de costume, está fria. Há uma salsicha crua em cima do grelhador. Ele pega na salsicha e olha para ela. Volta a deixá-la cair. Caminha rapidamente para a mesa de cavaletes, pára e lança um olhar a Burns. Burns hesita. Estava prestes a dizer qualquer coisa, mas decide não o fazer. Quinn quer ouvir o que era. Quinn O que é que tens a dizer? (Ligeira pausa.) O quê? Pausa. Burns reúne coragem. Burns Preciso de falar sobre o Murray. Quinn liga a aparelhagem e Herb Alpert & The Tijuana Brass tocam «Spanish Flea». 10

03-04-2012 15:31:20


indd 11

Quinn encontra um maçarico no meio dos aperitivos. Vira-se e olha para a barbacoa defunta como que a dizer que não está para brincadeiras. O maçarico flameja-lhe na mão. Volta para a barbacoa e começa a fulminar a salsicha. Está a cozinhá-la para o pequeno-almoço. Burns deixa cair a esponja para dentro do balde de metal. Não se consegue livrar dos últimos restos de sangue na parede. Arruma o balde debaixo da mesa de cavaletes. Começa a procurar qualquer coisa em cima da mesa. Encontra-a e põe-na. É um chapéu de festa feito de cartão, em forma de cone, com um elástico para pôr debaixo do queixo. Ao mesmo tempo, aparecem mais dois homens que descem pelas duas escadas ao fundo. Também estão vestidos com roupões turcos de piscina. Quando se voltam para nós, vemos Dunne. É um homem de cerca de cinquenta anos. Comporta-se como um velho jogral (de chinelos). Vai direito à mesa para preparar um cocktail, ignorando completamente Burns. Dança um pouco ao som da música, para sua própria diversão. Mexe-se bem. O outro homem é Fitz. Um homem elegante e irrequieto, dos seus sessenta e cinco anos. Dispõe cuidadosamente a sua cadeira de piscina e toalha. Tudo tem de estar no seu lugar. Trouxe consigo um velho livro para ler e certifica-se de que o marcador está a cumprir a sua função. Tem uma caixinha de comprimidos. Esvazia o seu conteúdo. Só há três comprimidos. Vai ser suficiente. Lança-os à boca e esvazia uma garrafa de sumo de tomate. Benze-se. Foi na sequência errada. Tenta uma e outra vez, mas já não se sabe benzer. Desiste. Os seus modos são um pouco tresloucados. Entretanto, Dunne preparou o seu cocktail. É uma margarita muito extravagante, com fruta e sombrinhas de papel. 11

03-04-2012 15:31:20


indd 12

Aproxima-se de Quinn para o ver pulverizar a salsicha. Burns continua junto à mesa, onde colocou diferentes aperitivos em várias taças. Age como um criado relutante o tempo todo. Fitz cumprimenta-o com um pequeno aceno de cabeça. Fitz volta-se e olha para o sangue na parede. Burns faz o mesmo. Os dois homens olham para Quinn. Quinn desliga o maçarico e passa-o a Dunne. Leva a mão à barbacoa e agarra na salsicha, mas queima-se. Quinn Merda! Burns não precisa que lhe peçam. Vem até à barbacoa, agarra na salsicha brutalmente quente e começa a soprar-lhe, para Quinn. A temperatura está agora perfeita e Quinn pega finalmente na salsicha, no momento em que «Spanish Flea» chega ao fim. Os homens falam com uma erudição considerável. Poderão ser de classes diferentes (Quinn é sem dúvida um diamante mais em bruto), mas todos gostam do som da própria voz. Os sotaques são da província (cada um de uma região diferente do país) mas apesar disso suaves… pois trata-se aqui de homens distintos. Quinn trinca a salsicha. Dunne Que tal sabe? Pausa, enquanto Quinn escolhe cuidadosamente as palavras. Quinn «A salsicha.» Dunne Ainda bem. Fitz (para Dunne) Com a maior parte não é verdade. Algumas sim. Algumas têm o seu quê de salsicha mas na maior parte dos casos só sabem a calor. Dunne E calor nem sequer é um sabor. Fitz Não? Dunne As pessoas diriam que calor é uma sensação, sabes… normalmente. 12

03-04-2012 15:31:20


indd 13

Quinn Regra geral. Dunne Como tu dizes, Quinn… regra geral… tendo a palavra os seus significados… tendo características associadas, Fitz. «O calor tem o quê?» «Sabor» não é a primeira coisa que nos vem ao espírito. Quinn «Isto sabe a quente.» Diria mais isso do que «sabe a salsicha». Dunne Mas eu perguntei: «Que tal sabe?», e tu disseste: «A salsicha.» Porque é que não disseste que sabia a quente se quente foi a tua primeira sensação? Quinn Quente foi a minha primeira sensação mas disse que sabia «a salsicha» por maldade. Dunne Sim. Quinn Esta é a derradeira salsicha, homens, e queria que todos soubessem que é uma salsicha superior. Não é nenhum naco de merda de porco em forma de charuto e recheado de pó… é uma salsicha a sério! A salsicha da nossa juventude. Tivesse eu apenas dito «É uma salsicha quente»… bom, isso teria conotações negativas… Fitz Se tivéssemos frio, não. Uma salsicha quente seria bem simpático, ao frio! Quinn Obviamente, se tivéssemos frio, Fitz. Estivéssemos nós sentados num yurt na Mongólia a tiritar no meio de um rebanho de iaques e eu a agarrar esta salsicha… Havia de olhar cada um de vocês nos olhos e sorrir… «Meus senhores, é uma salsicha quente! A última salsicha quente! A derradeira salsicha, aquecida! E agora o que acham disto, rapazes?» Fitz Temos inveja. E frio. Dunne E inclinamo-nos sem dúvida para tentar conseguir uma migalha do calor que sai desse enchido de aspecto delicioso. Quinn Mas nós não estamos na Mongólia… Fitz e Dunne Meu Deus, não…! 13

03-04-2012 15:31:20


indd 14

Quinn … Estamos na… Burns! Burns Sim? Quinn O que é isto? Burns Uma salsicha? Quinn Sim, é uma salsicha! A quantas andamos? Burns 11.30 da manhã. Quinn Mais importante que isso! Burns Trinta e três graus centígrados. Fitz Isso é quente. Dunne É quente e é cedo. Burns Isto é sempre quente. Dunne E invariavelmente cedo…! (Perde-se.) … quando não é tarde… Quinn E isto… meus camaradas concorrentes… sabe a salsicha. Quinn começa a comer a salsicha enquanto os outros olham para ele. O pássaro madrugador, homens… o pássaro madrugador… Quinn põe-se a debicar a salsicha, imitando um pássaro madrugador até ela lhe desaparecer na boca. Engole. Feito. Quinn abre a boca para mostrar que já foi. Dunne inspecciona-a. Dunne Mesmo passado este tempo todo, a concorrência. Quinn Existe mais alguma coisa? Dunne Tens razão. Quinn Não existe mais nada! Dunne Preciso que me recordem isso todos os dias para manter a pujança! Quinn Pois é. Dunne Quando eu era mais novo não precisava, todos sabemos isso! O meu corpo ainda guarda uma memória física 14

03-04-2012 15:31:20


indd 15

do ataque da minha juventude, mas a mente vacila. É uma vacilante! Fitz A mente é o inimigo! Dunne A mente é um balde de enguias, rapazes! Para nós os quatro é certamente, dada a nossa hmmm… Como lhe chamariam? Quinn Situação. Dunne Dada a nossa excepcional situação. Estou a uma tarde de me transformar em gelatina… por isso é importante lembrar que a luta continua, rapazes! Quinn Isso é mais que certo. Dunne Ainda bem! Quinn olha de relance para Burns, que olha fixamente para o sangue na parede do fundo. Dunne mostra a Quinn uma moeda. Passa-lhe com a outra mão por cima e a moeda desaparece. Quinn Eu vi. Fitz Devo dizer que há dias em que acolheria de bom grado a degeneração. Uma vida feita em gelatina não parece assim tão mau. Ia ter saudades de ler, claro. Pode-se manter uma conversa. Falar não custa, Dunne… Dunne Não custa e fere. Fitz … mas ler… os clássicos, em especial… a camaradagem de Homero… Dunne Eu nunca li um livro em toda a idade adulta. Fitz Isso surpreende-me! Quinn Eu também não. Fitz Bom, isso já é menos surpreendente… Quinn não gostou deste insulto. Dunne Só havia um livro de que eu gostava na minha juventude. Fitz E qual era? Dunne «A Panela Mágica da Sopa». 15

03-04-2012 15:31:21


indd 16

Quinn Não existe mais nenhum livro. Fitz Por acaso até existem outros. Quinn Mas não falam com tanta clareza sobre investimento e expansão ou sobre o rápido desenvolvimento de uma economia instável. Dunne Ah é? Quinn Trata-se de uma cidade inteira, completamente paralisada ao ver-se submersa em sopa, sim… Dunne Interessante. Quinn … uma panela que dava sem parar, uma comunidade que recebia sem qualquer noção de responsabilidade ou futuro. Fitz Eu tinha ideia de que a panela mágica da sopa resgatava o povo da pobreza. Dunne Conduzindo-o à obesidade, cambada de gordos! Quinn Imaginam o que é ter de comer sopa para abrir caminho porque não conseguem meter a segunda? Ou a consistência de um coração alimentado a uma dieta de sopa rica? Jasus. Fitz Caramba. Quinn A panela precisava era de regulação. Precisava que aquela menina ficasse em casa com o único propósito de dizer «Cozinha-panela-cozinha» e «Pára-panela-pára». Fora isso, ela não precisava de mais palavras. Fitz Teria crescido atrasada, repara. Quinn Teria crescido em poder. Dunne Seria a guardiã da panela. Quinn Exactamente! Seria a guardiã da panela. Dunne Uma leitura fascinante! Quinn Imagens encantadoras! Fitz É por isso que eu ia ter saudades de ler! Por causa desse tipo de estímulo mental, esse acesso a ideias e carácter e cor! Sem este livro, sem este laço inequívoco entre mim e ele… 16

03-04-2012 15:31:21


indd 17

(Beija o livro.) Imagino uma gelatina infernal! Absolutamente infernal! Apesar disso, a senilidade continua a ter uma porção de vantagens, dado o esforço enorme que representa o prosseguimento da luta, não é verdade, rapazes? Dunne Estás-te a esquecer do prémio. Fitz Sim, estás-te a esquecer do prémio. Ó Burns, esqueces-te? Burns Esqueço-me de quê? Quinn Do prémio! Burns Não. Dunne Eu também não consigo. Quinn Eu também não. Fitz Nem eu! Quem me dera conseguir. Minto a mim próprio dizendo que consigo, mas claro que não consigo. Atormento-me com a noção de senilidade, distraio-me com o Homero, mas de facto, na verdade… claro que não me consigo esquecer do prémio. Dunne agarra-se ao estômago e afaga-o lentamente. Os outros observam. Ele pára e volta a pegar na bebida. Dunne É impossível dizer com exactidão para que forma física eu teria evoluído se a minha viagem me tivesse levado a outro lugar. O corpo é uma coisa fascinante, meus senhores. Fitz Excepcional, mesmo. Dunne E o teu corpo, Fitz? Diz-me lá e diz-me com sinceridade… lamentas o óbvio desgaste muscular, a tua estrutura óssea de graveto, o facto de a tua pele parecer um pergaminho engelhado e amarelento? Fitz Há um certo ponto na viagem da vida em que o corpo segue o seu próprio caminho. Faz anos que a minha cabeça se reconciliou com o facto de eu já não ser «o homem que era», Dunne. 17

03-04-2012 15:31:21


indd 18

Dunne Muito sensato. Fitz É algo que a tua cabeça deve ter feito durante a juventude, dada a tua… Dunne Dada a minha…? Fitz Dada a tua considerável… Dunne A minha considerável quê…?! Fitz A tua considerável geografia. Dunne Estou-te a seguir. Quinn O dia em que cabeça e corpo se despedem é um dia trágico para o eu. Eu sou quem era aos meus vinte e poucos, exactamente o mesmo, rapazes… como um ninja sensual. Mais! Melhorado! Controlado. Tratem o corpo com respeito e em troca ele há-de recompensar a cabeça a cem por cento. Dunne Percentagens à parte, Quinn, permitirei sempre que o meu corpo tome a liderança sobre a cabeça vacilante. É esse o homem que eu sou! Quinn Todo estômago, queres dizer. Dunne As tripas é que conduzem a minha vida, e alimentam o meu desempenho aqui nesta piscina. Quinn Iá. Dunne Claro que eu seria um animal mais esbelto se tivesse mais hmmm… se tivesse uma ahh…? Fitz Uma existência mais produtiva? Dunne É como dizes… mas o corpo tem de ser respeitado por aquilo que o corpo deseja e a cabeça tem de sustentar o corpo, tal como o humilde pássaro pica-boi tem de se alimentar do dorso do gigante hipopótamo. O corpo, rapazes… o corpo é sempre rei. Quinn Ou reino. Dunne Ou reino, sim, Quinn. Dependendo do… Burns Apetite. Dependendo do apetite, o corpo é o nosso rei ou o nosso reino. 18

03-04-2012 15:31:21


indd 19

Dunne dispara um olhar na direcção de Burns. Ele falou fora da vez. Ligeira pausa. Dunne Um aforismo que te poderá ser útil um dia, meu rapaz. Hoje estás um pouco macilento. Burns «Macilento»? Dunne Como um veado bulímico depois de um dia inteiro a cabriolar. Burns Está bem. Dunne Como um rim mirrado depois de um dia inteiro a filtrar. Burns Percebido. Dunne Come uma sandes. Onde estão os Twiglets? Burns Na mesa. Dunne Então vai buscá-los! Burns hesita. Não ir pioraria as coisas. Dunne, por qualquer razão, executa um passo fantástico de flamenco. Burns vai buscar a taça de Twiglets para Dunne. Volta com a taça e passa-a a Dunne. Desvia os olhos, biltre! Burns não desvia. É um momento e peras. Fitz e Quinn viram-se e observam. Burns e Dunne olham-se nos olhos. Mas Burns até está a ser mais agressivo. Dunne pega num Twiglet e afasta-se rapidamente de Burns com a taça. Fitz regressa ao Homero e fica imediatamente absorvido no livro. Fitz (murmura para consigo a propósito de uma passagem do texto) Muito bom mesmo. Quinn caminha até à parede do fundo e olha para a mancha de sangue nos azulejos. Começa a fazer flexões contra a parede, a cara a poucos centímetros do sangue. Burns observa-o até já não poder mais. 19

03-04-2012 15:31:21


indd 20

Levado pela frustração, Burns dá subitamente uma estalada na própria cara. TRÁS! Olham todos para ele. Burns O que foi? Fitz (reparando no chapéu de festa de Burns) Já é fim-de-semana? Dunne Bom, ele tem o chapéu posto, por isso deve ser. Fitz Para onde é que o tempo vai, hã, Burns? Burns Diz que se transforma em cancro. Dunne Parece que ainda foi ontem que foi ontem. Burns E foi ontem. Dunne Então eu tinha razão. Mais uma vez! Burns Claro. Quinn O tempo é uma tragédia, homens. Fitz Eh, a minha mãe costumava dizer isso! Essa frase, sem tirar nem pôr: «O tempo é uma tragédia.» Quinn (sarcástico) Ora vejam lá! A minha mãe também! Fitz Se calhar tivemos a mesma mãe, Quinn! Quinn É possível, imagino. Fitz Claro que nos teríamos conhecido na infância, certo? Quinn Não necessariamente, eu nunca me dei com a minha família. Fitz Ah, isso é um facto psicológico interessante! Quinn Era uma piada. Fitz (rindo) Ah, muito boa! Muito inteligente. Dunne (rindo) Uma piada muito engraçada, Quinn. Um humor muito engraçado! Quinn (frio) Pois. Fitz Bom, nunca foi mulher de grandes palavras, a minha mãe. Era capaz de falar, mas eu sempre tive a convicção de que ela detestava os escombros que a conversa deixa para trás. Não via qual era a vantagem de dar uma opinião sobre o que quer que fosse! 20

03-04-2012 15:31:21


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.