livrinhos de teatro / 58
Ramón del Valle-Inclán nasceu em Vilanova de Arousa (Pontevedra), em 1866, numa família da aristocracia galega com convicções liberais. Frequentou o curso de Direito na Universidade de Santiago de Compostela, sem, no entanto, o concluir. Em Madrid, para onde vai em 1890, inicia a sua actividade literária, escrevendo contos e artigos para a imprensa. Viajou para o México em 1892. Em 1895 publica o seu primeiro livro, Femininas. Instala-se em Madrid em 96-97, no tumulto daqueles anos em que desponta um século novo, por entre a boémia, a rebeldia, a febre modernista, as tertúlias literárias fervilhantes de inovações. É ferido num duelo com Manuel Bueno e sofrerá, em consequência dessa ferida, a amputação do braço esquerdo. Vai publicando contos, traduções, artigos, até que, em 1902, publica Sonata de Outono, iniciando uma das mais inovadoras obras literárias de Espanha, reconhecida internacionalmente. Seguem-se as demais Sonatas [de Verão (1903), de Primavera (1904) e de Inverno (1905)] e, com elas, a invenção de uma personagem, o Marquês de Bradomín, que ombreia com os grandes mitos da literatura clássica, como Don Juan. Depois do seu casamento com a actriz Josefina Blanco, escreve para o teatro a série Comedias Bárbaras [Àguila de Blasón (1907), Romance de Lobos (1908) e Cara de Plata (1909)], amplo panorama social onde começa a desenhar-se a deformação dramática que irá caracterizar a sua obra posterior. Foi professor na Academia de San Fernando (1916). E será em 1920 que publica, entre outras peças, Divinas Palavras e Luces de Bohemia, o seu primeiro esperpento, termo que inventou para designar a sua peculiar maneira de deformar o mundo («os heróis clássicos reflectidos nos espelhos côncavos dão o esperpento», escreve), mordaz, dramática, grotesca. Continuará a escrever teatro, sendo mundialmente representadas as peças que recolheu em Martes de Carnaval [Los Cuernos de Don Friolera (1925), Las Galas del Difunto (1926) e La Hija del Capitan (1927)]. De 1926 é o seu romance mais célebre, Tirano Banderas, retrato de uma ditadura sul-americana que viria a influenciar toda a literatura posterior. A instauração da República espanhola em 1931 trouxe-lhe algum reconhecimento público, e chegou a ser presidente do Ateneo de Madrid (1932). Morreu em Santiago de Compostela, aos 69 anos, em 1936. É por muitos considerado o maior dramaturgo espanhol do século xx.
ramón del valle-inclán
Luzes de Boémia Tradução e glossário Joana Frazão
< os clássicos > ARTISTAS UNIDOS COT OVIA
título or igina l: Luces de Bohemia © Herdeiros de Valle-Inclán, 1924 autor: Ramón del Valle-Inclán tr a dução e glossário: Joana Frazão r ev isão: Madalena Alfaia © desta edição: Artistas Unidos/ Livros Cotovia, Lisboa, Setembro de 2011 Este livro foi publicado com um subsídio da Direcção Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas do Ministério da Cultura de Espanha.
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LUZES DE BO ร MI A Esperpento ยน
Publicada em 1920, Luzes de Bohémia encontra muitas dificuldades em passar ao palco (técnicas, económicas e também políticas) em Espanha, e só estreará em 1963, em França, no TNP, dirigida por Georges Wilson, em tradução de Jeannine Worms e com Georges Wilson e Christine Minazzoli. Em Espanha, apenas em 1970 subiu à cena, em Valência e depois Madrid, na histórica encenação de José Tamayo, com Manuel Gallardo, Agustín González, María Luisa Ponte, María Jesús Lara, Margarita Calahorra e, em Max Estrela, o actor José María Rodero, que haveria de regressar a este papel em 1984, na encenação de Lluis Pasqual.
D R A M AT IS P E RSONÆ
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Max Estrela, Sua Mulher, Madame Collet, e Sua Filha, Cláudinha Dom Latino de Hispalis Zaratustra Dom Gay Um Rapaz com o Cabelo Rapado A Filha da Porteira Pica Lagartos Um Chulo de Taberna Henriqueta Põe Bem o Pé O Rei de Portugal Um Bêbado Dório de Gadex, Rafael de los Velez, Lúcio Vero, Mínguez, Gálvez, Clarinito e Pérez, Jovens Modernistas Pitito, Capitão dos Cavaleiros Romanos Municipais Um Guarda-Nocturno A Voz de Um Vizinho Dois Guardas da Ordem Serafim o Bonito Um Encarregado Um Preso O Porteiro de Uma Redacção Dom Felisberto, Redactor-Chefe
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O Ministro da Governação Dieguito, Secretário de Sua Excelência Um Meirinho Uma Velha Pintada e a Sardas Um Jovem Desconhecido A Mãe da Criança Morta O Penhorista O Guarda A Porteira Um Pedreiro Uma Velha A Trapeira O Reformado, todos do bairro Outra Porteira Uma Vizinha Basílio Soulinake Um Cocheiro da Funerária Os Coveiros Rubén Darío O Marquês de Bradomín O Peralvilho do Pay-Pay A Jornaleira Turbas, Guardas, Cães, Gatos, Um Louro
C ENA P RIM E IRA
Hora crepuscular. Águas-furtadas com uma janelinha estreita cheia de sol. Retratos, gravuras, autógrafos espalhados pelas paredes, presos com pioneses. Conversa lânguida entre um homem cego e uma mulher loira, triste e fatigada. O homem cego é um hiperbólico andaluz, poeta de odes e madrigais, Máximo Estrela. À loira, por ser francesa, chamam-lhe na vizinhança Madame Collet. Max Volta a ler-me a carta do Boi Ápis. Madame Collet Tem paciência, Max. Max Podia ter esperado que me enterrassem. Madame Collet Ele há-de ir à frente. Max Collet, como vamos nós aguentar-nos sem essas quatro crónicas? Onde ganho eu vinte duros? Madame Collet Outra porta se abrirá. Max A da morte. Podemos suicidar-nos colectivamente. Madame Collet A mim a morte não me assusta. Mas temos uma filha, Max! Max E se a Cláudinha estivesse de acordo com o meu projecto de suicídio colectivo? Madame Collet É muito jovem! Max Os jovens também se matam, Collet. Madame Collet Não por cansaço da vida. Os jovens matam-se por romantismo. 9
Max Então matam-se por amarem demasiado a vida. É uma pena a obstinação da Cláudinha. Com cinco tostões de carvão, podíamos fazer a viagem eterna. Madame Collet Não desesperes. Outra porta se abrirá. Max Em que redacção me hão-de admitir cego? Madame Collet Escreves um romance. Max E não arranjo editor. Madame Collet Oh! Não te ponhas de gatas, Max. Todos reconhecem o teu talento. Max Estou esquecido! Lê-me a carta do Boi Ápis. Madame Collet Não tomes este caso como exemplo. Max Lê. Madame Collet É um inferno de letra. Max Lê devagar. Madame Collet, o gesto abatido e resignado, soletra em voz baixa a carta. Ouve-se lá fora uma vassoura brincalhona. Soa a campainha da escada. Madame Collet Cláudinha, deixa a vassoura sossegada e vai ver quem tocou. Cláudinha É sempre o Dom Latino. Madame Collet Valha-me Deus! Cláudinha Dou-lhe com a porta no nariz? Madame Collet Isso distrai o teu pai. Cláudinha Já se sente o cheiro a aguardente! Máximo Estrela soergue-se com um gesto animado; espalhada sobre o peito, a bonita barba com mechas grisalhas. A sua cabeça encaracolada e cega, de um grande carácter clássico-arcaico, lembra as estátuas de Hermes. Max Espera, Collet! Recuperei a vista! Vejo! Oh, como vejo! Magnificamente! Que bonita a Moncloa! O único canto francês neste páramo madrileno! Temos de voltar a Paris,Collet! Temos de voltar para lá, Collet! Temos de recuperar aqueles tempos! 10
Madame Collet Estás a alucinar, Max. Max Vejo, e vejo magnificamente! Madame Collet Mas vês o quê? Max O mundo! Madame Collet Vês-me a mim? Max As coisas em que toco, para que preciso de as ver? Madame Collet Senta-te. Vou fechar a janela. Tenta adormecer. Max Não consigo! Madame Collet Pobre cabeça! Max Estou morto! Outra vez de noite. Reclina-se no espaldar da poltrona. A mulher fecha a janela e as águas-furtadas ficam numa penumbra riscada pelo sol poente. O cego adormece e a mulher, sombra triste, senta-se numa cadeirinha, a fazer dobras na carta do Boi Ápis. Uma mão cautelosa empurra a porta, que se abre com um guincho demorado. Entra um velhote asmático, quépi, óculos, um cãozinho e uma sacola com revistas ilustradas. É Dom Latino de Hispalis. Por trás dele, despenteada, de chinelas, a saia pingona, aparece uma moça: Cláudinha. Dom Latino Como está o ânimo do génio? Cláudinha À espera do pilim de uns livros que um trafulha lhe levou para vender. Dom Latino Menina, não conheces vocabulário mais selecto para te referires ao companheiro fraterno do teu pai, desse grande homem que me chama irmão? Que linguagem, Cláudinha! Madame Collet Trouxe o dinheiro, Dom Latino? Dom Latino Madame Collet, desconheço-a, porque sempre foi uma inteligência raciocinadora. O Max tinha disposto nobremente desse dinheiro. Madame Collet É verdade, Max? Será possível? Dom Latino Não o tire dos braços de Morfeu! Cláudinha Papá, que dizes tu? 11
Max Vão todos para o diabo! Madame Collet Oh, querido, com as tuas generosidades, deixaste-nos sem jantar! Max Latino, és um cínico. Cláudinha Dom Latino, se não desembolsa, arranho-o. Dom Latino Corta as unhas, Cláudinha. Cláudinha Arranco-lhe os olhos. Dom Latino Cláudinha! Cláudinha Vadio! Dom Latino Max, impõe a tua autoridade. Max Quanto sacaste pelos livros, Latino? Dom Latino Três pesetas, Max! Três malditas pesetas! Uma indignidade! Um roubo! Cláudinha Não os tivesses deixado! Dom Latino Cláudinha, a esse respeito dou-te toda a razão. Fizeram-me baixar as calças. Mas ainda se pode desfazer o negócio. Madame Collet Oh, seria bom! Dom Latino Max, se apareceres agora comigo na loja desse pilantra e armares um escândalo, ainda lhe sacas até dois duros. Tu tens outro peso. Max Seria preciso devolver o dinheiro recebido. Dom Latino Basta o gesto. Fazemos bluff, Mestre. Max Achas…? Dom Latino Naturalmente! Madame Collet Max, não devias sair. Max O ar vai-me refrescar. Aqui está um calor de forno. Dom Latino Pois na rua faz um fresquinho. Madame Collet Vais ter um dissabor sem conseguir nada, Max! Cláudinha Papá, não saias! Madame Collet Max, vou procurar alguma coisa para empenhar. Max Não quero tolerar este roubo. A quem levaste os livros? Dom Latino Ao Zaratustra. 12
Max Cláudinha, a minha bengala e o meu chapéu! Cláudinha Dou-lhos, mamã? Madame Collet Dá! Dom Latino Madame Collet, vai ver que belo serviço. Cláudinha Vadio! Dom Latino Tudo na tua boca é uma canção, Cláudinha! Máximo Estrela sai, apoiado no ombro de Dom Latino. Madame Collet suspira, abatida, e a filha, toda ela nervos, começa a tirar os ganchos do cabelo. Cláudinha Sabes como acaba tudo isto? Na taberna do Pica Lagartos!
C ENA SE GUNDA
A cave de Zaratustra no Pretil de los Consejos. Pilhas de livros entulham o chão e cobrem as paredes. Quatro cromos pavorosos de um folhetim tapam os quatro vidros de uma porta. Na cave fazem tertúlia o gato, o louro, o cão e o livreiro. Zaratustra, bichado e corcunda — a cara de toucinho rançoso e o lenço verde-serpente — promove com a sua caracterização de fantoche uma aguda e dolorosa dissonância muito comovente e muito moderna. Encolhido no estofo gasto de uma cadeira anã, com os pés entrapados e tronchudos no estrado da braseira, toma conta da loja. Um rato põe o focinho intrigante de fora de um buraco. Zaratustra Não penses que não te vejo, ladrão! O Gato Miau! Miau! Miau! 13
O Cão Ão! O Louro Viva Espanha! À porta estão Max Estrela e Dom Latino de Hispalis. O poeta tira o braço de entre as pregas da capa e ergue-o, majestoso, num ritmo com a sua clássica cabeça cega. Max Polónia, mal recebes a um estrangeiro! Zaratustra O que deseja? Max Cumprimentar-te, e dizer que os teus negócios não me convêm. Zaratustra Eu não negociei nada consigo. Max Verdade. Mas negociaste com o meu intendente, Dom Latino de Hispalis. Zaratustra E esse sujeito de que se queixa? A moeda não era boa? Dom Latino intervém com aquele tom de cão cobarde que dá o seu latido entre as pernas do dono. Dom Latino O Mestre não está de acordo com a taxa e desfaz o negócio. Zaratustra O negócio não se pode desfazer. Se tivessem chegado um momento antes… Mas agora é impossível: o embrulhinho todo, tal como estava, acabo de o vender, ganhando dois tostões. Foi sair o comprador e entrarem vocês. O livreiro, ao mesmo tempo que fala, recolhe o embrulhinho que ainda está em cima do balcão e entra na lúgubre parte de trás da loja, trocando um sinal com Dom Latino. Reaparece. Dom Latino Fizemos a viagem em vão. Este manhoso sabe mais que nós, Mestre. Max Zaratustra, és um bandido. Zaratustra Dom Max, isso não são apreciações convenientes. Max Vou-te partir a cabeça. Zaratustra Dom Max, respeite os seus louros. Max Pateta! 14
Entrou na cave um homem alto, magro, tostado pelo sol. Veste um traje de antigo voluntário cubano, calça alpergatas abertas de caminhante e tem uma boina inglesa. É o estranho Dom Peregrino Gay, que escreveu a crónica da sua vida andarilha num bafiento e animado castelhano, alterando o nome para Dom Gay Peregrino. Sem passar da porta, cumprimenta, jovial e circunspecto. Dom Gay Salutem plurimam! Zaratustra Como tem andado por esses mundos, Dom Gay? Dom Gay Lindamente. Dom Latino Por onde andaste? Dom Gay Venho de Londres. Max E vem de tão longe para ser esfolado pelo Zaratustra? Dom Gay O Zaratustra é um bom amigo. Zaratustra Conseguiu fazer o trabalho que queria? Dom Gay Perfeitamente. Ilustres amigos, em dois meses copiei na Biblioteca Real o único exemplar existente do Palmerín de Constantinopla. Max Mas vem realmente de Londres? Dom Gay Estive lá dois meses. Dom Latino Como está a Família Real? Dom Gay Não os vi no cais. Mestre, conhece a Babilónia londrina? Max Sim, Dom Gay. Zaratustra entra e sai das traseiras da loja, com uma vela acesa. O castiçal gordurento treme na mão do fantoche. Caminha sem ruído, com andar entrapado. A mão, calçada com mitene preta, passeia a luz pelas estantes de livros. Meia cara no reflexo e meia na sombra. Parece que o nariz se dobra sobre uma orelha. O louro pôs o bico debaixo da asa. Um piquete de chuis passa com um homem manietado. Sai a alvoroçar o bairro um rapaz com o cabelo rapado montado numa cana com uma bandeira. 15
O Rapaz com o Cabelo Rapado Vi-va-Es-pa-nha! O Cão Ão! Ão! Zaratustra Que bem está a Espanha! Frente ao balcão, os três visitantes, reunidos como três pássaros num ramo, esperançosos e tristes, distraem-se das suas penas num colóquio de motivos literários. Divagam, alheios ao tropel de chuis, ao viva do rapaz de cabelo rapado, ao ganir do cão e ao comentário desalentado do fantoche que os explora. Eram intelectuais sem um tostão. Dom Gay É preciso reconhecê-lo. Não há país comparável à Inglaterra. Aí o sentimento religioso tem tal decoro, tal dignidade, que indubitavelmente as famílias mais honoráveis são as mais religiosas. Se Espanha alcançasse uma concepção religiosa mais elevada, salvava-se. Max Rezemos-lhe um Requiem! Aqui os puritanos da conduta são os demagogos da extrema esquerda. Novos cristãos, talvez, mas sem o saberem ainda. Dom Gay Meus senhores, em Inglaterra converti-me ao dogma iconoclasta, ao cristianismo de orações e cânticos, limpo de imagens milagreiras. E ver a idolatria deste povo! Max Espanha, no que respeita à concepção religiosa, é uma tribo da África Central. Dom Gay Mestre, temos de refazer a concepção religiosa no arquétipo do Homem-Deus. Fazer a Revolução Cristã, com todos os exageros do Evangelho. Dom Latino São mais que os do camarada Lenine. Zaratustra Sem religião não pode haver boa-fé no comércio. Dom Gay Mestre, é preciso fundar a Igreja Espanhola Independente. Max E a Sede Vaticana, o Escorial. Dom Gay Magnífica Sede! Max Granitóide. 16
Dom Latino Vocês acabarão a professar na Grande Seita Teosófica. A fazer-se iniciados da sublime doutrina. Max É preciso ressuscitar Cristo. Dom Gay Caminhei por todos os caminhos do mundo e aprendi que os povos maiores não se constituíram sem uma Igreja Nacional. A criação política é ineficaz se faltar uma consciência religiosa com a sua ética superior às leis que os homens escrevem. Max Ilustre Dom Gay, de acordo. A miséria do povo espanhol, a grande miséria moral, está na sua sensibilidade tosca perante os enigmas da vida e da morte. A Vida é um cozido magro; a Morte, uma carantonha coberta com um lençol que mostra os dentes; o Inferno, um cadeirão de azeite fervente onde os pecadores esturram como anchovas; o Céu, uma quermesse sem obscenidades onde, com licença do pároco, as Filhas de Maria podem prestar assistência. Este povo miserável transforma todos os grandes conceitos num conto de beatas costureiras. A religião deles é uma chochice de velhas que dissecam o gato quando morre. Zaratustra Dom Gay, e que nos conta dessas marimachos que se chamam sufragistas? Dom Gay Nem todas são marimachos. Ilustres amigos, sabem quanto custava a vida em Londres? Três pennies, o equivalente a quatro tostões. E estava-se muito bem, melhor do que numa casa de três pesetas aqui. Dom Latino Max, vamos morrer a Inglaterra. Aponte-me a morada desse Grande Hotel, Dom Gay. Dom Gay Saint James Square. Não estão a perceber? O Asilo da Rainha Isabel. Muito decente. Estou-vos a dizer, melhor que uma casa de três pesetas aqui. De manhã, chá com leite, pão barrado com manteiga. O açúcar um pouco escasso. Depois, ao almoço, um guisado de carne. Às vezes arenque. 17
Queijo, chá… Eu costumava pedir um jarro de cerveja, e custava-me dez cêntimos. Tudo muito limpo. Sabão e água quente para os lavatórios, sem taxa. Zaratustra É verdade que os ingleses se lavam muito. Tenho reparado. Por aqui entram alguns, e têm um ar muito esfregado. Gente de outros países, que não sente o frio como nós, os naturais de Espanha. Dom Latino Repito. Vou-me mudar para Inglaterra. Dom Gay, como não ficaste tu nesse Paraíso? Dom Gay Porque sou reumático e faz-me falta o sol de Espanha. Zaratustra O nosso sol é a inveja dos estrangeiros. Max O que seria deste quintal, nublado? Como seríamos nós, espanhóis? Talvez mais tristes e menos coléricos… Quiçá um pouco mais tolos… Mas julgo que não. Assoma a filha de uma porteira. Trança postiça em toucado, meias caídas, cara de fome. A Rapariga Saiu esta semana o fascículo d’O Filho da Defunta? Zaratustra Está a ser distribuído. A Rapariga Sabe se no fim o Alfredo se casa? Dom Gay Tu o que preferias, pimpolho? A Rapariga É para o lado que eu durmo melhor. A Dona Loreta do coronel é que pergunta. Zaratustra Menina, diz a essa senhora que o que as personagens dos folhetins fazem é segredo. Sobretudo em questão de mortes e casamentos. Max Zaratustra, tem cuidado, que ainda te perguntam por Decreto Real. Zaratustra Era bonito se se divulgasse o mistério. Depois não havia folhetim. Escapule-se A Rapariga, evitando as poças com os seus caniços. O Peregrino Esperançoso, num canto, conferencia 18
com Zaratustra. Máximo Estrela e Dom Latino encaminham-se para a Taberna do Pica Lagartos, que tem os seus clássicos louros na rua da Montera.
C ENA T E RCE IRA
Taberna do Pica Lagartos: luz de acetileno; balcão de zinco; vestíbulo escuro com mesas e banquinhos; jogadores de cartas; diálogos indistintos. Máximo Estrela e Dom Latino de Hispalis, sombras nas sombras de um canto, regalam-se com copos de três de tinto. O Rapaz da Taberna Dom Max, veio à sua procura a Marquesa do Tango. Um Bêbado Pois, pois! Max Não conheço essa dama. O Rapaz da Taberna Henriqueta Põe Bem o Pé. Max E desde quando é que essa vadia tem título? O Rapaz da Taberna Desque herdou do finado defunto seu papá, que inda agora é vivo. Dom Latino Engraçadinho! Max Disse se voltava? O Rapaz da Taberna Entrou, olhou, perguntou e foi-se embora enfadada, a torcer a pescoceira. E aí a tem à porta! Henriqueta Põe Bem o Pé, uma moça vadia, diminuída de um olho, jornaleira e florista, levantava a cortinita de sarja verde por cima da sua cabeça cor de abrunho, adornada de pentes ciganos. 19
Põe Bem o Pé Varas de nardos! Varas de nardos! Dom Max, trago-lhe um requerimento da minha mãe: está doente e precisa do pilim do bilhete de lotaria que lhe fiou. Max Devolves-lhe o bilhete e dizes-lhe que vá para o inferno. Põe Bem o Pé Muito amável da sua parte, cavalheiro. Manda mais alguma coisa? O cego saca de uma velha carteira e, tacteado os papéis com um ar vago, extrai o bilhete de lotaria e atira-o para cima da mesa: fica aberto entre os copos de vinho, mostrando o número debaixo do tremeluzir azul do acetileno. Põe Bem o Pé apressa-se a deitar-lhe a unha. Dom Latino Esse número é premiado! Põe Bem o Pé Dom Max despreza o dinheiro. O Rapaz da Taberna Não a deixe ir-se embora, Dom Max. Max Filho, eu faço o que me dá na gana. Pede para mim a cigarreira ao patrão. O Rapaz da Taberna Dom Max, é uma capicua de setes e cincos. Põe Bem o Pé Que tem prémio, não falha! Mas é mister desembolsar três melopeias, e este cavalheiro está afónico. Cavalheiro, retiro-me, saudando-o. Se quiser um nardo, ofereço-lho. Max Fica quieta. Põe Bem o Pé Tenho de ir dar banho ao cão. Max Ele que se aguente. Filho, vai pôr-me a capa no prego. Põe Bem o Pé Por esse trapo não lhe dão nem os bons-dias. Peça as três pesetas ao Pica Lagartos. O Rapaz da Taberna Se lhe der graxa, tem-nas na mão. Ele diz que o senhor é o segundo Castelar ². Max Dobra a capa e some-te. O Rapaz da Taberna Peço quanto? Max Aceita o que te quiserem dar! Põe Bem o Pé Se a receberem! 20
Dom Latino Cala-te, engraçadinha. Max Filho, foge veloz. O Rapaz da Taberna Como a corça ferida, Dom Max. Max És um clássico. Põe Bem o Pé Se não ta aceitarem, dizes que é de um poeta. Dom Latino O primeiro poeta de Espanha. O Bêbado Crânio previlegiado! Max Eu nunca tive talento. Vivi sempre de um modo tão absurdo! Dom Latino Não tiveste o talento de saber viver. Max Amanhã vou morrer e a minha mulher e a minha filha ficam a fazer cruzes na boca. Tossiu, cavernoso, com as barbas estremecidas, e nos olhos cegos um vidrado triste, de álcool e de febre. Dom Latino Não devias ter ficado sem capa. Põe Bem o Pé E esse traste já não volta cá. Ao menos convide, Dom Max. Max Tome o que quiser, Marquesa. Põe Bem o Pé Um copo de anis de Rute. Dom Latino É a bebida elegante. Põe Bem o Pé Ah, Dom Latino, não é sem razão que se é a morganática do Rei de Portugal. Dom Max, não posso demorar-me, que o meu marido me faz sinal lá de fora. Max Convida-o a entrar. Um vadio grande e andrajoso, que vende jornais, ri, assomando à porta, e, como cão que se espulga, sacode-se com um alvoroço de ombros, a cara num grande riso de bexigas. É O Rei de Portugal, que faz velhacarias com Henriqueta Põe Bem o Pé, Marquesa do Tango. Põe Bem o Pé Entra, Manolo! O Rei de Portugal Sai tu cá para fora. Põe Bem o Pé Tens medo de perder a coroa? Entra incógnito, grande chato! 21
O Rei de Portugal Henriqueta, ainda te despenteio. Põe Bem o Pé Balelas! O Rei de Portugal Atentem os senhores que me chama Rei de Portugal para querer dizer que não valho um chavo! Argumentos desta vadia desde que foi a Lisboa e descobriu o valor da moeda. Eu, para vos servir, chamo-me Gorito, e não está nada bem que a minha morganática me nomeie pelo apodo. Põe Bem o Pé Cala-te, chalado! O Rei de Portugal Mexes-te? Põe Bem o Pé Espera que eu beba um copo de Rute. Dom Max paga-me. O Rei de Portugal E que tens tu a ver com esse poeta? Põe Bem o Pé Somos colaboradores. O Rei de Portugal Pois despacha-te. Põe Bem o Pé Quando mo servir o Pica Lagartos. Pica Lagartos Que disseste tu, grande vadia? Põe Bem o Pé Desculpa, querido! Pica Lagartos Chamo-me Venâncio. Põe Bem o Pé Tens um nome de folhetim! Anda, mede-me um copo de Rute, e dá ao meu marido um copo de água, que ele está muito acalorado. Max Venâncio, não me voltes a comparar com o Castelar! O Castelar era um idiota! Dá-me outro copo de três. Dom Latino Estou contigo no copo de três e no Castelar. Pica Lagartos Vocês são uns doutrinários. O Castelar representa uma glória nacional de Espanha. Talvez não saibam que o meu pai fez dele deputado. Põe Bem o Pé Então não! Pica Lagartos O meu pai era barbeiro de Dom Manuel Camo³. Uma glória nacional de Huesca! O Bêbado Crânio previlegiado! Pica Lagartos Cala a boca, Zacarias. 22
O Bêbado Faltei ao respeito? Pica Lagartos Podias ter faltado! O Bêbado Tem muita educação, este vosso servidor. Põe Bem o Pé Então saiu do Colégio dos Esculápios! Educou-se com o meu pai! O Bêbado Quem é o teu pai? Põe Bem o Pé Um deputado. O Bêbado Eu recebi educação no estrangeiro. Põe Bem o Pé O senhor viaja incógnito? Não será por acaso Dom Jaime? O Bêbado Topaste-me pela fotografia! Põe Bem o Pé Ora pois! E anda você sem uma flor na lapela? O Bêbado Vem cá pôr-ma. Põe Bem o Pé Ponho-a e presenteio-o com ela. O Rei de Portugal É preciso ser-se cavalheiro, Zacarias! E é preciso pensar bem, abelhudo, antes de pôr a mão! A Henriqueta é coisa minha. Põe Bem o Pé Cala-te, boca grande! O Rei de Portugal Metediça, não sejas tu provocadora! Põe Bem o Pé Não ponhas tu a pata, carraça. O Rapaz da Taberna entra com um sufoco sobressaltado; atado à testa, um pano ornado de sangue. Uma rajada de emoção altera caras e atitudes; todos os rostos, na sua diversidade, se pautam pela mesma norma. O Rapaz da Taberna Há correrias pelas ruas! O Rei de Portugal Viva a greve dos proletários! O Bêbado Dá cá mais cinco! Foi o que decidimos ontem por votação na Casa do Povo. Põe Bem o Pé Crispim, acertou-te uma pancada! O Rapaz da Taberna Um maricas da Acção Cidadã4! Pica Lagartos Filho, vê lá como falas! O próprio republicanismo reconhece que a propriedade é sagrada. A Acção 23
Cidadã é integrada por patronos de todas as circunstâncias e pelos membros varões das suas famílias. É preciso saber o que se diz! Grupos vozeiros correm pelo meio da rua, com bandeiras hasteadas. Entram na taberna operários vagabundos — camisa, lenço e alpergatas — e mulheronas inflamadas, de melena desgrenhada. O Rei de Portugal Henriqueta, ferve-me o sangue! Se tu não sentes a política, podes ficar. Põe Bem o Pé Grande chato, eu sigo-te para toda a parte. Enfermeira Honorária da Cruz Avermelhada. Pica Lagartos Rapaz, baixa a grade! Convida-se a sair quem quiser confusão. A florista e o chulo saem, empurrando-se, misturados com outros paroquianos. Correm pela rua tropéis de operários. Ressoa o fechar de muitas grades metálicas. O Bêbado Viva os heróis do Dois de Maio5! Max Filho, quando dinheiro te deram? O Rapaz da Taberna Nove pesetas! Max Recebe daqui, Venâncio. E tu, dá cá o bilhete de lotaria, Marquesa! Dom Latino Essa pássara voou! Max Leva o sonho da minha fortuna! Onde daremos com a vadia? Pica Lagartos Essa já não se afasta do tumulto. O Rapaz da Taberna Dá à costa na Modernista. Max Latino, empresta-me os teus olhos para procurar a Marquesa do Tango. Dom Latino Max, dá-me a mão. O Bêbado Crânio previlegiado! Uma Voz Morram os maricas da Acção Cidadã! Abaixo os ladrões! 24