Mortes imaginárias

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Michel Schneider

Mortes imaginárias

Tradução de

Bénédicte Houart

Cotovia



Índice

À hora da nossa morte

15

A língua cortada

41

Michel de Montaigne, 13 de Setembro de 1592

Morre-se só

52

Blaise Pascal, 19 de Agosto de 1662

Nada de cabeleireira

65

Senhora de Sévigné, 17 de Abril de 1696

Será que ainda estou viva?

71

Julie de Lespinasse, 22 de Maio de 1776

Nasci morto

77

François Arouet, conhecido por Voltaire, 30 de Maio de 1778

Amais-me, portanto?

83

Senhora du Deffand, 23 de Setembro de 1780

Basta, basta

91

Immanuel Kant, 12 de Fevereiro de 1804

Continua amanhã

97

Benjamin Constant, 8 de Dezembro de 1830

Dá-me a tua pata

103

Johann Wolfgang von Goëthe, 22 de Março de 1832

A mulher da minha morte

106

Aleksandr Pushkin, 29 de Fevereiro de 1837

Scrisse, Visse, Amò

110

Henri Beyle, conhecido por Stendhal, 22 de Março de 1842

Uma grande caixa de madeira branca

117

François-René de Chateaubriand, 4 de Julho de 1848

Os três rostos da morte

124

Honoré de Balzac, 18 de Agosto de 1850

Escrever, papel, lápis

139

Henri Heine, 17 de Fevereiro de 1856

7


Irmã! Irmã! Irmã!

147

Thomas De Quincey, 8 de Dezembro de 1859

Contar-lhe-ei uma história

151

Alexandre Dumas, 5 de Dezembro de 1870

A otomana

157

Gustave Flaubert, 6 de Julho de 1880

Eu, eu estava em face de mim

167

Guy de Maupassant, 6 de Julho de 1893

Ich sterbe

178

Anton Tchekhov, 2 de Julho de 1904

As línguas da morte

184

Marcel Schwob, 26 de Fevereiro de 1905

Escrevo-te deitado

194

Jean Lorrain, 30 de Junho de 1906

A morte de Lev Nicolaïevitch

201

Lev Tolstoï, 7 de Novembro de 1910

A câmara de ninguém

204

Rainer Maria Rilke, 29 de Dezembro de 1926

Não sei de quem sou o amor

213

Catherine Pozzi, 3 de Dezembro de 1934

Isto já não faz sentido

219

Sigmund Freud, 23 de Setembro de 1939

A pequena mala preta

224

Walter Benjamin, 26 de Setembro de 1940

Eu, mergulharei

232

Marina Tsvetaeva, 31 de Agosto de 1941

A morte plagiadora

239

Stefan Zweig, 22 de Fevereiro de 1942

Mortes paralelas

253

Hermann Broch, 30 de Maio de 1951

Dançar com as palavras

259

Robert Walser, 25 de Dezembro de 1956

Desculpem o meu pó

264

Dorothy Parker, 7 de Junho de 1967

Desgostos de amor

270

Alexandre Vialatte, 3 de Maio de 1971

O regimento parte ao alvorecer

276

Dino Buzzati, 28 de Janeiro de 1972

Morrer é um jogo

281

Vladimir Nabokov, 2 de Julho de 1977

8


Bisogna morire

294

Jean Rhys, 14 de Maio de 1979

Isto h谩-de passar

300

Truman Capote, 25 de Agosto de 1984

E agora Dedicat贸ria

305 319

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À memória de Alain Melchior-Bonnet, que não lerá este livro



Dizemos a morte para simplificar, mas hรก quase tantas mortes quanto pessoas MARCEL PROUST



À hora da nossa morte

Acabar é o verbo de que menos gosto. Morrer já faz mais sentido para mim. Prefiro-o aos seus sinónimos: expirar, apagar-se, passar, trespassar, perecer, desaparecer, falecer, sucumbir… Uns, porque garantem que existe alguma coisa depois, os outros, porque afirmam que não há nada. Apenas morrer traduz o acontecimento e o enigma, a solidão de se estar preso nalguma coisa desprovida de sentido. Gosto das palavras que parecem utensílios de ferro forjado e que só dominamos bem após os termos virado nas mãos durante muito tempo em todas as direcções; as palavras que cheiram à cola e ao suor com os quais foram torneadas. Nelas, julgamos sentir, quase palpar, o polimento e a resistência de existir, o trabalho de ser, o duro ofício de viver. Curiosamente, para mim, a palavra morte é uma dessas palavras. Esta palavra, a senhora de Sablé proibia que fosse dita na sua presença, e os editores, actualmente, segundo parece, recusam com frequência que ela surja no título de um livro, com a justificação de que isso poderia espantar os leitores. No entanto, esta palavra, ao invés de ser para mim origem de terror e repugnância, traz-me antes música e consolo. Porquê a morte? Equivale a perguntar: porquê as palavras? Pois o que resta no momento de passar, o que resta para deixar ou perder? Palavras; algumas, por vezes apenas uma: Rosebud. É conhecido esse argumento, que possui a beleza dos desvios, dos atalhos, e a abertura das coisas sim15


ples. Um moribundo pronuncia essas sílabas indecifráveis. Pensa-se no nome de um palácio, de um livro, de uma mulher, de uma empresa. Mais tarde, descobre-se que era um nome insignificante, um nome gravado num trenó de criança. Restam também frases. Por exemplo: Agora e na hora da nossa morte. Estas palavras, quando eu era criança, dizia-as sem as compreeender. Vivia mergulhado no presente, na hora presente, e julgava que a outra nunca soaria. Não sabia que só as orações dizem o mesmo nas duas extremidades do tempo, que as palavras envelhecem como a pele, ganhando dobras e pregas, orifícios e reentrâncias, gordura. Mas algumas permanecem intactas, jovens, quase infantis. Parecem proferidas por uma voz que ecoa fora do tempo. Falaremos nós mais alto, de modo mais justo, quando essa hora chegar? Por que razão haveríamos de pensá-lo? Serão as nossas palavras ainda articuladas, ou apenas balbucios e gemidos? Faremos nós de animal quando o anjo pousar sobre nós a sua asa? Quando os vivos provisórios se tornam mortos definitivos, sobra alguma coisa para dizer? Encontrar-se-ia aí o que há de mais verdadeiro nos seres humanos? Por ser bem dita, a morte seria desdita ou desmentida? Os homens são feitos de amor, tempo, separações, faltas e ausências. Sobretudo, são feitos de palavras. E de morte também, e sabem-no, mas preferem ignorá-lo: “Os mortais, afirmava Bossuet, não têm menos cuidado para enterrar os pensamentos sobre a morte do que para inumar os próprios mortos”. A morte no singular, a sua morte: estranho pronome possessivo para indicar a desapropriação absoluta. Mas também somos constituídos pela morte dos outros. Que têm eles para nos dizer, esses mortos aos quais Baudelaire atribuía grandes sofrimentos? Como qualquer palavra, qualquer frase, também a última requer interpretação e sofre de incompletude. Em que pensava esse moribundo tão próximo, meu semelhante, meu irmão, quando, entre dois 16


momentos de delírio, lançou a frase: “Também há belos italianos”? Referia-se ele a cavalos, a sua paixão oficial, ou a homens, de acordo com uma opção sexual sobre a qual nunca tive certezas? E por que haveria eu de pensar que essas palavras não são também elas delírio? Por que razão, à medida que a morte se aproximava, me pus a vigiar, a tentar captar, entre os seus arquejos, o seu estertor, palavras e frases mal formadas, fragmentadas? As suas mãos crispadas como se agarrando rédeas invisíveis — não era o meu primeiro morto, mas era a minha primeira agonia; soube mais tarde que esse gesto era um clássico do repertório de gestos e movimentos dos moribundos — esse gesto ainda fazia pensar nos cavalos que ele não mais domaria. Então, vi, mais do que ouvi pois que ele já não falava — a sua hora tinha soado — não a palavra morte, mas a sua irmã gémea latina mors. Ter a morte nos lábios, na boca, entre os dentes, não possuir mais do que um sopro de vida, todas estas expressões sugerem bem os laços existentes entre a morte e a boca. Antes de ser uma maneira de dizer, a morte é primeiro uma palavra engolida, mordida, sufocada, atravessada na garganta, engasgada. E a vida um cavalo em fuga. Por que razão durante tanto tempo se conservam na nossa memória, como se flutuando ou ondulando, essas palavras de pessoas que amámos, admirámos, perdemos? Será a música inaudita das ultima verba completamente imaginada por aqueles que a ouvem? “The tongues of dying men enforce attention like deep harmony” (“As línguas daqueles que morrem prendem a atenção como uma harmonia profunda”), afirma Jean de Gand, uma personagem de Shakespeare: Quando raras são as palavras, proferi-las não é vão; Expiram verdade aqueles que embora sofrendo ainda sopram palavras. Aquele que muito breve não mais falará escutado é

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Bem mais do que aqueles que jovens e sãos entre si conversam. O fim de um homem marca mais do que a sua vida decorrida: O sol pondo-se e a música por fim silenciada (Como mais doces se tornam os últimos doces sabores) Mais do que as precedentes coisas na memória são guardados.

Que sonho existe nesta tirada? Quanta fé na linguagem revela essa espera paciente pelas palavras! Ávido leitor da morte e das mortes, suportado por uma ilusão projectada numa coisa banal e feia, inspirado pelo estranho crédito que concedemos às últimas coisas, eu próprio cedo a esse lugar comum segundo o qual a verdade e a beleza se deixariam ouvir e ver aí melhor. Escuto as vozes de papel daqueles que já mal respiram. Pois que em matéria de últimas palavras, só encontraremos aqui escritores. Não porque os autores do passado sejam os únicos a morrer com palavras. Assim, gosto muito das ultima verba do compositor Bohuslav Martinu: “O que mais me entristece é que vou deixar de poder aprender”. Podemos considerar também sugestivas as últimas palavras de homens que não estavam ligados à literatura. Ernesto Che Guevara mantinha um diário nos maquis da Bolívia. Certa noite, anotou: “Somos dezassete debaixo de uma lua muito pequena e o caminhar é difícil”. Se, na manhã seguinte, ele não tivesse sido morto numa emboscada enquanto a lua desaparecia do céu, teria a sua última frase a mínima projecção? Diria ela, com essa concisão e essa pureza, a doçura negada, a dor de avançar, o mudo orgulho dos compañeros 1 encurralados? O livro do fim das palavras, a recolha das últimas frases, depois de outros terem sonhado com ele, quis lê-lo ou fazê-lo. Palavras nocturnas, câmaras de ecos, sílabas fatídicas, últimas palavras, coração derradeiro: o livro que vamos ler 1

Em espanhol no original. (N. da T.)

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colhê-las-á, reuni-las-á, será o registo das mortes imaginárias de escritores reais. Como nos filmes mudos, gostaria de anunciar àqueles que contemplarão estas minhas imagens: E quando se decidiram a abrir o livro, os fantasmas vieram ao seu encontro. Entrai, se faz favor, no meu parlatório de espectros, e se as sombras dos escritores mortos vos contarem as suas pequenas histórias, deixai-os falar, estas três dúzias de autores — nem todos muito grandes —, que, entre estas páginas, se cumprimentam de mais ou menos longe como velhos conhecidos. Ou se calam: este é um livro de emudecimento tanto como de gorgeios de palradores. Escutai esta conversa entre amigos que amo e uma visitante não convidada. Percorrei os quartos, vereis olhos encandeados pela memória, temores mais ou menos risíveis, tonalidades de pele cor de cera, de cera queimada, sobre travesseiros brancos. Nesse instante em que não se sabe o que prevalecerá, se o horror diante da linguagem — que não é simplesmente o receio de dizer — se o palavrear imbecil para não acabar, eis algumas paragens nas encruzilhadas entre a morte e as palavras. Não esquecerei que os mortos não são então mais do que corpos, coisas estrangeiras de que os sobreviventes têm dificuldade em desfazer-se. Maupassant, que narrou o que fizeram aos corpos de Flaubert e de Victor Hugo, chama-me talvez a atenção para uma lacuna a colmatar: “Seria muitas vezes curiosa de narrar, a história dos corpos dos grandes homens”. Mas não vos repetirei as palavras de Bossuet: “Ó mortais, vinde contemplar o espectáculo das coisas mortais”. Nenhum sermão, nenhuma visita às catacumbas, como a de Palermo, que tanto asssustou Maupassant com as suas múmias engalanadas para a festa e as suas crianças metidas dentro de pequenas caixas de vidro. Nada de fúnebre ou de macabro neste interesse pelas últimas sílabas. Ver, escutar, encontrar espíritos não é inquietante. Não haverá aqui lugar para consolações ou lamentações. Nenhumas lágrimas car19


pidas, mas uma colecção de histórias curiosas, e até de cenas para rir. O humor e o espírito dão colorido a várias cenas de despedida, como se o escritor pensasse que, se lhe ocorresse uma última frase espirituosa, a morte estaria autorizada a levá-lo pois que não o levaria inteiramente. Abro a cortina no momento em que La commedia è finita 2, o que não é necessariamente um mal, se acreditarmos em vários destes moribundos, boquiabertos e fascinados perante a maravilha de um novo traje por estrear, de um novo vestido para experimentar: de uma nova vida que luz e trepida. Qualquer biografia é um romance; é por isso que devoro tantas. Mas as biografias de escritores são as únicas que leio. E, por vezes, confesso-o, em relação a algumas, apenas procuro e espero pelo desfalecimento da linguagem no instante do fim. No entanto, se as “vidas de escritores” constituem um género literário, as “mortes de escritores” não passam de fantasmas, que muitos procuraram, mas que erram, dispersos, despedaçados, incoerentes, entre as estantes das bibliotecas. Os últimos dias de Immanuel Kant de Thomas De Quincey (1830, traduzido por Marcel Schwob em 1899), Os últimos instantes de Pushkin de Vassili Joukovski (1837), Os últimos dias de Charles Baudelaire de Charles Asselineau (1866-1868, publicado em 1925), Voltaire moribundo de Frédéric Lachèvre (1908), Os últimos dias de Blaise Pascal de Augustin Gazier (1911), Os últimos dias de Paul Verlaine de F.-A. Cazals e Gustave Le Rouge (1911), O fim de Maupassant de Georges Normandy (1927), que mais depois destes livros? É portanto preciso ler os livros que esses escritores escreveram 3: é aí que a sua morte é narrada. Um escritor é 2

Em italiano no original. (N. da T.) Como critério único, optou-se por traduzir sistematicamente os títulos das obras e textos mencionados. De resto, o autor adoptou os títulos franceses das obras, ainda quando se trate de autores russos, alemães, anglo-saxónicos, etc. É pos3

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alguém que morre durante toda a sua vida, com frases compridas, com poucas palavras. Talvez se julguem estas páginas demasiado eruditas e demasiado semeadas de dívidas em quantidade de citações. Não peço desculpa por isso. Somos aquilo que devemos aos outros. E não abdico das minhas leituras: são elas que me levam a escrever. Não hesitarei em fazer literatura sobre aqueles que fizeram literatura. Os escritores são todos contadores de histórias, mesmo aqueles que não escrevem romances. Mas apenas o fim lhes interessa, sempre o mesmo. É nesse lugar que eles se colocam, se instalam, nessa penumbra enigmática e irrespirável, naquilo que se pode pensar do fim e no fim de cada história. Não obstante, se tudo aquilo que contamos tem a ver com a morte, como contar a nossa própria morte? Não há nenhum termo para significar a escrita de si próprio enquanto morto. A autothanatografia é uma impossibilidade. Mas, por vezes, o escritor parece ser apenas o espectro de si próprio, e o seu fim, uma citação extraída da sua própria obra. Alguns tentaram até escrever a sua morte antes da hora soar. Outros aparecem como sombras projectadas: Verlaine, Stevenson, Nerval. A sua morte assombra e obceca os escritores que os admiravam. Portanto, regressam primeiro para saudar aqueles na companhia dos quais não pude demorar-me, mas que ainda se deslocam nos caminhos da minha memória. Escritores que tiveram uma morte, o que não é concedido a toda a gente. Para tornar-se um grande morto, é necessário pelo menos ter nascido, bem ou mal, mas ter nascido nem que seja um pouco. Seja como for, para tornar-se um morto, é preciso que esse alguém se tenha sensível que num ou noutro caso, existam traduções portuguesas das obras. O mais provável, no entanto, é que não existam, ou as edições tenham entretanto esgotado. Que esta nota sirva também para despertar a curiosidade dos leitores e a atenção das editoras para obras que, traduzidas, passariam a integrar o património da literatura de língua portuguesa. (N. da T.)

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tido vivo. Da tua morte, Gérard de Nerval, Baudelaire apresenta uma imagem esbatida: “Ele foi discretamente, sem incomodar ninguém, tão discretamente que a sua discrição parecia desprezo, largar a sua alma na rua mais sombria que conseguiu encontrar”. Gérard, descobrir-te-emos nestas páginas no fundo dos olhos dos teus irmãos escritores. Mas essa rua que se chamava rua da Vieille Lanterne 4, esse candeeiro no qual te encontraram enforcado com um laço branco que mostravas aos teus amigos dizendo ser um cinto que tinha pertencido à senhora de Maintenon, essa casa de quartos mobilados de aluguer cuja vidraça tinha gravada uma mensagem que os teus olhos leram num duplo sentido, um sentido infinito, On loge à la nuit, alojamos para a noite, alugamos à noite: nada disso te deu uma morte lenta, com amigos e palavras. Bela ironia do destino, no mesmo lugar onde nos deixaste encontra-se hoje exactamente o alçapão para o ponto no Théâtre de La Ville, em Paris. A garganta engasgada por um berro como no instante em que nasceste, foi essa provavelmente a tua última palavra. Nos teus bolsos, alguns calhaus, um passaporte para o Oriente, uma carta, uma moeda de dois soldos, pedaços de cordel, dois recibos de um asilo nocturno, folhas mortas e as últimas páginas de Aurélia, escritas durante esse dia e que acabavam com a seguinte frase: “É a última etapa”. O escritor e padre inglês Lawrence Sterne terminou a sua viagem sentimental doente e obcecado pelo prazer, despedaçado por mulheres, assombrado pelas palavras, sozinho num hotel. Foi em Londres, no n.º 41 da Old Bond Street, no dia 18 de Março de 1768. Um amigo aguardava por ele para jantar. Não o vendo chegar, mandou um rapaz perguntar pelo seu estado. O rapaz fez o seguinte relato: “Entrei no quarto e ele estava a morrer. Pediu-me para esperar alguns instantes. Daí a cinco minutos, disse-me: “Pronto, já está. Ela chegou”. Depois levan4

Rua da Velha Lanterna. (N. da T.)

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tou uma mão como se para amparar um golpe e morreu”. Um encontro galante. Não me incomodeis. Sterne tinha manifestado o desejo de morrer simplesmente, tal como era, como se diz que raramente morrem os grandes: “longe de casa numa qualquer pousada decente”. Não era necessário que os mortos agravassem ainda mais as preocupações e os dissabores dos vivos, pensava ele. Em Tristram Shandy, tinha troçado dessa mania de partir palavrosamente, senão mesmo musicalmente: A esse respeito, prosseguiu o meu pai, vale a pena recordar a pouca modificação que a aproximação da morte trouxe ao espírito dos grandes homens. Vespasiano morreu a brincar a propósito da sua cadeira de retrete, Galba, no meio de uma frase, Séptimo Severo, a tratar de um assunto corrente, Tibério, a dissimular, e César Augusto, a fazer um elogio.

As ultima verba de Sterne obedecem ao mesmo princípio de não incomodar. “Alas, poor Yorick!”, a frase de Hamlet, inspirou-lhe não apenas o capítulo no qual conta a morte do personagem bufo amigo de Tristram, como serviu de obituário nos jornais londrinos a respeito da sua própria morte. Tão só como tinha vivido e morrido, foi inumado no cemitério de Hanover Square. O seu cadáver foi roubado daí a alguns dias, depois vendido à Universidade de Cambridge, precisamente onde ele estudara. No final do estudo da anatomia, um dos dois assistentes da dissecação descobre por acaso o rosto do morto e reconhece Sterne. O professor, ao ver a testemunha desmaiar, percebe que abriu o corpo de um homem conhecido e decide que se conserve pelo menos o esqueleto do corpo já muito danificado. Entre as ossadas existentes na universidade, procurou-se muitas vezes identificar os restos mortais do escritor. O crânio de Sterne nunca foi encontrado. Ninguém sabe onde repousa realmente o autor da Viagem sentimental, o seu último livro, no qual 23


continuava a narrar as deambulações de Yorick, e que saiu três semanas antes da sua morte. Mas em Tristram Shandy, o 12.º capítulo do primeiro livro conclui-se com o relato da morte de Yorick, e introduz uma ousadia tipográfica perturbadora: uma página negra, completamente negra, aberta como um túmulo. O autor das Viagens de Gulliver, Jonathan Swift, também ele inglês nascido na Irlanda e a quem chamavam “o pastor louco”, foi ainda mais longe. Em 1831, escreveu um longo poema nocturno: Versos acerca da morte do dr. Swift. Nele imagina os comentários feitos pelos seus amigos, antes, durante, e após a sua morte: Notem como o Deão principia a desfazer-se Pobre cavalheiro, tão rápido decaindo Verificai-o na sua fisionomia Essa antiga vertigem na sua cabeça Só o largará com a própria vida Já a sua memória vai desfalecendo Já o que diz vai esquecendo

Swift morreu realmente louco, mas lentamente. Atingido em 1740 por uma doença indefinível, que o leva a dizer, “não compreeendo as palavras que escrevo. Se viver até segunda-feira, espero ver-vos, talvez pela última vez”, morrerá apenas no dia 19 de Outubro de 1745. Alguns anos antes, havia queimado todos os seus papéis e escritos ainda não impressos. Queixa-se de já não ser uma criatura humana, mas um idiota. A sua decadência física e mental é acompanhada por uma surdez quase total e por acessos de raiva incompreensíveis. Caminha dez horas por dia, recusa comer à frente de um criado, proíbe os coros de St. Patrick de Dublin de se apresentarem em concerto, trata de diabo todos aqueles que dele se aproximam. Os seus criados apontam-no a troco de dinheiro. Olha-se ao espelho e diz: 24


“Pobre velho”. Sentado na sua poltrona, repete: “Eu sou aquilo que sou… Eu sou aquilo que sou”. Para epitáfio, em latim, tinha escolhido: Aqui-jaz o corpo De Jonathan Swift Doutor em Teologia Deão desta catedral Onde a furiosa indignação Não mais poderá despedaçar-lhe o coração

Após a autópsia, descobriu-se água no seu crânio. Mais tarde, como no caso de Sterne, o seu caixão será aberto e novamente fechado, os seus ossos profanados. “Por que razão dizemos “avançar na vida”, escrevia Georges Bernanos, “É na morte que avançamos, é a nossa morte que aprofundamos sem cessar, como uma lenta obra futura que vamos compondo”. Para o escritor, nenhuma última palavra. Ou, então, todas as suas palavras parecem ser a última. A literatura talvez seja um modo longo de desenvolver a última frase, de não poder contentar-se em ficar por aí. De falar ainda quando as palavras faltam. De perguntar, como o fez o último rei dos Romanos, Siágrio, ubit essent umbrae, onde estavam as sombras? Cada um tem as suas, tal como cada um, numa língua comum, fala a sua própria língua. Questão de estilo. De imagens. Para alguns, a morte é um homem, e, para mais, um capitão: “Ó morte, velho capitão, é hora! Levantemos âncora!” escreve Baudelaire. Para outros, é uma mulher, ainda amada: “Essa ideia da morte apoderou-se de mim como um sentimento de amor”, escreve Proust. “Não que eu amasse a morte, detestava-a. Mas, depois de ter pensado nela de tempos a tempos como numa mulher que ainda não se ama, agora o seu pensamento aderia tão completamente à camada mais profunda do meu cérebro que não conseguia ocupar-me com alguma coisa sem que essa coisa fosse primeiro atravessada pela ideia da morte”. 25


De entre os meus escritores, há os apressados e os demorados, os que tremem e os duros, os de olhos secos e os de olhos lacrimejantes. Mas quase todos reencontram as palavras de quando crianças. Léon-Paul Fargue morreu em Novembro 1947, num mundo hoje desaparecido, mas de que descubro nos seus livros nomes outrora familiares — cigarros da marca Bastos, a Véganine, que era uma espécie de aspirina, um mundo de Renault 4CV, de cafés e bares, de cerveja Suze. Amou e cantou os cafés. Morreu calmamente em sua casa. Paralisado há quatro anos, tinha-se instalado na doença “como um violino arrumado no seu estojo”. O mundo surpreendia-o ainda, mas já só ia lá de noite, estava imóvel na cama o resto do tempo, ditando as suas memórias e entregando-se a sentimentos de nostalgia. Na última manhã, enquanto mudam os lençóis da sua cama, olha maravilhado e murmura: “Demasiado azul… Inadmissível”. À noite, sente dores de cabeça, chama a mulher com quem partilha a vida: “Depressa! Depressa!”. E adormece. Nunca despertou. O defunto teve a feliz ideia de se esquivar sem ruído nem demora. Era a hora de jantar, oito horas da noite e vários amigos tinham sido convidados. Desolados, os próximos afastam-se. Nunca mereceram menos esse nome: próximos. Nesse momento do trespasse, têm apenas um desejo, absoluto, vergonhoso, admirável: não ser aquele morto. Como os pais antigamente falavam com naturalidade das cólicas dos filhos, congratulam-se: “Deu-nos uma morte bem leve e não demasiado longa”. Será portanto isso, a morte, aquilo que principia quando as palavras terminam? Marcados e mascarados pelo desejo de uma doce morte, as ultima verba de um autor serão realmente os últimos? Ainda palavras? Ainda palavras de escritor? Últimos, no sentido temporal? Quem sabe se sequer houve palavras? Mais do que o esforço para manter um estilo conciso, é a fadiga que se impõe: o laconismo é a regra dominante para as últimas palavras. As tiradas são raras, ou então constituem 26


incoerentes litanias. Um longo discurso faria duvidar do estado do moribundo, e é necessário ser-se Mallarmé para não renunciar então ao mais-que-perfeito do conjuntivo ao pedir à mulher e à filha para destruírem os seus papéis: “Eu tê-lo-ia feito 5… Mas acreditai que devia ser bom”. O próprio Henry James, discreto como era, cede a uma grandiloquência não destituída de mistério: “Ei-la por fim, a distinta coisa”. Mas, se por vezes se fazem importantes, os mortos não são importunos. Nada faladores, contam com parcimónia as suas últimas sílabas: raramente mais do que um hemistíquio. “Tanto pior” (Albert Capus); “Está bem” (André Gide); “Não, não” (Emily Brontë). O ponto de exclamação é raro: “Agora, chegou a nossa vez!” (Georges Bernanos); “Nada mais do que a morte!”, responde Jane Austen quando lhe perguntam o que deseja. O ponto de interrogação é mais frequente, sobretudo no caso das mulheres: “Será que ainda estou viva?” (Julie de Lespinasse para os que a rodeiam); “Amais-me, portanto?” (a senhora du Deffand, inimiga figadal da anterior). A tautologia é abundante: “Estou a morrer” (Voltaire, numa carta, seis dias antes de morrer, frase que é repetida nos últimos instantes); “A morte, a morte” (Georges Sand); “Estou perdido” (Heinrich Heine). Se alguns escritores invocam o nome da mulher no momento fatal: “Meu amor, que alegria, como estou feliz!” (Roger Vaillant), mais raros são aqueles que então chamam pela mãe: diz-se, contudo, que quase todos nós cederemos à esperança desse regresso consolador. Anatole France, antes de se apagar, torturado pela dor, ainda diz: “Mamã, Mamã”. Mas, por vezes, diz-se ainda menos. Porque já não tem tempo ou energia, o escritor, não menos do que qualquer homem, sente apenas um cansaço para falar, e a morte, com 5 Em francês, “Je l’eusse fait”, que traduzimos por “eu tê-lo-ia feito”, e que de facto corresponde ao “mais que perfeito do conjuntivo”, actualmente raramente empregue em francês, mesmo na escrita literária. (N. da T.)

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a qual ele tantas vezes tinha conversado, surpreende-o então mudo. Louis Racine não era Jean, seu pai, mas deixou-nos pelo menos dois belos versos: Triste é o destino do homem! O túmulo alcança Mais frágil, mais infante, do que no berço jazia

No relato dos últimos instantes do autor de Fedra, registados pelo marquês de Dangeau no seu Diário: “Já não há esperança e mesmo o Rei parece afligido pelo estado em que ele se encontra”, são evidentes e surpreendentes os traços da infância. Infans, a palavra latina, designava aquele que ainda não fala. Aqui, designa aquele que já quase nada diz. “Deus é quem manda”, diz Racine ao seu outro filho, Jean-Baptiste, dois dias antes de morrer, “mas posso garantir-vos que, se ele me desse a optar entre a vida e a morte, não sei qual delas escolheria: já paguei o preço; agora, já não depende de mim”. Pede-lhe para retirar de uma pequena caixa negra um último manuscrito: o Resumo da história de Port-Royal. Morre no dia 21 de Abril de 1699 de madrugada, após quarenta e cinco dias de paciente sofrimento. A palavra silêncio teria sido proferida por ele durante toda a noite. Quem pode estar seguro de que, mesmo proferidas, essas tenham sido precisamente as últimas palavras? Última manifestação de um eu que em breve deixará do ser, essas palavras chegam demasiado tarde, quando finalmente chegou a hora a respeito da qual nos interrogámos se seria então de dia ou não, se estaria frio ou não. Por vezes, fazemos então de tolo, de néscio que se tira da lama para se meter no atoleiro. Como por vezes nos matamos para não mais sermos obrigados a morrer, falamos para podermos calar-nos. Senhas, palavras de passe, palavras de passagem. Como as que lançamos à Esfinge. Não obstante, crente ou descrente, justo ou falso, doentio ou anedótico, altivo ou queixoso, de cada um, e seja como for, a última palavra será devorada pelo 28


monstro juntamente com o corpo que a exala. Não sei se no princípio era o verbo; temo bem que, no final, o verbo deixe de ser, para sobrar apenas um corpo desabitado pela palavra. Morrerão os escritores menos do que os outros? As suas mortes sê-lo-iam mais se delas nada de memorável fosse recolhido ou inventado? Aquele que escreve não espera pela imortalidade dos seus futuros leitores. Será esquecido — ou não —, depressa — ou vagarosamente. Pouco importa: não é por isso que escreve. Quando trabalha, não pena pelos vivos que hão-de chegar, mas pelos mortos que o precederam. São Boaventura obteve do Céu a autorização para continuar as suas Memórias após a morte, recorda Chateaubriand, que não esperava tão grande favor, mas ansiava por ressuscitar à hora dos fantasmas pelo menos para corrigir as provas. Escrever significa colocar-se na perspectiva da morte em relação à sua própria vida e à dos outros. Como todos os autênticos escritores, também Proust escrevia na sombra delicada dos grandes autores mortos. “O que me garantirá que vi bem”, observa ele, “não é o elogio dos vivos, mas a afinidade com os mortos. Basta descobrir determinada coisa que dissemos num livro de Diderot que não conhecíamos para ficarmos certos da sua verdade […]. Assim, o que reconforta um escritor, não é o juízo favorável dos vivos, mas a aprovação de um morto”. Kafka escreveu como ninguém a relação entre morrer e escrever. Em Dezembro de 1914, regista no seu Diário: Pressupondo que o sofrimento não seja muito grande, ficarei muito satisfeito por morrer. Aquilo que de melhor escrevi releva dessa capacidade que possuo para morrer contente. Em todas as passagens bem conseguidas e muito convincentes que escrevi, trata-se sempre de alguém que morre, que acha muito duro ser obrigado a morrer, que vê nissso uma injustiça ou pelo menos um constrangimento exercido sobre ele, de modo que tal se torna comovente para o leitor, na minha opinião. Mas para mim, que julgo poder estar satisfeito no meu leito de morte, tais des-

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crições são um jogo secreto, pois regozijo-me ao morrer na pessoa do moribundo, exploro com calculismo a atenção do leitor concentrada sobre a morte e sou bem mais lúcido do que ele que, suponho, soltará gemidos quando estiver moribundo.

Os escritores nem sempre procuram imortalizar-se através dos seus livros. Na falta de uma relação extrema com esse extremo no qual as palavras e a vida são aniquiladas, pode-se talvez escrever, mas não se é escritor. Os livros, aqueles que realmente contam, não parecem escritos por um autor morrendo? Não se morre contente porque se escreveu bem: escreve-se bem porque se aceita a morte com contentamento. Últimas palavras no sentido de palavras definitivas? Diz-me quem morres, dir-te-ei quem foste? Nada seguro. Como homens vulgares, pensava Montaigne, “Acontece à maioria medir cuidadosamente a sua atitude e as suas palavras para ganhar uma reputação de que esperam gozar ainda em vida”. Se é talvez necessário nessa hora tentar “falar francês, e mostrar aquilo que há de bom e imaculado no fundo do poço”, este é um imperativo que confunde o falar verdade com o falar bem. Porquê esse selo de verdade aposto nos nossos lábios pela morte? Ultima verba é o título de um célebre poema de Victor Hugo que termina do seguinte modo: E se ficar apenas um, hei-de ser eu! A última palavra 6 indica o fim, a quebra, de uma conversa. Ter a última palavra significa obter a vitória numa disputa, apresentar o argumento defintivo numa discussão. Mas esta expressão também tem um sentido literal: as derradeiras palavras, não necessariamente as 6

Em francês, “mot de la fin”, a última palavra, que dá uma discussão por terminada, mas que o autor emprega também no sentido das derradeiras palavras proferidas por um moribundo. O autor distingue aquela expressão de “avoir le dernier mot”, ter a última palavra. Em português, a expressão é a mesma. O autor, como se compreende, procura as palavras do fim, as palavras finais, ou, como frequentemente refere em latim, as ultima verba. (N. da T.)

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mais fortes ou as mais brilhantes; não aquelas que calam, mas aquelas depois das quais resta apenas o silêncio. O sentido derivado oculta o sentido primeiro: há talvez em certas palavras derradeiras o desejo ou a vontade de ter a palavra final, a última palavra. Serão ainda palavras no sentido em que são animadas pelo espírito, pela inteligência? Quando os escritores dizem frases sentenciosas, como se as pusessem na boca das suas personagens como no teatro, será para voltarem a conquistar ou a seduzir o seu público, a sua audiência, e determinar o último acto da peça? Poucos são aqueles que escapam à encenação, e à encenação por palavras, da sua própria morte. Intui-se ou pressente-se por vezes o desejo de ser escritor até ao fim, de existir até à última gota do tinteiro, até ao último derrame de sangue, de tornar a sua morte uma obra de arte, como Oscar Wilde pretendia fazer com a sua vida. A morte é tão feia, por que não fazer-lhe uma finta ou deitar-lhe a língua de fora, troçá-la, pregar-lhe uma partida recebendo-a com belas palavras, mostrando uma figura irrepreensível à ladra de palavras? Ei-la que vela, espreita, se aproxima, se desvia, atalha caminho. “Vem. Comigo ficarás tranquilo. Já não há palavras para agarrar antes que escapem, já não há palavras que se aguentem”. Morrer como se escreve: com estilo? Certos escritores colocam mais escrúpulos na escrita da sua morte do que cuidavam das correcções de provas das suas obras antes da ida para a tipografia e da impressão. Seguem o conselho de Chateaubriand: “Homens que amais a glória, cuidai do vosso túmulo; deitai-vos nele de modo confortável; procurai nele fazer boa figura; pois dele não saireis”. Estarão eles equivocados? Não se fala de “uma sentença de morte” 7, de uma condenação 7 Em francês, “arrêt de mort” (sentença de morte, condenação à morte), expressão com a qual o autor joga porque significa literalmente uma paragem definitiva, fatal, da capacidade de falar ou discorrer. (N. da T.)

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ao silêncio, após a qual nada mais há para dizer? As últimas palavras já não terão uma vida inteira a seguir a elas, em volta delas, como em vida do autor, para dar-lhes sentido. A morte é um editor por vezes desonesto e sempre preguiçoso. Publica de modo apagado e baço aquilo que o manuscrito tinha registado com brilho e nitidez. Victor Hugo moribundo, depois de ter deixado escapar um ruído rouco que se assemelhava ao das ondas do mar a rolar nos calhaus, — os estertores, como as palavras, serão eles pensados para ilustrar a imagem que se pretende legar para a posteridade? —, largou uma frase que será considerada a última: “É aqui o combate entre o dia e a noite”. Um verso alexandrino, mesmo no fim continuamos iguais a nós próprios. Mas fraco, “burguês”, teria dito Flaubert. Dez anos antes, Hugo tinha descrito a hesitante partida ou separação: “O dia de labuta do trabalhador terá terminado. A sua hora terá soado. Parecerá adormecido; colocá-lo-ão entre quatro tábuas e conduzi-lo-ão para a grande e escura abertura. É aí que se encontra o limite impossível de adivinhar”. Aqui descobrimos o escritor. No seu leito de morte, apenas escutamos um homem pomposo a agonizar. No instante de entregar as suas palavras com a sua alma, os mais escritores dos escritores ainda procuram um estilo, uma forma de dizer: “É preciso morrer bem”, escreve Borges, “sem lamentar-se demasiado, sem julgar que o mundo perderá por isso o seu sumo, a sua seiva, e tendo nos lábios uma bela frase espirituosa”. Sacha Guitry, alguns meses antes de morrer, gravou um monólogo intitulado O seu último quarto de hora. Nele confessa o seu desejo de morrer maquilhado, actor de si próprio, como tinha sido: “Um desenlace ou um desfecho”, diz ele, “só é bem conseguido se é acompanhado por um gesto ou uma frase que tem como finalidade provocar e impressionar a imaginação daqueles que o registam e irão difundi-lo. Em consequência, consideramos como uma última deixa, a deixa para sair do palco, a derradeira frase 32


pronunciada por um moribundo suficientemente preocupado em manter o seu prestígio e cuidar da sua lenda”. Também era a ideia de Voltaire: “Pararia de ir morrendo se me ocorresse uma bela frase ou uma palavra espirituosa”. Quanto a Chamfort, junta a perversidade à elegância: “Vou fingir que não estou a morrer”. Acrescentando a impostura à pose, outros improvisam finais de espectáculos, como Rabelais: “Fechai a cortina, a farsa terminou”. Outros ainda fazem citações, plágios, pastiches. A Chamfort, que, encontrando-o a agonizar, lhe pergunta: “Como é que vai isso?”, Fontenelle respondeu: “Isto não vai, isto vai-se”. À mesma pergunta, um século antes, Vaugelas moribundo terá respondido: “Eu não vou, vou-me”, acrescentando logo: “Ou eu vais-me. Diz-se ou dizem-se uma e outra” 8. Se é certo que tinha distinguido as duas formas gramaticais na XXVIª das suas Observações sobre a língua, não foi Vaugelas que proferiu essa frase, mas sim o padre Bouhours, gramático jesuíta, cinquenta anos depois, e que mais tarde se atribuirá ao filósofo retórico Dumarsais. As palavras, as frases, tal como a morte, não são pertença de ninguém. A de Bouhours foi de uma admirável perversidade: “Tenho algum escrúpulo pelo prazer que sinto a morrer”, afirmou ele na sua última hora. À de Vaugelas não faltou nem horror nem elegância, e foi escrita com o mesmo nível de correcção gramatical e com mais beleza ainda. Tendo sofrido terrivelmente durante cinco ou seis semanas por dores provenientes de um tumor no estômago, numa manhã em que se sentia melhor, o sofrimento conquistou-o com mais violência. Mandou pedir auxílio, mas, quando expeliu o abcesso pela boca, teve mesmo assim tempo para dizer ao seu criado: “Vedes, meu amigo, o quão pouca coisa é um homem”. 8 De facto, as duas formulações eram possíveis, “je m’en vais” (“Eu vou-me”, forma gramaticalmente correcta em português) e “je m’en vas” (forma verbal na 2.ª pessoa do singular), mantendo-se ainda hoje como regionalismo. (N. da T.)

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Os escritores moribundos não deixam nesse instante preciso de serem escritores? Ou, pelo contrário, um homem da palavra só nos falaria verdadeiramente quando se prepara para perder a palavra? O que significa morrer enquanto artista do verbo, da frase? Como fazem aqueles que tinham escolhido ser profissionais das letras quando a linguagem se furta à sua pena, se esquiva, e passa a flutuar apenas em redor dos seus lábios? Poucos autores se anunciam então como escritores e se apresentam diante do tempo dizendo: Qualis scriptor pereo! 9 O mais das vezes, é a banalidade que domina nas palavras que ainda se articula. As palavras parecem então aqueles pregos que são pregados num muro de intervalo em intervalo, e que, numerosos vistos de longe, não excedem a palma de uma mão. Não que se trate sempre de mentiras ou de poses no instante da morte. Alguns têm uma morte lenta, e segura, e sábia. Desposam-na no termo de um paciente noivado. Talvez o desconhecimento e a ignorância estejam igualmente presentes, e o casamento deixe aquele amargo de boca das festas nas quais tantas expectativas foram depositadas. O que nada tem a ver com o que a morte é para a maioria, um mal-entendido, uma mulher que passa e engata o primeiro que aparece e o leva sem dizer uma palavra. Há sempre um equívoco na pessoa escolhida. A última frase escrita pela mão de Rimbaud dirigia-se ao director dos Transportes Marítimos de Marseille: “Diga-me a que horas devo ser transportado para bordo”. Não estão enganados esses escritores que partem sem frases, sem o desejo de morrer em beleza. Penetrando nas horas derradeiras, sentem um alívio por já não terem de se preocupar com o sentido e o peso das palavras, com a sua musicalidade, com o seu perfume. Preferem o desinteresse ao legado, 9 Em latim no original: “Morro na qualidade de escritor”. Outras expressões latinas, ou inglesas, muito conhecidas, não motivaram ou motivarão notas da tradutora. (N. da T.)

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o apagamento ao adeus. Os mais seriamente dedicados ao labor de morrer nada dizem durante os dias, as semanas que antecedem a sua morte. Desconfiam das falsificações em matéria de escrita. Pois que, apócrifas, compostas, as últimas palavras são para sempre. A morte de Jean Racine foi deste modo narrada pelo seu filho Louis. “Começando as suas dores a agudizar-se, recebeu-as das mãos de Deus com tanta doçura quanto submissão”. Dodart, o médico dos Solitários de Port-Royal, fez-lhe “uma incisão cruciforme do lado direito, um pouco abaixo da zona mamária, de onde escorreram duas onças de pus bem espesso”. Um amigo de Racine, Valincourt, observou algo de diferente: “As suas dores tornaram-se tão cruéis que, uma vez, perguntou se não poderiam ser travadas, administrando-se-lhe algum remédio que lhe findasse a doença e a vida”. Segundo o seu irmão Paul, também ele escritor, no dia 2 de Maio de 1857 às três e um quarto da manhã, Alfred de Musset apagava-se soltando as seguintes palavras: “Morrer! Dormir! Finalmente, vou dormir!”. Paul não se encontrava presente, e as palavras eram de Byron moribundo. Talvez já falsas, e retomando certamente o “To sleep, to dream” de Hamlet. De acordo com Arsène Houssaye, na última noite, alucinado, Musset cria ouvir O Rei dos Álamos de Schubert, e via-se, criança morta nos braços do pai, cavalgando por entre a neve e o vento. Para esse romântico e excessivo amigo, Musset morreu sem palavras, mas com música. “Foi ao som dessa música que ele passou para o outro mundo, com todos os sacramentos da poesia”. A verdade é que Alfred de Musset adormeceu sem uma única palavra, encharcado em álcool, como sempre. Mas alguns dias antes, quando Adèle Colin, a sua mais do que dedicada governanta, quis secá-lo com um lençol aquecido após o banho, ele afastou o lençol revelando o seu maltratado corpo nu. 35


Ainda não tinha soado a hora de ser amortalhado: “Ainda não”, disse ele. André Gide fez questão de manter o seu Diário até a alguns dias do fim. Não era altura de deixar de se olhar no espelho em que se escrevia interminavelmente na primeira pessoa. No seu último texto, iniciado em Julho de 1950, Assim seja ou Os dados estão lançados, anota: “Creio bem que mesmo quando estiver a morrer, ainda pensarei: “Olha! Ele está a morrer””. Na fase decisiva da pneumonia que o levará seis dias depois, em Fevereiro de 1951, ainda escreve: “Não! Não posso afirmar que com o fim deste caderno tudo estará terminado; que tudo acabou. Talvez ainda sinta o desejo de acrescentar alguma coisa. De acrescentar não sei o quê. De acrescentar. Talvez. No último instante, de acrescentar ainda alguma coisa… Tenho sono, é verdade. Mas não tenho vontade de dormir. Parece-me que poderia estar mais cansado ainda. É não sei que hora da noite ou da manhã… Tenho ainda alguma coisa para dizer? Ainda para dizer não sei o quê”. Três dias mais tarde, recusando beber ou comer, alimentando-se apenas, segundo algumas testemunhas, da leitura das Geórgicas de Virgílio, arquejando, diz: “Tenho receio de que as minhas frases deixem de estar gramaticalmente correctas”. Não estamos seguros destas últimas palavras de Gide, que morre no dia 19 de Fevereiro, com uma plateia numerosa reunida em redor da pequena cama de ferro: família, escritores (Schlumberger, Martin du Gard, Herbart), editores (Denoël, Gallimard pai e filho). Alguns ouvem-no dizer: “Está bem”; outros: “Não é nada”. Em que acreditar? Roger Martin du Gard enganará a sua fome colmatando esta incerteza com grandes palavras escolhidas e definitivas: tristeza, recolhimento, renúncia, consentimento, morte doce, desprovida de patético e de angústia. E concluindo: “É necessário ser-lhe infinitamente grato por ter sabido morrer tão bem”. Na mesma via da celebração, comenta-se com frequência a 36


abnegação discreta, a cósmica fé no belo, expressas nas últimas palavras escritas por Gide: “A minha própria posição no céu, em relação ao sol, não deve levar-me a considerar menos bela a aurora”. Na realidade, não foi essa a sua última palavra escrita. Na margem, acrescenta: “A insuficiente dosagem de cinzento azulado do casaco de Catherine foi milagrosamente compensada, em seguida, pelo contributo inesperado do seu gorro de pele. Tudo isto de um gosto imaculado, evidentemente”. Dois advérbios terminados em –mente, uma preocupação de chapeleira, nada disto corresponde a um grande escritor moribundo. Rasura-se a última frase. Guarda-se para a posteridade aquela que fala do céu, no sentido literal e figurado. Martin Heidegger afirma acerca de Nietzsche: “Nasceu, trabalhou”. É no fundo a única coisa que temos o direito de dizer sem extorquir ao escritor a sua vida e a sua morte, as suas palavras e os seus silêncios. Mas nunca se poderá impedir a posteridade de transformar histórias em lendas. Os mudos como os faladores, os literatos como as pessoas simples, todos eles são obrigados a sujeitar-se à reescrita pelas testemunhas e pela história literária. Tão obsessivo é o desejo de belas palavras que alguns crêem então pressentir no fundo dos olhos dos autores mais recatados uma quase-palavra que se calava. Transformar as palavras derradeiras na última ou nas últimas palavras, parar a tremura dos lábios numa frase lançada com elegância, extrair de uma história pálida e morna no seu final a palavra ousada, astuta, delicada, que esclarece retrospectivamente essa história, eis a explicação, a razão de ser para essas palavras que é suposto os moribundos proferirem. Ainda que o medo as tenha ditado, serão sempre transfiguradas pela coragem e pela serenidade com a preciosa ajuda dos sobreviventes. Aos heróis só é permitida uma morte ou doce ou heróica. Ignora-se quais foram as últimas palavras pronunciadas por Joseph Conrad. A enfermeira ouviu apenas um grito de 37


madrugada quando ele escorregou da poltrona para o chão, onde ela o encontrou às oito horas e trinta da manhã, no dia 3 de Agosto de 1924. As falsas testemunhas dos últimos instantes recordam-me frequentemente o narrador do seu romance No coração das trevas, relatando à sua viúva a morte de Kurt, o protagonista, e dando-lhe a descrição que ela pretendia ouvir: “Os seus últimos pensamentos foram-lhe destinados; a última palavra que proferiu foi… o seu nome”. Na realidade, apenas tinha escutado da boca do moribundo uma exclamação, um sopro rouco e quase inaudível: “O horror! O horror!”. Não obstante, tratar-se-á de algo de vergonhoso? Se a piedade não é uma virtude literária, garante contudo a paz nos corações e torna real a beleza dos cenários. As palavras dos escritores que passam não parecem feitas da mesma matéria das palavras dos moribundos vulgares. Duram. Não são esquecidas. São gravadas. Não são ditas, mas já estão escritas, já estavam escritas, e para sempre. Gostaríamos que fossem sempre admiráveis, biseladas, talhadas, gravadas de um modo particular e numa matéria que o tempo não corrompe. Só ganham um sentido enigmático porque ocorrem numa interrupção também ela enigmática. As últimas palavras são sempre belas porque as queremos e desejamos tais. Literárias já que são obra de fazedores de literatura. Então, inventamo-las, ou atribuímos-lhes um segundo ou um terceiro sentido que transcende a monotonia, o carácter insípido e insignificante do primeiro. Essas frases não literárias são integradas em cenas, cenários. As testemunhas e os biógrafos, como o próprio romancista, mesclam e combinam recordações e mentiras, rostos e máscaras, pessoas e personagens. “O que no romance seduz o leitor é a esperança de iluminar e aquecer a sua vida insípida e fria à luz da chama de uma morte cuja narrativa lê”, escreve Walter Benjamin quatro anos antes de morrer. Encontrava o motor do romance na possibilidade concedida ao leitor de viver com 38


as personagens “o sentido da vida”. “É portanto necessário que ele esteja desde logo certo de viver com elas a experiência das suas mortes. Pelo menos, dessa morte figurada que é o fim do romance. Mas, de preferência, da verdadeira morte. Como é que essas personagens lhe dão a sentir que a morte já os espreita, já os vigia, tal morte singular em tal lugar singular?”. Benjamin não escreveu romances. Tornou-se uma personagem de romance. Figura entre os meus escritores imaginários, de acordo com a ilusão que me leva a perceber como romanescos discursos ou frases proferidos por aqueles que escreveram romances ou escreveram sobre romances. A prática de imortalizar em cera o rosto de um morto desapareceu. Inspirava-se na preocupação de capturar na sua verdade última a imagem e o relevo, a fisionomia e a expressão, de um ser. Assim, a contemplação da máscara mortuária de Pascal tornou-se quase uma moda no século XIX: foi uma das últimas alegrias do poeta Sully Prudhomme e do filósofo William James. No entanto, as máscaras mortuárias são frequentemente falsas. A de Balzac seria na realidade de um outro rosto. Quando os moldadores chegaram, foram obrigados a ir embora em silêncio. A decomposição havia sido tão rápida que as carnes da face estavam corroídas… O nariz tinha-se desfeito sobre os lençóis. O moldador, que se chamava Marminia, contentou-se em moldar a mão, e enviou a factura para a “senhora Balsaque”. Curioso: essa cena está descrita com todas as letras na do embalsamento do corpo do primo Pons, quando surge um empregado que diz: “A operação leva pouco tempo. Uma incisão na carótida e a injecção bastam; mas é preciso começar rapidamente… Se esperardes ainda um quarto de hora, não mais podereis ter a doce satisfação de ter conservado o corpo”. O horror que chega torna as pessoas eloquentes. Fala-se e faz-se falar para ver menos. Fixa-se em gesso a carne contraditória e condenada do ser vivo. A maior mentira não é que, 39


debaixo da máscara, se esconda o horror; é que, como nos contos de Jean Lorrain, o vazio espreite, a ausência de rosto. “A morte, espectro mascarado, nada traz debaixo da viseira”, já dizia Victor Hugo. Escreve-se não aquilo que é exacto, mas aquilo que é verdadeiro. Não tenho por objectivo procurar ou perseguir a verdade nua e crua da história por detrás dessas figurações e figurinos póstumos. O carácter verídico destas palavras e destas cenas finais não me importa muito. Penetramos na escrita no preciso momento em que as palavras não querem dizer nada, em que as não compreendemos, em que nos limitamos a contemplá-las.

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