A Grande Magia / A Arte da Comédia / As Vozes Cá de Dentro

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livrinhos de teatro / 63

Eduardo de Filippo é por muitos considerado o maior autor teatral italiano do século xx, ao lado de Pirandello, que muito o admirava e com quem chegou a trabalhar. No início dos anos 70, resumiu assim a sua vida: «Nasci em Nápoles, a 24 de Maio de 1900, da união do maior actor-autor-director de companhia daquela altura, Eduardo Scarpetta, com Luisa De Filippo, costureira de teatro. Precisei de tempo para entender as circunstâncias do meu nascimento, porque, então, as crianças não tinham a frontalidade que hoje têm — e foi um grande choque descobrir, aos 11 anos, que era “filho de pai incógnito”. A curiosidade doentia dos que me rodeavam não me ajudou a encontrar um equilíbrio. Assim, por um lado, orgulhava-me do meu pai, em cuja companhia comecei a trabalhar com quatro anos apenas, primeiro como figurante e depois como actor; por outro, a infinda rede de intrigas e maledicência magoava-me profundamente. Sentia-me ostracizado, quando muito, tolerado, por ser “diferente”. Mas há muito que percebi que o talento pode avançar de qualquer maneira e que ninguém o consegue parar — tanto mais quanto se for considerado “diferente” pela sociedade. Uma pessoa assim marcada quer mesmo ser “diferente”, as suas forças aumentam, o pensamento fervilha, o corpo não conhece a fadiga, o que é preciso é atingir a meta que nos impusemos. Isso não o sabia eu, e a minha “diferença” pesava-me tanto, que acabei por abandonar a casa materna e a escola e pus-me a andar pelo mundo, sozinho, com pouquíssimo dinheiro, com o firme propósito de encontrar o meu caminho. Devo dizer: encontrar o meu caminho dentro dos caminhos que já me fixara — o teatro, que sempre foi tudo para mim.» De Filippo começou a escrever nos anos 20, e é de 1931, quando dirige uma companhia com os seus irmãos Peppino e Titina, o seu primeiro triunfo, Natale a Casa Cupielo. O seu prestígio vai aumentando no pós-guerra, com peças como Nápoles Milionária (1945) e Filumena Marturano (1946), que foram representadas em todo o mundo, muitas delas tendo também sido adaptadas ao cinema por ele próprio e também por realizadores como Castellani, Camerini ou De Sica. Até 1973 escreveu mais de quarenta peças, que foram reunidas, em 1975, em vários volumes, pela editora Einaudi, com os títulos Cantata dei Giorni Dispari (3 volumes) e Cantata dei Giorni Pari (1 volume). Em 1981, De Filippo, professor da Universidade da Sapienza, em Roma, foi nomeado senador vitalício da República Italiana. Eduardo (como é conhecido em Itália) morreu em 1985.

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eduardo de filippo

A Grande Magia A Arte da Comédia As Vozes Cá de Dentro Tradução de José Colaço Barreiros

< os clássicos >

ARTISTAS UNIDOS COT OVIA

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títulos originais: La Grande Magia © 1951 e © 1956, 58, 71 e 1995 Giulio Einaudi editor s. p. a., Torino L’Arte della Commedia © 1961, 65, 66, 67 e 1971, 73, 76 e 1995 Giulio Einaudi editor s. p. a., Torino Le Voci di dentro © 1951 e © 1956, 58, 71 e 1995 Giulio Einaudi editor s. p. a., Torino autor: Eduardo De Filippo tr a dução: José Colaço Barreiros r ev isão: Madalena Alfaia © desta edição: Artistas Unidos/ Livros Cotovia, Lisboa, Maio de 2012 A presente edição contou com o apoio do Ministero degli Affari Esteri Italiano — Direzione Generale per la Promozione e la Cooperazione Culturale

ARTISTAS U NIDOS R. Campo de Ourique, 120 1250 — 062 Lisboa www.artistasunidos.pt artistasunidos@artistasunidos.pt

LI V ROS COTOV IA Rua Nova da Trindade, 24 1200 — 303 Lisboa www.livroscotovia.pt geral@livroscotovia.pt

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ÍNDICE

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A GRANDE MAGIA — 1949 —

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La Grande Magia estreou no Teatro Mercadante de Nápoles em Novembro de 1949, embora Tullio Kezich afirme que a viu no Teatro Verdi de Trieste, em 1948. A Companhia «Il Teatro di Eduardo» era então composta por Eduardo, Aldo Giufré, Giovanni Amato, Laura Gore e Vittoria Crispo, que terá interpretado algumas vezes a protagonista feminina criada para Titina de Filippo. A estreia em Roma, em 1950, no Teatro Eliseo, não foi auspiciosa, considerando-se o texto demasiado próximo de Pirandello. O público acolheu mesmo o final do segundo acto com gritos de «Pirandello! Pirandello!». Em 1964, Eduardo dirigiu a versão televisiva com Luísa Conte, Giancarlo Sbagia, António Casagrande e ele próprio no papel de Otto Marvuglia. Em 1990, Giorgio Strehler haveria de dirigir esta peça, com a colaboração de Carlo Battistoni, com Renato de Carmini no protagonista. Essa produção do Piccolo Teatro di Milano veio a Lisboa (CCB/Festival de Teatro de Almada) em 1997. Em Portugal, A Grande Magia estreou no S. Luiz — Teatro Municipal pela Companhia Teatral do Chiado em 1994, com tradução e encenação de Mário Viegas e interpretação de Mário Viegas, Manuela de Freitas, Santos Manuel, André Gomes, Eduardo Firmo, João Nuno Carracedo, Juvenal Garcês, Manuela Cassola, Richard Halstead, Simão Rubim, Francisco Nascimento e Rita Lello.

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PER S O N A G ENS Senhora Locascio Senhora Marino Senhora Zampa Menina Zampa, sua filha Marta Di Spelta Calogero Di Spelta, seu marido Mariano d’Albino, amante de Marta Clientes do hotel e falso público, porque o verdadeiro deve fingir que é mar O Criado do hotel Metropole Gervasio Penna Arturo Recchia Amelia, sua filha Falsos clientes do hotel e falso público Otto Marvuglia, professor de ciências ocultas e célebre ilusionista: sugestão e transmissão do pensamento Zaira, sua mulher O sargento da Polícia Roberto Magliano Gennarino Fucecchia, criado de Calogero A família de Calogero: Gregorio, o irmão Matilde, a mãe Oreste Intrugli, o cunhado Rosa Intrugli, sua irmã e mulher de Oreste Agentes da Polícia

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Criados de cena, ajudantes do professor Clientes do hotel H贸spedes

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PR I MEI R O ACT O O rideau sobe juntamente com o pano de veludo, o «avental» que costuma servir para subtrair à vista dos espectadores a visão realista do fosso do palco, ou seja, o lugar reservado às orquestras. O rideau descobre um amplo jardim à inglesa, ladeado de canteiros e de vetustas palmeiras, que dão sombra à rica fachada posterior do grande hotel Metropole, à beira-mar. Esta fachada, situada ao fundo, no limite máximo do palco, além de mostrar as varandas centrais e as janelas dos andares, de amplas vidraças por baixo, deixa entrever o grande hall. O «avental», subindo ao mesmo tempo que o rideau, como dissemos, descobre a parte de baixo do jardim; um rochedo contra o qual, por meio de efeitos de luz e truques cénicos, um mar imaginário, partindo do centro da plateia, faz rebentar molemente as suas placidíssimas ondas. Quatro robustos pilares de cimento sustêm o limite do jardim. Figurarão as silhuetas de coloridos barcos ancorados às rochas, enquanto em primeiro plano, entre os dois pilares centrais, balança lentamente uma pequena lancha a motor. No mesmo instante em que sobem o rideau e o «avental», no lugar da ribalta, por meio de um engenho propositado, surgirá um varandim em ferro tubular pintado de azul. Este delimita o jardim do hotel e converge em baixo, dos dois lados do palco, formando assim o corrimão das duas escadinhas que descem para o embarcadouro. 11

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Ao fundo, dos dois lados da fachada, haverá, ordenadamente dispostas, três filas de mesas e cadeiras de jardim. À volta destas, deixando livre a passagem central, existe um canteiro de espessa e luxuriante murta. Grupos de cadeiras de repouso, dos dois lados do jardim. Crepúsculo avançado. Em primeiríssimo plano, à esquerda, em volta de uma mesa, jogam às cartas quatro daqueles tipos insignificantes que se encontram frequentemente no Verão, na praia, nos grandes hotéis: Senhora Locascio, Senhora Marino e Senhora e Menina Zampa. No lado oposto, em primeiro plano à direita, Gervasio Penna, sozinho, acabou de beber o café, e agora fuma sossegadamente o seu cachimbo de saponária. A outra mesa, um pouco mais próxima da entrada do hotel, numa conversa de escasso interesse, encontram-se Arturo Recchia e Amelia, sua filha. Amelia é do tipo magro, leve, toda ela olhos. Os seus gestos são infantis, como infantil é a sua voz, tão fácil ao riso como ao pranto. Senhora Locascio (depois de ter tirado a carta que encerrava o jogo, sem excessiva importância, diz) Acabei. As outras três começam a contar os pontos para o pagamento. Senhora Zampa Foste tu a acabar outra vez… Brava! Mas agora basta: cruz preta! Senhora Locascio Afinal o que perdeste? Poucas centenas de liras. Senhora Zampa Estou a brincar: aliás, se não fosse por este joguinho, que nos faz passar umas horas, estávamos feitas. Senhora Marino E onde mais é que se acha esta tranquilidade? Eu estou aqui há perto de um mês. Não fui nem uma vez a um cinema, ou a um teatro… 12

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Senhora Zampa E para que é preciso? Basta entreter-se cá fora neste jardim, à tarde ou à noite, qual espectáculos! Menina Zampa Em todas as épocas há um casal que se torna a atracção principal. Senhora Locascio Esta ano é o casal Di Spelta. Ontem de manhã, na praia, foi um verdadeiro teatro. Sim, porque o marido… Calogero… (como pode alguém chamar-se Calogero, não compreendo…) chegou precisamente quando a mulher estava em pose, e D’Albino fazia disparar a objectiva. Ele não estava à espera. Tinha-se apresentado com meia melancia, vermelha como o fogo. Ao ver a cena, ficou mais vermelho que a melancia que tinha na mão, e meteu o cigarro na boca pelo lado aceso. D’Albino, com aquele ar descarado que tem, pôs-se a andar, e ficaram os dois, marido e mulher, sem falarem nem olharem um para o outro. Senhora Zampa Ela é uma bela mulher. O marido, se é ciumento, tem uma certa razão para isso. Senhora Locascio Pois faria melhor se o demonstrasse. Mas ele afinal não. Guarda tudo lá dentro para não dar satisfações. E, na minha opinião, isso é o pior. Como não descarrega, o veneno aumenta, e torna-se malcriado mesmo quando não seria caso para isso. Senhora Marino Mas então, desculpem, como se justifica que aquela pobre coitada esteja proibida de dar dois passos sozinha, que ele a feche no quarto quando sai, que não a deixe respirar um momento? Senhora Locascio Porque há certos homens que se sentem diminuídos se têm de confessar que amam a mulher: que antes de dizer que têm ciúmes se deixariam matar. E então julgam que desprezando obtêm qualquer coisa. E eu fico feliz quando estes tipos acabam confrades de São Martinho. Menina Zampa D’Albino que diz? 13

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Senhora Locascio D’Albino está até aqui. Porque com todas as suas loucuras não consegue ficar nem cinco minutos sozinho com aquela mulher. E por isso é que a fotografou. Ontem à noite disse-me: «Com a fotografia que lhe tirei, desta vez não me escapa, e sempre quero ver se o marido é capaz de não me deixar falar com a mulher.» Senhora Zampa (olhando para a esquerda, vê chegarem Calogero e Marta) Vêm aí. Ela parece uma condenada à morte e ele, um funeral de terceira classe. Senhora Locascio Isto é que não compreendo. Quando duas pessoas chegam ao ponto de ficarem reduzidas àquelas condições, porque não se divorciam? Senhora Zampa E quem te disse que tal não acontece? (Pela esquerda entram Marta e Calogero: um homem de meia-idade, de ar abonecado, com bigodes retorcidos negríssimos mesmo no centro de um rosto coradíssimo. Veste com uma elegância bastante ousada: casaco de quadrados vistosos com duas rachas posteriores e algibeiras feitas de um remendo, calças um tanto estreitas, à boca de sino, na cabeça um palhinhas flamejante: um fantoche de exposição. Marta é uma lindíssima jovem. Parece indiferente, nervosa. São ambos atormentados por um íntimo raciocínio que os tem imersos num profundo desconforto. O homem oculta a sua tristeza com atitudes grotescas, tenta dar-se uma contenção que o faça parecer superficial e descuidado. Todos observam o casal, fingindo falarem indiferentemente uns com os outros. Calogero segue Marta a curta distância. E desta maneira dão uma volta ao jardim.) Sentem-se aqui um pouco para conversarmos um bocado. Marta Obrigada. (Senta-se ao lado das amigas.) Senhora Locascio (a Calogero) Sente-se também. Que diabo, está sempre a fazer pouco de nós. 14

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Calogero Eu não faço pouco a ninguém. Especialmente às pessoas com quem antipatizo. Senhora Zampa Está a ver? Ainda mal chegou e já está a dizer a primeira descortesia. Calogero De modo nenhum. Só lhes disse a primeira verdade. Senhora Locascio E esta é a segunda. Não faz mal, nós perdoamos-lhe porque está de mau humor. Calogero Quem lhe disse? Eu odeio os juízos expressos assim, como sentenças inapeláveis. Pelo contrário, estou alegríssimo. Se pudessem compreender a importância que dou aos factos e às coisas… Metam bem isto na cabeça: eu sou um homem feliz porque nunca tenho ilusões. Para mim o pão é pão, o vinho é vinho, e a água do mar é amarga e salgada. Senhora Locascio E o que quer dizer com isso? Calogero Quero dizer que estou sempre à espera de tudo e mais alguma coisa. Surpresas da vida já não as posso ter, porque não concedo uma pontinha de confiança nem a mim mesmo. Senhora Zampa Nem às mulheres? Calogero Não falemos nisso. Especialmente às mulheres, que nenhuma se ofenda! Marta Não percebes que estás a ser ridículo? (Às senhoras.) Desculpem, o meu marido estava a brincar. Calogero Certamente: disso podem ficar mais que seguras. Nunca me permitiria levá-las a sério. Senhora Marino Não faz mal. Nós não nos ofendemos, porque sabemos quais são as coisas que você leva a sério. Senhora Locascio Mariano D’Albino. Calogero Você é louca! Eu nem sequer o vejo, a minha mulher sabe o valor que dou a estas coisas. Nunca tive ciúmes de ninguém, imagine-se então dele… 15

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Senhora Locascio Mas porque é que arranca logo em quarta? Eu disse Mariano D’Albino porque ele vem ali daquele lado. (Indica a esquerda.) Calogero (confuso) Não tinha percebido. Mariano (da esquerda) Cá estou eu. Senhora Dona Marta, fui pontual. Fiz uma corrida até à praça para ir ao fotógrafo, e aqui estão as fotografias. Ficaram uma maravilha. E as senhoras também cá estão. Senhora Zampa Aquela de grupo que fizemos no outro dia? Senhora Locascio Aquela com o cão? Mariano Precisamente. (Abre o envelope das fotografias e mostra-as.) Calogero Não ficou a dormir. Mariano As promessas às senhoras são para se cumprir. (As senhoras observam as fotografias e ficam satisfeitas.) Senhora Dona Marta, a sua saiu tão boa que tomei a liberdade de fazer seis cópias. Marta Obrigada. Está realmente boa. Mariano (estendendo uma fotografia a Calogero) Aqui nesta está você com o meio melão na mão. (Às mulheres.) Carreguei na objectiva e nem sequer deu por isso. (A Calogero.) Parece um vendedor… Calogero E as seis cópias da minha mulher? Mariano (entrega-lhas) Ei-las. Calogero (depois de as contar) Aqui só estão cinco. Mariano Vê-se que imprimiram uma a menos e eu não reparei. Calogero Também está o negativo? (Tira um cigarro do maço e mete-o entre os lábios.) Mariano Sim. (Encontra-o no meio dos outros e mostra-lho.) Cá está. Calogero (pega no negativo e observa-o à transparência) Perfeitíssimo. (Fingindo acender o cigarro, aproxima o 16

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cigarro do negativo de celulóide e deita-lhe fogo.) Uh! Queimou-se. Que pena. (Todos trocam um olhar entre si.) O negativo ardeu e as cinco cópias fico eu com elas. (Mete no bolso as fotografias.) Mariano Quer dizer que a mim só me resta a alegria de ter feito uma coisa agradável. Com licença. (Sai pela direita). Senhora Zampa (para mudar de assunto) Esta noite há espectáculo, aqui, no jardim. Calogero E quem a manda estar presente? Se a incomodamos, pode levantar-se e ir-se embora. Senhora Zampa E porquê? Calogero Diz que damos espectáculo. Senhora Zampa Senhor Calogero, você julga que toda a gente acorda de manhã e só se interessa por si o dia inteiro? Eu disse que há espectáculo no jardim porque me disseram que vem cá um prestidigitador. Calogero Desculpe, não tinha percebido. Marta A mim os jogos de ilusionismo divertem-me muitíssimo. Calogero É uma arte superada. Marta Não penses que eu esperava que estivesses de acordo comigo. Calogero Desculpa, mas nos dias de hoje toda a gente vive nos jogos de ilusão. Há muitos anos um espectáculo do género fazia enlouquecer as plateias, o público era mais ingénuo; mas hoje a quem pode impressionar um desgraçado saltimbanco? Gervasio (que ouviu o diálogo, intervém) Contudo, irão ficar de boca aberta. Desta vez, as risadas dou-as eu. (Levanta-se e aproxima-se da mesa, apresentando-se.) D’Aloisi. (Cumprimentos.) Calogero Desculpe, porque é que disse «Desta vez, as risadas dou-as eu»? 17

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Gervasio Porque conheço bem este prestidigitador. Ele só dá um ou outro espectáculo extraordinário nos grandes hotéis. Marta É bom? Gervasio Bom não é a palavra certa para o descrever: é um mago, uma coisa que não consigo compreender. Arturo Eu também o conheço. Vi-o trabalhar em Paris. Amelia No ano passado: um serão inesquecível. E que impressão! (Ri sem convicção: uma risadinha breve, infantil, ritmada.) Ah, ah, ah!... Senhora Locascio Não exageremos. Um ilusionista não pode deixar de ser um vigarista, um charlatão! Arturo Sim, eu também pensava o mesmo… Com licença! (Apresentando-se.) Arturo Taddei, advogado. (Mostrando Amelia.) A minha filha. Eu também pensei que era um vigarista; mas tive de dar a mão à palmatória, e de que maneira! Gervasio Ele fez-me passar um momento trágico. Arturo A minha filha desmaiou. Amelia Eu desmaiei! (Ri-se, como acima.) Ah, ah, ah!... Marta Mas o que faz ele para impressionar assim tanto? Quais são as experiências? Arturo Assistíamos ao espectáculo eu, a minha pobre mulher, que Deus tem, e a minha filha... Gervasio Desculpe-me se o interrompo. Ninguém pode dizer que passou um quarto de hora mais trágico do que me fez passar a mim o professor Marvuglia. Após os primeiros jogos, meu Deus, divertidos mas sem nada de excepcional — desaparições, reaparições, substituições de objectos, as coisas do costume —, começou uma série de experiências de transmissão do pensamento e sugestão. E aqui vem o melhor. Convidava pessoas do público a irem para junto dele, e eu fui tão parvo que me apresentei. Ele olha-me fixo 18

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nos olhos e diz-me: «Você é um perseguido; foi condenado à morte. Fuja, senão está perdido. No bolso tem um passaporte. Apanhe o comboio, e boa sorte.» Com aquele passaporte corri meio mundo: França, Inglaterra, Rússia, Japão… durante anos e anos, sem nunca parar e sempre com medo de ser preso. Apanhava comboios, navios, aeroplanos. Escalava as montanhas. Dei comigo no meio do gelo, da neve… Atravessei o deserto, as florestas… Calogero Sempre com o mesmo passaporte? Gervasio Mas eu não tinha nenhum passaporte. Ou melhor, tinha e não tinha. Estava a agir por sugestão. Em suma, no fim da viagem, deparei comigo na presença do professor e do público; só tinha passado um instante; mas eu tinha a impressão de ter viajado durante anos e anos. Calogero Não ponho em dúvida as suas afirmações, senhor… Gervasio D’Aloisi. Calogero … senhor D’Aloisi; mas parece-me um pouco exagerado! Gervasio Vai ver esta noite. Senhora Zampa (dirigindo-se a Amelia) E você desmaiou? Amelia Eu desmaiei, porque ele transformou o meu pai num veado. Senhora Zampa Um veado? Arturo A transformação deu-se num tempo brevíssimo. Uma coisa de espantar: um belo veado. Calogero Mas como é possível? Arturo Oiça, que interesse teria eu em dizer uma coisa no lugar de outra? Mas lá foi uma impressão geral, porque dizem que eu corria e saltava de um ponto para outro com uma agilidade impressionante… Senhora Zampa (a Amelia) E você, quando desmaiou? Amelia Quando vi os cornos na testa do papá. 19

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Arturo Compreendem, era impressionante, porque enquanto os outros me viam saltar, eu sentia-me tranquilamente sentado na minha cadeira. Ouvia gritar: «Cornos! Tem cornos!» Mas eu passava a mão pela fronte e não os sentia! Calogero Fenómeno de sugestão colectiva. Gervasio Será, mas como pode permanecer insensível perante um espectáculo semelhante? Senhora Locascio Mas que tipo é ele? Gervasio Já não é jovem; deve andar pelos seus sessenta anos. Uma cara marcada, sofrida… Fala lentamente: as palavras, articula-as mais com os dedos do que com a boca. O que tem de extraordinário são os olhos: uma pessoa sente-os sempre em cima. Resumindo, pela maneira como se move, como se veste, como se apresenta, vocês acham que ele não vale um tostão furado, que mais parece um desgraçado; mas se olhar para um de vocês, esse não consegue aguentar o seu olhar. Senhora Zampa Estou quase tentada a não assistir ao espectáculo. Menina Zampa Também não exageremos. Criado (do fundo à direita, acompanhando dois carregadores que trazem um grande cesto de vime) Aqui, ponham aqui. (Indica um ponto da cena. Os carregadores obedecem.) O resto do equipamento, como mandou o professor, tragam-no para aqui. E despachem-se, que é tarde. O professor já chegou. Os carregadores saem pelo fundo à direita. Calogero Quem, o prestidigitador? Criado Sim, estas são as suas ferramentas; mas ainda não está tudo, ele trouxe um carroção de coisas. De facto, os dois carregadores regressam, trazendo duas mesas redondas de metal cromado, depois duas cadeiras do 20

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mesmo estilo, uma mesa rectangular um pouco maior, também de metal, e um sarcófago egípcio do tamanho de uma pessoa normal. Calogero (céptico) São tudo truques! Gervasio Pois, truques!... Aconselho-os a terem cuidado. Marta (ao Criado, aludindo ao ilusionista) Ele já chegou? Criado Agora mesmo. Estava a falar com o director. (Olhando para a entrada principal do hall.) Ei-lo! É ele! Otto (da porta principal do hotel. O seu aspecto físico corresponde exactamente à descrição feita por Gervasio. Entra com passo lento. Parece ausente. Enverga um fato arranjado, de antigos moldes. O largo colarinho da camisa é fechado pela gravata à Lavallière. Na cabeça traz um panamá amarelecido. Um conjunto resignado e cansado, mas que eleva a dignidade grotesca toda a sua manifestação histriónica, um intrujão, um charlatão simpático, cabotino e inteligente. Ao entrar observa o local e perscruta cada uma das personagens presentes. Longa pausa, durante a qual todos observam com o maior interesse cada gesto seu, por mínimo que seja. Finalmente dirige-se ao Criado, perguntando:) Aqui? Criado Aqui, professor. Espaço não falta. Otto (observando o panorama) É realmente belo. Criado É um sítio encantador. Olhe as cores e a grandiosidade deste mar. (Com um gesto largo, indica a plateia.) Otto (fixando com comiseração o Criado) Na tua opinião o mar é grandioso. Pobre criatura, pobre imbecil. Dantes, também acreditei na mesma coisa, e lancei-me tranquilo num mar aberto como este; mas não consegui descobrir um cantinho para me mover com facilidade. A humanidade inteira já tinha lá mergulhado antes de mim; mil mãos me expulsaram violentamente, fazendo-me escorregar até ao ponto de partida. (Mostrando a plateia.) É uma gota de água, meu caro. Só 21

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tem de prodigioso o facto de não se conseguir secar, ou pelo menos o processo é lento e escapa ao olho humano. Uma gota de água no centro das trevas, uma escuridão sem limites, uma escuridão que também existe nas horas em que julgamos que o sol a destrói… (Agora dirige-se um pouco a todos, com um tom de voz charlatanesco.) Em pleno sol vejo as trevas, meus senhores. O sol passa, sim, mas passa contra vontade, como um condenado, e quando passa não tem intenções de destruir as trevas. As trevas, podemos destruí-las nós com o terceiro olho, se todos conseguirmos possuí-lo. Com o terceiro olho: o olho sem janela, o olho do pensamento, o único que eu possuo, agora os outros dois, os visíveis, os que durante os anos da minha juventude viam tudo grande, enorme, surpreendente, perdi-os para sempre. Esses apagaram-se definitivamente depois dos cinquenta anos. Senhora Zampa (tímida) Mas está cego… Otto Não estou cegado, minha senhora; você sim, até ao inverosímil, porque faz parte daquela grande massa dos cegos a quem, embora tendo passado há muito os cinquenta anos, nunca será dado adquirir o terceiro olho. E de resto é providencial: ai se o adquirissem todos. Os casos são raríssimos, e de diferente importância. O meu terceiro olho não é muito importante, dado que com ele não consigo dar senão pequenas ilusões. Os meus jogos são simples e inocentes. Outros, pelo contrário, uma vez em posse do terceiro olho, valem-se dele para darem ilusões de bem outra envergadura. Quando o terceiro olho funciona, os jogos de ilusão multiplicam-se até ao infinito, com todos os meios, com todos os truques, à custa de tudo e de todos. Diga-me lá, senhor D’Aloisi, se não são inocentes os meus jogos. Eu fi-lo viajar, é verdade, mas por pouco. E o doutor Taddei, desagradar-lhe-ia se eu o fizesse saltitar mais um pouco como um veado em liberdade? 22

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Arturo Não, professor. Nada de brincadeiras. Otto O que diria o senhor Di Spelta se eu durante o espectáculo conseguisse transformá-lo num loquacíssimo papagaio? Calogero (surpreendido) Conhece-me? Otto Todos, conheço todos. A senhora Locascio, a senhora e a menina Zampa. Conheço todos: possuo o terceiro olho. Vamos divertir-nos, mais tarde. O espectáculo será interessantíssimo: espero que me honrem… Todos Claro… Sem dúvida... Senhora Zampa (preparando-se para sair) Com licença. Otto Por favor. Marta Até logo, e votos de sucesso. Saem pelo fundo. O Criado acompanha-os e sai também. Otto (aos dois carregadores) Vocês, esperem pela minha mulher na entrada principal do hotel. Os carregadores saem. Gervasio (confidencial, a Otto) A Mariannina não veio contigo? Otto Não. Gervasio Mas porquê, discutiram outra vez? Otto É uma mulher impossível, fia-te em mim. Juro-te que certas vezes, de manhã, quando acordo, fico de olhos fechados porque penso: «Agora, se os abro, ela percebe que acordei, e lá começa a tortura.» Arturo (conciliador) Paz, paz! A vida já é triste por si, porque é que têm de a amargurar ainda mais? Que todos os problemas fossem esses! Otto Aqui, está tudo em ordem? Gervasio Está descansado. Arturo (entregando uma folha de papel a Otto) Esta é a lista de todos os nomes dos clientes do hotel, não falta nenhum. 23

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Gervasio (por sua vez entrega a Otto uma fotografia) E esta é a fotografia da senhora Di Spelta. Otto (observando, admirado) É aquela senhora que estava aqui com o marido? É parecida? Gervasio Podes ter a certeza. Otto E Mariano D’Albino deu notícias? Gervasio Vi-o há uma hora. Mas o barco dele está aqui. (Debruçando-se no varandim e olhando para baixo.) Ali está ele. Otto (debruçando-se também) Bem, deve ser ideia dele. Gervasio Fizemos um trabalho de primeira ordem. Vais deparar com um ambiente muitíssimo favorável. Otto Esperemos. (Aproxima-se do cesto de vime, abre-o, tira uns objectos e começa a dispô-los ordenadamente no centro do jardim, preparando assim o seu «número»). Arturo (solícito, à sua filha) Como te sentes? Amelia Bem, papá. Arturo (com precaução, tira do bolso do casaco um cartucho, desfá-lo e, depois de tirar um ovo, amorosamente estende-o à filha) É fresquíssimo: toma. Amelia (exasperada) Não quero, papá. Arturo Porquê? Trouxe-o do campo. Foram-no buscar ao galinheiro mesmo à minha frente. Paguei cinquenta liras por ele. Amelia Não o quero, nem mesmo se me disser que pagou um milhão. A certa altura dá-me uma náusea. Não mo mostre, porque me dá volta ao estômago. Não o quero. Arturo Mas porquê? Amelia Porque é inútil. Arturo Queres dar comigo em doido? Só Deus sabe os sacrifícios que eu faço… Aquele, o médico, não perde tempo: «É preciso isto e mais isto», mas, para comprar «isto e mais isto», tem de haver muito «disto»! 24

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Amelia Mas porque é que só pensa no que disse o médico? Eu sinto-me bem: e depois tem de se convencer de uma vez por todas. Se o que disse o médico é verdade, convenci-me eu, não se queira convencer a si também: quando for a altura, adeusinho e boa noite. Arturo Adeusinho, não é verdade? Vejam como fala bem a minha filha. Na opinião dela, eu devia estar alegre. Fia-te em mim, eu digo que com uma boa alimentação… Amelia É teimoso, sabe? Não depende da alimentação… Arturo Seja como for, deixa o papá contente e come o ovo. Amelia Está bem, mais logo. Gervasio Arturo, vamos dar mais uma volta pelo hotel. Continuemos a espalhar boatos. E depois é melhor que não nos vejam juntos. (A Otto.) Até logo. Bom trabalho. (E, seguido por Arturo e Amelia, sai pelo fundo.) Mariano (entra após uma pequena pausa) Professor… Otto Bom dia. Mariano Estamos de acordo? Otto Nem pensar. Mariano A fotografia, já a entreguei àquele seu amigo. Otto Sim, ele deu-ma. Mariano (assinando um cheque) Este é de cinquenta mil liras. (Depois de o ter preenchido e assinado, passa-o a Otto.) Aqui tem. Preciso de um quarto de hora. Otto É bom de dizer. Mariano Não. Deixemo-nos de histórias. Eu «armei» esta ira de Deus. Falei com o dono para o fazer vir trabalhar aqui no hotel… Não posso contar nem com um quarto de hora? Otto Você tem razão, mas o que posso fazer? Mariano Sei lá. Veja você. Otto Cá me arranjarei. Mariano Fico à espera no meu barco. 25

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Otto Está bem. Mariano Professor, faça o seu dever, senão isto acaba mal entre mim e você. Até à vista. (Sai para o jardim.) Pouco depois, pelo fundo, como uma fúria, entra Zaira, dirigindo-se ameaçadora a Otto. É uma mulher de uns quarenta e cinco anos, exuberante, ordinária, maçadora. Veste com afectada elegância de vedeta de café-concerto. Seguem-na os dois carregadores, trazendo volumosos embrulhos. Zaira Ouve, padre eterno, já que dizes que és o Padre Eterno: se me deixares sozinha de embrulhos na mão, e te pões a andar enquanto se discute, dou-te uma bofetada que te faz acabar com os jogos de ilusionismo. (Otto não dá troco. Com a maior calma, tira os pacotes das mãos dos carregadores, e despede-os com um gesto. De facto estes saem, enquanto ele tranquilamente se ocupa a dispor no centro do jardim os utensílios e os objectos úteis para o seu espectáculo: as duas mesas redondas dos dois lados da cena, tendo ao centro a mesa maior, rectangular: o sarcófago à direita dos espectadores, em primeiríssimo plano. Ajudado por Zaira, tira do cesto e dos dois pacotes os objectos mais caros e singulares: espadas, revólveres, cartolas, dois enormes dados, leques japoneses, uma bandeira italiana, veludos vermelhos com franjas douradas, uma caixa japonesa rectangular com estranhos desenhos e pedacinhos de espelho de diferentes formas e medidas, bem como outros objectos à vontade de cada um) Tens de me dizer, e eu quero saber, quando é que vamos deixar de fazer esta vida de cães, a correr hotéis, hospitais, quartéis, feiras… E quando te decidirás a arranjar um contrato bom num teatro… Otto Mariannina, mete isto bem na cabeça, já te disse muitas vezes: no teatro o ilusionista já não tem lugar. Poderia arranjar um bom contrato se tivesse como partenaire uma belíssima 26

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mulher jovem. Tu queres à viva força andar atrás de mim e assim tens de te contentar com hotéis, quartéis e hospitais. Zaira Isso dizes tu porque te convém. Mas todos me acham ainda jovem e atraente. Pasquale, quando estou vestida e maquilhada para a cena, tomara muitas belas raparigas de dezoito anos… Otto Eu vejo-te com o terceiro olho… Zaira E eu cego-te todos os três, não te esqueças! Otto Como és chata, de tão inoportuna que és! Queres perceber ou não que estamos metidos num sarilho, e que se não pagarmos a renda o senhorio nos põe na rua? (Aludindo a um pacote de moedas de que precisa para o espectáculo) Dá-me as liras… Zaira (estendendo-lhe um saquinho de moedas falsas) Toma lá, guarda-as bem. Otto Em casa estamos às escuras porque a companhia nos cortou a electricidade… Zaira Ainda bem. Otto … daqui a dias, ficamos sem água… (Despeja o saco das moedas numa cartola.) Zaira Melhor. Otto … não nos resta senão comer alguma coisa de manhã… Zaira Fico satisfeita. Mortos de fome é que vamos acabar, na miséria mais negra. A pedir esmola, melhor ainda! Culpa tua, tudo culpa tua, que és um apático, um palerma, um homem sem iniciativa… Mundo, cai-me em cima! E assim se passou toda a nossa vida. E depois, se insisto em andar atrás de ti, é porque te conheço. O que julgas, que me esqueci de quando fazíamos os teatros de variedades; crês que não me lembro de quanto ia dar contigo abraçado às chantêsas? Otto Deixemos para trás certas lembranças, Mariannina; não te convém! Porque tu fazias o mesmo. Uma vez surpreendi-te com um ginasta… 27

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Zaira (como se revivesse o passado) Sandro, um tórax de Hércules, uma musculatura de ferro! Otto Outra vez com o homem-aquário… Zaira (idem) Demetrio! Que simpatia de homem! Otto … outra vez com o jejuador… Zaira (voluptuosamente tomada pela recordação) Ah, o que tu me vens lembrar! Que amor de homem: um São Lucas… Otto … e lembra-te de que as surpresas não se limitavam a simples constatações de natureza mais ou menos intuitiva; surpreendi-te no sentido mais cru e positivo da palavra, pelo que só me restavam duas soluções: ou o tiro de revólver ou o «estou-me marimbando»… É claro e evidente que escolhi sempre a segunda! Zaira (aparentemente ofendida, mas lá dentro de si orgulhosa) Eras ciumento como um Otelo e ainda o és… Otto (condescendendo, resignado) Sim, amor; ainda o sou. Zaira E por isso me atormentas; mas lembra-te de que a paciência tem limites; e, se me exasperas, fujo com o primeiro que aparecer. Otto (sempre frio e voluntariamente ameaçador) Isso não o farás. Cuidado, Mariannina! A varinha de condão? Zaira (acalmada, amorosa) Já sabes que não o faço, e por isso aproveitas-te. Otto (acariciando-lhe os cabelos com um gesto agora já habitual e monótono) Mariannina querida, amo-te tanto. Zaira Então dá-me um beijo. Otto Com certeza. (Beija-a.) Toma. (Depois, quase bocejando.) Vamos arranjar-nos. Zaira (também com uma espécie de bocejo) Vamos. Pegam no cesto vazio e preparam-se para sair. Otto A merenda, trouxeste-a? 28

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Zaira Uma omeleta com o macarrão de ontem, quatro curgetes de escabeche e uma garrafa de café. Otto Mandamos vir também um litro de vinho. E saem pela direita. Entretanto caiu a noite. O jardim é iluminado pelo luar e pelos lampiões colocados nos sítios mais adequados. Pelo fundo, entram senhores e senhoras, clientes do hotel, que ao acaso vão tomando lugar nas mesas do fundo. Todos conversam e riem entre si. A uma mesa descobrimos a Senhora Marino e a Senhora Locascio, noutra a Senhora Zampa com a sua filha. Vemos também Calogero e Marta, sua mulher. Depois Gervasio, Arturo e Amelia. Após esta longa pausa, que servirá para arrumar todos os clientes, incluindo um ou outro retardatário, entra pelo fundo o Criado e toma lugar ao centro da cena, de costas para o público verdadeiro, para dizer aos clientes: Criado Vai ter início o entretenimento organizado e oferecido pela direcção do hotel. Dentro de momentos o professor Otto Marvuglia apresentar-se-á diante de nós. Todos nós já ouvimos falar da sua potência mágica. Ele realiza prodígios. Peço portanto a máxima calma e desejo que se divirtam muito. (Torna a subir a cena, colocando-se ao fundo, junto da porta central.) Pela direita, entra Otto. Tirou só o casaco, agora, para vestir por cima das calças brancas uma ampla redingote preta, fechada na cintura por um lenço de pescoço de seda vermelha, com uma franja dourada, com um nó à esquerda de modo a formar um grande floco. Entra, lento e misterioso. Alcança o centro do jardim, saudando o público com um ligeiro aceno da cabeça. Recebe-o um fraco aplauso. Acompanha-o, a curta distância, Zaira. Esta enverga um resplandecente vestido de gala, compridas luvas pretas e 29

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vistoso penteado. Sorridente e bem conservada, faz repetidas vénias ao público. Outro aplauso fraco, desta vez misturado com risadas, acolhe a mulher. Otto Senhoras e senhores, nem sempre os meus espectáculos conseguem ser interessantes. Sim, porque eu preciso de uma grande compreensão e de muita confiança por parte do público. Para os jogos de ilusão à base de truques, eu trato bem disso; mas, para exercer os meus poderes mágicos na sugestão e na transmissão do pensamento, tenho necessidade de vós todos. Não poderei sugestionar-vos se não vos deixardes sugestionar. Não vos posso transmitir o meu pensamento se não estiverdes dispostos a recebê-lo. Se me seguirdes, abandonando-vos ao instinto, verificar-se-ão fenómenos de elevado interesse científico. Por exemplo: eu não posso enriquecer o meu número com uma grande orquestra, que me custaria muito dinheiro; por outro lado, sem música o ilusionista perde noventa por cento. Pensemos então fortemente na clássica música com que os ilusionistas, meus antecessores, apresentavam o seu número. (Um senhor alude a uma ária clássica de feira. O público ri.) Não, silêncio. Se ficarmos em silêncio, transmitir-vo-la-ei eu, a música. (Ao cabo de uma pequena pausa ouve-se como que ao longe, muito baixinho, a «valsa dos patinadores».) Ei-la: estais a ouvi-la vós também? (A música ganha corpo, torna-se cada vez mais forte. Finalmente, um pequeno aplauso de adesão por parte do público.) Pronto, com música trabalha-se melhor. Não posso começar o meu número sem pensar nas senhoras. Zaira!... (Zaira estende-lhe uma grande folha de papel branca. Ele mostra-a de um lado e do outro, depois faz com ela um cone, do qual começa a extrair flores, atirando-as para as mesas das senhoras.) Para si… para si… flores, flores para todas as 30

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belas senhoras. (Mais um pequeno aplauso.) Para os senhores penso que um café seria bem-vindo. (Tira de uma mesa uma pequeníssima cafeteira de metal cromado, agita-a como se verificasse o seu conteúdo.) Está cheia; mas chegará para todos? Espero que sim… Vamos dividi-lo como bons amigos… (Aproxima-se das mesas e com o braço esquerdo em cima move rapidamente a mão como que para agarrar qualquer coisa no ar. Com efeito, aparece magicamente entre os seus dedos uma cândida xícara de café, de porcelana. O gesto repete-se para cada espectador, no meio da hilaridade de todos. Este truque poderá obter-se com simplicidade: cada espectador estende destramente ao professor a xícara que deverá servir para si próprio.) Agora passemos a uma experiência mais importante. Gervasio (decidido) Eu vou-me embora. (Levanta-se para abandonar o espectáculo.) Arturo E eu também. (Levanta-se.) Otto (detendo-os) Mas não… Gervasio Se tem a intenção de se servir de mim como melhor lhe apetecer, engana-se. Não se esqueça da partida que me pregou no «Majestic» de Brighton. Arturo E da que me pregou a mim em França. Otto Não, meus senhores; eu nunca costumo repetir as experiências com as mesmas pessoas. Eu pedi: colaboração e confiança. Se uma gentil senhora se quisesse prestar… Uma senhora de coragem, porém. Marta (levanta-se do seu lugar e, com um sorriso malicioso, avança alguns passos) Se quer… Otto Se quero? Certamente que sim! (Observando disfarçadamente a fotografia que lhe deu Gervasio durante as cenas anteriores.) A senhora é a pessoa adequada. Venha aqui. 31

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Marta (desenvolta, avança para o professor, colocando-se ao lado dele, admirada e aplaudida pelo público) Aqui estou. Cessa a música do interior. Otto Parabéns, minha senhora, pela sua beleza e pela sua coragem. Quer aproximar-se deste sarcófago egípcio? (Marta, antecedida pelo professor e por Zaira, obedece.) Observe-o bem: é autêntico. (Zaira abre o sarcófago.) Quer ter a amabilidade de entrar? Marta Com certeza. (Faz menção de entrar no sarcófago.) Otto (detendo-a) Um momento depois de se fechar o sarcófago, verificar-se-á a sua desaparição. Sentir-se-á atraída para um mundo de sonhos, terá uma sensação de beatitude, dispersando o corpo depois de ter dele separado a alma. E, sobretudo, oiça: quando o jogo acabar, quando o todo, alma e corpo, vier a reintegrar-se, recorde-se bem, minha senhora: ignore a alma as sensações do corpo, saiba o corpo que a alma ignora! Entre. Marta entra no sarcófago, enquanto o professor o fecha. A luz no jardim desce em resistência, baixíssima, de modo a mal deixar perceber as sombras das personagens: a música continua. Otto move-se como se explicasse ao público do hotel qualquer coisa importante e inerente à sua experiência. No mesmo instante em que baixa a luz no jardim, ilumina-se o embarcadouro. Dos rochedos aparece Mariano, com ar desportivo. Salta agilmente para a lancha a motor e, com uma hábil manobra, aproxima-se da escadinha da direita. Tudo isto enquanto Zaira, com algumas piruetas, chega ao sarcófago pela parte posterior, a visível ao público verdadeiro, e abre nele uma pequena porta secreta, convidando Marta a sair. De facto Marta sai e, certeira como um fuso, dirige-se para a escadinha da direita, e desce com desembaraço os degraus. Uma 32

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vez lá em baixo, ajudada por Mariano, com um pequeno salto toma lugar na embarcação. Otto reabre o sarcófago, mostrando-o vazio ao público. Um pequeno aplauso. Otto fecha de novo o sarcófago. Música baixinho. Mariano (um pouco em cólera) Finalmente! Marta Como se não conhecesses o meu marido e em que condições sou obrigada a viver. Os olhos de toda a sua família espiam cada passo que dou, especialmente o irmão. Imagina, não esperavam outra coisa: insídias, mexericos, um inferno! Quatro farroupilhas, ansiosos por se desfazerem de mim para terem o meu marido nas mãos e lhe tirarem até ao último tostão. Calogero não me deixa um momento. Os ciúmes chegaram ao máximo, só me oprime. Se tem de ir à casa de banho, fecha-me no quarto e guarda a chave no bolso. Olha que não posso ficar mais de um quarto de hora. Mariano Partimos já. Marta O que estás a dizer? Mariano Digo que partimos já. Amanhã de manhã estamos em Veneza. Marta És louco? Mariano Vais ver. Marta (levantando-se para sair) Deixa-me ir. Mariano Tu não sais daqui. Vens comigo. Marta Mariano… Mariano Vens comigo. Música mais forte. Com um gesto fulmíneo, Mariano põe em marcha o motor do barco. Vira habilmente e, uma vez alcançado o centro do embarcadouro, aponta para a porta principal da plateia. Marta protesta, mas Mariano não lhe dá ouvidos. Lentamente, a embarcação atravessa toda a plateia. A luz volta a ficar como antes. 33

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Otto (chamado pelo ruído do motor, observa um tanto desorientado o barco a afastar-se, depois falando ao público do hotel, com alusão íntima) Sabe-se como começa uma experiência, mas muitas vezes ignora-se como irá acabar. Esperemos. Zaira! (Da mesa central tira uma gaiola com um canário.) Pronto, meus senhores, todos podem observar o pobre prisioneiro. (Aproxima-se das mesas, mostrando o canário aos espectadores.) É vivo, alegre. Pobre canarinho! Ignora a sua infelicidade. (De vez em quando olha para o mar com a esperança de voltar a ver o barco de Mariano D’Albino.) Quem te pode alcançar, se conseguires fugir? Mas tu não deves fazê-lo, podes desaparecer por um pouco, se calhar por um quarto de hora, mas depois tens de reaparecer, é isso que está combinado! (Chamando.) Zaira! (Zaira prontamente se aproxima, recebe a gaiola das mãos de Otto e, tomando lugar à esquerda da cena, mostra-a ao público. Otto cobre-a com um quadrado de pano preto, tira um revólver da mesa central e, depois de se ter afastado alguns passos, aponta a arma na direcção da gaiola.) Por favor, meus senhores, atenção… Um, dois, três! (Dispara um tiro. Nesse mesmo instante, Zaira descobre a gaiola, mostrando-a vazia. Outro pequeno aplauso.) Passemos agora a outra experiência. Calogero (levantando-se, pergunta com toda a cortesia ao professor) Desculpe-me, senhor prestidigitador, quer ter a amabilidade de fazer reaparecer a minha mulher? Otto (com o mesmo tom gentil) E o senhor, desculpe-me, quem é? Calogero Como, quem sou? Sou o marido. Por isso lhe peço que faça reaparecer a minha mulher. O público observa, divertido, a cena. Otto Sim. Um pouco de paciência. (Chamando.) Zaira! (Zaira traz da mesa um grande dado e entrega-o a Otto, 34

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que o mostra ao público.) Ei-lo. Peço que observem a precisão dos números. Os senhores poderão julgar desapaixonadamente. O truque é perfeito. Eu… Calogero Espere. Antes de passar adiante, quer ter a gentileza de retomar a experiência que deixou a meio? Cessa a música. Otto Não compreendo. Calogero Não compreende o quê? É muito simples. Peço-lhe que tenha a gentileza de fazer reaparecer a minha mulher. Otto Desculpe, a experiência, sou eu que devo levá-la a cabo ou o senhor? Calogero É você, naturalmente; mas a minha mulher, devo reclamá-la eu. Otto (aparentemente divertido) Esta agora é boa. É realmente divertido! Porque você acredita firmemente que a sua mulher desapareceu… Calogero Compreende-se. O sarcófago está vazio. Otto Um momento. O que tem o sarcófago a ver com isso? O que pode fazer um sarcófago? E você é tão ingénuo que acredita que uma coisa de madeira pintada tem poderes para fazer desaparecer as pessoas, neste caso a sua mulher? Em suma, não pensa nem por um momento que quem fez desaparecer a sua mulher foi você? Calogero Eu? Otto Sem querer, de acordo: fê-lo de boa-fé. E está plenamente convicto de que a sua mulher desapareceu há um momento? Calogero E porque não? Estava sentada ao pé de mim. Otto Quando foi isso? Não o diga nem a brincar… A sua mulher ao pé de si não estava. Provavelmente nunca veio para o hotel consigo. A sua mulher, sabe-se lá quando desapareceu, 35

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e tudo o que passa diante dos seus olhos é apenas ilusão. Você está aqui sozinho, a sua mulher, nunca a vimos. (Dirigindo-se ao público.) Acaso conhecemos a mulher deste senhor, nós? Todos (prestando-se ao jogo) Nãooo… Calogero Mas eu, tão certo como haver Deus, não fiz nada para fazer desaparecer a minha mulher… Otto Pois, isso julga você; e acredita firmemente nisso porque não possui o terceiro olho, o olho sem janela, o olho do pensamento… Mas não percebe que o jogo está você a fazê-lo? Você fez desaparecer a sua mulher e você é que tem de a fazer reaparecer… Eu não tenho nada a ver com isso. Quando muito, posso ajudá-lo. E isso faço-o sem dúvida nenhuma. Quer ter a gentileza de vir aqui, onde estou eu? Calogero (perdendo a paciência) Mas eu não sou nenhum palhaço, não posso ser assim gozado por vocês… O Público Sim, vá lá, é uma brincadeira… Calogero De maneira nenhuma. O impudor e a má criação têm de ter um limite. Ele tem de se lembrar de que eu sou um senhor e não me posso prestar a certas imposturas. Otto Quer perdê-la para sempre, à sua mulher? Calogero (rindo-se da afirmação absurda de Otto) Vejam bem este tipo! Saiu-me cá um descarado!... O Público Vá lá, para nos divertirmos! Calogero (cedendo de má vontade) Bem, cá estou. (Avança uns passos, aproximando-se.) Otto Muito bem. (O Público fica mais atento.) Responda a umas perguntas minhas. Tem muitos ciúmes da sua senhora? Calogero Isso são coisas íntimas. Não lhe dizem respeito nem a si nem ao público. Otto Seja como for, responda. Tem ciúmes da sua mulher? Calogero Pois bem, sim. Otto Percebeste, Zaira? O senhor é ciumento. 36

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Zaira (censurando-o comicamente com um gesto da mão, acompanhado, como se faz às crianças, de um) Ah, ah, ah!... Otto Alguma vez lhe fez uma cena? Calogero (ofendido) Quer parar com isso, sim ou não? Otto Não se zangue. Responda com calma. Alguma vez teve suspeitas quanto à sua fidelidade? Calogero Em suma, quer parar de ofender? Otto Eu não quero ofender ninguém. Só quero ajudar. Alguma vez teve suspeitas quanto à fidelidade da sua mulher? Calogero (rápido, com orgulho) Nunca! Otto Está bem. Agora, preste atenção. A sua mulher desapareceu. Observe bem o sarcófago. (Calogero obedece, observando escrupulosamente o interior do sarcófago.) Está convencido? Calogero Sim. Otto Venha cá. (Calogero aproxima-se.) Preste atenção. (Tira da mesa central uma caixa japonesa rectangular, de doze centímetros de altura e quarenta de comprimento.) Tome. (Calogero, curioso, segura nas próprias mãos a caixa que recebe das mãos de Otto). A sua mulher está dentro desta caixa. Abra-a. Calogero Santa paciência. (Faz o gesto de abrir a caixa.) Otto (detendo-lhe repentinamente o gesto) Um momento. Tem fé? Calogero Em que sentido? Otto Está convicto de que encontrará a sua mulher nesta caixa? Oiça: se não tem fé, não a verá. Estamos entendidos? Se não estiver convicto, não abra. O Público (incitando-o) Abra, abra, não hesite… Está à espera de quem? Abra! Otto (intervém, enérgico) Não, meus senhores, por favor. Não tentem influenciá-lo. Ele é que tem de decidir, a responsabilidade é exclusivamente sua. (Dirige-se de novo a 37

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Calogero.) Declarou há pouco que nunca suspeitou da fidelidade da sua mulher. Tenho dúvidas a respeito da sua afirmação, de qualquer modo agora pense bem: se abrir a caixa com fé, torna a ver a sua mulher; se, pelo contrário, a abrir sem fé, nunca mais voltará a vê-la. Abra, se acredita. (Calogero fica perplexo. Está na dúvida. Faz um sorriso imbecil, na tentativa de assumir um ar de dignidade. Otto aproveita para insistir, com maior domínio da situação.) Mas resumindo: tem fé ou não tem fé? Calogero É claro que tenho fé. Otto Então, de que está à espera? Abra. (Calogero nem pestaneja. Permanece mudo, absorto num pensamento fixo que o faz afundar-se num mar de incerteza: «O que fazer?» Pondo em dúvida a afirmação do professor, implicitamente tem de admitir a infidelidade da mulher. Por outro lado, quem lhe pode dar a certeza de que a mulher se encontra de facto naquela caixa? Os espectadores seguem e parece que sentem em pleno o complexo atroz que mantém o homem pregado à terra. Finalmente, após uma longa pausa, ele decide: lentamente põe a caixa debaixo do braço esquerdo e, finalmente, agora, todo encolhido como um cão acabado de levar uma sova, retoma o seu lugar à mesa. Os espectadores seguiram a sua acção sem lhe tirarem os olhos de cima e, finalmente, agora, hipócritas e malignos, comentam em voz baixa o que aconteceu. O professor, com infinita calma e serenidade, como se nada de estranho tivesse sucedido, voltando ao centro da cena, retoma o seu número.) Peço a vossa atenção para passar a outra experiência… (A música monótona recomeça.) Zaira!...

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