ALFRED DE MUSSET
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Nテグ SE BRINCA COM O AMOR seguido de OS CAPRICHOS DA MARIANNE
ALFRED DE MUSSET
LIVROS COTOVIA
Nテ」o se briNca com o amor seguido de
os caprichos da mariaNNe TEATRO
Alfred de Musset (Paris, 1810-1857), poeta, dramaturgo, ficcionista. Estreia-se em 1829 com o livro de poemas Contes d’Espagne et d’Italie. Quatro anos depois, partiu para a Itália com George Sand — a dramática experiência amorosa que iria estar na origem da sua extraordinária Confissão de um filho do século (1836). A sua poesia combinava a clareza clássica com a expressão de uma melancolia muito particular. O clamoroso insucesso da sua primeira incursão no teatro, A Noite Veneziana (1830), não o impediu de continuar a escrever peças como André del Sarto (1833), Fantasio (1834), Lorenzaccio (1834), e a série de comédias e provérbios onde se incluem Os Caprichos da Marianne (1833), Não se Pode Pensar em Tudo (1834), Não se Brinca com o Amor (1836), Nunca se deve Jurar (1836) Uma Porta ou está aberta ou fechada (1845). Em vida do autor, o desafio poético do seu teatro heterodoxo quase não conhece a experiência cénica. Também por isso, Musset, que o vai publicando na prestigiada Revue des Deux Mondes, irá compilá-lo em livro com o insolente título Teatro numa Poltrona.
Um sentimento de inexplicável mal-estar começou a fermentar em todos os corações jovens. Condenados ao repouso pelos soberanos do mundo, entregues a bedéis de toda a espécie, à ociosidade e ao enfado, os jovens viam distanciar-se as vagas escumantes contra as quais haviam preparado os seus braços. Todos esses gladiadores untados de azeite sentiam no fundo da alma uma miséria insuportável. Os mais ricos tornaram-se libertinos; os de fortuna medíocre arranjaram um emprego e resignaram-se à beca ou à farda; os mais pobres laçaram-se friamente no entusiasmo, nas grandes palavras, no medonho mar de acção sem fim. Como a fraqueza humana procura a associação e os homens são rebanhos por natureza, a política interveio. Ia-se combater com os guardas do rei nos degraus da Câmara legislativa, corria-se a uma peça de teatro em que Talma trazia uma peruca que o fazia parecer-se com César, acompanhava-se o enterro de um deputado liberal. Mas, dos membros dos dois partidos opostos, não havia um que, ao chegar a casa, não sentisse amargamente o vazio da sua existência e a pobreza de suas mãos. Ao mesmo tempo que a vida ambiente era tão pálida e mesquinha, a vida interior da sociedade tomava um aspecto sombrio e silencioso. A hipocrisia mais severa reinava nos costumes. As ideias inglesas juntaram-se à devoção e a alegria desapareceu. Talvez a providência estivesse preparando novos rumos e o anjo anunciado das sociedades futuras semeando no coração das mulheres os germes da independência humana que um dia hão-de reclamar. Alfred de Musset, Confissão de um filho do século
Nテグ SE BRINCA COM O AMOR seguido de OS CAPRICHOS DA MARIANNE
Título original: On ne badine pas avec l’amour / Les caprices de Marianne © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2011 ISBN 978-972-795-323-3
Alfred de Musset
Não se brinca com o amor seguido de
Os caprichos da Marianne
Tradução de
Ana Campos
Cotovia
Índice
NÃO SE BRINCA COM O AMOR
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OS CAPRICHOS DA MARIANNE
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N達o se brinca com o amor
Não se brinca com o amor, Elmano Sancho e Catarina Wallenstein foto © Jorge Gonçalves
Elenco da estreia de NÃO SE BRINCA COM O AMOR
Esta tradução foi estreada em co-produção com o Teatro Viriato, em Viseu, em 16 de Setembro de 2011, pelos Artistas Unidos, com cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves, luz de Pedro Domingos, assistência de Andreia Bento e Joana Barros, encenação de Jorge Silva Melo, com a seguinte distribuição (por ordem de entrada em cena):
O CORO — Pedro Carraca MESTRE BLAZIUS — João Meireles DONA PLUCHE — Alexandra Viveiros O BARÃO — Américo Silva MESTRE BRIDAINE — António Simão PERDICAN — Elmano Sancho CAMILLE — Catarina Wallenstein ROSETTE — Vânia Rodrigues Aldeões, criados — Joana Barros, Diogo Cão e Tiago Nogueira
Não se brinca com o amor, Elmano Sancho, foto © Jorge Gonçalves
Não se brinca com o amor, Catarina Wallenstein, foto © Jorge Gonçalves
Personagens
O BARÃO. PERDICAN, seu filho. MESTRE BLAZIUS, preceptor de Perdican. MESTRE BRIDAINE, pároco. CAMILLE, sobrinha do barão. DONA PLUCHE, preceptora de Camille. ROSETTE, irmã de leite de Camille. O CORO de aldeões.
ACTO PRIMEIRO
CENA I Uma praça em frente do palácio. Mestre Blazius, Dona Pluche, O Coro. O CORO Suavemente embalado sobre a sua mula fogosa, o senhor Blazius avança por entre as centáureas azuis, com o seu fato novo e o seu estojo de escrita. Como um bebé em cima do travesseiro, balança sobre o seu ventre roliço e, de olhos semicerrados, murmura um Pai Nosso para dentro do seu triplo queixo. Olá, Mestre Blazius, o senhor chega no tempo das vindimas, como uma ânfora antiga. MESTRE BLAZIUS Os que quiserem saber uma importante notícia tragam-me aqui primeiro um copo de vinho bem fresco. O CORO Aqui está a maior gamela que temos; beba, Mestre Blazius; o vinho é bom; falará depois. MESTRE BLAZIUS Saibam, meus filhos, que o jovem Perdican, filho do nosso amo, acaba de atingir a maioridade, e que se doutorou em Paris. Regressa hoje mesmo ao palácio, com a boca cheia de maneiras de falar tão belas e tão floridas que ninguém sabe o que lhe há-de res15
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ponder três em cada quatro vezes. Toda a sua graciosa pessoa é um livro de oiro; não vê uma ervinha no chão que não nos diga como aquilo se chama em latim; e, quando há vento ou quando chove, diz-nos muito claramente porquê. Vocês ficariam com os olhos tão escancarados como aquela porta que ali está, se o vissem desenrolar um dos pergaminhos que coloriu com tintas de todas as cores, com as suas próprias mãos e sem dizer nada a ninguém. Enfim, é um fino diamante da cabeça aos pés, e é o que eu venho anunciar ao senhor barão. Estão a perceber que isto também me honra a mim, que sou o seu preceptor desde os quatro anos de idade; portanto, meus bons amigos, tragam-me uma cadeira, para eu descer desta mula sem partir o pescoço; o animal é um bocadinho rebelde, e não me importaria de beber mais um trago antes de entrar. O CORO Beba, Mestre Blazius, e reanime-se. Nós vimos nascer o pequeno Perdican, e, como ele está a chegar, não era preciso dizer-nos tantas coisas. Possamos nós reencontrar a criança no coração do homem! MESTRE BLAZIUS Que esquisito, a gamela está vazia; julgava que não tinha bebido tudo. Adeus; preparei, enquanto vinha trotando pela estrada, duas ou três frases sem pretensão que agradarão ao senhor barão; vou puxar a sineta. (Sai.) O CORO Duramente sacudida sobre o seu burro ofegante, a Dona Pluche sobe a colina; o seu escudeiro transido desanca o pobre animal, que abana a cabeça, com um cardo entre os dentes. Com as suas pernas compridas e magras, sapateia de raiva, enquanto as suas mãos ossudas arranham o terço. Bom dia, Dona Pluche; a se16
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nhora chega como a febre, com o vento que amarelece os bosques. DONA PLUCHE Um copo de água, labregos, que é o que vocês são! um copo de água e um pouco de vinagre! O CORO De onde vem, amiga Pluche? Tem a peruca coberta de pó; lá se foi um topete, e o seu casto vestido está arregaçado até às suas veneráveis ligas. DONA PLUCHE Saibam, campónios, que a bela Camille, a sobrinha do vosso amo, chega hoje ao palácio. Saiu do convento por ordem expressa do senhor barão, para vir em devido tempo e lugar receber, como é de direito, o que herdou de sua mãe. A sua educação, Deus seja louvado, está terminada, e os que a virem terão a alegria de aspirar uma gloriosa flor de sabedoria e devoção. Nunca houve nada tão puro, tão anjo, tão cordeiro e tão pomba como esta querida irmã; que o Senhor Deus do Céu a guie! Assim seja. Afastem-se, labregos; parece-me que tenho as pernas inchadas. O CORO Componha-se, virtuosa Pluche; e quando rezar a Deus, peça chuva; os nossos campos de trigo estão secos como as suas tíbias. DONA PLUCHE Vocês trouxeram-me água numa gamela que cheira a cozinhado; dêem-me a mão para eu descer; são uns grosseirões e uns malcriados. (Sai.) O CORO Vamos pôr os nossos fatos de domingo, e ficar à espera que o barão nos mande chamar. Ou muito me engano, ou vai haver hoje um alegre banquete. (Saem.)
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CENA II O salão do Barão. O Barão, Mestre Blazius, Mestre Bridaine, Dona Pluche, Perdican, Camille. Entram o Barão, Mestre Bridaine e Mestre Blazius. O BARÃO Mestre Bridaine, o senhor é meu amigo; apresento-lhe o Mestre Blazius, preceptor do meu filho. O meu filho fez ontem de manhã, ao meio-dia e oito minutos, vinte e um anos completos; é doutor com quatro bolas brancas. Mestre Blazius, apresento-lhe o Mestre Bridaine, pároco; é meu amigo. MESTRE BLAZIUS (cumprimentando) Com quatro bolas brancas, meu senhor! literatura, botânica, direito romano e direito canónico. O BARÃO Vá até ao seu quarto, meu caro Blazius, o meu filho não tardará a chegar; arranje-se um pouco, e volte quando ouvir a sineta. Mestre Blazius sai. MESTRE BRIDAINE Dir-lhe-ei o que penso, meu senhor? o preceptor do seu filho cheira muito a vinho. O BARÃO Isso é impossível. MESTRE BRIDAINE Estou tão certo disso como de estar vivo; falou-me de perto há bocado; cheirava aflitivamente a vinho. O BARÃO Fiquemos por aqui; repito-lhe que isso é impossível. (Entra Dona Pluche.) Já chegou, boa Dona Pluche! A minha sobrinha está certamente consigo? 18
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DONA PLUCHE Vem atrás de mim, meu senhor; distanciei-me dela alguns passos. O BARÃO Mestre Bridaine, o senhor é meu amigo. Apresento-lhe a Dona Pluche, preceptora da minha sobrinha. A minha sobrinha tem desde ontem, às sete horas da noite, dezoito anos de idade; acaba de sair do melhor convento de França. Dona Pluche, apresento-lhe o Mestre Bridaine, pároco; é meu amigo. DONA PLUCHE (cumprimentando) Do melhor convento de França, senhor, e posso acrescentar: a melhor cristã do convento. O BARÃO Dona Pluche, vá reparar a desordem em que se encontra; a minha sobrinha vai chegar em breve, espero; esteja pronta à hora do jantar. Dona Pluche sai. MESTRE BRIDAINE Esta solteirona parece completamente cheia de unção. O BARÃO Cheia de unção e de compunção, Mestre Bridaine; a sua virtude é inatacável. MESTRE BRIDAINE Mas o preceptor cheira a vinho; tenho a certeza. O BARÃO Mestre Bridaine! Há momentos em que duvido da sua amizade. Está apostado em contradizer-me? Nem mais uma palavra sobre o assunto. Formei o desígnio de casar o meu filho com a minha sobrinha; fazem um par harmonioso: a educação deles custa-me seis mil escudos. MESTRE BRIDAINE Será necessário obter algumas dispensas. 19
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O BARÃO Já as tenho, Bridaine; estão em cima da minha mesa, no meu escritório. Oh meu amigo, participo-lhe agora que estou muito contente. Sabe que tive sempre o mais profundo horror à solidão. Contudo, o lugar que ocupo e a importância das minhas funções obrigam-me a permanecer neste palácio três meses no inverno e três meses no verão. É impossível fazer a felicidade dos homens em geral, e dos seus vassalos em particular, sem dar por vezes ao seu criado de quarto a ordem rigorosa de não deixar entrar ninguém. Como é austero e difícil o recolhimento do homem de Estado! e que prazer não encontrarei eu em moderar, pela presença dos meus dois filhos reunidos, a sombria tristeza que por força tem de me atormentar desde que o rei me nomeou administrador dos impostos! MESTRE BRIDAINE Esse casamento far-se-á aqui ou em Paris? O BARÃO Já estava à espera, Bridaine; tinha a certeza de que o senhor me iria fazer essa pergunta. Pois bem, que diria o meu amigo se essas mãos que aí estão, sim, Bridaine, as suas próprias mãos, — não olhe para elas com esse ar tão infeliz — estivessem destinadas a abençoar solenemente a feliz confirmação dos meus sonhos mais queridos? Hem? MESTRE BRIDAINE Calo-me; o reconhecimento tira-me as palavras. O BARÃO Olhe através desta janela; não vê que a minha gente se dirige em multidão para os portões? Os meus dois filhos chegam ao mesmo tempo; esta é a mais feliz combinação. Dispus as coisas de maneira a prever tudo. A minha sobrinha será introduzida por esta porta à esquerda, e o meu filho por esta porta à direita. Que 20
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lhe parece? Sinto-me muito feliz por ir ver como eles se vão abordar, o que vão dizer um ao outro; seis mil escudos não é uma ninharia, não se iluda. Estas crianças amavam-se muito, aliás, desde o berço. — Bridaine, tenho uma ideia. MESTRE BRIDAINE Qual? O BARÃO Durante o jantar, como quem não quer a coisa, está a compreender, meu amigo, — enquanto for esvaziando algumas taças festivas... — o senhor sabe latim, Bridaine. MESTRE BRIDAINE Ita edepol1, com os diabos, está claro que sei! O BARÃO Gostaria muito de o ver interpelar o rapaz, — discretamente, é óbvio — diante da prima; não pode deixar de produzir uma boa impressão; — ponha-o a falar latim um bocadinho, — não exactamente durante o jantar, tornar-se-ia fastidioso, e eu cá não compreendo nada, mas à sobremesa, — está a perceber? MESTRE BRIDAINE Se o senhor barão não compreende nada, é provável que o mesmo aconteça com a sua sobrinha. O BARÃO Mais uma razão; quer que uma mulher admire aquilo que compreende? De onde vem o senhor, Bridaine? Essa objecção mete dó. MESTRE BRIDAINE Eu conheço mal as mulheres; mas parece-me que é difícil admirar aquilo que não se compreende. O BARÃO Eu conheço-as, Bridaine; conheço esses seres encantadores e indefiníveis. Convença-se disto: elas gostam que lhes atirem areia para os olhos, e quanta 1
Expressão latina que significa “sim, por Pólux”.
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mais lhes atiramos mais elas os abrem, para apanharem mais. (Perdican entra por um lado, Camille pelo outro.) Bom dia, meus filhos; bom dia, minha querida Camille, meu querido Perdican! dêem-me um beijo, e dêem um beijo um ao outro. PERDICAN Bom dia, meu pai, minha querida irmã! Que felicidade! como estou feliz! CAMILLE Saúdo-os, meu pai e meu primo. PERDICAN Como tu estás crescida, Camille! e tão bela como o sol! O BARÃO Quando saíste de Paris, Perdican? PERDICAN Na quarta-feira, creio eu, ou na terça. Como tu te transformaste numa mulher! Sou então um homem, eu! Parece-me que ainda ontem te vi deste tamanho. O BARÃO Devem estar cansados; a estrada é longa, e está calor. PERDICAN Oh! meu Deus, não. Veja, meu pai, que bonita que é a Camille! O BARÃO Vá lá, Camille, dá um beijo ao teu primo. CAMILLE Peço desculpa. O BARÃO Um elogio paga-se com um beijo; dá-lhe um beijo, Perdican. PERDICAN Se a minha prima recua quando eu lhe estendo a mão, digo-lhe também eu: Peço desculpa; o amor pode roubar um beijo, mas a amizade não. CAMILLE A amizade e o amor só devem receber o que podem dar. O BARÃO (para Mestre Bridaine) Que começo de mau agouro, hem? 22
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MESTRE BRIDAINE (para o Barão) O pudor excessivo é, sem dúvida, um defeito; mas o casamento remove muitos escrúpulos. O BARÃO (para Mestre Bridaine) Estou chocado, — magoado. — Aquela resposta desagradou-me. — Peço desculpa! Viu que ela fez menção de se benzer? — Venha aqui, para eu lhe falar. — Isto é-me extremamente doloroso. Este momento, que devia ser tão doce para mim, está completamente estragado. — Estou irritado, melindrado. — Que diabo! isto é muito mau. MESTRE BRIDAINE Diga-lhes algumas palavras; viraram as costas um ao outro. O BARÃO Então, meus filhos, o que se passa? Que fazes aí, Camille, diante dessa tapeçaria? CAMILLE (observando um quadro) Que belo retrato, meu tio! Não é uma nossa tia-avó? O BARÃO Sim, minha filha, é a tua bisavó, — ou pelo menos a irmã do teu bisavô, — pois a querida senhora nunca contribuiu, — pela sua parte, creio eu, a não ser com orações, — para o crescimento da família. — Era realmente uma santa mulher. CAMILLE Oh! sim, uma santa! é a minha tia-avó Isabelle. Como o hábito lhe fica bem! O BARÃO E tu, Perdican, que fazes aí diante desse vaso de flores? PERDICAN Está aqui uma flor encantadora, meu pai. É um heliotrópio. O BARÃO Estás a brincar? é do tamanho de uma mosca. PERDICAN Esta pequena flor do tamanho de uma mosca tem o seu valor. MESTRE BRIDAINE Sem dúvida! o doutor tem razão. Pergunte-lhe a que sexo, a que classe ela pertence, que ele23
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mentos a constituem, de onde lhe vêm a seiva e a cor; e levá-lo-á ao êxtase enumerando os fenómenos desta ervinha, desde a raiz até à flor. PERDICAN Não sei tanto sobre ela, meu reverendo. Acho que cheira bem, mais nada.
CENA III Em frente do palácio. O Coro, o Barão, Dona Pluche, Perdican, Camille. Entra o Coro. O CORO Várias coisas me divertem e excitam a minha curiosidade. Venham, meus amigos, e sentemo-nos à sombra desta nogueira. Dois formidáveis comensais estão neste momento frente a frente, no palácio, o Mestre Bridaine e o Mestre Blazius. Nunca repararam nisto? quando dois homens mais ou menos idênticos, igualmente gordos, igualmente tolos, com os mesmos vícios e as mesmas paixões, por acaso se encontram, é forçoso que se adorem ou se detestem. Pela mesma razão por que os contrários se atraem, um homem alto e seco gosta de um homem baixo e redondo, e os loiros procuram os morenos e reciprocamente, eu prevejo uma luta secreta entre o preceptor e o pároco. Ambos estão armados de igual grosseria; ambos têm por barriga um tonel; são não apenas glutões como apreciadores de bons petiscos; ambos disputarão entre si, ao jantar, não só a quantidade como a qualidade. Se o peixe for 24
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pequeno, que fazer? e nem sempre uma língua de carpa pode ser partilhada, e uma carpa não pode ter duas línguas. Item2, ambos são tagarelas; mas, se for preciso, podem conversar sem se escutarem um ao outro. O Mestre Bridaine já quis fazer várias perguntas pedantes ao jovem Perdican, e o preceptor franziu o sobrolho. Não lhe agrada que outro que não ele pareça pôr à prova o seu aluno. Item, são tão ignorantes um como o outro. Item, ambos são padres; um gabar-se-á da sua paróquia, o outro empertigar-se-á no seu cargo de preceptor. O Mestre Blazius confessa o filho, e o Mestre Bridaine o pai. Já os vejo com os cotovelos pousados na mesa, as faces afogueadas, os olhos fora das órbitas, a sacudirem cheios de ódio os seus triplos queixos. Miram-se da cabeça aos pés, começam por leves escaramuças; mas logo se declara a guerra; cruzam-se e trocam-se pedantices de todo o tipo, e, para cúmulo da desgraça, entre os dois bêbados agita-se a Dona Pluche, que os repele a ambos com os seus cotovelos pontiagudos. Agora que o jantar terminou, abrem-se os portões do palácio. As visitas saem, afastemo-nos. (Saem. Entram o Barão e Dona Pluche.) O BARÃO Estou pesaroso, venerável Pluche. DONA PLUCHE Será possível, meu senhor? O BARÃO É, Pluche, é possível. Há muito que eu tinha por certo, — tinha até escrito, anotado, nas minhas tabuinhas de bolso, — que este dia devia ser o mais agradável dos meus dias, — sim, minha boa senhora, o mais agradável. — Não ignora que o meu desígnio era casar o meu filho com a minha sobrinha; — estava decidido, 2
Expressão latina que significa “do mesmo modo”.
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— combinado, — tinha falado do assunto ao Bridaine, — e vejo agora, julgo ver, que estes jovens se falam com frieza; não trocaram nem uma palavra. DONA PLUCHE Aí vêm eles, meu senhor. Estão informados dos seus planos? O BARÃO Disse-lhes umas palavrinhas em privado sobre o assunto. Creio que será bom, uma vez que estão reunidos, que nos sentemos sob esta ramagem propícia, e os deixemos juntos por uns momentos. (Retira-se com Dona Pluche. Entram Camille e Perdican.) PERDICAN Sabes que não foi nada bonito teres-me recusado um beijo, Camille? CAMILLE Eu sou assim; é o meu feitio. PERDICAN Aceitas o meu braço para irmos dar um passeio pela aldeia? CAMILLE Não, estou cansada. PERDICAN Não gostarias de voltar a ver o prado? Lembras-te dos nossos passeios de barco? Vem, vamos descer até aos moinhos; eu remo, e tu seguras no leme. CAMILLE Não me apetece. PERDICAN Tu partes-me o coração. O quê! nem uma lembrança, Camille? o teu coração não bate nem uma única vez pela nossa infância, por todo o pobre tempo passado, tão bom, tão doce, tão cheio de tolices deliciosas? Não queres ir ver o caminho por onde íamos à quinta? CAMILLE Não, esta tarde não. PERDICAN Esta tarde não! e então quando? A nossa vida está toda aqui. CAMILLE Não sou tão nova que me divirta com as minhas bonecas, nem tão velha que tenha amor ao passado. PERDICAN Que queres dizer com isso? 26
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CAMILLE Quero dizer que as lembranças da infância não são do meu agrado. PERDICAN Aborrecem-te? CAMILLE Sim, aborrecem-me. PERDICAN Pobre criança! Tenho sinceramente pena de ti. (Saem cada um pelo seu lado.) O BARÃO (entrando outra vez com Dona Pluche) Está a ver, e está a ouvir, excelente Pluche; eu contava com a mais suave harmonia, e parece-me estar a assistir a um concerto em que o violino toca Voi che sapete, enquanto a flauta toca Vive Henri IV. Imagine a medonha dissonância que tal combinação produziria. É, no entanto, o que se passa no meu coração. DONA PLUCHE Confesso que me é impossível censurar a Camille, e os passeios de barco, a meu ver, não são nada de bom tom. O BARÃO Está a falar a sério? DONA PLUCHE Senhor, uma menina que se respeita não se aventura em passeios de barco. O BARÃO Mas considere, Dona Pluche, que o primo vai casar-se com ela, e que por isso... DONA PLUCHE As conveniências proíbem que se segure num leme, e não é próprio abandonar a terra firme sozinha com um rapaz. O BARÃO Mas repito... digo-lhe... DONA PLUCHE É esta a minha opinião. O BARÃO Está louca? Na verdade, quase me faria dizer... Há certas expressões que eu não quero... que me repugnam... A senhora dá-me vontade... A verdade é que, se eu não me refreasse... A senhora é uma delambida, Pluche! Não sei o que pensar de si. (Sai.) 27