O DEVER DE MEMÓRIA
Título original: Le Devoir de mémoire © Mille et une nuits, Département de la Librairie Arthème Fayard 1995, 2000 © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2010 ISBN 978-972-795-308-0
Primo Levi
O dever de memória entrevista com Anna Bravo e Federico Cereja
Tradução de
Esther Mucznik
Cotovia
Índice
Introdução
p. 9
Federico Cereja
O dever de memória
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Entrevista com Anna Bravo e Federico Cereja
Contra o esquecimento
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Federico Cereja
Vida de Primo Levi
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Introdução
Para Primo Levi, o testemunho assume, em tom grave e numa linguagem o mais objectiva possível, o significado e a forma de um depoimento diante de um tribunal — o da História, dos contemporâneos e das novas gerações: “Nós, os sobreviventes, somos testemunhas e toda a testemunha é obrigada, mesmo por lei, a responder de forma completa e verídica”. É nesta perspectiva que o testemunho adquire todo o seu sentido. O sobrevivente deve ser fiel à 9
sua própria missão, até ao mais ínfimo pormenor: deve ser testemunha, no pleno sentido da palavra (“uma pessoa capaz de comprovar um facto devido a um conhecimento directo”), não podendo falar senão do que viu e viveu, sem concessão alguma ao que ouviu dizer ou tomou conhecimento através dos seus camaradas. Testemunha directa. Assim e só assim se torna impossível contestar a história totalmente incrível do Lager: A testemunha não pode ser refutada; ela pode responder: “Eu estava lá, eu vi.”. Todos os problemas levantados pelos historiadores revisionistas, todas as objecções relativas ao Lager perdem a sua substância e tornam-se impossíveis de defender quando confrontados com testemunhos que constituem provas históricas — a examinar, certamente, como qualquer documento — mas que existem e não podem ser postas de lado. Recolhendo as recordações dos deportados que iam com Primo Levi falar às escolas, dei-me conta até que ponto ele se distinguia dos outros, pelo seu tom e pela vontade de se limitar estritamente à experiência vivida. Primo Levi descobriu uma nova profissão: ensinar essa matéria difícil que é a 10
narrativa da deportação, sem deixar de sublinhar os limites dos relatos das próprias testemunhas. A recolha dos testemunhos dos sobreviventes piemonteses dos campos de extermínio constituiu uma das mais vastas investigações de história oral jamais realizada na Europa e implicou 220 dos 250 antigos deportados registados em todo o Piemonte 1. Esta iniciativa, fonte de novos documentos para a história da deportação no Piemonte e na Itália, não podia deixar de contar com a plena adesão de Primo Levi, o protagonista mais célebre dessa história. Federico Cereja
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Estes testemunhos estão depositados nos arquivos da deportação piemontesa do Instituto Histórico da Resistência Piemontesa.
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O dever de memória1
— Entre os elementos importantes da sua conferência na Universidade2, havia a série de rituais, de comportamentos sugeridos, impostos, decididos em comum, a que nós chamámos o savoir-vivre do campo.
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O texto em itálico é de Anna Bravo e Federico Cereja; o texto em redondo é de Primo Levi. 2
Em 1982, Primo Levi fez uma intervenção no seminário de preparação dos investigadores na Universidade de Turim.
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— Sim… Prefiro preveni-los já, é possível que eu me repita, que eu repita coisas que aparecem nos meus livros, é um inconveniente inevitável. Como em todo o lado havia um código oficial, um sistema de proibições e de obrigações imposto pelas autoridades alemãs. Mas, ligado a ele, sobrepondo-se a este código, havia também um código de comportamento espontâneo a que chamei savoir-vivre; certos interditos e certas prescrições podiam ser torneados, era preciso sabê-lo, mas aprendia-se com a experiência, caso se conseguisse sobreviver à crise da iniciação, que era a mais penosa. Quem sobrevivia aos primeiros dias acabava por aprender todos os meandros, todas as astúcias possíveis — a melhor maneira de ser declarado doente, por exemplo — e também que a corrupção reinava por todo o Lager, coisa que surpreendeu todas as pessoas. Na realidade, pelo menos nós, judeus italianos, que só muito tarde entrámos em contacto com os alemães, tínhamos adoptado a imagem oficial do alemão cruel e incorruptível, quando na realidade eles eram extremamente corruptíveis. Aprendíamo-lo mais ou menos rapidamente, com a experiência. Não eram apenas os alemães, 14
que estavam mais de fora e pareciam divindades inacessíveis, mas toda a hierarquia do campo dependente dos alemães era corruptível. Havia, aliás, uma palavra polaca — protekcja — que nós aprendíamos imediatamente. Para além disso, reinava todo um conjunto de comportamentos que nada tinham a ver directamente com a sobrevivência mas que eram considerados marcas de uma boa ou má educação; assinalei um que era aquele de… quando alguém pedia a nossa colher emprestada. Em geral, era um empréstimo que só fazíamos a uma pessoa de confiança, porque uma colher era um capital, valia uma ração de pão, dávamo-la apenas a uma pessoa de confiança ou que pudéssemos não perder de vista. Não nos davam qualquer colher, era preciso conquistá-la, quer dizer, comprá-la, no início, com pão. Aliás, quando libertaram o campo encontrámos um depósito cheio de colheres, não havia nenhuma razão para não as distribuir… O recém-chegado era, pois, obrigado a sorver a sopa como um cão, pois não lhe era fornecida nenhuma; de qualquer maneira, quando nos pediam para emprestarmos a nossa, era melhor lambê-la primeiro: 15
comíamos a sopa, depois lambíamos bem a colher para a limpar e só então a emprestávamos a quem a pedia. Estou a pensar também noutra coisa: a maneira de vestir. Pode parecer estranho, pois era praticamente impossível vestir-se de forma asseada mas, tal como na vida normal, as roupas tinham importância: um chapéu e sapatos “decentes” — digo decentes entre aspas porque nunca eram decentes, os deportados tinham atrás de si um percurso extraordinário… — mas, de certa forma, esta preocupação com a limpeza fazia parte da disciplina do campo. No princípio, eu tinha tendência a esquecê-lo, parecia-me uma preocupação supérflua, achava inútil ter de escovar uma jaqueta cheia de gordura, de nódoas de ferrugem, mas os antigos disseram-me: “Não, não faças isso, Aqui temos de ter sapatos limpos, roupa, etc.; temos de ter a cara limpa, não se deve tentar escapar ao barbeiro.” Fazíamos a barba apenas uma vez por semana, mas dessa vez ela devia ser feita, não só pelo respeito à disciplina do campo, às regras do campo, mas também como escudo exterior e visível da nossa vida moral. Era uma espécie de instinto co16
lectivo que nos impelia: quem se deixava ir ficava em perigo, chegava sempre em último lugar. — Em relação a esta exigência de dignidade, mesmo ao nível das aparências, reparou se se podia estabelecer uma diferenciação relacionada com a origem social, se certos modelos culturais de limpeza, de decência, tinham uma certa influência, ou não? — Acho que não. Aliás, a origem social apagava-se muito rapidamente e eram outros factores que ganhavam importância. Lembro-me de intelectuais degradando-se muito depressa, enquanto estivadores ou pessoas habituadas ao trabalho manual resistiam melhor. Não há critério absoluto; os critérios eram outros. Um deles era o peso do corpo: é evidente que um homem como eu, franzino de natureza, que pesava, à chegada ao Lager, quarenta e nove quilos, necessitava de menos calorias do que um homem de oitenta ou noventa quilos; no meu caso, foi um factor de sobrevivência, uma vantagem. Muitos intelectuais soçobravam porque se encontravam face a um trabalho que nunca tinham efectuado, confrontados com a obrigação 17
de trabalhar fisicamente, de se ocuparem de coisas que um homem abastado nunca faz, escovar as roupas sem escova, com as mãos, com as unhas… — De cuidar de si próprio. — Sim, em vez de deixar esse cuidado a outros. — Com efeito, nas famílias esse trabalho recaía sobre as mulheres, a esposa, a criada… — Claro, encarregava-se dele qualquer outra pessoa. Em contrapartida, no Lager era necessário tomá-lo a peito. Eu próprio estive em grande perigo nos primeiros dias por causa de um facto importante para nós italianos, judeus italianos: a impossibilidade de comunicar; e creio que fui salvo pela amizade. Senti essa impossibilidade como um ferro em brasa a queimar-me, como uma tortura; caíamos num meio onde não compreendíamos uma palavra, onde a palavra não podia ser compreendida, onde não conseguíamos ser entendidos. Era uma grande sorte encontrar um italiano com quem comunicar. Éramos poucos italianos, cerca de cem em dez mil, 18
um por cento dos presos do Lager, e os estrangeiros a falar a nossa língua eram raros; entre nós quase ninguém falava alemão ou polaco, só alguns falavam francês. Sofríamos de um terrível isolamento linguístico. E descobrir uma brecha, um meio de ultrapassar esse isolamento linguístico, era um factor de sobrevivência. E encontrar na outra extremidade do fio uma pessoa amiga era a salvação. Ora, este rapaz, Alberto, de quem falei frequentemente nos meus livros, era o homem providencial, tinha coragem para dar e vender, para ele e para os outros, tinha todas as condições para a prodigalizar e eu fui parar ao pé dele por mero acaso, sem nunca compreender muito bem… Encontrei nele um salvador; não sei o que é que ele encontrava em mim para me dizer: “És uma pessoa de sorte.” Eu não sabia bem no que ele se baseava para dizer isso, mas o destino veio a mostrar-me depois que tive sorte. Tentei várias vezes teorizar sobre o que me tinha salvo e concluí pouca coisa, concluí que o acaso tinha sido o factor dominante. Por exemplo, no meu caso, eu, que não tinha uma saúde particularmente sólida, estive um ano inteiro sem adoecer, mesmo 19
de uma banal infecção, que aliás podia ser perigosa. — E depois, finalmente… — Fiquei doente numa altura propícia, quando era uma sorte, porque os alemães abandonaram, de forma completamente imprevisível, os doentes ao seu destino. — Talvez seja um pouco precipitado dizer que em certos casos a sorte consiste em permitir-se adoecer quando é possível, adoecer só quando… como se o corpo resistisse por uma espécie de auto-regulação até ao momento em que nos permite deixar-nos ir… — Em certos casos, é certo. Talvez se tenha passado assim, mas esse fenómeno acontece também na vida de todos os dias. — Efectivamente… Para voltar a esse savoir-vivre, lembro-me de que aludiu a um código implícito, segundo o qual não se devia falar de certas coisas. — Sim, era um paralelismo. Aqui abordamos um assunto que diz respeito ao discurso sobre a morte, de que falarei um 20
pouco mais tarde. Na vida corrente, num ambiente descontraído familiar, não é conveniente falar de cancro. Da mesma maneira, no campo, falar de crematórios ou de câmaras de gás era dar provas de uma certa indelicadeza ou mesmo de má educação. Sim, era um tema que nós podíamos evitar porque, quer uns quer outros, não existiam materialmente no nosso campo; eu não estava em Birkenau, mas sim em Monowitz. Auschwitz não constituía um único campo, havia vários, e o meu era o terceiro na hierarquia, era Auschwitz III, que era o maior dos campos secundários. O crematório situava-se em Birkenau; eu nunca lá pus os pés e não sei dizer se este código de conduta também lá vigorava, mas, no meu campo, era considerado incorrecto evocar tais assuntos, mandávamos calar todo aquele que se pusesse a falar disso, encolhíamos os ombros, mudávamos de conversa. — Para além deste, havia outros temas considerados tabus? — Não. O tema que se repetia obsessivamente era o da comida, mas era tão generalizado, tão comum a todos e a qual21
quer um que o tolerávamos, apesar de ser nocivo. Falar de ementas refinadas em tais condições traía uma pulsão imperiosa e suscitava uma reacção de… como dizer?… de irritação, de nervosismo, mas todos nós fazíamos isso. Conheci poucos homens suficientemente fortes para resistir a essa tentação: falar do que comiam em suas casas, idealizando, sim idealizando. Era verdadeiramente o assunto principal, não saíamos dele; era o tema de conversa por excelência. Queria ainda evocar o seguinte: o discurso sobre a morte. O medo da morte, tanto quanto me lembro, não era qualitativamente diferente daquele que sentimos na vida normal. Hoje, apesar de sermos livres, sabemos todos que vamos morrer, e lá também não ignorávamos que a morte acabava por chegar: não daí a dez, vinte ou trinta anos, mas a poucas semanas, um mês. Estranhamente, isso não mudava grande coisa. O pensamento da morte era recalcado, como na vida corrente. A morte não pertencia ao registo das palavras ou dos medos quotidianos; sofríamos tão cruelmente da falta de tudo, de comida, de calor, era tão vital evitar o cansaço e os es22
pancamentos que a morte, que não surgia como um perigo imediato, era escamoteada. — Para me ater a esta questão da morte, gostava de saber se houve uma selecção logo à vossa chegada. — Sim, à saída do comboio, nos primeiros minutos. Era uma regra à chegada de cada transporte, mas naquele momento não a entendemos. Eu, pelo menos, não a compreendi e entre os italianos bem poucos a terão entendido. Era uma operação extremamente rápida, baseada numa cota que, soube-o mais tarde, era mais ou menos constante, cerca de quatro quintos. Em cada transporte, três quartos dos deportados, pelo menos, eram enviados directamente para a câmara de gás, e um quinto ou um quarto ia para o trabalho. — Então, quando é que teve a certeza da existência das câmaras de gás para além, evidentemente, da certeza da existência dos fornos crematórios? — No nosso campo, essa era uma questão que era ocultada; como eu já disse, falávamos apenas por entre mil censuras, 23
por vezes alguém que viesse de Birkenau… Lembro-me, por exemplo, de um rapaz que encontrei logo no início, era um turco ou um grego que falava italiano; vinha de Birkenau e dizia: “Sim, em Birkenau trabalha-se menos do que aqui, mas lá é a morte.” Mas, quando lhe perguntei: “Que queres dizer com isso?”, ele encolheu os ombros e não insistiu. Não… no nosso campo, se havia uma ideia que se procurava recalcar a todo o custo era a da câmara de gás. Mas parece-me que nos outros sítios também era assim, mesmo em Birkenau… Temos que pensar que, nas condições em que estávamos mergulhados, o deportado não possuía a nossa sensibilidade e a nossa emotividade. Tinha o espírito embotado e esse embotamento era a sua salvação pois permitia-lhe aguentar até ao fim do dia preocupando-se apenas com as realidades imediatas e quotidianas, recalcando o resto. A nossa sensibilidade estava diminuída, sobretudo a nossa emotividade. Aqui tenho de abrir um parêntesis: quarenta anos depois, ou quase, lembro-me de tudo isto através do que escrevi; os meus escritos desempenham assim, para mim, o papel de memória artificial, e o 24
resto, o que eu não escrevi, resume-se a alguns pormenores. — Nós queríamos justamente questioná-lo sobre a relação escrita-deportação porque, evidentemente, quando se escreve não se relata toda a experiência. Separa-se, selecciona-se, organiza-se, faz-se um trabalho de homem de letras, de escritor. Assim, o que é que eliminou nos seus escritos? De que se recorda ter optado por pôr de lado? — Não fiz uma escolha consciente, tentei nessa altura transcrever as coisas mais difíceis, as mais duras, as mais pesadas e as mais importantes; mas seria bastante fútil introduzir em Se isto é um homem certos diálogos, certas conversas com colegas, com amigos, e optei por omiti-las — não digo que me tenha esquecido de o fazer — delas retirei mais tarde uma dúzia de relatos que estão em Lilìt, não sei se os conhecem… Aí evoco sobretudo encontros, personagens. Parecia-me um pouco ligeiro introduzi-los em Se isto é um homem. Parecia-me que o tema da indignação devia prevalecer, era um testemunho quase de natureza jurídica e eu entendia fazer dele um acto de acusação, não com o 25
objectivo de represálias, de vingança, de castigo, mas como testemunho e, por essa razão, certos temas pareciam-me então marginais. Por exemplo, não sei se se lembram, um dos primeiros relatos de Lilìt, o do discípulo, aquele colega húngaro que não queria roubar nem mentir, que tinha permanecido fiel à sua moral de homem livre: ele acabara de chegar e considerava que transportar dezassete tijolos com um vazio no meio em vez de vinte não era permitido, era uma mentira, em suma. Procurei convencê-lo de que não estávamos num mundo onde reinava a moral anterior, que era um mundo bipartido, um mundo dividido em dois — nós e os outros — e que a moral corrente não funcionava mais: os outros são de tal forma inimigos, o que nos separa é tão óbvio… como dizer?… tão feroz, que a moral corrente deixa de ser aplicável. E, mais tarde, de facto, ele furtou um rabanete que me veio oferecer como agradecimento pela lição que eu lhe tinha dado. Episódios como este, que constituem relatos bastante limitados, não me pareciam estar exactamente em consonância com o tom de Se isto é um homem, estavam uma oitava abaixo, e escrevi-os 26
bastante mais tarde. Não posso dar uma razão precisa… Por exemplo, a história do regresso de Cesare, em La Treve, escrevi-a posteriormente porque não tinha o direito de a escrever antes. O mesmo se pode dizer de muitas histórias que dizem respeito a pessoas que eu supunha estarem ainda vivas na época. Não as escrevi porque sei que é sempre imprudente falar de pessoas vivas, mesmo se as elogiamos, mesmo se dizemos bem; há sempre um risco. Tem-se praticamente a certeza de as magoar, pois a imagem que se tem de si próprio, mesmo que seja pior do que aquela que é dada por um livro, é sempre diferente. — Esse é um problema que interessa a todo o nosso campo de pesquisas, o problema de uma imagem que construímos e que é em seguida representada de forma diferente, este problema reaparecerá em todas as entrevistas porque, para dar uma apresentação mais vasta, será sempre necessário condensar, pôr em evidência certas partes, o que é muito delicado, é certo. Sim, compreendo muito bem o seu receio de falar de pessoas concretas… 27