O Japão - Uma antologia de escritos sobre as gentes

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ISBN 972-795-174-1

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Comparar Lafcadio Hearn a uma instituição japonesa não será um exagero. O repórter que desembarcou no Japão em 1890, tornar-se-ia no veículo dilecto das coisas japonesas para o Ocidente. No tempo em que os Ocidentais ali se instalavam para instruir ou pontificar como senhores, Lafcadio deixa-se deslumbrar pela singularidade envolvente. Dotado de um temperamento emotivo, que pasma perante cada detalhe, transmitirá, nos seus escritos, a fruição da beleza tranquila do quotidiano, tentando compreender o que está por trás do encanto daquelas artes e costumes. Nascido na Grécia a 27 de Junho de 1850, de pai anglo-irlandês (cirurgião do exército britânico) e mãe grega, Lafcadio pouco conviveu com os pais, tendo sido criado por uma tia-avó, perto de Dublin. Aos 16 anos, perde a visão do olho esquerdo numa brincadeira de escola. Pouco tempo depois, a situação precária da família obriga-o a abandonar os estudos. Aos 19 anos, decide partir para os Estados Unidos, onde se torna repórter, relativamente afamado pelas suas peças sobre criminalidade. Primeiro em Cincinnati e mais tarde em Nova Orleães (para onde se muda em 1877 e onde ficará durante 10 anos), vive humildemente, em quartos, que muitas vezes partilha com gente de cor; numa América minada por preconceitos, é essa a classe a que sente pertencer. Produto, ele próprio, da mistura de duas raças, viria a escrever que “o interesse supremo da antiga civilização japonesa reside naquilo que exprime acerca do carácter de uma raça [...] isto pode ser afirmado com segurança: que a raça [japonesa], como todas as boas raças, é uma raça misturada”. O relativo sucesso da sua escrita leva-o a ser contratado pela Harper Publishing Co, que o envia para as Índias Ocidentais (1887-89), e depois para o Japão. Chega a Yokohama na Primavera de 1890. No Japão, ganha a vida essencialmente como jornalista e professor — primeiro, em Matsué (onde casa com Setsu Koizumi, filha de uma família samurai local, de quem terá 4 filhos), depois em Kumamoto, mais tarde na Universidade Imperial de Tóquio. Morre em 1904, aos 54 anos, de ataque cardíaco, deixando mais de 4.000 páginas escritas sobre o país que o elegeu como maior intérprete e testemunha, o seu ‘gaijin’, ou ‘laureado’. O nome japonês que adoptou foi Yakumo Koizumi.


Título: O Japão. Uma antologia de escritos sobre as gentes Origem dos textos que compõem o livro O Japão. Uma antologia de escritos sobre as gentes “Bits of life and death”, “Yuko: a reminiscence”: Out of the East; “Of women’s hair”: Glimpses of unfamiliar Japan; “A street singer”, “Kimiko”: Kokoro; “On a bridge”, “The case of O-Day”, “Drifting”: A Japanese miscellany; “Diplomacy”: Kwaidan; “A passional karma”: In ghostly Japan; “Survivals”: Japan: an attempt at interpretation. Seguiu-se a antologia editada por Donald Richie, intitulada Lafcadio Hearn’s Japan, Charles E. Tuttle Publishing, 1997. © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2006 ISBN 972-795-174-1


Lafcadio Hearn

O Japão uma antologia de escritos sobre as gentes

Tradução de Humberto Brito

Cotovia



O JAPテグ. AS GENTES



Índice

Pedaços de vida e de morte

p. 11

Do cabelo das mulheres

39

Uma cantadeira de rua

57

Kimiko

65

Yuko: uma reminiscência

83

Numa ponte

93

O caso de O-Dai

99

À deriva

109

Diplomacia

121

Um karma passional

125

Sobrevivências

161

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A grafia dos nomes japoneses ĂŠ a de Lafcadio Hearn, muitas vezes bizarra, pois nunca dominou a lĂ­ngua.


Pedaços de vida e de morte

I 25 de Julho. Esta semana a minha casa recebeu três visitas extraordinárias. A primeira foi a dos limpa-poços profissionais. Pois uma vez em cada ano todos os poços devem ser esvaziados e lavados, para que o Deus dos Poços, Suijin-Sama, não se enfureça. Na ocasião aprendi várias coisas sobre os poços japoneses e sua divindade tutelar, que possui dois nomes, sendo também conhecida por Mizuha-nome-no-mikoto. Suijin-Sama protege todos os poços, mantendo fresca e doce a sua água, desde que os proprietários atentem às suas leis de asseio, que são rígidas. Àqueles que as violam virá a doença, e a morte. O deus raramente se manifesta, assumindo em tal caso a forma de uma serpente. Nunca vi qualquer templo dedicado a ele. Mas uma vez por mês, um 11


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sacerdote Xint¯o visita os lares das famílias devotas possuidoras de poços, e repete certa reza ancestral ao Deus do Poço, e coloca nobori, ou bandeirinhas de papel, que são símbolos, na borda do poço. A mesma coisa se faz, também, depois de o poço ser limpo. Então, o primeiro balde da água nova deve ser puxado por um homem; pois se uma mulher puxar primeiro a água, o poço permanecerá, daí em diante, sempre lamacento. O deus tem pequenos servos que o ajudam neste trabalho. São os peixinhos a que os japoneses chamam funa1. Um ou dois funas são mantidos em cada poço, para limpar a água de vermes. Quando um poço é limpo, toma-se muito cuidado com os peixinhos. Foi por ocasião da visita dos limpa-poços que me apercebi, pela primeira vez, da existência de um par de funas no meu próprio poço. Foram postos numa tina de água fria enquanto o reenchiam, e depois voltaram a ser mergulhados na sua solidão. As águas do meu poço são límpidas e geladas. Mas, agora, delas não voltarei a beber sem pensar naquelas duas vidinhas brancas, incessantemente circulando na escuridão, e alvoroçadas ao longo de anos sem conta pelo mergulho dos baldes. A segunda visita curiosa foi a dos bombeiros da divisão regional, devidamente fardados, com as suas 1

Uma espécie de pequena carpa de rio.

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bombas de água manuais. De acordo com um costume antigo, eles fazem uma ronda uma vez por ano por toda a região, durante a estação seca, e atiram água sobre os telhados quentes, e recebem uma pequena gratificação de cada proprietário abonado. Há a crença de que, quando não regados há bastante tempo, os telhados podem ser ateados pelo mero calor do sol. Os bombeiros regaram com a mangueira os meus telhados, as minhas árvores e o meu jardim, produzindo um frescor considerável; e em recompensa presenteei-os com o suficiente para comprarem saké. A terceira visita foi a de uma delegação de crianças pedindo alguma ajuda para celebrar adequadamente o festival de Jiz¯o, que tem um santuário no outro lado da rua, exactamente oposto à minha casa. Satisfez-me bastante contribuir para o seu fundo, pois adoro o gentil deus, e sabia que o festival seria encantador. Cedo na manhã seguinte, vi que o santuário fora já decorado com flores e lanternas votivas. Tinham colocado um novo babeiro à volta do pescoço de Jiz¯o, e um repasto budista defronte dele. Mais tarde, os carpinteiros construíram uma plataforma no recinto do templo para as crianças dançarem; e, antes de o sol se pôr, os vendedores de brinquedos haviam erigido uma pequena rua de barraquinhas dentro das muralhas. Depois de anoitecer, saí para o meio de uma grande gló13


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ria de luzes de lanternas e fui ver as crianças dançar; e encontrei, pendurada à frente do meu portão, uma enorme libelinha com mais de um metro e meio de comprimento. Era um sinal da gratidão das crianças pela pequena ajuda que eu lhes dera – um kazari, um enfeite. Fiquei espantado durante uns momentos com o realismo da coisa; mas, examinando mais de perto, percebi que o corpo era um ramo de pinheiro embrulhado com papel colorido, as quatro asas eram quatro pás de lareira, e a cabeça brilhante era um pequeno bule de chá. O todo estava iluminado por uma vela posicionada de modo a produzir extraordinárias sombras, que faziam parte do desenho. Era um maravilhoso exemplo do sentido artístico funcionando sem um mínimo de material artístico, e no entanto era tudo obra de uma pobre criancinha de oito anos de idade!

II 30 de Julho. A casa a seguir à minha, como quem vai para sul – uma estrutura baixa e manchada – é a casa de um tintureiro. Podemos sempre dizer onde vive um tintureiro japonês pelas compridas peças de seda ou algodão estendidas entre estacas de bambu defronte da sua porta para secarem ao sol – largos panos de cores fortes, azul celeste, 14


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violeta, rosa, azul pálido, cinzento pérola. Ontem o meu vizinho persuadiu-me a fazer uma visita à família; e depois de me terem conduzido através da parte da frente do seu pequeno domicílio, dei por mim, surpreendido, a olhar de uma varanda traseira para um jardim digno de qualquer velho palácio de Quioto. Havia uma requintada paisagem em miniatura e um tanque de água límpida povoado de peixes dourados com barbatanas maravilhosamente complexas. Desfrutara eu deste espectáculo por um bom bocado, e o tintureiro levou-me a uma pequena sala transformada em capela budista. Embora tudo ali tivesse de ter sido feito em escala reduzida, não me recordo de ter visto tão artística exibição em qualquer templo. Ele disse-me que aquilo lhe custara cerca de mil e quinhentos ienes. Não compreendi como poderia essa soma ter sequer chegado. Havia três altares elaboradamente esculpidos – um triplo esplendor de lacados dourados; uma variedade de encantadoras imagens budistas; muitos recipientes sofisticados; uma escrivaninha de ébano; um mokugyo¯ 2; dois belos sinos – em suma, toda a parafernália de um templo em miniatura. O meu anfitrião estudara num templo budista durante a juventude e sabia os sutras3, dos quais ele possuía todos 2 Um bloco de madeira oco com a forma de uma cabeça de golfinho. Bate-se-lhe para acompanhar os cânticos dos sutras budistas. 3 Textos sagrados do Budismo (N. do T.).

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os que são usados pela seita Jodo. ¯ Disse-me que poderia celebrar qualquer um dos serviços vulgares. Diariamente, à hora certa, toda a família se reunia na capela para rezar; e geralmente ele lia-lhes o Ky¯o4. Mas em ocasiões excepcionais viria um sacerdote budista de um templo vizinho ministrar o culto. Contou-me uma estranhíssima história acerca de ladrões. Os tintureiros são peculiarmente susceptíveis de serem visitados por ladrões; em parte devido ao valor das sedas que lhes são confiadas, e além disso por que se sabe que o negócio é lucrativo. Certa noite, a família foi assaltada. O senhor estava fora da cidade; a sua velha mãe, a sua esposa e uma criada eram as únicas pessoas em casa na altura. Três homens com máscaras e espadas compridas entraram porta adentro. Um perguntou à criada se algum dos aprendizes se encontrava ainda na casa; e ela, na esperança de amedrontar os invasores, respondeu-lhe que os rapazes estavam ainda todos a trabalhar. Mas os ladrões não se perturbaram com esta garantia. Um deles postou-se à entrada, os outros dois dirigiram-se para o dormitório. As mulheres alarmaram-se e a esposa perguntou, “Por que desejais matar-nos?” Aquele que parecia ser o líder respondeu, “Não queremos matar-vos; só queremos o dinheiro. Mas se não nos 4

Um dos sutras.

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derem, então será assim” – e enterrou a espada na esteira. A velha mãe disse, “Tenham a bondade de não assustar a minha nora e dar-vos-ei todo o dinheiro que temos em casa. Mas deviam saber que não há cá muito, uma vez que o meu filho foi a Quioto.” Passou-lhes a gaveta do dinheiro e a sua própria bolsa. Só havia vinte e sete ienes e oitenta e quatro sen5. O chefe dos ladrões contou-os e disse, de uma forma particularmente amável, “Não vos queremos assustar. Sabemos que é muito devota do budismo e achamos que não nos mentiria. Isto é tudo o que tem?” “Sim, é tudo”, respondeu ela. “Sou, como diz, uma crente nos ensinamentos do Buda, e se vieram aqui assaltar-me, acredito que é apenas porque eu mesma, nalguma vida anterior, vos roubei. Este é o meu castigo por essa falha e por isso, em vez de vos querer enganar, sinto-me grata por esta oportunidade de atenuar o erro que cometi contra vós no meu prévio estado de existência.” O ladrão riu-se e disse, “É uma boa velhinha e acreditamos em si. Se a senhora fosse pobre, não a roubaríamos sequer. Agora só queremos um par de quimonos e isto” – disse, assentando a mão num traje de muito fina seda. A velha respondeu, “Posso dar-vos todos os quimonos do meu filho, mas imploro que não me levem isso, pois não pertence ao meu filho, e só nos foi confiado para o tingirmos. O que 5

Unidade monetária equivalente a um centésimo de iene. (N. do T.)

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é nosso, posso dar, mas não posso desfazer-me daquilo que pertence a outras pessoas.” “Parece-me muito bem”, aprovou o ladrão, “e não havemos de o levar.” Depois de receberem algumas túnicas, os ladrões disseram boa-noite de uma forma muito polida mas ordenaram que as mulheres não fossem atrás deles. A velha criada permanecia à porta. Quando o chefe dos ladrões passou por ela, disse, “Mentiste-nos, por isso toma!” – e bateu-lhe, fazendo-a perder os sentidos. Nenhum dos ladrões foi alguma vez apanhado.

III 29 de Agosto. Depois de um corpo ser queimado, de acordo com os ritos funerários de certas seitas budistas, é procurado entre as cinzas um pequeno osso chamado Hotoke-San, ou “Senhor Buda”, que a crença popular supõe ser um pequeno osso da garganta. Que osso realmente é, não sei, nunca tive oportunidade de examinar tal relíquia. Conforme o formato deste pequeno osso quando encontrado depois da cremação, é possível prever a futura condição do morto. Se o próximo estado a que se destina a alma for de felicidade, o osso terá a forma de uma pequena imagem de Buda. Mas se o próximo nascimento estiver condenado a 18


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ser infeliz, então o osso terá ou uma forma feia, ou forma nenhuma. Um rapazinho, filho de um negociante de tabaco vizinho, morreu na noite de anteontem e o corpo foi hoje cremado. Descobriu-se que o pequeno osso poupado pelas chamas tinha a forma de três Budas – San-Tai – o que pode ter oferecido algum consolo espiritual aos pais da vítima6.

IV 13 de Setembro. Uma carta de Matsué, em Izumu, diz-me que o velho que costumava vender-me tubos de cachimbo morreu. (Um cachimbo japonês, fique a saber, consiste normalmente em três peças – um fornilho de metal onde só cabe uma ervilha, uma boquilha de metal e um tubo de bambu, que é renovado em intervalos regulares.) Ele costumava gravar os seus tubos de uma forma muito bonita: alguns pareciam espinhos de porco-espinho, e outros pareciam cilindros de pele de cobra. Vivia numa ruazinha estreita à entrada da cidade. Conheço a rua por lá haver uma famosa estátua de Jiz¯o, cha6 ¯ No grande templo de Tenn¯oji, em Osaka, todos os ossos assim são deixados cair para dentro de uma cripta; e de acordo com o som que cada um deles faz ao cair, diz-se que se obtêm mais informações acerca do Gosho ¯ [“a vida futura”]. Após cem anos do começo desta curiosa colecção, todos estes ossos devem ser triturados numa espécie de pasta, a partir da qual se deve fazer uma estátua colossal de Buda.

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mada Shiroko-Jizo¯ – “Jizo-Criança-Branca”, ¯ que uma vez fui visitar. Por alguma razão que nunca fui capaz de descobrir, eles pintam-lhe a cara de branco, como o rosto de uma dançarina. O velho tinha uma filha, O-Masu, acerca de quem se conta uma história. O-Masu é ainda viva. Foi uma esposa feliz durante muitos anos; mas é muda. Há muito tempo, uma populaça em fúria saqueou e destruiu o domicílio e o armazém de um especulador de arroz na cidade. O seu dinheiro, incluindo uma quantidade de moedas de ouro (koban), foi espalhado pela rua. Os arruaceiros – camponeses rudes, mas honestos – não o queriam: eles queriam destruir, não roubar. Mas na mesma noite, o pai de O-Masu apanhou da lama um koban e levou-o para casa. Mais tarde um vizinho denunciou-o e assegurou-se da sua prisão. O juiz diante do qual foi levado a comparecer tentou obter certas provas questionando O-Masu, então uma tímida rapariga de quinze anos de idade. Ela sentiu que, se continuasse a responder, seria obrigada, contra a sua própria vontade, a dar um testemunho desfavorável a seu pai; que estava na presença de um inquisidor treinado, capaz de, sem esforço, levá-la a reconhecer tudo o que ela sabia. Parou de falar e um fio de sangue jorrou da sua boca. Silenciara-se para sempre arrancando a língua com os próprios dentes. O seu pai foi absolvido. Um mercador, que admirou o seu 20


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acto, pediu-a em casamento e sustentou o seu pai na velhice. V 10 de Outubro. Diz-se que há um dia – e apenas um – na vida de uma criança, durante o qual ela é capaz de se lembrar e de falar sobre a sua existência anterior. No preciso dia em que completa exactamente dois anos de idade, a criança é levada pela mãe para a parte mais silenciosa da casa, e é colocada dentro de um mi, ou cesto para joeirar arroz. A criança senta-se no mi. Depois a mãe diz, chamando a criança pelo nome, “Omae no zensé wa, nande attakane? – iute, g¯oran”7. Então, a criança responde numa palavra. Por alguma razão misteriosa, nunca dá uma resposta mais comprida. Frequentemente a resposta é tão enigmática que é preciso pedir a algum sacerdote ou adivinho que a interprete. Por exemplo, ontem, o filho mais novo de um caldeireiro que vive perto de nós respondeu apenas “Umé” à pergunta mágica. Ora, umé poderia significar flor de ameixoeira, ameixa, ou um nome de rapariga – “Flor-da-ameixoeira”. Poderia isso querer dizer que o menino se lembrava de ter sido uma 7 “A vossa vida prévia – que foi ela? Honoravelmente vede [ou, vede por favor] e dizei.”

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rapariga? Ou que fora uma ameixoeira? “Almas de homens não incarnam ameixoeiras”, disse um vizinho. Esta manhã, um adivinho declarou, ao ser questionado acerca do enigma, que o rapaz foi noutra vida provavelmente um erudito, ou poeta, ou homem de estado, uma vez que a ameixoeira é o símbolo de Tenjin, o patrono dos eruditos, dos estadistas e dos homens de letras.

VI 17 de Novembro. Poder-se-ia escrever um livro espantoso sobre aquelas coisas da vida japonesa que nenhum estrangeiro pode compreender. Tal livro poderia incluir um estudo sobre certos efeitos, raros mas terríveis, da raiva. Como regra nacional, os japoneses muito poucas vezes se permitem dar sinais de raiva. Mesmo entre as classes baixas, é provável que qualquer ameaça séria assuma a forma de uma confiança sorridente de que o nosso favor será recordado e de que o seu recipiente se sente grato. (Não suponha, contudo, que isto é irónico, na nossa acepção da palavra: é apenas eufemístico – coisas feias que não são chamadas pelo seu verdadeiro nome.) Mas esta confiança sorridente pode plausivelmente querer dizer morte. Quando a vingança chega, chega inesperadamente. Nem a distância nem o tempo ofere22


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cem, nos limites do império, qualquer obstáculo ao vingador, o qual pode caminhar oitenta quilómetros por dia, cuja bagagem completa pode ser enrolada numa toalha muito pequena, e cuja paciência é quase infinita. Ele pode escolher uma faca, mas é muito mais provável que use uma espada – uma espada japonesa. Esta, em mãos japonesas, é a mais mortífera das armas; e o assassinato de dez ou doze pessoas por um homem enraivecido pode demorar menos de um minuto. Não é frequente que o assassino pense em tentar escapar. O antigo costume exige que, tendo tirado a vida a outrem, ele acabe com a sua própria vida; donde cair nas mãos da polícia seria uma desgraça para o seu nome. Ele preparou tudo antecipadamente, escreveu as suas cartas de despedida, organizou o seu enterro, talvez – como num episódio horrendo do ano passado – tenha até cinzelado a sua própria lápide. Tendo levado até ao fim a sua vingança, o assassino suicida-se. Ocorreu há pouco tempo, não muito longe da cidade, numa aldeia chamada Sugikamimura, uma daquelas tragédias difíceis de perceber. Os protagonistas foram Narumatsu Ichiro, ¯ um jovem lojista; a sua esposa, O-Noto, com vinte anos de idade, com a qual casara há apenas um ano; e o tio de O-Noto, por parte da mãe, um Sugimoto Kasaku, homem de têmpera violenta, que estivera em tempos na prisão. A tragédia teve quatro actos. 23


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ACTO I. Cena: interior de balneários públicos. Sugimoto Kasaku no banho. Entra Natumatsu Ichiro, ¯ que se despe, entra na água fumegante sem dar pelo parente, e grita – “Ah! como se estivesse em Jigoko, tão quente a água está!” (A palavra “Jigoko” significa o inferno budista; mas, em paleio popular, também significa prisão – o que desta feita foi uma infeliz coincidência.) Kasaku (terrivelmente enraivecido). “A bebé de leite cheiras tu, para procurares tamanha querela. De que é que não gostas?” Ichir¯o (surpreendido e alarmado, mas reagindo contra o tom de Kasaku). “Não! Quê? O que eu disse não precisa você de explicar. Embora dissesse que a água está quente, a sua ajuda para a aquecer ainda mais, ninguém pediu.” Kasaku (agora ameaçador). “Apesar de por minha culpa, não uma, mas duas vezes, ter eu estado no inferno da prisão, que há de espanto nisso? Ou criança idiota, ou rasteiro patife, um dos dois deves ser! (Cada um relança o outro, mas ambos hesitam, posto fossem pronunciadas coisas que nenhum japonês toleraria. Estão demasiado bem um para o outro, o velho e o mais novo.) 24


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Kasaku (arrefecendo cada vez mais os ânimos, à medida que Ichiro¯ se enraivece). “Uma criança, um bebé de leite, para se meter comigo! O que pode um bebé de leite com uma faca? A tua mulher é sangue do meu, do meu – é sangue do homem do inferno! Devolve-a à minha casa.” Ichir¯o (desesperadamente, e agora bem certo de que, fisicamente, Kasaku é o melhor). “Devolver a minha mulher? Diz-me você que a devolva? Bem depressa será devolvida, é pra já!” Até agora, tudo permanece suficientemente claro. Então, Ichiro¯ corre para casa, acaricia a esposa, assegura-a do seu amor, conta-lhe tudo e manda-a ir, não para a casa de Kasaku, mas para a do irmão dela. Dois dias passados, um pouco depois de anoitecer, O-Noto é chamada à porta por seu marido e desaparecem ambos na noite. ACTO II. Cena nocturna. Casa de Kasaku fechada: vê-se luz através de frestas nas portas de correr. Aproxima-se a sombra de uma mulher. Som de pancadas à porta. As portas abrem deslizando. Esposa de Kasaku (reconhecendo O-Noto). “Ah! Ah! Alegria é ver-te. Digna-te a entrar e a tomar um chá honorável.” O-Noto (falando com muita doçura). “Agradeço muito. Mas onde está Kasaku San?” 25


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