O QUE É A FILOSOFIA?
José Ortega y Gasset
O que é a Filosofia? Ensaio
Tradução de José Bento
© ¿Qué es filosofía? Herederos de José Ortega y Gasset © Edições Cotovia, Lda., Lisboa 1994 © Fotografia: Archivo de la Fundación José Ortega y Gasset Concepção gráfica de João Botelho ISBN 972-8028-36-9
Cotovia
José Ortega y Gasset
O que é a Filosofia? Ensaio
Tradução de José Bento
© ¿Qué es filosofía? Herederos de José Ortega y Gasset © Edições Cotovia, Lda., Lisboa 1994 © Fotografia: Archivo de la Fundación José Ortega y Gasset Concepção gráfica de João Botelho ISBN 972-8028-36-9
Cotovia
Índice
p. 9
Nota do tradutor
PRIMEIRA LIÇÃO [A filosofia, hoje. — A nossa tarefa: uma análise da própria actividade filosófica. — A estranha aventura que acontece às verdades: o advento da verdade. — Articulação entre a história e a verdade. — O sentido e a razão. — A superação do relativismo.]
11
SEGUNDA LIÇÃO [Redução e expansão da filosofia. — Por que se volta à filosofia? — O drama das gerações. — Imperialismo da física. — Pragmatismo. — Filosofia e teoria do conhecimento.]
23
TERCEIRA LIÇÃO [O «tema do nosso tempo». — A «ciência» é mero simbolismo. — As ciências em rebeldia. — Por que há filosofia? — A exactidão da ciência e o conhecimento filosófico. — Agnosticismo e «temas últimos».]
37
QUARTA LIÇÃO [Conhecimento do Universo ou Multiverso. — Primado do problema frente às suas soluções. — Problemas teóricos e problemas práticos. — Panlogismo e razão vital. — Marta e Maria.]
53
QUINTA LIÇÃO [A necessidade da filosofia. — Presente e compresente. O ser fundamental. — Autonomia e pantonomia. — Defesa do teólogo frente ao místico. — A filosofia é um «dizer».]
69
7
SEXTA LIÇÃO [Crença e teoria: jovialidade, jogo. — As evidências intuitivas: suas classes. — Os dados do problema filosófico.]
87
SÉTIMA LIÇÃO [Os dados do Universo. — A dúvida cartesiana. — O primado teórico da consciência. — O Eu como gerifalte.]
105
OITAVA LIÇÃO [O descobrimento da subjectividade: um novo modo de ser. — «Êxtase» primitivo e «espiritualismo» antigo. — As duas raízes da subjectividade moderna. — Cepticismo e cristianismo. — O Deus transcendente do cristianismo.]
121
NONA LIÇÃO [O tema do nosso tempo. — Uma reforma radical da filosofia. — O dado radical do Universo. — Eu sou para o mundo e o mundo é para mim. — A vida de cada homem.]
135
DÉCIMA LIÇÃO [Uma realidade nova e uma nova ideia da realidade. O ser indigente. — O que é o viver? — Os atributos da vida. — Viver é encontrar-se no mundo. Viver é constantemente decidir o que vamos ser.]
157
DÉCIMA PRIMEIRA LIÇÃO [A realidade radical é a nossa vida. — As categorias da vida. — A vida teorética. — A circunstância: fatalidade e liberdade. — O modelo íntimo: pre-ocupação e des-preocupação.]
173
APÊNDICE Por que se volta à filosofia?
193
8
NOTA DO TRADUTOR
A edição de ¿Qué es filosofía? utilizada para esta tradução cita na Nota Preliminar de Paulino Garagorri as seguintes palavras de Ortega y Gasset: Em Fevereiro de 1929 comecei um curso na Universidade de Madrid intitulado «¿Qué es filosofía?». O encerramento da Universidade por causas políticas e a minha consequente demissão obrigaram-me a continuá-lo na profanidade de um teatro. Como talvez alguns leitores argentinos possam interessar-se pelos temas daquele curso, faço a experiência de publicar em La Nación as suas primeiras lições. Nelas reproduzo algumas coisas das minhas conferências em «Amigos del Arte» e na Faculdade de Filosofia e Letras de Buenos Aires. Esta é a Advertência com que Ortega y Gasset publicou no diário La Nación, de Buenos Aires, a série de sete artigos ¿Por qué se vuelve a la filosofía?, em 1930 e 1931. (No Apêndice deste livro incluem-se os três últimos desses sete artigos, os três escritos depois desse curso e que o continuam a partir da definição aristotélica da filosofia referida na sua terceira lição.) Nesses artigos anteciparam-se algumas partes da segunda e terceira lições de ¿Qué es filosofía?, que se incluíram nas Obras Completas (1946-1947). O curso que constitui este livro iniciou-se, pois, na Universidade de Madrid e continuou na Sala Rex e no Teatro Infanta Beatriz, da capital espanhola (daí que em alguns pontos se fale de um teatro). Em Buenos Aires, Ortega y Gasset deu dois cursos de cinco e de quatro lições sobre, respectivamente, ¿Qué es nuestra vida? e ¿Qué es la ciencia, que es la filosofía? O texto que traduzi é o do curso dado em Madrid, de acordo com os manuscritos preparados para as lições em Madrid e Buenos Aires e os fragmentos saídos nas Obras Completas. 9
SEXTA LIÇÃO [Crença e teoria: jovialidade, jogo. — As evidências intuitivas: suas classes. — Os dados do problema filosófico.]
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SÉTIMA LIÇÃO [Os dados do Universo. — A dúvida cartesiana. — O primado teórico da consciência. — O Eu como gerifalte.]
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OITAVA LIÇÃO [O descobrimento da subjectividade: um novo modo de ser. — «Êxtase» primitivo e «espiritualismo» antigo. — As duas raízes da subjectividade moderna. — Cepticismo e cristianismo. — O Deus transcendente do cristianismo.]
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NONA LIÇÃO [O tema do nosso tempo. — Uma reforma radical da filosofia. — O dado radical do Universo. — Eu sou para o mundo e o mundo é para mim. — A vida de cada homem.]
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DÉCIMA LIÇÃO [Uma realidade nova e uma nova ideia da realidade. O ser indigente. — O que é o viver? — Os atributos da vida. — Viver é encontrar-se no mundo. Viver é constantemente decidir o que vamos ser.]
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DÉCIMA PRIMEIRA LIÇÃO [A realidade radical é a nossa vida. — As categorias da vida. — A vida teorética. — A circunstância: fatalidade e liberdade. — O modelo íntimo: pre-ocupação e des-preocupação.]
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APÊNDICE Por que se volta à filosofia?
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NOTA DO TRADUTOR
A edição de ¿Qué es filosofía? utilizada para esta tradução cita na Nota Preliminar de Paulino Garagorri as seguintes palavras de Ortega y Gasset: Em Fevereiro de 1929 comecei um curso na Universidade de Madrid intitulado «¿Qué es filosofía?». O encerramento da Universidade por causas políticas e a minha consequente demissão obrigaram-me a continuá-lo na profanidade de um teatro. Como talvez alguns leitores argentinos possam interessar-se pelos temas daquele curso, faço a experiência de publicar em La Nación as suas primeiras lições. Nelas reproduzo algumas coisas das minhas conferências em «Amigos del Arte» e na Faculdade de Filosofia e Letras de Buenos Aires. Esta é a Advertência com que Ortega y Gasset publicou no diário La Nación, de Buenos Aires, a série de sete artigos ¿Por qué se vuelve a la filosofía?, em 1930 e 1931. (No Apêndice deste livro incluem-se os três últimos desses sete artigos, os três escritos depois desse curso e que o continuam a partir da definição aristotélica da filosofia referida na sua terceira lição.) Nesses artigos anteciparam-se algumas partes da segunda e terceira lições de ¿Qué es filosofía?, que se incluíram nas Obras Completas (1946-1947). O curso que constitui este livro iniciou-se, pois, na Universidade de Madrid e continuou na Sala Rex e no Teatro Infanta Beatriz, da capital espanhola (daí que em alguns pontos se fale de um teatro). Em Buenos Aires, Ortega y Gasset deu dois cursos de cinco e de quatro lições sobre, respectivamente, ¿Qué es nuestra vida? e ¿Qué es la ciencia, que es la filosofía? O texto que traduzi é o do curso dado em Madrid, de acordo com os manuscritos preparados para as lições em Madrid e Buenos Aires e os fragmentos saídos nas Obras Completas. 9
Para esta tradução utilizei a edição da Revista de Occidente na Alianza Editorial (10.ª edição, Madrid, 1993), da colecção das Obras de José Ortega y Gasset dirigida por Paulino Garagorri. Traduzi as notas desta edição. De modo incompleto a do Apêndice, redigida por Garagorri; a parte excluída só se aplica à edição espanhola. As notas de Garagorri estão entre parêntesis rectos. Da Nota Preliminar de Garagorri transcrevemos um excerto que sintetiza a importância que este livro possui no conjunto da obra do grande pensador espanhol: «A importância deste curso na Obra de Ortega y Gasset, enquanto exposição do seu pensamento filosófico, é relevante e o seu texto figurará entre os seus livros capitais. Tanto na sua data original como ao editá-lo em 1958 entre as suas Obras Inéditas obteve uma ressonância e um apreço excepcionais. Embora, certamente, só possa representar o pensamento do autor numa data que significa uma fase do seu desenvolvimento — «primeira maturação» lhe chama Ortega —, as páginas de ¿Qué es filosofía? contêm um dos testemunhos mais inequívocos da originalidade e radicalidade com que Ortega y Gasset enfrenta todo o passado da filosofia e, precisamente apoiando-se na sua longa história, promove a “reforma radical da filosofia” que é o argumento de toda a sua obra». J. B.
10
PRIMEIRA LIÇÃO
[A filosofia, hoje. — A nossa tarefa: uma análise da própria actividade filosófica. — A estranha aventura que acontece às verdades: o advento da verdade. — Articulação entre a história e a verdade. — O sentido e a razão. — A superação do relativismo.] Em matéria de arte, de amor ou de ideias creio serem pouco eficazes anúncios e programas. Pelo que toca às ideias, a razão de uma tal incredulidade é a seguinte: a meditação sobre qualquer tema, quando é positiva e autêntica, afasta inevitavelmente o meditador da opinião recebida ou já aí existente, do que com mais graves razões que quanto agora suponham, merece chamar-se «opinião pública» ou «vulgaridade». Todo o esforço intelectual que com rigor o seja afasta-nos solitários da praia comum, e, por rotas recônditas que precisamente o nosso esforço descobre, conduz-nos a lugares retirados, situa-nos sobre pensamentos insólitos. São estes o resultado da nossa meditação. Pois bem: o anúncio ou programa reduz-se a antecipar estes resultados, deles arrancando previamente a via ao cabo da qual foram descobertos. Mas, como veremos, um pensamento separado da rota mental que a ele conduz, insulano e escarpado, é uma abstracção no pior sentido da palavra, e, por esse motivo, é ininteligível. O que se ganha quando se começa uma investigação ao colocar o público diante deste alcantil inacessível que seria o nosso programa, isto é, começando pelo fim? Renuncio, pois, a destacar com maiúsculas de programa o que este ciclo de conferências vai ser, e proponho-me começar pelo princípio, pelo que para vós pode ser hoje, como ontem foi para mim, o termo inicial. Este facto que encontramos primeiro é externo e público: a situação diferente em que a filosofia se acha hoje dentro do espírito colectivo se a compararmos com a que possuía há trinta anos e, paralelamente, a atitude diferente em que hoje o filósofo se coloca perante o seu próprio ofício e labor. Essa situação pode-se demonstrar, como todos os factos externos e públicos, por 11
Para esta tradução utilizei a edição da Revista de Occidente na Alianza Editorial (10.ª edição, Madrid, 1993), da colecção das Obras de José Ortega y Gasset dirigida por Paulino Garagorri. Traduzi as notas desta edição. De modo incompleto a do Apêndice, redigida por Garagorri; a parte excluída só se aplica à edição espanhola. As notas de Garagorri estão entre parêntesis rectos. Da Nota Preliminar de Garagorri transcrevemos um excerto que sintetiza a importância que este livro possui no conjunto da obra do grande pensador espanhol: «A importância deste curso na Obra de Ortega y Gasset, enquanto exposição do seu pensamento filosófico, é relevante e o seu texto figurará entre os seus livros capitais. Tanto na sua data original como ao editá-lo em 1958 entre as suas Obras Inéditas obteve uma ressonância e um apreço excepcionais. Embora, certamente, só possa representar o pensamento do autor numa data que significa uma fase do seu desenvolvimento — «primeira maturação» lhe chama Ortega —, as páginas de ¿Qué es filosofía? contêm um dos testemunhos mais inequívocos da originalidade e radicalidade com que Ortega y Gasset enfrenta todo o passado da filosofia e, precisamente apoiando-se na sua longa história, promove a “reforma radical da filosofia” que é o argumento de toda a sua obra». J. B.
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PRIMEIRA LIÇÃO
[A filosofia, hoje. — A nossa tarefa: uma análise da própria actividade filosófica. — A estranha aventura que acontece às verdades: o advento da verdade. — Articulação entre a história e a verdade. — O sentido e a razão. — A superação do relativismo.] Em matéria de arte, de amor ou de ideias creio serem pouco eficazes anúncios e programas. Pelo que toca às ideias, a razão de uma tal incredulidade é a seguinte: a meditação sobre qualquer tema, quando é positiva e autêntica, afasta inevitavelmente o meditador da opinião recebida ou já aí existente, do que com mais graves razões que quanto agora suponham, merece chamar-se «opinião pública» ou «vulgaridade». Todo o esforço intelectual que com rigor o seja afasta-nos solitários da praia comum, e, por rotas recônditas que precisamente o nosso esforço descobre, conduz-nos a lugares retirados, situa-nos sobre pensamentos insólitos. São estes o resultado da nossa meditação. Pois bem: o anúncio ou programa reduz-se a antecipar estes resultados, deles arrancando previamente a via ao cabo da qual foram descobertos. Mas, como veremos, um pensamento separado da rota mental que a ele conduz, insulano e escarpado, é uma abstracção no pior sentido da palavra, e, por esse motivo, é ininteligível. O que se ganha quando se começa uma investigação ao colocar o público diante deste alcantil inacessível que seria o nosso programa, isto é, começando pelo fim? Renuncio, pois, a destacar com maiúsculas de programa o que este ciclo de conferências vai ser, e proponho-me começar pelo princípio, pelo que para vós pode ser hoje, como ontem foi para mim, o termo inicial. Este facto que encontramos primeiro é externo e público: a situação diferente em que a filosofia se acha hoje dentro do espírito colectivo se a compararmos com a que possuía há trinta anos e, paralelamente, a atitude diferente em que hoje o filósofo se coloca perante o seu próprio ofício e labor. Essa situação pode-se demonstrar, como todos os factos externos e públicos, por 11
meios também externos; por exemplo, comparando estatisticamente o número de livros de filosofia que hoje o público consome com o que ele absorvia há trinta anos. É notório que hoje, em quase todos os países, se vendem proporcionalmente mais livros de tema filosófico do que literário, e em toda a parte existe uma curiosidade crescente pela ideologia. Esta curiosidade, este grande interesse que é sentido nas mais diversas gradações de consciente claridade, compõe-se de dois ingredientes: o público começa a sentir novamente necessidade de ideias e, simultaneamente, sente voluptuosidade nelas. Não é um acaso a combinação destas duas características; já veremos como no ser vivo toda a necessidade essencial, que brota do próprio ser e não lhe advém de fora acidentalmente, vai acompanhada de voluptuosidade. A voluptuosidade é a cara, a facies da felicidade. E todo o ser é feliz quando satisfaz o seu destino, isto é, quando segue a encosta da sua inclinação, da sua necessidade essencial, quando se realiza, quando está a ser o que é na verdade. Por esta razão Schlegel dizia, invertendo a relação entre voluptuosidade e destino: «Para o que nos agrada temos génio». O génio, isto é, o dom superlativo de um ser para fazer alguma coisa tem sempre simultaneamente uma fisionomia de supremo prazer. Num dia que está próximo e graças a uma transbordante evidência vamo-nos ver surpreendidos e obrigados a descobrir o que agora somente parecerá uma frase: que o destino de cada homem é, ao mesmo tempo, o seu maior prazer. O nosso tempo, pelo visto, tem em relação ao que o precede um destino filosófico e, por isso, compraz-se em filosofar — para além do mais em pôr os ouvidos alerta quando pelo ar público passam a revoar filosóficas palavras, em ir ao encontro do filósofo como de um viajante que se supõe traz notícias frescas do transmundo. Semelhante situação contrasta rigorosamente com a que dominava há trinta anos. Trinta anos! Coincidência curiosa! O período que é costume atribuir-se a uma geração. E, em surpreendente paralelismo com esta modificação do espírito público, achamos que o filósofo de hoje se sente perante a filosofia num estado de espírito oposto ao que os seus colegas
da geração anterior usufruíam. Disto vamos falar hoje, de como nos aproximamos da filosofia com uma disposição tão diferente da que ontem dominava nos pensadores. Partindo daqui, nesta série de lições ir-nos-emos aproximando do seu verdadeiro tema, que seria agora inútil denominar, porque não se entenderia. Ir-nos-emos aproximando em círculos concêntricos, de raio cada vez mais curto e intenso, deslisando pela espiral a partir de uma mera exterioridade com aspecto abstracto, indiferente e frio, rumo a um centro de terrível intimidade, patético em si mesmo, embora não no nosso modo de o tratar. Os grandes problemas filosóficos requerem uma táctica similar à que os hebreus empregaram para conquistar Jericó e as suas rosas íntimas: sem um ataque directo, circulando lentamente em redor, apertando a curva cada vez mais e mantendo vivo no ar um som de trombetas dramáticas. No assédio ideológico, a melodia dramática consiste em manter sempre acordada a consciência dos problemas, que são o drama ideal. Espero que esta tensão não falte, por o caminho que empreendemos ser de tal natureza que ganha em atractivos à medida que vai avançando. Do externo e abstruso que hoje nos toca dizer desceremos a assuntos mais imediatos, tão imediatos que não o podem ser mais, como são a nossa própria vida, a vida de cada um de nós. Mais ainda, vamos descer corajosamente por baixo daquilo que costuma cada um de nós crer que é a sua vida e que é somente a superfície dessa vida; perfurando esta, vamos penetrar em zonas subterrâneas do nosso próprio ser, que permanecem secretas para nós de tão íntimas que são, por serem tanto o nosso ser. Mas dizer isto, dirigir-vos este vago gesto inicial não é, repito, um anúncio; é todo o contrário, uma guarda e precaução que me vejo obrigado a tomar perante a inesperada abundância de ouvintes que a nossa cidade generosa e inquieta (muito mais inquieta, e inquieta num sentido muito mais essencial que quanto se suspeita) quis enviar-me. Sob o título «O que é a filosofia?» anunciei um curso académico — por isso, rigorosamente científico. Não sei se um equívoco inevitável que nas palavras desse título torce a vista fez acreditar a muitos que me proponho fazer uma introdução elementar à filosofia, isto é, tratar o conjunto
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meios também externos; por exemplo, comparando estatisticamente o número de livros de filosofia que hoje o público consome com o que ele absorvia há trinta anos. É notório que hoje, em quase todos os países, se vendem proporcionalmente mais livros de tema filosófico do que literário, e em toda a parte existe uma curiosidade crescente pela ideologia. Esta curiosidade, este grande interesse que é sentido nas mais diversas gradações de consciente claridade, compõe-se de dois ingredientes: o público começa a sentir novamente necessidade de ideias e, simultaneamente, sente voluptuosidade nelas. Não é um acaso a combinação destas duas características; já veremos como no ser vivo toda a necessidade essencial, que brota do próprio ser e não lhe advém de fora acidentalmente, vai acompanhada de voluptuosidade. A voluptuosidade é a cara, a facies da felicidade. E todo o ser é feliz quando satisfaz o seu destino, isto é, quando segue a encosta da sua inclinação, da sua necessidade essencial, quando se realiza, quando está a ser o que é na verdade. Por esta razão Schlegel dizia, invertendo a relação entre voluptuosidade e destino: «Para o que nos agrada temos génio». O génio, isto é, o dom superlativo de um ser para fazer alguma coisa tem sempre simultaneamente uma fisionomia de supremo prazer. Num dia que está próximo e graças a uma transbordante evidência vamo-nos ver surpreendidos e obrigados a descobrir o que agora somente parecerá uma frase: que o destino de cada homem é, ao mesmo tempo, o seu maior prazer. O nosso tempo, pelo visto, tem em relação ao que o precede um destino filosófico e, por isso, compraz-se em filosofar — para além do mais em pôr os ouvidos alerta quando pelo ar público passam a revoar filosóficas palavras, em ir ao encontro do filósofo como de um viajante que se supõe traz notícias frescas do transmundo. Semelhante situação contrasta rigorosamente com a que dominava há trinta anos. Trinta anos! Coincidência curiosa! O período que é costume atribuir-se a uma geração. E, em surpreendente paralelismo com esta modificação do espírito público, achamos que o filósofo de hoje se sente perante a filosofia num estado de espírito oposto ao que os seus colegas
da geração anterior usufruíam. Disto vamos falar hoje, de como nos aproximamos da filosofia com uma disposição tão diferente da que ontem dominava nos pensadores. Partindo daqui, nesta série de lições ir-nos-emos aproximando do seu verdadeiro tema, que seria agora inútil denominar, porque não se entenderia. Ir-nos-emos aproximando em círculos concêntricos, de raio cada vez mais curto e intenso, deslisando pela espiral a partir de uma mera exterioridade com aspecto abstracto, indiferente e frio, rumo a um centro de terrível intimidade, patético em si mesmo, embora não no nosso modo de o tratar. Os grandes problemas filosóficos requerem uma táctica similar à que os hebreus empregaram para conquistar Jericó e as suas rosas íntimas: sem um ataque directo, circulando lentamente em redor, apertando a curva cada vez mais e mantendo vivo no ar um som de trombetas dramáticas. No assédio ideológico, a melodia dramática consiste em manter sempre acordada a consciência dos problemas, que são o drama ideal. Espero que esta tensão não falte, por o caminho que empreendemos ser de tal natureza que ganha em atractivos à medida que vai avançando. Do externo e abstruso que hoje nos toca dizer desceremos a assuntos mais imediatos, tão imediatos que não o podem ser mais, como são a nossa própria vida, a vida de cada um de nós. Mais ainda, vamos descer corajosamente por baixo daquilo que costuma cada um de nós crer que é a sua vida e que é somente a superfície dessa vida; perfurando esta, vamos penetrar em zonas subterrâneas do nosso próprio ser, que permanecem secretas para nós de tão íntimas que são, por serem tanto o nosso ser. Mas dizer isto, dirigir-vos este vago gesto inicial não é, repito, um anúncio; é todo o contrário, uma guarda e precaução que me vejo obrigado a tomar perante a inesperada abundância de ouvintes que a nossa cidade generosa e inquieta (muito mais inquieta, e inquieta num sentido muito mais essencial que quanto se suspeita) quis enviar-me. Sob o título «O que é a filosofia?» anunciei um curso académico — por isso, rigorosamente científico. Não sei se um equívoco inevitável que nas palavras desse título torce a vista fez acreditar a muitos que me proponho fazer uma introdução elementar à filosofia, isto é, tratar o conjunto
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das tradicionais questões filosóficas de forma principiante e fácil. Preciso de, com exactidão, desvanecer esse equívoco que somente poderia distrair e defraudar a vossa atenção. O que eu gostaria de fazer é todo o contrário de uma introdução à filosofia: é considerar a própria actividade filosófica, o filosofar mesmo e submetê-lo radicalmente a uma análise. Que eu saiba, isto não se fez nunca, embora pareça mentira; pelo menos, não se fez com a resolução com que vamos agora juntos tentá-lo. Como vedes, longe de ser um tema dos que costumam considerar-se próprios do interesse geral, é um assunto que, para já, parece o mais técnico e gremial, próprio só para filósofos. Se, quando o formos manipulando, tropeçarmos com temas mais sugestivos e humanos, se subitamente na rigorosa pesquisa do que seja a filosofia, portanto, que ela seja a ocupação particular e privativa dos filósofos, caímos por armadilha no mais humano do humano, na entranha cálida e palpitante da vida, e ali nos importunam deleitavelmente problemas da rua e até da alcova, será porque tem de ser assim, porque o exige precisamente o desenvolvimento técnico do meu problema técnico, não porque eu os anuncie nem os busque ou premedite. Somente anuncio todo o contrário: um estudo monográfico sobre uma questão hipertécnica. Fico, pois, livre e podendo fazer o que quero para não renunciar a nenhuma das asperezas intelectuais que impõe um propósito assim. É evidente que hei-de fazer o esforço mais leal para que para todos vós, mesmo sem um adestramento prévio, seja claro tudo o que eu disser. Sempre acreditei que a claridade é a gentileza do filósofo e, além disso, esta nossa disciplina tem como ponto de honra, hoje mais do que nunca, estar aberta e porosa a todas as mentes, diferente das ciências especiais, que cada vez mais com maior rigor, interpõem entre o tesouro das suas descobertas e a curiosidade dos profanos o dragão medonho da sua terminologia hermética. Penso que o filósofo tem que levar até ao limite para si próprio o rigor metódico quando investiga e persegue as suas verdades, mas que ao emiti-las e enunciá-las deve evitar o uso cínico com que alguns homens de ciência se comprazem, como Hércules de feira, em ostentar diante do público os biceps do seu tecnicismo.
Digo, pois, que hoje para nós a filosofia é uma coisa muito diferente do que foi para a geração anterior. Mas declarar isto é reconhecer que a verdade muda, que a de ontem é hoje um erro e, pelo mesmo motivo, de modo verosímil, a de hoje não servirá amanhã. Não é isto desprestigiar antecipadamente a nossa própria verdade? O argumento, certamente grosseiro mas o mais popular do cepticismo, foi aquele tropo de Agripa chamado τòν 2aπò τÁj διαϕων3iαj τîν δοξîν, da dissonância entre as opiniões. A variedade e mudança de opiniões sobre a verdade, a adesão a doutrinas diferentes e até de aparência contraditória convida à incredulidade. Por isso convém sair desde já ao encontro deste popular cepticismo. Mais de uma vez tereis reparado na estranha aventura que acontece às verdades. Seja, por exemplo, a lei da gravitação universal. Na medida em que esta lei é verdade não há dúvida que sempre o foi, isto é, que desde que existe matéria ponderável, corpos, estes comportaram-se de acordo com a sua fórmula. Contudo, foi preciso esperar até um belo dia do século XVII para que um homem numa ilha britânica a descobrisse. E vice-versa, não é nada impossível que num outro belo dia os homens se esqueçam dessa lei, não que a refutem ou corrijam, dado que supomos o seu pleno carácter de verdade, mas simplesmente que a esqueçam, que voltem, com respeito a ela, ao mesmo estado de não suspeitar dela em que estiveram até Newton. Isto dá às verdades uma dupla condição extremamente curiosa. Elas por si pré-existem eviternamente, sem alteração nem modificação. Contudo, a sua aquisição por um sujeito real, submetido ao tempo, proporciona-lhes um cariz histórico: surgem numa data e, talvez, volatilizam-se noutra. É claro que esta temporalidade não as afecta propriamente a elas, mas à sua presença na mente humana. O que acontece realmente no tempo é o acto psíquico com que as pensamos, o qual é um acontecimento real, uma mudança efectiva na série dos instantes. O nosso sabê-las ou ignorá-las é o que, em rigor, tem uma história. O que é precisamente o facto misterioso e inquietante, pois acontece que com um pensamento nosso, realidade transitória, fugaz, de um mundo fugacíssimo, entramos na posse de algo permanente e sobre-
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das tradicionais questões filosóficas de forma principiante e fácil. Preciso de, com exactidão, desvanecer esse equívoco que somente poderia distrair e defraudar a vossa atenção. O que eu gostaria de fazer é todo o contrário de uma introdução à filosofia: é considerar a própria actividade filosófica, o filosofar mesmo e submetê-lo radicalmente a uma análise. Que eu saiba, isto não se fez nunca, embora pareça mentira; pelo menos, não se fez com a resolução com que vamos agora juntos tentá-lo. Como vedes, longe de ser um tema dos que costumam considerar-se próprios do interesse geral, é um assunto que, para já, parece o mais técnico e gremial, próprio só para filósofos. Se, quando o formos manipulando, tropeçarmos com temas mais sugestivos e humanos, se subitamente na rigorosa pesquisa do que seja a filosofia, portanto, que ela seja a ocupação particular e privativa dos filósofos, caímos por armadilha no mais humano do humano, na entranha cálida e palpitante da vida, e ali nos importunam deleitavelmente problemas da rua e até da alcova, será porque tem de ser assim, porque o exige precisamente o desenvolvimento técnico do meu problema técnico, não porque eu os anuncie nem os busque ou premedite. Somente anuncio todo o contrário: um estudo monográfico sobre uma questão hipertécnica. Fico, pois, livre e podendo fazer o que quero para não renunciar a nenhuma das asperezas intelectuais que impõe um propósito assim. É evidente que hei-de fazer o esforço mais leal para que para todos vós, mesmo sem um adestramento prévio, seja claro tudo o que eu disser. Sempre acreditei que a claridade é a gentileza do filósofo e, além disso, esta nossa disciplina tem como ponto de honra, hoje mais do que nunca, estar aberta e porosa a todas as mentes, diferente das ciências especiais, que cada vez mais com maior rigor, interpõem entre o tesouro das suas descobertas e a curiosidade dos profanos o dragão medonho da sua terminologia hermética. Penso que o filósofo tem que levar até ao limite para si próprio o rigor metódico quando investiga e persegue as suas verdades, mas que ao emiti-las e enunciá-las deve evitar o uso cínico com que alguns homens de ciência se comprazem, como Hércules de feira, em ostentar diante do público os biceps do seu tecnicismo.
Digo, pois, que hoje para nós a filosofia é uma coisa muito diferente do que foi para a geração anterior. Mas declarar isto é reconhecer que a verdade muda, que a de ontem é hoje um erro e, pelo mesmo motivo, de modo verosímil, a de hoje não servirá amanhã. Não é isto desprestigiar antecipadamente a nossa própria verdade? O argumento, certamente grosseiro mas o mais popular do cepticismo, foi aquele tropo de Agripa chamado τòν 2aπò τÁj διαϕων3iαj τîν δοξîν, da dissonância entre as opiniões. A variedade e mudança de opiniões sobre a verdade, a adesão a doutrinas diferentes e até de aparência contraditória convida à incredulidade. Por isso convém sair desde já ao encontro deste popular cepticismo. Mais de uma vez tereis reparado na estranha aventura que acontece às verdades. Seja, por exemplo, a lei da gravitação universal. Na medida em que esta lei é verdade não há dúvida que sempre o foi, isto é, que desde que existe matéria ponderável, corpos, estes comportaram-se de acordo com a sua fórmula. Contudo, foi preciso esperar até um belo dia do século XVII para que um homem numa ilha britânica a descobrisse. E vice-versa, não é nada impossível que num outro belo dia os homens se esqueçam dessa lei, não que a refutem ou corrijam, dado que supomos o seu pleno carácter de verdade, mas simplesmente que a esqueçam, que voltem, com respeito a ela, ao mesmo estado de não suspeitar dela em que estiveram até Newton. Isto dá às verdades uma dupla condição extremamente curiosa. Elas por si pré-existem eviternamente, sem alteração nem modificação. Contudo, a sua aquisição por um sujeito real, submetido ao tempo, proporciona-lhes um cariz histórico: surgem numa data e, talvez, volatilizam-se noutra. É claro que esta temporalidade não as afecta propriamente a elas, mas à sua presença na mente humana. O que acontece realmente no tempo é o acto psíquico com que as pensamos, o qual é um acontecimento real, uma mudança efectiva na série dos instantes. O nosso sabê-las ou ignorá-las é o que, em rigor, tem uma história. O que é precisamente o facto misterioso e inquietante, pois acontece que com um pensamento nosso, realidade transitória, fugaz, de um mundo fugacíssimo, entramos na posse de algo permanente e sobre-
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temporal. É, pois, o pensamento um ponto onde se tocam dois orbes de consistência antagónica. Os nossos pensamentos nascem e morrem, passam, voltam, sucumbem. Entretanto, o seu conteúdo, o pensado, permanece invariável. Dois e dois continuam a ser quatro quando o acto intelectual em que o entendemos deixou de ser. Mas até dizer isto, dizer que as verdades o são sempre, é uma expressão inadequada. Ser sempre, a sempiternidade, significa persistência de algo ao longo da série temporal, duração ilimitada que é não menos duração que a efémera, e durar é estar submerso na torrente do tempo, e mais ou menos vulnerável ao seu influxo. Pois bem, as verdades não duram nem muito nem pouco, não possuem nenhum atributo temporal, não se banham na ribeira do tempo. Leibniz chamava-lhes vérités éternelles, na minha opinião também com impropriedade. Veremos depois, noutro dia, por que radicais razões. Se o sempiterno dura tanto como o próprio tempo na sua totalidade, o eterno é antes que o tempo comece e depois que ele acabe, mas inclui em si positivamente todo o tempo, é uma duração hiperbólica, uma superduração. É-o tanto que nela a duração conserva-se e simultaneamente anula-se: um ser eterno vive um tempo infinito, isto é, dura num único instante; isto é, não dura, «pois possui integralmente, de modo simultâneo e completo, uma vida sem fim». Esta é, com efeito, a grácil definição da eternidade que dá Boécio: interminabilis vitae total simul et perfecta possesio. Mas a relação das verdades com o tempo não é positiva, mas negativa, é um simples não ter que ver com o tempo em nenhum sentido, é ser por completo alheias a toda a qualificação temporal, é manter-se rigorosamente acrónicas. Dizer, pois, que as verdades o são sempre não envolve, falando de modo rigoroso, menor impropriedade que se dissermos — para usar um famoso exemplo trazido por Leibniz a outro propósito —, «justiça verde». O corpo ideal da justiça não oferece um encaixe nem um orifício onde possa enganchar-se o atributo «verdosidade», e todas as vezes em que pretendamos inseri-lo naquele, outras tantas o veremos resvalar sobre a justiça — como sobre uma área polida. A nossa vontade de unir estes dois conceitos fracassa, e, ao dizê-los juntos, permanecem obstinadamente separados, sem possível adesão nem
conjugação. Não existe, pois, heterogeneidade maior que a que existe entre o modo de ser atemporal constitutivo das verdades e o modo de ser temporal do sujeito humano que as descobre e pensa, conhece ou ignora, reitera ou esquece. Se, não obstante, usamos essa maneira de dizer — «as verdades são-no sempre» —, é porque praticamente isto não leva a consequências erróneas: é um erro inocente e cómodo. Graças a ele, olhamos esse estranho modo de ser que as verdades gozam sob a perspectiva temporal em que nos é habitual olhar as coisas do nosso mundo. Ao fim e ao cabo, dizer de alguma coisa que é sempre o que é equivale a afirmar a sua independência das variações temporais, a sua invulnerabilidade. É, pois, dentro do temporal, o carácter que mais se parece com a pura intemporalidade — é uma quase-forma de intemporalidade, a species quaedam aeternitatis. Por isso Platão, ao ver que precisava de situar fora do mundo temporal as verdades — a que ele chamava Ideias — inventa ´ a outro quase-lugar extramundano, o Øπερουρανòj τοποj, região sobreceleste; embora nele tenha tido graves consequências, reconheçamos que como imagem é fértil. Permite-nos que representemos o nosso mundo temporal como um orbe rodeado por outro âmbito de uma atmosfera ontológica diferente onde residem indiferentes as verdades acrónicas. Mas eis que num certo instante uma dessas verdades, a lei da gravitação, se filtra desse transmundo para o nosso, como se aproveitasse um poro que se dilata e lhe dá passagem. O meteorito ideal fica projectado no intramundo humano e histórico — imagem de advento, de descida que palpita no fundo de todas as religiões deístas. Mas essa queda e filtração no nosso mundo da verdade do transmundo coloca um problema sumamente exacto e sugestivo que, vergonhosamente, está por investigar. O poro cuja abertura a verdade aproveita para deslizar não é senão a mente de um homem. Pois bem — porquê tal verdade é apreendida, captada em tal data e por tal homem, se esta, como as suas irmãs, pré-existe indiferente ao tempo? Por que não foi pensada antes ou depois? Por que não foi outro o seu descobridor? Evidentemente, trata-se de uma afinidade essencial entre a figura daquela verdade e a forma do poro, do sujeito humano pelo qual ela
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temporal. É, pois, o pensamento um ponto onde se tocam dois orbes de consistência antagónica. Os nossos pensamentos nascem e morrem, passam, voltam, sucumbem. Entretanto, o seu conteúdo, o pensado, permanece invariável. Dois e dois continuam a ser quatro quando o acto intelectual em que o entendemos deixou de ser. Mas até dizer isto, dizer que as verdades o são sempre, é uma expressão inadequada. Ser sempre, a sempiternidade, significa persistência de algo ao longo da série temporal, duração ilimitada que é não menos duração que a efémera, e durar é estar submerso na torrente do tempo, e mais ou menos vulnerável ao seu influxo. Pois bem, as verdades não duram nem muito nem pouco, não possuem nenhum atributo temporal, não se banham na ribeira do tempo. Leibniz chamava-lhes vérités éternelles, na minha opinião também com impropriedade. Veremos depois, noutro dia, por que radicais razões. Se o sempiterno dura tanto como o próprio tempo na sua totalidade, o eterno é antes que o tempo comece e depois que ele acabe, mas inclui em si positivamente todo o tempo, é uma duração hiperbólica, uma superduração. É-o tanto que nela a duração conserva-se e simultaneamente anula-se: um ser eterno vive um tempo infinito, isto é, dura num único instante; isto é, não dura, «pois possui integralmente, de modo simultâneo e completo, uma vida sem fim». Esta é, com efeito, a grácil definição da eternidade que dá Boécio: interminabilis vitae total simul et perfecta possesio. Mas a relação das verdades com o tempo não é positiva, mas negativa, é um simples não ter que ver com o tempo em nenhum sentido, é ser por completo alheias a toda a qualificação temporal, é manter-se rigorosamente acrónicas. Dizer, pois, que as verdades o são sempre não envolve, falando de modo rigoroso, menor impropriedade que se dissermos — para usar um famoso exemplo trazido por Leibniz a outro propósito —, «justiça verde». O corpo ideal da justiça não oferece um encaixe nem um orifício onde possa enganchar-se o atributo «verdosidade», e todas as vezes em que pretendamos inseri-lo naquele, outras tantas o veremos resvalar sobre a justiça — como sobre uma área polida. A nossa vontade de unir estes dois conceitos fracassa, e, ao dizê-los juntos, permanecem obstinadamente separados, sem possível adesão nem
conjugação. Não existe, pois, heterogeneidade maior que a que existe entre o modo de ser atemporal constitutivo das verdades e o modo de ser temporal do sujeito humano que as descobre e pensa, conhece ou ignora, reitera ou esquece. Se, não obstante, usamos essa maneira de dizer — «as verdades são-no sempre» —, é porque praticamente isto não leva a consequências erróneas: é um erro inocente e cómodo. Graças a ele, olhamos esse estranho modo de ser que as verdades gozam sob a perspectiva temporal em que nos é habitual olhar as coisas do nosso mundo. Ao fim e ao cabo, dizer de alguma coisa que é sempre o que é equivale a afirmar a sua independência das variações temporais, a sua invulnerabilidade. É, pois, dentro do temporal, o carácter que mais se parece com a pura intemporalidade — é uma quase-forma de intemporalidade, a species quaedam aeternitatis. Por isso Platão, ao ver que precisava de situar fora do mundo temporal as verdades — a que ele chamava Ideias — inventa ´ a outro quase-lugar extramundano, o Øπερουρανòj τοποj, região sobreceleste; embora nele tenha tido graves consequências, reconheçamos que como imagem é fértil. Permite-nos que representemos o nosso mundo temporal como um orbe rodeado por outro âmbito de uma atmosfera ontológica diferente onde residem indiferentes as verdades acrónicas. Mas eis que num certo instante uma dessas verdades, a lei da gravitação, se filtra desse transmundo para o nosso, como se aproveitasse um poro que se dilata e lhe dá passagem. O meteorito ideal fica projectado no intramundo humano e histórico — imagem de advento, de descida que palpita no fundo de todas as religiões deístas. Mas essa queda e filtração no nosso mundo da verdade do transmundo coloca um problema sumamente exacto e sugestivo que, vergonhosamente, está por investigar. O poro cuja abertura a verdade aproveita para deslizar não é senão a mente de um homem. Pois bem — porquê tal verdade é apreendida, captada em tal data e por tal homem, se esta, como as suas irmãs, pré-existe indiferente ao tempo? Por que não foi pensada antes ou depois? Por que não foi outro o seu descobridor? Evidentemente, trata-se de uma afinidade essencial entre a figura daquela verdade e a forma do poro, do sujeito humano pelo qual ela
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passa. Nada acontece sem uma razão. Se o que aconteceu é que até Newton não se descobriu a lei da gravitação, é evidente que entre o indivíduo humano Newton e aquela lei existia alguma afinidade. Que classe de afinidade é esta? É uma semelhança? Não convém facilitar o problema, mas, pelo contrário, sublinhar a sua força enigmática. Como pode um homem parecer-se um pouco a uma verdade, por exemplo, geométrica, e o mesmo diríamos de qualquer outra? Em que se assemelha o homem Pitágoras ao teorema de Pitágoras? Com graça, o garoto da escola dirá que se parece com os seus calções — sentindo uma inconsciente inclinação a ajustar o teorema com a pessoa do seu autor. O mau é que Pitágoras não usava calções e no seu tempo somente os usavam os citas que, contudo, não descobriam teoremas. Achamos aqui, pela primeira vez, uma distinção radical que diferencia a nossa filosofia da que predominou durante séculos. Consiste essa distinção em considerar algo muito elementar, a saber: que entre o sujeito que vê, imagina ou pensa alguma coisa e o que é visto, imaginado por ele não há semelhança directa; pelo contrário, há uma diferença genérica. Quando penso no Himalaia, eu, que penso, e o meu acto de pensar não se parecem ao Himalaia; ele é uma montanha que ocupa um enorme espaço, o meu pensar não tem nada de montanha nem ocupa o menor espaço. Mas o mesmo acontece se, em vez de pensar no Himalaia, penso no número dezoito. No meu eu, na minha consciência, no meu espírito, na minha subjectividade, ou como quiserem chamar-lhe, não encontrarei nada que seja um dezoito. Para cúmulo, podemos dizer: que o acto em que penso dezoito unidades é uno e único. Digam-me se se parecem! Trata-se, pois, de entidades heterogéneas. E, contudo, o tema fundamental da história, se quer um dia ser a sério uma ciência, não pode ser outro senão mostrar como tal filosofia ou tal sistema político somente puderam ser descobertos, desenvolvidos e, em suma, vividos por um determinado tipo de homens que em tal data existiram. Porquê entre as muitas filosofias possíveis é somente o «criticismo» a que vem alojar-se, actualizar-se na alma de Kant? Não é evidente que precisamos para o explicar, para o compre-
ender, de construir uma dupla tabela de correspondências, onde a cada tipo de ideia objectiva vá contraposto o estado subjectivo afim, o tipo de homem capaz de a pensar? Mas não se volte a cair na trivialidade que durante os últimos oitenta anos obstruiu a marcha do pensamento — não se interprete o dito como se isso implicasse um radical relativismo, de modo que cada verdade fosse verdade somente para um determinado sujeito. Que uma verdade, se o é, vale para todos e que destes todos somente um ou vários, ou somente numa época, cheguem a conhecê-la e aderir a ela, são coisas completamente diferentes, e precisamente porque o são é necessário articulá-las, harmonizá-las, superando a situação escandalosa do pensamento em que o valor absoluto da verdade parecia incompatível com a mudança de opiniões que a história humana manifesta tão abundantemente. Temos que ver as variações do pensar não como uma mudança na verdade de ontem, que a converte num erro para hoje, mas como uma mudança de orientação no homem que o leva a ver diante de si outras verdades diferentes das de ontem. Não, pois, as verdades, mas o homem é o que muda, e porque muda vai percorrendo a série daquelas, vai seleccionando desse orbe do transmundo a que antes aludimos as que lhe são afins e tornando-se cego para todas as restantes. Notem que é este o a priori fundamental da história. Não é esta a história do homem? E que ente é esse chamado homem, cujas variações no tempo a história aspira investigar? O homem não é fácil de definir; a margem das suas diferenças é enorme; quanto maior for e menos estreita a noção do homem com que o historiador iniciar o seu trabalho, mais profunda e exacta será a sua obra. Homem é Kant, e homem é o pigmeu da Nova Guiné ou o australiano neanderthaloide. Contudo, um ingrediente mínimo de algo comum terá que existir entre os pontos extremos da variação humana, um limite forçoso terá que ter a margem que concedemos à humanidade para que o seja. Os antigos e os medievais tinham a sua definição mínima do homem, com rigor e para nossa vergonha não superada: é o animal racional. Coincidimos com ela; a pena é que para nós se fez não pouco problemático saber com clareza o
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passa. Nada acontece sem uma razão. Se o que aconteceu é que até Newton não se descobriu a lei da gravitação, é evidente que entre o indivíduo humano Newton e aquela lei existia alguma afinidade. Que classe de afinidade é esta? É uma semelhança? Não convém facilitar o problema, mas, pelo contrário, sublinhar a sua força enigmática. Como pode um homem parecer-se um pouco a uma verdade, por exemplo, geométrica, e o mesmo diríamos de qualquer outra? Em que se assemelha o homem Pitágoras ao teorema de Pitágoras? Com graça, o garoto da escola dirá que se parece com os seus calções — sentindo uma inconsciente inclinação a ajustar o teorema com a pessoa do seu autor. O mau é que Pitágoras não usava calções e no seu tempo somente os usavam os citas que, contudo, não descobriam teoremas. Achamos aqui, pela primeira vez, uma distinção radical que diferencia a nossa filosofia da que predominou durante séculos. Consiste essa distinção em considerar algo muito elementar, a saber: que entre o sujeito que vê, imagina ou pensa alguma coisa e o que é visto, imaginado por ele não há semelhança directa; pelo contrário, há uma diferença genérica. Quando penso no Himalaia, eu, que penso, e o meu acto de pensar não se parecem ao Himalaia; ele é uma montanha que ocupa um enorme espaço, o meu pensar não tem nada de montanha nem ocupa o menor espaço. Mas o mesmo acontece se, em vez de pensar no Himalaia, penso no número dezoito. No meu eu, na minha consciência, no meu espírito, na minha subjectividade, ou como quiserem chamar-lhe, não encontrarei nada que seja um dezoito. Para cúmulo, podemos dizer: que o acto em que penso dezoito unidades é uno e único. Digam-me se se parecem! Trata-se, pois, de entidades heterogéneas. E, contudo, o tema fundamental da história, se quer um dia ser a sério uma ciência, não pode ser outro senão mostrar como tal filosofia ou tal sistema político somente puderam ser descobertos, desenvolvidos e, em suma, vividos por um determinado tipo de homens que em tal data existiram. Porquê entre as muitas filosofias possíveis é somente o «criticismo» a que vem alojar-se, actualizar-se na alma de Kant? Não é evidente que precisamos para o explicar, para o compre-
ender, de construir uma dupla tabela de correspondências, onde a cada tipo de ideia objectiva vá contraposto o estado subjectivo afim, o tipo de homem capaz de a pensar? Mas não se volte a cair na trivialidade que durante os últimos oitenta anos obstruiu a marcha do pensamento — não se interprete o dito como se isso implicasse um radical relativismo, de modo que cada verdade fosse verdade somente para um determinado sujeito. Que uma verdade, se o é, vale para todos e que destes todos somente um ou vários, ou somente numa época, cheguem a conhecê-la e aderir a ela, são coisas completamente diferentes, e precisamente porque o são é necessário articulá-las, harmonizá-las, superando a situação escandalosa do pensamento em que o valor absoluto da verdade parecia incompatível com a mudança de opiniões que a história humana manifesta tão abundantemente. Temos que ver as variações do pensar não como uma mudança na verdade de ontem, que a converte num erro para hoje, mas como uma mudança de orientação no homem que o leva a ver diante de si outras verdades diferentes das de ontem. Não, pois, as verdades, mas o homem é o que muda, e porque muda vai percorrendo a série daquelas, vai seleccionando desse orbe do transmundo a que antes aludimos as que lhe são afins e tornando-se cego para todas as restantes. Notem que é este o a priori fundamental da história. Não é esta a história do homem? E que ente é esse chamado homem, cujas variações no tempo a história aspira investigar? O homem não é fácil de definir; a margem das suas diferenças é enorme; quanto maior for e menos estreita a noção do homem com que o historiador iniciar o seu trabalho, mais profunda e exacta será a sua obra. Homem é Kant, e homem é o pigmeu da Nova Guiné ou o australiano neanderthaloide. Contudo, um ingrediente mínimo de algo comum terá que existir entre os pontos extremos da variação humana, um limite forçoso terá que ter a margem que concedemos à humanidade para que o seja. Os antigos e os medievais tinham a sua definição mínima do homem, com rigor e para nossa vergonha não superada: é o animal racional. Coincidimos com ela; a pena é que para nós se fez não pouco problemático saber com clareza o
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que é ser animal e o que é ser racional. Por isso, preferimos dizer, para os efeitos da história, que homem é todo o ser vivente que pensa com sentido e que por isso nós podemos entendê-lo. O suposto mínimo da história é que o sujeito de quem fala possa ser entendido. Pois bem: não se pode entender senão o que possui alguma dimensão de verdade. Um erro absoluto não no-lo pareceria porque nem sequer o entenderíamos. O suposto profundo da história é, pois, todo o contrário de um radical relativismo. Quando vai estudar o homem primitivo supõe que a sua cultura tinha sentido e verdade e, se a tinha, continua a tê-la. Qual, se à primeira vista nos parece tão absurdo tudo o que aquelas criaturas fazem e pensam? A história é precisamente a segunda vista que consegue encontrar a razão da aparente sem-razão. Segundo isto, a história não é propriamente tal, não cumpre a sua missão constitutiva se não chega a entender o homem de uma época, seja esta qual for, inclusive a mais primitiva. Mas não pode entendê-lo se o próprio homem dessa época não leva uma vida com sentido; portanto, se o que ele pensa e faz não tem uma estrutura racional. Deste modo a história fica comprometida a justificar todos os tempos e é o contrário do que à primeira vista ameaçava ser: ao mostrar-nos a variabilidade das opiniões humanas, parece condenar-nos ao relativismo, mas como dá um sentido pleno a cada posição relativa do homem e nos descobre a verdade eterna que cada tempo viveu, supera radicalmente quanto no relativismo há de incompatível com a fé num destino trans-relativo e como eterno no homem. Eu espero, por razões muito concretas, que na nossa época a curiosidade pelo eterno e invariável que é a filosofia, e a curiosidade pelo volúvel e mudável que é a história, pela primeira vez, se articulem e abracem. Para Descartes o homem é um puro ente racional incapaz de variação; daí que a história lhe pareça como a história do inumano no homem e que a atribua, definitivamente, à vontade pecadora que constantemente nos faz deixar de ser entes racionais e cair na aventura infra-humana. Para ele, como para o século XVIII, a história não tem conteúdo positivo, só representa a série dos erros e equívocos cometidos pelo homem. Todavia,
o historicismo e o positivismo do século XIX desinteressam-se de todo o valor eterno para salvar o valor relativo de cada época. É inútil tentarmos violentar a nossa sensibilidade actual, que se recusa a prescindir de ambas as dimensões: a temporal e a eterna. Unir ambas tem que ser a grande tarefa filosófica da geração actual, para o que procurei iniciar um método que os alemães, propensos à elaboração de etiquetas, baptizaram com o nome de «perspectivismo»1. De 1840 a 1900 pode dizer-se que a humanidade atravessou uma das suas temporadas menos favoráveis à filosofia. Foi uma época antifilosófica. Se a filosofia fosse alguma coisa de que radicalmente fosse possível prescindir, não se duvida que durante esses anos teria desaparecido por completo. Como não é possível extirpar da mente humana a sua dimensão filosofante, o que se fez foi reduzi-la a um mínimo. E toda a batalha — que, por certo, será ainda bastante dura — em que hoje andamos a combater consiste precisamente em sair de novo para uma filosofia plena, completa; isto é, para um máximo de filosofia. Como se produziu aquela redução, aquele estreitamento do corpo filosófico? A série suficiente das causas que explicam semelhante facto ocupar-nos-á no próximo dia.
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1 Pela mesma razão que, melhor ou pior, se acha apontado este perspectivismo nos meus livros, gostaria de não falar dele na presente ocasião, e mostrar, em seguida, qual é a nova disposição espiritual em que nos achamos hoje perante a filosofia. [Sobre o pensamento historiológico de Ortega y Gasset, antes e depois deste curso, veja-se o volume Las Atlántidas y Del Imperio Romano (y otros ensayos de Historiología). Nota do editor espanhol.]
que é ser animal e o que é ser racional. Por isso, preferimos dizer, para os efeitos da história, que homem é todo o ser vivente que pensa com sentido e que por isso nós podemos entendê-lo. O suposto mínimo da história é que o sujeito de quem fala possa ser entendido. Pois bem: não se pode entender senão o que possui alguma dimensão de verdade. Um erro absoluto não no-lo pareceria porque nem sequer o entenderíamos. O suposto profundo da história é, pois, todo o contrário de um radical relativismo. Quando vai estudar o homem primitivo supõe que a sua cultura tinha sentido e verdade e, se a tinha, continua a tê-la. Qual, se à primeira vista nos parece tão absurdo tudo o que aquelas criaturas fazem e pensam? A história é precisamente a segunda vista que consegue encontrar a razão da aparente sem-razão. Segundo isto, a história não é propriamente tal, não cumpre a sua missão constitutiva se não chega a entender o homem de uma época, seja esta qual for, inclusive a mais primitiva. Mas não pode entendê-lo se o próprio homem dessa época não leva uma vida com sentido; portanto, se o que ele pensa e faz não tem uma estrutura racional. Deste modo a história fica comprometida a justificar todos os tempos e é o contrário do que à primeira vista ameaçava ser: ao mostrar-nos a variabilidade das opiniões humanas, parece condenar-nos ao relativismo, mas como dá um sentido pleno a cada posição relativa do homem e nos descobre a verdade eterna que cada tempo viveu, supera radicalmente quanto no relativismo há de incompatível com a fé num destino trans-relativo e como eterno no homem. Eu espero, por razões muito concretas, que na nossa época a curiosidade pelo eterno e invariável que é a filosofia, e a curiosidade pelo volúvel e mudável que é a história, pela primeira vez, se articulem e abracem. Para Descartes o homem é um puro ente racional incapaz de variação; daí que a história lhe pareça como a história do inumano no homem e que a atribua, definitivamente, à vontade pecadora que constantemente nos faz deixar de ser entes racionais e cair na aventura infra-humana. Para ele, como para o século XVIII, a história não tem conteúdo positivo, só representa a série dos erros e equívocos cometidos pelo homem. Todavia,
o historicismo e o positivismo do século XIX desinteressam-se de todo o valor eterno para salvar o valor relativo de cada época. É inútil tentarmos violentar a nossa sensibilidade actual, que se recusa a prescindir de ambas as dimensões: a temporal e a eterna. Unir ambas tem que ser a grande tarefa filosófica da geração actual, para o que procurei iniciar um método que os alemães, propensos à elaboração de etiquetas, baptizaram com o nome de «perspectivismo»1. De 1840 a 1900 pode dizer-se que a humanidade atravessou uma das suas temporadas menos favoráveis à filosofia. Foi uma época antifilosófica. Se a filosofia fosse alguma coisa de que radicalmente fosse possível prescindir, não se duvida que durante esses anos teria desaparecido por completo. Como não é possível extirpar da mente humana a sua dimensão filosofante, o que se fez foi reduzi-la a um mínimo. E toda a batalha — que, por certo, será ainda bastante dura — em que hoje andamos a combater consiste precisamente em sair de novo para uma filosofia plena, completa; isto é, para um máximo de filosofia. Como se produziu aquela redução, aquele estreitamento do corpo filosófico? A série suficiente das causas que explicam semelhante facto ocupar-nos-á no próximo dia.
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1 Pela mesma razão que, melhor ou pior, se acha apontado este perspectivismo nos meus livros, gostaria de não falar dele na presente ocasião, e mostrar, em seguida, qual é a nova disposição espiritual em que nos achamos hoje perante a filosofia. [Sobre o pensamento historiológico de Ortega y Gasset, antes e depois deste curso, veja-se o volume Las Atlántidas y Del Imperio Romano (y otros ensayos de Historiología). Nota do editor espanhol.]