O VERDADEIRO ATOR
Título: O verdadeiro ator © Jacinto Lucas Pires e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2011 Todos os direitos reservados ISBN 978-972-795-321-9
Jacinto Lucas Pires
O verdadeiro ator romance
Cotovia
QUERES SER PAUL GIAMATTI
“Atende o telefone”, diz a voz ao telefone. “Mas eu estou ao telefone”, diz ele. “Daqui a cinco minutos. Atende o telefone daqui a cinco minutos.” “Já não vou estar ao telefone daqui a cinco minutos?” “Vais estar ao pé do telefone, sem te mexeres, à espera.” “Ah, como é que sabes?” “Estou-te a dizer. É uma chamada muito importante, não te distraias. Aconteça o que acontecer, atende a porra do telefone.” “Está bem, calma.” “Calma, nada”, diz a voz. “Atende o telefone.” “Já percebi”, diz ele. “Mas agora não posso.” “Vou desligar, então.” E, passados cinco minutos, toca o telefone. Américo deixa tocar três vezes e atende. É uma chamada importante, Murilo tinha razão. Quem liga é um produtor inglês, Qualquer-Coisa Summers, a convidá-lo para um filme, um filme de grande orçamento, um filme muitíssimo internacional, e logo para o papel de protagonista. Primeiro, Américo pensa que talvez seja um gozo qualquer, sempre que há uma pausa do outro lado responde apenas “hã-hã”, a medo, para não se comprometer. Mas depois percebe que não, o palavreado e o sotaque, tudo 7
aquilo é demasiado espantoso para ser piada. Não apanha metade, que o senhor Summers fala muito rápido e muito cerrado e em inglês, mas percebe que o produtor acha superengraçado isto de ele conseguir trabalhar sem ter um agente; que o realizador do filme em questão, o conhecido Louie B. Kamp, apreciou brutalmente a sua prestação como barão da droga num filme espanhol um bocado para o manhoso que foi rodado em menos de um mês com duas câmaras digitais; e que a produção precisava muito que ele lhes desse um endereço de correio eletrónico. “Sabe o que quer dizer... Tem internet, não?” pergunta o senhor Summers, separando cada sílaba, como se ele fosse o coitado de um troglodita das cavernas. Américo engole em seco, amocha, finge uma risadinha divertida, diz que sim, “of course”, e uns segundos depois recebe o argumento no computador. A coisa chama-se Queres Ser Paul Giamatti. Como o título indica, trata-se da história do ator Paul Giamatti, que é aquele tipo cómico que fez aquele filme cómico sobre o vinho na América. “Inspirados pelo sucesso”, escrevem eles, na nota de apresentação do projeto, “diferentes tipos de sucesso, dos filmes Queres Ser John Malkovich? (realização de Spike Jonze, 1999), Sinédoque, Nova Iorque (realização de Charlie Kaufman, 2008) e Almas Frias (realização de Sophie Barthes, 2009), lançámo-nos na aventura deste Queres Ser Paul Giamatti (título provisório). Uma não-sequela em que invocamos tudo, todas as referências possíveis e imaginárias, históricas e das histórias, tudo o que existe e também tudo o que não existe, para criar a primeira pessoa, o primeiro ser humano feito apenas de imagens em movimento e som dolby-surround.” É, claro, uma 8
falsa história dele. A história de Giamatti enquanto personagem de um estranho jogo de vídeo chamado Estar Vivo. A história de Giamatti enquanto estrangeiro no mundo, poeta involuntário e adorável antissocial. A história de Giamatti enquanto feliz palhaço triste. Mais ou menos. O filme começa num bar decadente, daqueles onde as cortinas de veludo têm manchas suspeitas e os amadores de todas as áreas do conhecimento são autorizados, encorajados até, a subir ao palco para (a troco de nada, dinheiro nenhum) dizer piadas, cantar, dançar, fazer discursos políticos, declarar paixões do momento, confessar pecados, esse género de espelunca. Paul Giamatti, isto é, Américo, a personagem dele, está sentado a uma mesa com uma loira platinada, mais velha que ele e muito, estrondosamente, gorda. Assistem a um número bastante ritmado que inclui uma rapariga vestida, digamos assim, de Cleópatra, um violino, duas caixas de fósforos, uma galinha comandada à distância e um livro de poemas, e a certa altura a loira pergunta-lhe “E não se bebe nada, querido?” Giamatti sorri, faz que sim com a cabeça e chama o empregado. Pede “Champagne!” e espreita-a a ver a reação. Mas o raio da gorda não liga a mínima. Só tem olhos para a galinha que foge, histérica, dos poemas em chamas, folhas e folhas que a Cleópatra seminua vai rasgando e ateando com o violino numa ginástica absurda. Quando a garrafa de champanhe chega ao fim, está um tipo de camisa branca e laço preto atrás do microfone. Lembra um árbitro de boxe mas fala de coisas como “a discriminação que os políticos sofrem todos os dias”, “o melhor desporto depois desse”, “uma viagem 9
a Itália seguida de uma viagem a Oklahoma”. É o típico número de comédia falhado, o típico fracasso. Ou talvez não o típico-típico. Não se sente aquele peso, aquele silêncio confrangedor a seguir às piadas, aquele vazio que ecoa de maneiras esquisitas, realçando os pequenos barulhos desagradáveis de que não damos conta em alturas normais, não. A única coisa é que se vai deixando de ouvir o homem. Aos poucos as pessoas vão-se distraindo, põem-se a falar para o lado, viram-se para o balcão, para as bebidas que têm à frente, para dentro delas próprias, e a vozinha do árbitro de boxe vai descendo, deslizando, afogada. “Um rabo daqui até aos Himalaias”, são as últimas palavras que Giamatti ouve do palco antes da amiga loira lhe sussurrar “Tenho de ir ali à casinha” e desaparecer por entre as mesas gingando ordinarissimamente o seu rabo majestático. É uma expressão que ele odeia, “ir à casinha”, uma daquelas que o perturba a sério, de maneira que fica logo mal disposto como o diabo. Sozinho a olhar para o palco, tão triste. Triste não, triste é pouco. Patético, pesadão, pusilânime. De repente demasiado consciente de cada gesto, de cada banal acontecimento no seu corpo, barulhos no estômago, comichão no ouvido interno. Sem saber onde arrumar as mãos. As mãos como a porra de um problema prático. Tenta diversas posições: a direita por cima da esquerda, em “concha”; as duas de dedos abertos e juntos, em “crista”; e só uma para cada lado, sobre a mesa, “mortas”. Mas nada ajuda. Nenhuma posição funciona, claro, é só uma maneira de ir matando tempo. No palco o árbitro de boxe, derrotado pela feroz indiferença do público, interrompe o número, branco de nervoso, e diz “Bem, eu...” Faz um esgar engraçado 10
como se tivesse provado um fruto não comestível e sai a correr, quase a correr, um andar desequilibrado de cabeça atirada para a frente. Não vendo onde põe os pés, enreda-se nas cortinas à saída, tropeça para o lado de lá. Mas nem disso as pessoas dão conta. Durante uns espantosos dois, três minutos, fica-se a ver o pé do tipo, do lado de cá do palco. No limite da cortina, sim, o pé visível do lado de cá. Um sapato de pele, de um castanho demasiado claro, tão feio, fica-se a ver aquilo durante dois, três minutos, até que o tipo lá dá de si. Recolhe o pé com muito cuidado, com uma espécie de nojo, como se apanhasse uma casca de banana do chão para a deitar ao lixo mais próximo. No palco o pé, zup, desaparece. Aí sim, as pessoas calam-se. Olham umas para outras, indecisas sobre o que significa aquilo, e depois desatam a rir e a aplaudir, “Bravo! Bis, bis!” A loira é que não volta nunca mais. Esta é a primeira cena, depois a coisa desenvolve mais um bocado, outras peripécias, outros problemas, novas camadas. É um filme de autor, tem certa complexidade. Com o argumento na mão, as folhas que acabou de imprimir e ler, Américo está um pouco em choque, mas muito contente. Veio mesmo a calhar este convite para entrar num filme a sério. Há já seis meses, nove a contar com as férias, que está sem trabalho, sem nenhuma oferta de nada, nenhuma peça, nenhuma novela, nenhuma dobragem, nenhuma merda de nenhum anúncio. E como é que se conta férias se não se tem trabalho, férias de quê, pois? Dias e dias em casa, a tomar conta do Joaquim, que tem um ano e sete meses e não para de chorar, gritar, escorregar, desarrumar, partir coisas, meter coisas na boca, engasgar-se, ficar com febre, tomar re11
médios, tomar vacinas, dormir pouco e chorar e gritar e sujar fraldas e fraldas que Américo, mais tarde ou mais cedo, tem de mudar, já que é o único adulto em casa durante o dia. Nos tempos livres, trabalha nas ideias dele, não quer resignar-se, não quer, como dizia a personagem de uma telenovela que fez há uns anos, deixar-se “triturar pelas fatais engrenagens deste mundo”. Nos últimos dias, tem andado a pensar num projeto para vender aos teatros do país. Ainda não tem texto, nem título, mas já tem assim umas luzes sobre o formato, o estilo e o tom geral. Um espetáculo itinerante para um só ator num registo sério mas popular, inteligente mas comercial, divertido mas profundo. Isto é, profundo quanto baste. A ideia é pegar nas falas do Falstaff de Shakespeare e montar aquilo tudo muito bem, corta e cola e tal, atualizar-lhe os segundos sentidos, dar uma roupagem mais leve e jocosa ao paleio do homem e depois arranjar um fim que não deixe dúvidas sobre se é altura de aplaudir ou não, um fim que, enfim, seja mesmo final. Mas ainda lhe falta, portanto, uma metáfora. É assim que funciona o teatro. É preciso arranjar uma metáfora que ligue tudo e justifique tudo. Talvez vestir o Falstaff de secretário de Estado, por exemplo. Foi uma ideia que lhe ocorreu no outro dia quando estava num dos seus raros momentos de sossego, na casa de banho. Mas não tem a certeza. Falta-lhe pensar um bocado melhor nisto tudo, ainda tem muito trabalho pela frente. Joana diz-lhe que ele não está a ser realista, que ele nunca é realista, que uma ideia dessas não tem hipótese nenhuma. “Fal-staff?” diz ela, como se fosse uma chinesice, uma brincadeira, uma doença sem importância. 12
“Meu querido Américo, nenhum programador de nenhum teatro do país vai comprar um espetáculo em que apareça um, como é que é, ‘Falstaff’?… Ha, ha.” “Mas é uma personagem célebre.” “Oh, não brinques.” “E é... Shakespeare.” “‘Shakespeare?’ ‘Shake-speare?’ Meu querido, isso ainda é pior!” “Não digas ‘meu querido’ assim, por favor.” “São dois nomes esquisitos em vez de um.” “A sério... achas?” “Pois acho. Pois acho, Américo.” “Talvez”, diz ele, só para acabar com a conversa. “Se calhar, tenho de vender a ideia sem referir isso de ser a partir do Falstaff... de Shakespeare.” “Olha que é capaz de não ser pior. Meu querido.” E a maneira como ela profere aquelas duas palavras, sem olhar para ele, como se ele fosse um lacaiozito que andasse para ali, a cuidar da casa dela, do filho dela, como se ele fosse só uma piada de mau gosto que a grande mulher de sucesso pudesse pisar com o tacão fino, de bom gosto, do seu sapato italiano-brilhante, a maneira como ela diz aquilo naquele momento fá-lo odiá-la com uma violência tal, uma tal desmedida, que Américo diz para com os seus botões que só há uma forma de resolver esta história. “Ai, Joaninha, quando me chamas assim, até... ui, ui. E se — agora que o miúdo está a dormir e tudo — e se — e se fôssemos... hã? Só para desbobinar um bocado... Sim?” “À noite”, diz ela. Um tom profissional, neutro, já sem maldade nem nada. “Agora tenho de trabalhar.” 13
É uma verdadeira mulher moderna, trabalhadora e de sucesso. Aos trinta anos, chegou ao topo ou muito perto do topo do edifício do Estado e é nem mais nem menos do que Adjunta do Subdiretor Regional-Geral do Departamento Nacional de Controlo de Qualidade dos Azeites e Lagares, a primeira mulher a conseguir tal feito em tão tenra idade, e ainda com excelentes perspetivas de progressão na carreira, pois não só tem dado muito boas indicações nas avaliações externas e internas feitas ao Serviço como, sempre que há um estudo importante a fazer, um parecer qualquer mais pesado ou delicado a cargo do Serviço, é nela em quem as chefias depositam maior confiança para, por assim dizer, descalçar a bota. Como é natural, isso implica um grande esforço da parte da jovem alta-funcionária, muito trabalho de casa, serões e serões a ler dossiês e dossiês, papéis e mais papéis, relatórios e análises e circulares e justificativos e recomendações e articulados e o diabo a sete. À noite, Américo vai à casa de banho e, quando volta, a mulher está a dormir, a ressonar de boca aberta. O habitual. Tão querida, com aquele não-sei-quê de criança que algumas pessoas têm quando dormem. O cabelo loiro, muito bem dobradinho sobre a almofada; pálpebras finíssimas, lisas como plástico. Na cama Américo abre o livro que anda a ler há mais de um mês. O Palavrão, de Eduardo Fontes. Um romance deveras curioso, extremamente interessante. A história de uma mulher que vive “fora da linguagem” e só consegue entrar nas palavras, injetar-lhes sentidos, através de atos de violência contra o mundo e contra si mesma. Depois de um dia muito cansativo, e tratando-se de um livro tão exigente, cumprir a regra das dez pági14
nas não é nada fácil. Uma regra que Américo se impôs, ler um mínimo de dez páginas por dia. A ver se não se deprime na pasmaceira do desempregado que só muda fraldas e trata da lida da casa e não sabe de mais nada e não tem mais nenhum interesse e parece um totó sem nenhuma ideia, nenhum desejo, nenhuma alegria original. A verdade é que, desta vez, nem a meio fica. Adormece na segunda frase do primeiro parágrafo da terceira página: “Carmen emocionava-se com a cadência das orações mais complexas e, no entanto, se alguém dizia ‘cão’ ou ‘prédio’, ela não tinha logo uma imagem para a palavra.” À conta disso, sonha com um lugar branco onde as coisas só ganham existência à medida que alguém vai pensando nelas por extenso, dando-lhes nomes. Um lugar com um ar de manicómio pós-moderno, onde Américo passa o tempo sentado no chão a olhar para o nada em redor, a tentar bloquear o pensamento, cheio de medo, fazendo um esforço danado para que não lhe aconteça nenhuma palavra má que crie alguma coisa má e real. E o pior é que não chega a ser bem um pesadelo, Américo não tem suores frios nem acorda aos berros a chamar “Mãe!” Mas de manhã está contaminado por um mal-estar difuso que, é certo e sabido, há de acompanhá-lo o dia inteiro. Preferia uma febre qualquer a esta moleza estranha que o faz ver tudo dentro de um estado de já-aconteceu, tudo envenenado por uma qualidade de indiferença e vazio. Liga a televisão, senta-se com Joaquim a ver as notícias. A mulher já saiu para os Azeites, a casa só para os homens. Américo está-se nas tintas para a atualidade, como é óbvio, quer só ter alguma coisa 15
para fazer, algum lugar para onde olhar, imagens que mudem rápido. Há “sublevações” em dois ou três “bairros problemáticos”, mas o porta-voz do governo diz que isso não é causa para alarme. Do outro lado, os representantes da oposição mostram-se indignados e fazem frases longas demais onde se repete a palavra “segurança” e a palavra “social”. Joaquim acha graça àquilo, estica os braços na direção da televisão. “Não, não”, diz Américo. O miúdo começa a chorar. “Está bem, hoje pode ser”, emenda o pai, e Joaquim cala-se. Deixa-o bater no ecrã da televisão. Talvez lhe faça mal aos olhos, mas é um impulso compreensível e Américo não quer que ele faça uma gritaria daquelas doidas. E também é bom que o miúdo aprenda a aprender sozinho, com os próprios erros, que choque contra o ecrã duro algumas vezes para perceber que as imagens são só imagens e não têm nada a ver com a realidade. A silhueta do filho contra uma paisagem do Afeganistão e, de repente, o telemóvel a tremer. “XXX?” É ela. A mensagem dela. Escreve-lhe sempre neste código primário, vá-se lá perceber porquê. Se alguém lhe espiasse o telemóvel, esta seria a mais suspeita das mensagens. Talvez seja só uma espécie de piada. Como se o acordo entre os dois fosse meio a brincar. Um jogo, uma fantasia de espiões, ladrões, agentes secretos. Ou talvez ela nem saiba escrever ou tenha medo de cometer erros ortográficos — não que seja parva, pelo contrário. É das pessoas mais inteligentes que Américo já conheceu. Uma inteligência nada culta mas refinada como 16
poucas; com uma malícia, um instinto para o termo certo, uma capacidade espantosa de argumentar em silêncio, de ganhar discussões só com os olhos e a maneira de fechar a boca. O picante que põe em cada pausa, em cada silêncio, porra, só de pensar nisso Américo fica perdido de todo. “Daqui a 30 min”, responde. Depois liga para a Mãe e inventa uma história sobre ter de ir às finanças e à segurança social, e que tem de ser já por causa de uns prazos que estão a cair, senão ainda paga uma multa do caneco, e que era um grande favor e tal, e que o miúdo vai dormir sossegado o tempo todo, só deve acordar daqui a duas ou três horas, e a Mãe lá diz que sim, que mal acabe de almoçar vai lá para casa tomar conta do “Joaquinzinho”. “Mãe, por favor.” “Do ‘Joaquim’, estava a brincar.” Passada meia hora, Américo atravessa o jardim da Praça da Alegria, um jardim decrépito que parece saído de um sonho, grandes árvores torcidas, empedernidas raízes negras, e é como se o sangue lhe corresse todo do peito para os braços e dos braços para as mãos, tal a vontade de agarrar a mulher. A pensão não tem nome, nenhum letreiro cá fora. À senhora careca atrás do balcão, Américo diz que vai ao quarto 6, que “a pessoa” está à espera, e a senhora inclina a cabeça na direção das escadas. “Américo”, diz ela ao abrir a porta. “Carla…” diz ele, em choque só de a ver, “Bruna”. Uma mulher difícil de lembrar completamente, uma mulher-surpresa que lhe faz sempre subir a adrenalina a níveis perigosos. De frente para ela, tão perto, Américo tem medo de desmaiar como um apaixonadito do século 17
dezanove. Uma Carla Bruna que, comece-se por onde se quiser, pelos olhos maus, pelos lábios bons, pelo pescoço nu ou por aquele sinal branco na recurva interior da nádega, é sempre interminável. Um cheiro moreno que entra pela boca, pela pele; fica-se dentro de um outro ar, o cérebro cheio de um oxigénio melhor e mais limpo. A vida tão mais fácil de perceber assim: uma coisa que se pode tocar, agarrar, virar ao contrário, oh. Américo não é nada de mariquices, mas uma vez que veio do quarto dela até lhe deu para a poesia. Começava com: “Carla Carla Carla Carla/ Sabes que és a minha Bruna/ Essa coisa que me mata/ Como a tens tão boa e pura?” Já não se lembra do resto, mas não era nada má e rimava até ao fim. Nunca lhe mostrou, claro, não há esse tipo de complicações entre eles, compromissos e palavrinhas. Ela não lhe pede nada e ele dá-lhe só o que dá e só quando lhe apetece. Ela manda-lhe a mensagem de vez em quando, “XXX?”, sempre a mesma, “XXX?”, e é tudo. À saída dos encontros no quarto 6 da Praça da Alegria, ele deixa-lhe umas notas dobradas debaixo do candeeiro, e é tudo. Não que ela alguma vez tenha pedido dinheiro. Nem é porque tem de ser, porque é assim que as coisas funcionam, porque ela é a Carla Bruna, a grande estrela da noite do submundo lisboeta e ele é só ele, não. Não, ele não se sente um cliente com ela, de maneira nenhuma. Deixa-lhe o dinheiro dobrado com todo o respeito, meio escondido, preso debaixo da base do candeeiro de latão, só porque sim. Porque gosta dela a sério e porque sabe que ela precisa, que lhe dá jeito. Um dinheirinho pequenino só. Uma ajuda simbólica. 18
Que o trabalho dela lá no Club Erox é, segundo julga saber, bastante mal pago e bastante irregular e, enfim, não lhe dá garantias de qualquer espécie. Quando chega a casa, a Mãe, que se reformou o ano passado de um cargo intermédio numa companhia de seguros, está com o neto ao colo a ver um filme-catástrofe dos anos setenta. Um vírus transmissível pelo olhar, corpos que explodem sem razão. “Isto não é um bocado violento para ele?” “Ainda não percebe. E, então, conseguiste resolver tudo?” “Oh”, diz Américo, “nunca se resolve tudo-tudo...” E, ao ouvir isto, a Mãe deixa aparecer um sorriso leve, muito leve, giocôndico. Desconfiará de alguma coisa?
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NOME COMPLETO
No dia seguinte Américo vai mesmo às finanças e à segurança social. Tem de voltar a “abrir atividade” se quer receber o belo cachê do filme Queres Ser Paul Giamatti. Os tipos não lhe pagam sem recibo, é uma produção a sério, mesmo profissional, e para ter recibos, pois, é preciso “abrir atividade”, de maneira que lá se enche de coragem e vai à vida. Leva o Joaquim no carrinho-de-bebé para ter “atendimento prioritário” e passar à frente nos serviços públicos. É um alto truque mas não chega a ser falcatrua. O miúdo é filho dele e ele é pai do miúdo e é assim que o mundo funciona. Além do mais, Joaquim não se importa nada, até gosta. Vai de chupeta na boca, num sono de olhos abertos, a apanhar a cidade na cara, cada pormenor, tantas cores, tantas casas, tantos brinquedos gigantes. “Nome completo.” “Américo Santos Sousa Silva Abril.” Uma mulher de cabelo curto e olhos de cinzeiro por despejar dá-lhe uma folha para a mão. Um papel A4 cheio de quadrados e riscas como um desenho daqueles mais contemporâneos. Para “reabrir atividade”, explica, ele tem primeiro de completar o formulário a dizer quem é, quais os seus números de identificação nos diferentes planos da relação cidadão-Estado, qual a sua 20
morada, profissão, estado civil, agregado familiar, nível de formação, rendimento anual, estimativa de mais-valias para o ano em curso, se possui outras fontes de rendimento e quais, se está inscrito em algum tipo de associação profissional e qual, se tem alguma dívida a algum organismo da órbita pública e se é pequena ou média ou escandalosa, se passa muito tempo fora do país e onde e porquê, se alguma vez exerceu alguma função pública, se gosta mais de praia ou campo, homens ou mulheres, prosa ou poesia, ópera ou futebol, Pessoa ou Camões, Eusébio ou Amália, e em que dia de que ano é que “fechou atividade” (preencher em português com letras maiúsculas e bem legíveis por favor). Ao meio-dia, como combinado, encontra-se com Murilo e Andrade-Pinto na esplanada do Pinóquio. Quando chega, a empurrar o carrinho do miúdo, já eles vão para a segunda imperial. “É a última”, diz Andrade-Pinto, “que ainda tenho de ir trabalhar”. “A sério?” espanta-se Américo. “Onde?” O outro solta uma gargalhada, “Um brinde aos totós deste mundo!” “Chh, não o acordes.” “Doutor Andrade-Pinto, então?” diz Murilo. “Não acorde o menino Joaquim...” É um amigo de infância, o Murilo, o único dessa época de quem Américo não perdeu o rasto. Um rosto comprido, de um moreno amarelado, olheiras eternas. É advogado. “Sim, nas horas vagas”, diz com estudado embaraço sempre que a conversa chega aí. “Chama-se Joaquim o puto?” pergunta Andrade-Pinto. 21
Andrade-Pinto é outro que tal. Vive às custas da mulher, que é dermatologista num dos melhores consultórios do país, e tem a mania que é artista. Tira umas fotografias de vez em quando, sempre sobre “temas abstratos” e procurando “trabalhar muito a luz”. Agora vira-se para Américo, espreitando por cima dos óculos escuros, “Chama-se Joaquim, é?” “Sim, porquê?” “Ah, nada.” No carrinho o miúdo ressona. Tão minorca e com tanto estilo. Uma pose entre o gangster e o fadista, chupeta no canto da boca, nariz levantado, uma expressão geral de excesso de confiança. Mesmo a dormir, consegue deixar todos de sobreaviso, cabrão do puto. “Quem é que se lembrou do nome?” pergunta Andrade-Pinto. “Joaquim?” pergunta Américo. “Quem é que achas?” pergunta Murilo. “Isso é para mim?” pergunta Américo. “Isso é para mim?” pergunta Andrade-Pinto. Murilo cala-se, bebe mais um gole de cerveja. Sorri para dentro, dir-se-ia. “Foi ela”, responde Américo. “Foi a Joana, ela é que escolheu o nome.” E, mal diz isso — a palavra “Joana”, a palavra “ela” —, desaba uma tonelada de silêncio na mesa. Não olham mais uns para os outros, não arriscam dizer mais nada, valha-lhes Deus. Viram-se para a praça; quietinhos, a assistir à procissão de automóveis nos Restauradores. Até nem se está mal assim, dentro de um pequeno silêncio, a beber uma imperial. 22
No regresso, Américo compra o jornal com a fotografia do borracho internacional que vem ao nosso país dar um “concerto imperdível”. Dobra-o com cuidado, guarda-o debaixo do braço. Está de manga curta e a cara da cantante toca-lhe, ao de leve, na parte interior do cotovelo. Uma cara tão macia. Mas, calma, não se deixa levar pelo entusiasmo. Faz cara séria e segue caminho. Não se vai pôr a admirar a fotografia da miúda na praça pública, à frente de toda a gente, ai isso é que não. Chega a casa a suar, rebentado de empurrar o carrinho do filho rua acima, rua abaixo, rua acima. Que dia, um sol de poema surrealista. Fecha a porta e tem de se apoiar à parede a recuperar. Expiração, inspiração. Já não tem vinte anos, caraças. No carrinho, o filho olha-o muito espantado, como se respirar fosse uma obra de arte. “Está tudo bem”, diz-lhe Américo. Quer-lhe parecer que o miúdo está a engordar, a crescer rápido demais. Pesa que é uma coisa parva. Desaperta-lhe os cintos que o prendem ao carrinho, larga-o no chão. “Vai.” Joaquim olha-o com aqueles olhos grandes, muito vivos, de desenho animado japonês. “Vai, vai”, repete Américo. Ajuda com as mãos, o gesto de enxotar bichos, “À vontade, liberdade, vai às tuas coisas, vá.” Mas o miúdo não se mexe. “Olha, faz como quiseres”, diz por fim, fingindo indiferença, e senta-se no sofá a ler o jornal. É uma desilusão tremenda. Nas páginas interiores só vem uma noticiazita ridícula sobre a turnê da estrela mundial e uma fotografia da mulher a sair do aeroporto da Portela, vestida até às orelhas, cheia de frio, que maldade. À volta, é tudo um paleio deprimente 23
sobre o estado do país, as tensões que se agravam nos diferentes setores, economia, educação, saúde, justiça, segurança, cultura. Grupos de desempregados que começam a organizar-se em autodenominadas “associações de pressão”, que ameaçam com “novos tipos de manifestações” e um espírito de luta “mais literal”. Professores descontentes que fazem greve de fome à porta de escolas da província acompanhados de faixas com grandes slôganes revolucionários e cartazes didáticos sobre o sistema digestivo. Juízes fora dos tribunais, de toga, cantando palavras de ordem em latim, exigindo melhores condições de trabalho, melhores leis, mais respeito. Américo não percebe o que se passa mas, de repente, é como se estivesse num outro país, num lugar que não reconhece, numa rua a preto e branco, e passasse por ele uma multidão muito zangada com tudo, queixando-se de tudo. Uma multidão imensa numa portuguesíssima fúria ordeira chamando nomes a tudo, e ele para ali sem saber se deve pôr as mãos nos bolsos ou cruzar os braços ou fazer o quê, sem saber que tipo de cara deve tentar pôr, um sorriso simpático e condescendente ou a máscara rígida de quem pensa e tem dúvidas, ele parado no meio daquela multidão em movimento sentindo-se cada vez mais só e estrangeiro. Olha para cima, para as flores das árvores, as maravilhosas flores de jacarandá, e quer mostrá-las às pessoas que passam, “Olhem, que bonito…”, mas ninguém para, ninguém o ouve. Uma multidão toda unida pela força de um Não. Uma multidão concreta e negativa feita de grandes manchetes e breves notícias, pessoas acabadas de sair de histórias reais, gente ainda marcada, ainda suja do pó negro das letras de imprensa, como que 24
saindo de uma zona de guerra, de uma catástrofe, dos escombros de uma cidade destruída. Com um misto de medo e fascínio, Américo encosta-se ao tronco da árvore enquanto as pessoas passam. Seguem a um ritmo bastante rápido e marcado, uma cadência forte. Ele ouve os pés simultâneos no alcatrão, centenas, milhares. Gente que assalta estações de serviço, caixas de multibanco e joalharias para ter o que comer, gente que quer uma casa ou algum tempo para poder estar em casa, gente escura-assustadora ou branca-doentia ou mulata-duvidosa, que ele não faz ideia de onde é que apareceu, tomando conta da rua, das avenidas, com os seus batalhões familiares, com os seus cheiros diferentes (cheiros em que a cidade e o campo se confundem, uma mistura estranha de sabonetes de marca branca e ervas da berma da estrada), gente que assalta farmácias para dar remédios aos filhos e gente que assalta farmácias para se injetar com pó de aspirina, gente que veio de continentes espaçosos para os bairros de lata de cá, gente jovem e bonita e perfeitamente perdida, sem futuro à vista, sem nada que desejar, gente vestida com combinações de cores inesperadas, gente que, pela maneira de andar e abrir a cara, se topa logo ter vindo de outras culturas e tradições, da luz de outros dias, e ele encostado ao tronco a vê-los passar. Caras e corpos de tanta diferença. Quer falar-lhes da Beleza, mostrar-lhes o belo daquelas flores de jacarandá, como é belo de lágrimas o lilás daquela flor contra o azul do céu de Lisboa, quer apontar-lhes isso, dar-lhes a ver essa alegria, algo que lhes cole à boca um sorriso momentâneo, pelo menos, mas não dá, não consegue, ninguém lhe liga. Todos tão esperançados no tal Não da manifestação 25
que não veem mais nada, não vale a pena. Como se um Não alguma vez tivesse dado alguma coisa a alguém. Na rua a preto e branco, na grande avenida abstrata que sobe para o parlamento do país, Américo Abril agarra-se ao jacarandá a admirar as caras estrangeiras ou suburbanas, pobres ou de classe média, que vão passando a repetir Não, Não, Não, enquanto lhe chovem flores lilases na cabeça e nos olhos e ele começa a ouvir o grito muito agudo do filho, “O que é que foi?”, e fecha o jornal. Joaquim não responde, claro. Ainda não sabe falar. Só sabe gritar e chorar, e também sabe fazer as duas coisas ao mesmo tempo. “Não chores”, diz-lhe o pai. “Vá lá, mais não…” Mas o miúdo não para de berrar. Olhos fechados, boca aberta. Uma expressão igualzinha à velha montanha-russa de Entrecampos. Estará com fome? Américo tira o prato de comida bege-esverdeada que Joana deixou pronto no frigorífico, mete-o no micro-ondas a aquecer, aí vem o grande momento. Tem de convencer a criança a provar daquilo. Senta-a na cadeira-de-bebé, luta para conseguir apertar-lhe o babete de plástico à volta do pescoço. E agora o grande momento, o momento da comida propriamente dita. Joaquim recomeça a guinchar mal vê o prato com a papa feia. “Percebo-te muito bem, puto. Eu também guinchava se me dessem isto...” Américo fala em voz baixa e com uma entoação alegre e infantil para que o filho não perceba o exato sentido das palavras. Não que ele perceba já muitas palavras, mas nunca fiando. Enche uma colher daquilo, daquela pasta verde-esbranqui26
çada, sopra para a arrefecer um bocado, não vá o miúdo queimar-se, e, muito devagar, teatralmente, tentando que o filho lhe dê atenção e se cale com a gritaria, leva a colher na direção da boca. “Aí vai o aviãozinho...” A colher da comida aproximando-se da boca imensa e Joaquim, o orgulho do seu pai, o filho tão querido — olhos cómicos numa expressão de dúvida que dura uma eternidade, grande expetativa —, zás, cospe tudo. Desastre, merda. Américo fica todo sujo, porra, a camisa Marca Registada cheia de bocados de papa esverdeada, e o chão também, ai, o tapete afegão que Joana comprou pela net. E o miúdo a gritar cada vez mais. “Come!” ordena-lhe Américo. “Tens de comer, estás a ouvir?” Mas o filho não se comove. Chora ainda mais alto e bate com as mãos no tabuleiro da cadeira e esforça-se por puxar o sangue para a cabeça e lança um guincho novo, ainda mais agudo, lancinante, um grito que rebenta uma corda qualquer nos lobos temporais do pai, uma dor inimaginável. “Desisto!…” suspira Américo. Mas o miúdo não se cala, nem assim. Grita com um desprendimento desumano, animal. Um filho ainda com a falta de cerimónia das criaturas das grutas, das florestas, das noites originais. Américo levanta-se, de punho fechado. Só quer bater-lhe. Dar-lhe um toquezito, a ver se ele fecha a matraca, se aprende a etiqueta mínima. Mas claro que não, não lhe vai bater, o raio do puto ainda nem tem dois anos. Baixa a mão e mete tudo para dentro. A criança a gritar sem parar, uma tortura. 27
Américo vira-lhe costas, vai à janela. Imagina que a dor que sente é o ouvido interno a sangrar. Deve estar muito perto do limite inferior de loucura. Aquele ponto abaixo do qual não há volta a dar-lhe. Vê o filho a emagrecer de dia para dia, de hora a hora, de boca fechada, fechada. O filho mau como as cobras e amado mais que tudo. As pernas e os braços, uns palitos; as costelas cada vez mais salientes; os ossos da cara e do crânio à vista, quase; os olhos fora das órbitas. Vê a doença, o desânimo, a morte, o vazio, meu Deus, “Abre a boca, Joaquim!” E o miúdo, nada. “Joaquim, estás a ouvir o teu pai? É uma ordem!” Não, tem de tentar qualquer coisa diferente. Coça a cabeça, olha a criança tresloucada. Mas o quê? A via da suavidade, do amor, da ternura e da compreensão? Um pouco a medo, aproxima-se do filho, baixa-se ao nível dos olhos dele e, de joelhos no chão frio, conta-lhe a história do Menino Morto: um esqueleto franzino de olheiras até ao chão que falava numa língua só de consoantes, “wrtpsfghjklçzxcvbnm”, babava-se de espuma amarela pelos cantos da boca e assustava todos os meninos vivos. Fala-lhe de uma Lisboa apocalíptica de céus roxos, casas esburacadas e famílias que têm medo de cruzar olhares com outras famílias na rua. Gente que não olha à volta para não ser apanhada por nenhum monstro. “E um belo dia o Menino Morto vai dar um passeio ao centro da cidade e o que é que acontece?” Agora sim, ele presta atenção. Ah, pois. Ouve a história de terror que o ator vai inventando e, embasbacado, feliz da vida, come a papa verde que a mamã preparou para o papá lhe dar. Tudo até ao último pingo nojento. 28
ISTO ESTÁ ÓTIMO
A Joaninha é uma joia quando quer e uma beleza quando pode e tem uma postura muito direita e elegante sentada a qualquer mesa de jantar. Aqui está ela em casa dos Rodrigues, conversando animadamente com a anfitriã, Mariana Rodrigues, sobre fraldas, boiões de fruta e cremes especiais para bebés e crianças. E roupas e roupinhas e vacinas e borbulhas e biberons e máquinas de bombear leite dos peitos maternos. É demais para ele. Américo bem olha para Mário Rodrigues em busca de alguma espécie de compreensão, cumplicidade, consolo, mas o amigo não parece nada incomodado com a conversa. Um sorriso bondoso, apalermado. Sem assunto, Américo vira-se para o que tem no prato. As batatas a murro estão ótimas. “Isto está… magnífico”, diz. Mas é como se estivesse no fundo de um poço num deserto imaginário. Um mistério dos mais curiosos, este. Parece absurda a ideia de um murro poder alterar o sabor de um alimento — e, no entanto, cá está, é mesmo isso. Depois de esmurrada, a batata descobre a sua personalidade secreta, o seu ponto de equilíbrio, digamos, a sua vocação. De um momento para o outro, revela-se a sua natureza complexa, uma sofisticada arquitetura de sabores, cheiros, cores, texturas, consistências e formas, 29
uma complexidade da qual nunca suspeitaríamos ao contemplar o banal tubérculo no saco de rede vermelha que trazemos do supermercado. Só se percebe experimentando: pega-se numa batata, assa-se a batata com casca e tudo os N minutos que a tradição prescreve e, no fim, espeta-se-lhe um murro como deve ser. Uma pancada intensa mas contida, corajosa mas serena. O milagre é garantido. Sob os nossos olhos, de repente, uma batata nova, ao mesmo tempo dura e mole, afirmativa e submissa, compacta e oferecida. Uma batata como estas tão saborosas nos pratos de porcelana nórdica dos Rodrigues. Um amor de batata: o estaladiço-surpresa da casca contrastando tão maravilhosamente com o homogéneo-previsível do interior, a superfície lisa do lado cortado à faca convivendo tão felizmente com o coração poroso que desaba de mansinho para receber o azeite com alho, oh, ah. Ao lado, o bacalhau cortado numa posta retangular, não demasiado alta, com a quantidade certa de sal, no meio-termo ideal e dificílimo entre estar só “salgado” e ter “sal a mais”. E, sobre isso tudo, ui, o azeite com alho, a grande estrela. Um gosto que faz pensar em dias antigos, a luz do fim do dia, cidades em chamas, gente morena, boas rugas e outras imagens do género. Mas Américo não vai por aí. Seria preciso um poeta a sério, um verdadeiro talento lírico, para evocar tal mistério com todas as letras. E, de qualquer modo, não se fala de boca cheia. “Há lá umas meiinhas e uns sapatinhos de um tamanhinho, tão miniminhos, nem imaginas”, diz Joana. “Oh, onde?” pergunta Mariana. “Não queres ir comigo lá ver, amanhã ou assim?” 30
E o marido Rodrigues ouve aquilo e não diz nada. Não faz nada. Sentado na mesma posição, a sorrir um sorriso benevolente e desfocado. Andará a comprimidos? Conhecem-se há quinze anos, os quatro. Eram o grupo Coisa Nenhuma, uma organização informal que inventaram para coisa nenhuma, só para dar nome aos seus encontros de tempo livre e conversa fiada. Diziam uns aos outros “hoje há reunião da Coisa Nenhuma, não te esqueças”, ou “a Coisa Nenhuma junta-se amanhã à noite no Cinema King, para ver o novo Jarmusch”. Acreditavam que iam fazer revoluções estrondosas, obras-primas de um novo viver, imaginavam-se eternamente livres das convenções dos pais e avós, acreditavam que continuariam sempre muito juntos, construindo uma “utopia real e diária de amor livre”, muito mais “verdadeira”, muito mais parecida com o “pensamento-desejo” de cada um deles, etc. E agora aqui estão, a brincar aos casalinhos e à gente crescida e às roupas de bebé em promoção. Américo sente as lágrimas a subirem-lhe aos olhos. Seja como for, o tinto é glorioso. Veja-se como roda no copo, com tanto corpo e tanta cor. Américo prova-o primeiro, um gole, dois, e depois bebe-o todo de uma vez. Mário encara-o com um sorriso de peixe congelado. “Com licença…” diz Américo. E foge para a casa de banho. Lava a cara com água fria a ver se se anima. Ouve as vozes das mulheres ao longe, na sala, “pacotes grandes”, “vales de desconto”, “naquele hipermercado”, e só lhe apetece gritar e bater nas paredes de pastilha azul-piscina até as mãos sangrarem. Fecha os olhos, tenta 31
acalmar-se. Vai passar, está tudo bem, já vai passar. Respirar fundo, calma. O som da cidade muito distante, por baixo do sussurro do respirador no teto da casa de banho. Automóveis suaves, bandeiras de roupa nas cordas. Deve estar um dia bonito lá fora. Em frente ao espelho, de olhos fechados, Américo põe a mão dentro das calças e pensa na Carla Bruna. Vê-a sentada na cama, sem roupa da cintura para cima, a fumar como se estivesse sozinha. Olhos quase tristes. Virada para o quadrado de luz da janela, concentrada nalguma ideia terrivelmente prática. Américo pensa nela, na cabeça dela, nos mamilos escuros dela, no desprezo que ela sabe mostrar por ele e pela vida em geral, e aos poucos — de repente — aos poucos — de repente — um sol dos diabos ali também. Sim, de repente o sol toma a casa de banho dos Rodrigues, um sol tão silencioso e tão bom. Tão repentino e tão pacífico e tão bom. Até que alguém bate à porta. “Tudo bem?” É a Joana. “Está tudo bem, Américo?” “Sim, obrigado. É só uma... uma complicação intestinal, querida, vou já.” Ouve os passos dela a afastarem-se (sapatos pretos de tacão fino que custaram 375 euros, viu no extrato do cartão de crédito) e, mais longe, na sala, as gargalhadas da Coisa Nenhuma. Não quer sair dali. Não e não. Não quer sair dali por nada deste mundo. Há uma cena um bocado parecida no Queres Ser Paul Giamatti. Américo, isto é, o Paul Giamatti do segundo nível, está na casa de banho de uma grande mansão em Los Angeles. É uma daquelas festas que conhecemos dos filmes, com música aos altos berros, 32
cocaína, gente nua na piscina, esse tipo de convívio, e ele fica fechado na casa de banho. A porta tem uma maçaneta em forma de mão. Giamatti olha para aquilo um bocado à rasca. Enche-se de coragem e tenta rodá-la. Mas a coisa não mexe. É uma mão, não é uma maçaneta. Que coisa. A descoberta macabra apanha-o ao retardador. Uma mão? A mão de quem? O ator-personagem começa a ficar agoniado, a suar como um porco (grande plano de grossas gotas de suor escorrendo-lhe da careca para a testa), está a hiperventilar, não há ar suficiente naquele espaço tão fechado, tão apertado, tão mau. Na festa as pessoas riem, de copos na mão, dentaduras perfeitas. Giamatti tira um papel do bolso, desdobra-o. Três Passos Para Controlar Os Seus Ataques De Pânico. Lê o primeiro passo, “Tente controlar a respiração”, e agora é que começa mesmo a entrar em pânico. Doem-lhe os olhos por dentro, atrás dos globos oculares (grande plano dos olhos muito abertos em expressão de terror seguido de grande plano da parte de trás dos globos oculares com veias a arder, tudo numa estética de escuro-trevas e verdes-luz a lembrar as imagens de bombardeamentos no Iraque), e decide que só tem uma hipótese. Gritar. Mandar a vergonha às urtigas e gritar o mais alto que consegue, a pedir ajuda, socorro, a ver se alguém o salva, por favor. Mas a música está a bombar, ninguém ouve nada. Meu Deus, vai morrer ali, uma morte tão estúpida. Não, não pode ser. Grita mais alto. Chora e grita ao mesmo tempo. Bate com os punhos fechados na porta, desesperado, bate com a cabeça. 33
Do outro lado, nada. Só o pum-pum feliz da música de dança. Está no chão a babar-se quando Penélope Cruz abre a porta. “Posso, está livre?” pergunta a estrela espanhola, que, ao vê-lo naquele estado, troca o sorriso por uma expressão de asco e, logo a seguir, pena. Como se ele fosse um pobre marcado para morrer. Giamatti sai de gatas, um cão triste, e ela, “Com licença…”, fecha a porta. Cá fora, levanta-se, sacode as mãos, pensa “suicídio” (grande plano da cara de otário do ator-personagem com a palavra “suicídio” a piscar-lhe na testa), procura a grande cozinha na grande mansão do grande produtor, abre o grande frigorífico, saca o grande bolo de chantilí e atira-se a ele como um bicho raivoso. À noite, em casa, Joana pergunta-lhe se não achou a Mariana mais gorda. “Mas ela está grávida, não é?” “Mesmo assim...” “Sim”, diz ele. “Sim, talvez.” Quando a mulher fecha a luz, ele não fecha os olhos. Não se rende tão facilmente. Vira-se para cima, espera um momento para se habituar à escuridão, e põe-se a admirar as as suas “coisas de luz” no teto. Todas as noites mudam, é um mistério. Hoje têm a forma de pontos que aparecem e desaparecem, muito rápidos. Pequenos círculos bruscos e cómicos, lembram aquelas pessoas que não fazem nenhuma ideia de como devem mexer o corpo para dançar, para reproduzir um movimento que possa ser percebido como algo parecido com dança, mas que, ainda assim, que se lixe, tentam. 34