Adolf Loos, arquitecto vienense, nasceu em Brno, na Morávia, em 1870. Estudou arquitectura em Dresden, na Alemanha, tendo partido em 1892 para os Estados Unidos, experiência que o marcará profundamente. Em 1896, de regresso à Europa, começa a trabalhar com o arquitecto Carl Mayreder e em 1898 abre o seu próprio atelier em Viena, opondo-se rapidamente ao movimento vienense da Secessão e acabando por fundar a sua própria escola de arquitectura. Mas o seu contributo mais significativo para a arquitectura continua a ser discursivo. Em 1897, Adolf Loos inicia a publicação de uma série de artigos polémicos, que viriam a ser responsáveis pela sua reputação internacional. As suas críticas centravam-se sobretudo no excesso de decoração do design vienense e nos mais recentes produtos dos movimentos da Secessão vienense e da Art Nouveau. Esta reflexão culminou num ensaio, hoje considerado fundamental e visionário: “Ornamento e Crime”. Publicado em 1908, este ensaio rapidamente se tornou um manifesto cultural e um documento fulcral para a literatura modernista. Em 1922, Adolf Loos muda-se para França onde permanece até 1927 e onde é recebido entusiasticamente pelo movimento avant-garde francês, exercendo grande influência em nomes como Le Corbusier. Em 1930, aos sessenta anos, Adolf Loos é oficialmente reconhecido como grande nome da arquitectura vienense. Os seus ensaios foram coligidos em volume no ano seguinte. Adolf Loos morre em Agosto de 1933.
ORNAMENTO E CRIME
Adolf Loos
Ornamento e crime
Tradução de Lino Marques
Título original: Ornament und Verbrechen © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2004 ISBN 972-795-101-5
Cotovia
Índice
A nossa escola de Artes Exposição de Natal no Museu da Áustria Exposição Jubilar de Viena. A cidade-exposição O Silberhof e suas imediações A moda masculina O novo estilo e a indústria do bronze Interiores Os interiores na Rotunde Cadeiras, bancos e poltronas Vidro e cerâmica O veículo de luxo Os “Plumbers” Chapéus para homem O calçado Os sapateiros Moda de senhora Roupa Mobília A mobília de 1898 Tipógrafos O panorama do artesanato
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ÍNDICE
As escolas inglesas no Museu da Áustria Dos dois números de Das Andere Cerâmica Os dispensáveis Elogio ao Presente Cultura Descaracterização cultural Ornamento e crime Pequeno interlúdio O problema de ouvidos de Beethoven Hands off! Respostas a perguntas do público Ornamento e ensino Arnold Schönberg e os seus contemporâneos Acerca da poupança Sem carruagem dourada Cabelo curto Demasiado moderno — proibido! Oskar Kokoschka Acerca de Josef Hoffmann
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A NOSSA ESCOLA DE ARTES 1897
A Escola do Museu da Áustria, que é a nossa Escola de Artes, tem em exposição, desde o dia 9 do presente mês, os trabalhos do ano lectivo passado. Vêem-se novamente os trabalhos do costume, expostos com a precisão do costume, e nos jornais diários surge o aplauso do costume. E, de facto, ao apreciarmos nas robustas salas italianas de Ferstel1 as naturezas mortas, os floreiros, os nus, as imagens de santos, as cenas “à la Tadema”2, os retratos, as estátuas, os relevos, as xilogravuras, as ilustrações para publicações sobre móveis, etc., etc., até o mais exigente observador terá de reconhecer estar perante uma grande realização. A pintura, a escultura e as artes gráficas possuem, na escola junto ao Stubenring, uma espécie de academia de segunda ordem. Faz-se concorrência à nossa Escola Superior de Artes junto ao Schillerplatz, e ainda que as obras desta instituição permaneçam intocáveis, devido à curta duração do curso, sempre se conseguem algumas coisas interessantes nesta nobre disputa. No Schillerplatz, chega1
Max Ferstel, conhecido arquitecto vienense, nascido em 1859. [N. do T.] Sir Lawrence Alma-Tadema (1836-1912), pintor holandês e inglês, conhecido por pintar motivos históricos, nomeadamente do tempo dos Romanos. [N. do T.] 2
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-se assim mais depressa à conclusão de que afinal sempre é necessário despertar da inactividade, e no Stubenring produzem-se artistas de segunda categoria. Talvez se pense que não há nada a apontar a isto, o que é errado, pois há qualquer coisa que está a ser prejudicada à custa desta disputa: é o ofício, o mister. Digamo-lo com todas as letras: tal conduta só leva a que a arte seja directamente defraudada. A pequena quantia que, segundo o Ministério da Educação, é reservada ao seu ensino, perde todo o propósito. Nós, austríacos, que neste aspecto deveríamos poupar até ao último centavo devido à nossa insuficiência de meios, deixamos o nosso ofício passar miséria e fome às custas da “grande arte”. Tal injustiça é já praticada há décadas, sem que tivesse havido um advogado que se ocupasse em defender o ofício artístico. O facto de as forças que resultam desta instituição serem inúteis para o atelier, para a vida e para o público já há muito deixou de ser segredo para os que se dedicam às artes. Com a cabeça cheia de falsas ideias, sem conhecimento dos materiais, sem sensibilidade para a elegância nem para as tendências futuras e sem conhecimento das correntes actuais, ou contribuem para o aumento de uma maioria de pequenos pintores e escultores, ou, caso exista uma suficiente capacidade de assimilação, vão buscar ao estrangeiro o que lhes falta na sua formação artística. Mas se assim for já os teremos perdido. Nós próprios não podemos levá-los para a escola — faltam-nos os meios para isso. Pelo contrário: desta instituição esperamos a pedra de toque que nos ponha em movimento.
A verdade é que estivemos muito tempo parados e ainda estamos. No que diz respeito ao artesanato3, o mundo inteiro seguiu na última década, de forma corajosa, a liderança inglesa. A distância entre nós e os outros não pára de aumentar e já é mais do que altura de mantermos o contacto com a linha da frente. Até a Alemanha começou a estugar o passo e, em breve, terá apanhado o comboio vitorioso. Quanta vida nova no estrangeiro! Os pintores, os escultores e os arquitectos abandonaram os seus confortáveis ateliers, mandaram a “arte nobre” às malvas e colocaram-se em frente à bigorna, ao tear, ao torno de oleiro, ao forno de cozer, à bancada de carpinteiro! Fora com os desenhos, fora com toda a arte em papel! Agora trata-se de retirar novas formas e novas linhas da vida, dos hábitos, da comodidade, da utilidade! Vamos lá, companheiros, temos de superar a arte! Dado o crescente entusiasmo em relação a este movimento positivo, somos levados a lamentar profundamente que os nossos jovens artistas se limitem a assistir de uma forma distante e desinteressada ao seu desenrolar. Mesmo aqueles que possuem vocação pavoneiam-se, como vimos, com as artes absolutas. É claro que já nem sequer se trata do contrário, ou seja, de os artistas estarem a voltar ao trabalho manual. Será possível que os nossos jovens tenham mesmo tão pouco entusiasmo? Os poucos trabalhos da exposição referentes às artes aplicadas podem fornecer-nos uma resposta a esta questão. É como se a própria alma dos alunos fosse retirada, corrigida,
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3 A palavra “Artesanato” deve ser entendida, nos escritos de Loos, como “Artes Manuais”. [N. do T.]
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reconstruída, modelada e domada em relação ao seu corpo, em favor de um dogma absoluto. Estuda-se a natureza — mas sem sucesso, porque este estudo é para o artesanato apenas um meio de alcançar um fim. No entanto, o fim que se deve alcançar é estilizar aquilo que existe na natureza, ou dar utilidade ao material em que deve ser realizado. Mas para isso faltam na escola as indispensáveis coragem e força, assim como o conhecimento dos materiais. Porém, o dogma que inevitavelmente levará esta escola à ruína é a opinião de que o nosso artesanato deve sofrer uma reforma de cima para baixo, a partir do atelier. No entanto, as reformas vêm sempre de baixo. E esse “de baixo” é a oficina. Entre nós, ainda vigora a opinião de que só se pode confiar a concepção de uma cadeira a quem conheça as cinco ordens arquitectónicas de cor e salteado. Penso que um homem desses deveria, acima de tudo, saber alguma coisa sobre como sentar-se. Mas enfim: se a cadeira não servir para nada, também não prejudica ninguém. É certo que de uma ordem arquitectónica errada não se conseguirá retirar benefício algum para “compor” a cadeira. Estou aqui a referir-me à êntase de uma ordem dórica, que é construída tal como uma coluna romana, o que contraria claramente o espírito dórico. Continuemos, porém. Os desenhadores de móveis, que enquanto desenhadores de obras publicistas fazem coisas excepcionais (uma capacidade que, com certeza, deve ser incluída nas artes gráficas), falham completamente assim que têm de ter ideias próprias. Desconhecimento dos materiais nos detalhes naturais (repare-se apenas na perfilagem imprópria de um carpinteiro) e cópia simples e monótona nos desenhos
decorativos para espaços interiores, eis as características comuns a todos os três ateliers especializados da nossa escola. O professor não pode ser atingido por qualquer crítica — é o espírito que paira sobre toda a instituição. Quando se fala em pintura decorativa, repete-se o que foi dito. Também aqui há trabalhos meritórios, enquanto for a pintura a falar. Quando aplicados à actividade artística, os melhores desenhos deixam de o ser. Para dar um exemplo, as abóboras pintadas de forma naturalista (muito limpinhas e sombreadas de maneira bastante plástica) não servem. E servem ainda menos se tiverem sido pensadas para servir como decoração de parede, no tecto, de modo a que uma pessoa não se atreva a aparecer em tal sinistra divisão intempestivamente, pois poderiam cair-lhe em cima. O excelente desenho encarregar-se-á de manter esta ilusão… Poder-se-ia continuar por aí adiante, mas este único exemplo servirá perfeitamente para ilustrar esta irreflexão, que não passa do estirador. Alegremo-nos, contudo, por encontrarmos pelo menos um desenho de qualidade na exposição — refiro-me à tapeçaria com o padrão de narcisos, de B. Franke. Aqui sim estamos perante um verdadeiro desenho de tapeçaria, plano sobre plano, baseado em estudos próprios sobre a natureza. Graças a Deus, ainda vão surgindo alguns rasgos de inspiração como este e, não podendo fazê-lo de modo exaustivo, pretendo indicar alguns destes trabalhos em especial. Na escola técnica de escultura do Prof. Dr. König deparamo-nos com um gracioso vaso de Ernst Borsdorf, que nos mostra como a figura humana pode ser estilizada na forma de um
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utensílio de uso diário. O trabalho de Joh. Pilar demonstra que também se podem cometer equívocos ao tentar fazê-lo. A escola de cinzeladores é a que mais satisfaz, até pela sua própria natureza. Esta gente trabalha directamente o material ao qual deve conferir vida e movimento — daí a sua grande qualidade. Não são propriamente artistas do “Sturm und Drang”, mas em todos os seus trabalhos reside um gosto elegante e requintado que se revela logo na escolha do objecto a copiar de Andersen (a única cópia que nos chama a atenção). De entre os trabalhos ainda capazes de revelar uma certa originalidade, referiria também os de Georg Klimt e um vaso de Rud. Kowarzik. Temos de deixar aqui uma grande referência elogiosa ao nosso curso superior, que nos últimos anos nos tem habituado a um nível elevado. Nota-se que o diletantismo do estirador ainda não se apoderou desta área, pois a criação da excelência é vedada a todo aquele que não domine o seu trabalho, a sua técnica. O curso ainda não foi inquinado pelas ordens arquitectónicas. Podemos ter esperanças em como esta foi a última exposição deste tipo. De certeza que as artes vão finalmente ver o seu valor reconhecido. Com a entrada do novo director, Conselheiro A. v. Scala, entrou também um novo espírito na casa. Que este espírito tenha a força e a irreverência necessárias para mostrar ao antigo espírito quem é o dono da casa. É isso que o artesanato austríaco espera.
EXPOSIÇÃO DE NATAL NO MUSEU DA ÁUSTRIA (Mobiliário Burguês — O quarto de Lefler) 1897
Não restam dúvidas: a colecção de móveis antigos que pode agora ser vista no Museu da Áustria causou sensação. Está na ordem do dia. Imaginamo-nos de volta aos melhores tempos do artesanato austríaco. Noutro tempo, quando Viena ainda estava na primeira linha das artes, noutro tempo, quando o inesquecível Eitelberger4 detinha o poder no Stubenring, o interesse do público pela arte ornamental dificilmente poderia ser maior. Voltam a ler-se as reportagens nos diários acerca das novas vias e caminhos, fazem-se debates, discute-se. E mais: volta-se sempre à exposição de Natal. Mas o que aconteceu, afinal? O Museu da Áustria tem um novo director, e esse novo director apresentou-nos a uma nova dimensão. Permitiu a chegada de um novo estilo, dizem uns. Introduziu o estilo inglês, dizem os outros. Ele realça o lado prático dos objectos de utilização diária, dizem outros ainda. Quem tem razão, afinal? Todos, na verdade — mas não encontraram a palavra certa. Ele descobriu, digo eu, a mobília burguesa.
4 Eitelberger de Edelberg. Crítico de arte (1817-1885), fundou e dirigiu o Museu e a Escola Industrial de Viena. Grande influência na indústria das Artes. [N. do T.]
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EXPOSIÇÃO DE NATAL NO MUSEU DA ÁUSTRIA
Já sei que esta afirmação vai provocar uma desaprovação generalizada. Não coleccionámos os melhores objectos de todos os tempos, fosse qual fosse a sua condição, não os guardámos em museus e não os estudámos? Não demos uso e não imitámos as melhores peças dos estilos gótico, renascentista, barroco, rococó e império? Não decorámos sempre tudo ao gosto burguês? Não, não decorámos. As nossas mulheres e filhas dormiam num leito onde já Maria Antonieta, a mal-aventurada filha do Imperador, sonhara, mergulhada num triângulo de brilho, felicidade e esplendor. O mestre talhante olhava cheio de orgulho para um sofá alemão antigo, cujos motivos foram retirados do lambril da sala nobre dos paços do concelho de Bremen, e que resultam da combinação de uma pequena parte desse mesmo lambril (já que uma reprodução total se tornaria demasiado cara) com os motivos de um baú forrado a tecido. E no salão do abastado corretor da bolsa, as visitas espreguiçam-se em poltronas que são uma cópia fiel daquela de onde Napoleão, um dia, ditou as suas leis ao mundo. Nem o “N” imperial pôde faltar. E mesmo assim, o corso utilizou o trono uma única vez. Normalmente, ele e os seus convidados contentavam-se com móveis menos faustosos. Mas por que é que o mobiliário burguês é tão desconhecido entre nós? Porque chegou muito pouco até cá, pois o burguês gastava os seus móveis, utilizava-os no dia-a-dia, e finalmente queimava-os, para aquecimento. Para quartos luxuosos e faustosos já não tinha dinheiro, porém. E mesmo que uma ou outra peça tenha sido preservada, raro foi o museu que tivesse dado guarida ao velho “animal” doméstico. Não se distinguia nem pela sua arte, nem pelos materiais nobres. E se chegava a
conquistar aqui ou além um modesto lugar numa colecção, era quase de certeza ignorado. Com a mobília nobre já era totalmente diferente. Nunca ou muito raramente era usada, e o facto de exibir motivos da arquitectura clássica e de apresentar uma rica ornamentação demonstrava logo o seu carácter aristocrático e de “dolce far niente”. Ainda que não servisse para uma utilização prática tinha, sem dúvida, alguma utilidade no seu meio. Servia para a representação e exprimia a riqueza, o esplendor, o amor à arte e o bom gosto do seu dono. A mobília nobre conservou-se por isso, com toda a razão, e constitui o orgulho e a felicidade de qualquer museu. No entanto, ao conferir-lhes utilidade, o nosso século fez um uso errado desses objectos de exposição. As barreiras que a realeza ergueu à alta nobreza, que esta por sua vez ergueu à baixa nobreza e esta última à burguesia, começaram a cair, e todos podiam vestir-se e decorar a seu gosto. Por isso não devemos espantar-nos com o facto de um criado querer decorar a sua casa como um nobre e de todo o taberneiro se querer vestir como o príncipe de Gales. Seria porém errado considerar esta situação como uma forma de progresso, já que a mobília nobre, que resultou de uma enorme superabundância, custou fortunas imensas. Uma vez que esta riqueza não está ao alcance da generalidade do público, este acaba por copiar as formas à custa dos materiais e dos acabamentos e, nessa altura, entra em cena a superficialidade, a ligeireza e aquela espécie de monstruosidade que ameaça sugar o nosso ofício até ao tutano — a imitação. Até a vida que levamos está em contradição com os objectos de que estamos rodeados. Esquecemo-nos que, para além
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da sala do trono, precisamos de ter uma sala de estar. Deixamo-nos maltratar, com toda a calma, pelos móveis elegantes. Ganhamos nódoas negras nos joelhos e enchemos as costas (e o sítio onde elas acabam) de adornos. Nos últimos anos, ganhámos calos provocados pelas constantes mudanças na ornamentação das pegas dos nossos vasos, por sua vez motivadas por duas décadas seguidas de renascimento, barroco e rococó. Mas não abrimos o bico, pois aqueles que se insurgissem seriam publicamente acusados de ignorância e de falta de uma superior compreensão da cultura. Aquilo que estou aqui a apresentar só se aplica ao Continente. Do outro lado do Canal da Mancha vivia um povo de cidadãos livres que se tinha desabituado há tanto tempo das velhas barreiras, que os acessos de presunção já tinham acabado. Dispensaram a ostentação e o esplendor principescos nas suas casas. As diferenças a nível de vestuário já há muito que eram desconhecidas, de modo que não sentiam qualquer felicidade especial em imitar os Grandes. O seu próprio conforto era mais importante que tudo. E até a nobreza começou, a pouco e pouco, a sofrer uma mudança devido à influência desta burguesia: tornou-se simples e discreta. Um país com uma burguesia livre tão segura de si deveria, em pouco tempo, levar o estilo burguês na habitação ao maior florescimento. Temos a possibilidade de utilizar a melhor mão-de-obra em prol desse estilo, e essa mão-de-obra pode ser canalizada para estas tarefas, enquanto noutros países o móvel nobre caberá ao mestre de primeira categoria, tendo o mobiliário burguês de se contentar com mão-de-obra de segunda. Repare-se tão-somente nos dois mais importantes modelistas
de Inglaterra e de França, na mesma época. Tomemos como exemplo Thomas Chippendale e Meissonier, desenhador de Luís XV. Deste último, só encontramos amostras para os salões nobres e para os salões de festa do rei; em Chippendale, somente a modéstia do título de uma gravura em cobre é já de si significativa: The Gentleman and Cabinet-maker’s Director, being a Collection of designs of household furniture. Será portanto fácil perceber que, numa colecção de mobília burguesa, a maior parte caberá aos ingleses. Na verdade, eles deram um lar à mobília burguesa alemã que, desde então, foi esquecida entre nós e agora regressa através de Inglaterra. Há vários exemplos interessantes que o demonstram, um dos quais passo a mencionar. A cadeira vermelho-berrante com verga amarela, que hoje nos parece tão inglesa, pode ser encontrada em numerosas imagens de interiores do séc. XVIII, sobretudo em Chodowiecki. Há outra particularidade que explica o elevado número de padrões ingleses. A Inglaterra foi também o primeiro país a iniciar a luta contra a imitação. Agora começamos também nós, a pouco e pouco, a formar uma frente contra ela. Hoje em dia, graças a Deus, as jóias e os falsos artigos em pele também já não são considerados chiques entre nós. Temos de agradecer à nossa exposição de Natal por nos incentivar a também aplicar as novas orientações à decoração de interiores. Quem não tiver dinheiro para comprar uma cadeira revestida a pele, compra simplesmente uma em verga. Haverá muita gente que se recusará a fazê-lo. Uma cadeira em verga — que vulgar! Vá lá, meus queridos vienenses, uma cadeira em verga é tão pouco vulgar como não ter diamantes, ou como um simples lenço de
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pescoço em combinação com o casaco de Inverno. Só as imitações de diamantes, de cachecóis em pele e de estofos em cabedal é que o são. E assim se começa também a admitir, cada vez mais, que se o dinheiro não chega para o luxo e para o acessório, então devemos privilegiar o que é prático e simples. Embutidos pintados, esculturas em madeira prensada com serradura e cola, janelas excessivamente decoradas e outras invenções provenientes do arsenal das imitações — como as portas e janelas pintadas como madeira dura — começam lentamente a desaparecer da casa burguesa. O orgulho burguês despertou e, afinal, o pedantismo começa aos poucos a ficar fora de moda.
Porém, a grande atracção da exposição acaba por ser um modelo de interior que representa um trabalho de conjunto dos nossos vienenses: o pintor Heinrich Lefler, o escultor Hans Rathausky e os arquitectos Franz Schönthaler Júnior e Josef Urban. Chamaram-lhe apenas “o quarto de Lefler”. A brevidade desta designação foi absolutamente fundamental, pois durante as últimas semanas andou nas bocas do mundo. Aclamado com o maior entusiasmo pelos jovens, profundamente desprezado pelos mais velhos, este modelo de quarto é considerado a primeira manifestação da modernidade nas artes decorativas e aplicadas, em solo vienense. Este quarto tem realmente um aspecto moderno. Mas se virmos mais de perto, trata-se apenas do nosso velho quarto alemão renascentista mascarado de uma perspectiva moderna.
Nada falta: lambris em madeira com incrustações padronizadas, o antigo divã decorativo alemão tradicional (que Deus o abençoe!), ao qual eram sempre arrancadas as cabeças de leão em lata nele pregadas e que, a muito custo, seguravam o reboco persa e os cálices e jarros alemães tradicionais, que abanavam ao mais pequeno movimento — todos eles foram adoptados e mascarados de forma tão bonita, que já não se conseguem reconhecer à primeira vista. Enquanto, por exemplo, no antigo divã decorativo, podiam eventualmente cair-nos jarros alemães tradicionais em cima da cabeça, agora, com toda a certeza, caem vasos ingleses. Um enorme progresso, se considerarmos que assim se evita, de certo modo, a mediania e que a arte da cerâmica ficará por certo a ganhar com a forte procura. Entende-se assim até onde este quarto pretende chegar. Ele traz-nos formas modernas com um espírito antigo. Por esta razão, não temos o direito de dizer que estamos em presença de um quarto moderno. Ter-se-ia prestado um grande favor à arte moderna se se tivessem usado formas antigas com um espírito moderno. Atentemos em cada um dos trabalhos individualmente. Lefler apresentou uma tapeçaria maravilhosa que é de longe o que mais se destaca naquele quarto. A nossa indústria austríaca da tapeçaria não tem nada que com isto possa competir. Imagine-se: uma tapeçaria moderna, que em si nada tem de inglês, cuja proveniência vienense se reconhece ao primeiro olhar. A tapeçaria mohair, “Luta de Dragões”, revela também um grande domínio da técnica. Mas na técnica já Lefler tropeçara por altura da concepção dos vitrais. Lefler criou dois: um é a Gata Borralheira; outro a Bela Adormecida. Ambos revelam
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uma hesitação entre duas técnicas: a pintura em vidro e o trabalho americano com pasta de vidro. A Gata Borralheira ainda possui uma certa harmonia, já que a pintura em vidro apenas foi utilizada onde era estritamente necessária, como por exemplo nos rostos. Mas a Bela Adormecida é imperdoável. A roseira pintada é um rude golpe em qualquer pintura em vidro que se pretenda decente e honesta. Com que alegria um vidreiro não teria aproveitado a oportunidade de demonstrar a sua arte através das rosas. Cada folha da roseira é uma pasta de vidro diferente! Estas rosas imploram pela técnica americana; isto é sobretudo patente em pontos menos importantes. E é por isso que este vitral demonstra tão pouca harmonia. Por outro lado, o facto de se ter deixado a janela do meio livre para se poder desfrutar de uma vista tranquila para o exterior é, na minha opinião, uma coisa que merece ser devidamente destacada. Em termos gerais, os trabalhos de Lefler demonstram uma coragem inaudita e um talento decidido a submeter-se a novas técnicas. O mesmo não pode, na verdade, ser dito em relação aos outros trabalhos. As imitações de embutidos nos lambris e o forro de tecto banal deixam antever uma certa falta de elegância. Uma magnífica arca de enxoval é estragada por relevos em bronze artificialmente “bolorentos” que, a serem verdadeiros, não abonariam muito em favor do asseio da respectiva dona. Deve-se ter em conta que o bolor esverdeado se formou devido ao facto de os objectos em bronze terem estado milhares de anos em contacto com a terra húmida, mas que porventura não teria aparecido enquanto os objectos estiveram em uso. Seria de esperar dos nossos modernos que evitassem esta tontura
arcaizante. Acerca da prateleira por cima do sofá superficialmente trabalhado já falei de início. Também não foi esquecido o relógio no qual não se conseguem ver as horas. Antigamente, era por causa dos mostradores estilizados, hoje é impossível ver as horas porque o mostrador é quadrado. Por tudo isto, seria injusto considerar este quarto um produto da decoração de interiores moderna. O espírito moderno exige, antes de tudo, que o utensílio doméstico seja prático. E uma vez que o que não é prático está sempre inacabado, também não poderá ser belo. Em segundo lugar, o espírito moderno exige a verdade absoluta. Eu já disse acima que a imitação, a pseudo-elegância, está finalmente, graças a Deus, a ficar fora de moda. Em terceiro lugar, exige singularidade. Quer isto dizer que, regra geral, o rei tem de viver como um rei, e cada burguês e cada lavrador deve exprimir os seus traços de personalidade através do modo como arranja a sua casa. A tarefa dos artistas modernos é elevar os gostos do público dentro das suas diferentes camadas sociais, preenchendo as necessidades dos que possuem uma maior elegância de espírito, dentro de cada uma delas. Será que os nossos quatro artistas o fizeram? O seu quarto de senhora corresponde à elegância da aristocrata? Não. À elegância da esposa de um industrial também não, e muito menos à da mulher burguesa. Antes parece que, no meio desta elegância barata, acabaram por voltar a revelar-se os velhos gostos pedantes. Pela última vez, esperemos.
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