SOBRE A QUESTテグ JUDAICA
Título original: Zur Judenfrage © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2010 ISBN 978-972-795-317-2
Karl Marx
Sobre a questão judaica Tradução de
Gilda Encarnação
Cotovia
Índice
I Bruno Bauer: A Questão Judaica. Braunschweig, 1843
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II Bruno Bauer: A Capacidade de Libertação do
Judeu e do Cristão de Hoje
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I Bruno Bauer: A Quest達o Judaica. Braunschweig, 1843
Os judeus alemães aspiram à emancipação. A que emancipação aspiram eles? À emancipação cívica, à emancipação política. A resposta de Bruno Bauer: ninguém na Alemanha conhece a emancipação política. Nós próprios não somos livres. Como quereis que vos libertemos? Vós, judeus, sois egoístas ao exigirdes uma emancipação especial para vós, enquanto judeus. Devereis, sim, enquanto alemães, lutar pela emancipação política da Alemanha e, enquanto pessoas, lutar pela emancipação do ser humano. Devereis, sim, perceber que a vossa opressão e ignomínia não constituem uma excepção à regra, mas apenas vêm confirmar essa mesma regra. Ou será que os judeus exigem ser equiparados aos súbditos cristãos? Mas então estarão a reconhecer a legitimidade do 11
Estado cristão, a reconhecer o regime da subjugação geral. Por que razão protestam contra o jugo particular do povo judeu e se regozijam com o jugo geral? Por que razão há-de o alemão interessar-se pela libertação do judeu, se o judeu não se interessa pela libertação do alemão? O Estado cristão só conhece privilégios. Nele, o judeu tem o privilégio de ser judeu. Como judeu, ele tem direitos que os cristãos não conhecem. Por que razão há-de ele aspirar a direitos que são gozados pelos cristãos e que não lhe pertencem? Ao aspirar emancipar-se do Estado cristão, o judeu exige que o Estado cristão renuncie ao preconceito religioso. Mas será que ele, judeu, renuncia ao seu preconceito religioso? Terá ele, então, o direito de exigir aos outros que abdiquem da sua religião? Por natureza, o Estado cristão não pode emancipar o judeu. Contudo, acrescenta Bauer, o judeu, por natureza, também não pode ser emancipado. Enquanto o Estado for cristão e o judeu judeu, nenhum deles pode conceder ou obter a emancipação. O Estado cristão só pode relacionar-se com o judeu enquanto Estado cristão, isto é, concedendo privilégios, permitindo o 12
isolamento do judeu em relação aos restantes súbditos, ao mesmo tempo que lhe faz, porém, sentir a opressão das restantes esferas isoladas, opressão essa que é tanto mais intensa quanto contrária à religião dominante é a religião professada pelo judeu. Mas o mesmo sucede com o judeu, que também só se pode relacionar com o Estado enquanto judeu, isto é, na sua qualidade de forasteiro, na medida em que contrapõe a sua nacionalidade quimérica à nacionalidade real, a sua lei ilusória à lei verdadeira, na medida em que se julga com o direito a isolar-se da humanidade, na medida em que não tem basicamente qualquer participação na marcha da História, na medida em que continua a sonhar com um futuro que nada tem em comum com o futuro da humanidade, considerando-se um membro do povo judeu e considerando o povo judeu o povo eleito. Com que fundamento é que vós, judeus, aspirais, portanto, à emancipação? Alegando a vossa religião? Ela é a inimiga mortal da religião do Estado. Por serdes cidadãos? Não há cidadãos na Alemanha. Por serdes seres humanos? Vós sois tão 13
pouco humanos quanto os outros, a quem apelais, o são. Bauer reformulou a questão da emancipação judaica depois de apresentar uma crítica das posições adoptadas até à altura e das soluções encontradas para a questão. Quais são as características, interroga-se ele, do judeu que reclama a emancipação e do Estado cristão que lha deve conceder? E responde com uma crítica da religião judaica, analisando a oposição religiosa que existe entre judaísmo e cristianismo e reflectindo sobre a natureza do Estado cristão. Fá-lo com audácia, rigor, espírito e profundidade, numa linguagem tão precisa como vigorosa e enérgica. Como é que Bauer resolve, então, a questão judaica? Qual é o resultado? O modo como se formula uma questão é a sua solução. A crítica da questão judaica é a resposta à questão judaica. Eis, portanto, o seu pensamento, de uma forma concisa: Teremos de nos emancipar primeiro a nós próprios antes de emancipar quem quer que seja. A oposição mais rígida que se ergue entre judeus e cristãos é a oposição religiosa. Como se resolve uma oposição? Tor14
nando-a impossível. Como se torna impossível uma oposição religiosa? Suprimindo a religião. A partir do momento em que judeus e cristãos consideram as respectivas religiões como diferentes estádios de desenvolvimento do espírito humano, como diferentes peles de cobra que a História foi despindo, vendo na pessoa humana a cobra que vai mudando de pele, deixa de existir entre eles uma relação religiosa para se passar a constituir uma relação crítica, científica, uma relação humana. A ciência torna-se, então, a sua unidade. E os opostos na ciência resolvem-se através da própria ciência. No que diz respeito ao caso particular do judeu alemão, este vê-se confrontado com a falta de emancipação política em geral e com o acentuado carácter cristão do Estado. No entanto, e segundo Bauer ainda, a questão judaica reveste-se de um significado geral que nada tem a ver com o caso específico alemão. Referimo-nos à questão da relação que se constitui entre religião e Estado, à antinomia entre vinculação religiosa e emancipação política. A emancipação religiosa torna-se, então, requisito tanto para o judeu que aspira à emancipação po15
lítica, como para o Estado que concede a emancipação e deve, ele mesmo, ser emancipado. “Muito bem, dizemos, secundados pelo próprio judeu. Não é enquanto judeu, não é por ser judeu e encarnar princípios humanos e morais tão gerais e notáveis que o judeu deve aspirar à emancipação. O judeu deve antes passar para segundo plano e deixar emergir o cidadão, deve ser em primeiro lugar cidadão, ainda que seja judeu e nunca o deixe de ser. Ou seja, ele é e permanece judeu, ainda que seja cidadão e viva como as outras pessoas à sua volta. A sua natureza judaica e restrita triunfa sempre, e em última instância, sobre as suas obrigações humanas e políticas. O preconceito permanece, ainda que superado por princípios gerais. Se, porém, permanece, superará tudo o resto.” “Apenas de um modo sofístico, isto é, ao nível das aparências, o judeu poderia permanecer judeu na vida do Estado. Se ele insistisse em permanecer judeu, a mera aparência tornar-se-ia essência e triunfaria, isto é, a sua vida no seio do Estado seria mera aparência ou uma excepção momentânea à essência e à regra.” (A Capacidade de Libertação do Ju16
deu e do Cristão de Hoje, “Einundzwanzig Bogen”). Vejamos, por outro lado, como Bauer descreve a tarefa do Estado: “No que diz respeito à questão judaica — e à imagem do que sucede, desde a revolução de Julho, em relação a todas as outras questões políticas ”, escreve, “a França deu-nos recentemente (debate na Câmara dos Deputados de 26 de Dezembro de 1840) a imagem de uma vida que parece ser livre, mas cuja liberdade é revogada pela lei, sendo, portanto, reduzida a mera aparência, ou de uma vida que é regida, em contrapartida, por uma legislação livre, a qual é, contudo, revogada pela realidade.” (A Questão Judaica.) “Na França, a liberdade geral ainda não é lei e a questão judaica ainda não está também resolvida, uma vez que a liberdade legal — que estabelece a igualdade de todos os cidadãos — é restringida na vida, a qual é ainda segmentada e dominada por privilégios religiosos. Esta falta de liberdade da vida tem os seus efeitos sobre a lei, obrigando-a a sancionar a divisão dos cidadãos livres em dois grupos: o dos oprimidos e o dos opressores.” 17