TEATRO 4
Bertolt Brecht
Teatro 4
Cotovia
Bertolt Brecht
Teatro 4
Cotovia
Índice
A publicação deste volume contou com o apoio do Goethe-Institut
Cartas de tempos sombrios. Cinco formas de escrever a verdade, por Vera San Payo de Lemos OS CABEÇAS REDONDAS E OS CABEÇAS BICUDAS OU OS RICOS DÃO-SE BEM COM OS RICOS
Die RundKöpfe und die SpitzKöpfe / Os cabeças redondas e os cabeças bicudas ou Os ricos dão-se bem com os ricos : © Copyright Stefan S. Brecht, 1957 Die sieben Todsünden der Kleinbürger / Os sete pecados mortais dos pequeno-burgueses: © Copyright Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1959 Die Horatier und die Kuriatier / Os Horácios e os Curiácios © Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957 Die Geachre der Frau Carrar / As espingardas da Senhora Carrar © Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957 Farcht und Elend des III Reich / Terror e miséria do Terceiro Reich © Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957 Edição seguida: Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe , Suhrkamp Verlag. Traduções: Copyright © dos tradutores e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2006. Introdução: Copyright © Vera San Payo de Lemos
e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2006. Capa: Silva! designers Reservados todos os direitos ISBN 978-972-795-184-0
p. 7
57
OS SETE PECADOS MORTAIS DOS PEQUENO-BURGUESES
175
OS HORÁCIOS E OS CURIÁCIOS
189
AS ESPINGARDAS DA SENHORA CARRAR
215
TERROR E MISÉRIA DO TERCEIRO REICH
249
Índice
A publicação deste volume contou com o apoio do Goethe-Institut
Cartas de tempos sombrios. Cinco formas de escrever a verdade, por Vera San Payo de Lemos OS CABEÇAS REDONDAS E OS CABEÇAS BICUDAS OU OS RICOS DÃO-SE BEM COM OS RICOS
Die RundKöpfe und die SpitzKöpfe / Os cabeças redondas e os cabeças bicudas ou Os ricos dão-se bem com os ricos : © Copyright Stefan S. Brecht, 1957 Die sieben Todsünden der Kleinbürger / Os sete pecados mortais dos pequeno-burgueses: © Copyright Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1959 Die Horatier und die Kuriatier / Os Horácios e os Curiácios © Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957 Die Geachre der Frau Carrar / As espingardas da Senhora Carrar © Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957 Farcht und Elend des III Reich / Terror e miséria do Terceiro Reich © Copyright Suhrkamp Verlag, Berlin, 1957 Edição seguida: Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe , Suhrkamp Verlag. Traduções: Copyright © dos tradutores e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2006. Introdução: Copyright © Vera San Payo de Lemos
e Edições Cotovia Lda., Lisboa, 2006. Capa: Silva! designers Reservados todos os direitos ISBN 978-972-795-184-0
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OS SETE PECADOS MORTAIS DOS PEQUENO-BURGUESES
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OS HORÁCIOS E OS CURIÁCIOS
189
AS ESPINGARDAS DA SENHORA CARRAR
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TERROR E MISÉRIA DO TERCEIRO REICH
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Cartas de tempos sombrios Cinco formas de escrever a verdade
Edição seguida: Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe (GBA), Suhrkamp Verlag.
Numa carta enviada do exílio na Dinamarca, em Dezembro de 1933, ao escritor soviético Sergei Tretiakov, Brecht escrevia: “O tempo dos apelos brilhantes, protestos, etc. por enquanto acabou. O que é necessário agora é um trabalho paciente, perseverante, árduo, de esclarecimento, de estudo”. Justificava-se assim de não aderir à Acção Antifascista, uma plataforma de concertação das forças de oposição ao avanço do nazismo, proposta pelo líder comunista Ernst Thälmann em Maio de 1932. Com a subida de Hitler ao poder em 30 de Janeiro de 1933, chegara ao fim o tempo de agitação social e política e de experimentação artística da República de Weimar e dera-se início ao tempo da ordem totalitária do III Reich que Brecht apelidaria de “barbárie castanha” em muitos dos seus escritos. Em 28 de Fevereiro de 1933, um dia após o incêndio do Reichstag, a que se seguiriam uma caça aos opositores do novo regime e mais de 4000 detenções, Brecht abandona Berlim a caminho do exílio do qual regressaria, de facto, só alguns anos depois de terminada a guerra, em Maio de 1949. Passando por Praga, Viena, Carona, Paris, em busca de um lugar onde pudesse ter liberdade para prosseguir o seu trabalho de autor comprometido com o mundo à sua volta, acaba por se fixar em Agosto de 1933 em Svendborg, na Dinamarca, onde permanece até Abril de 1939. Nos anos seguintes, com o deflagrar da guerra e à medida que as condições de vida como exilado político se vão tornando cada vez mais difíceis nos países invadidos e ocupados pelas tropas nazis, Brecht irá mudar “mais vezes de país do que de sapatos”, como escreve no poema An die Nachgeborenen [Aos que nascerem depois de nós]: depois da Dinamarca segue-se a Suécia (até Abril de 1940), a Finlândia (até Maio de 1941), os Estados Unidos da América (até Outubro de 1947) e a Suiça (até Maio de 1949). Em 1947, no depoimento apresentado à Comissão do Congresso para Actividades Antiamericanas em Washington, descreve o estran-
Cartas de tempos sombrios Cinco formas de escrever a verdade
Edição seguida: Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe (GBA), Suhrkamp Verlag.
Numa carta enviada do exílio na Dinamarca, em Dezembro de 1933, ao escritor soviético Sergei Tretiakov, Brecht escrevia: “O tempo dos apelos brilhantes, protestos, etc. por enquanto acabou. O que é necessário agora é um trabalho paciente, perseverante, árduo, de esclarecimento, de estudo”. Justificava-se assim de não aderir à Acção Antifascista, uma plataforma de concertação das forças de oposição ao avanço do nazismo, proposta pelo líder comunista Ernst Thälmann em Maio de 1932. Com a subida de Hitler ao poder em 30 de Janeiro de 1933, chegara ao fim o tempo de agitação social e política e de experimentação artística da República de Weimar e dera-se início ao tempo da ordem totalitária do III Reich que Brecht apelidaria de “barbárie castanha” em muitos dos seus escritos. Em 28 de Fevereiro de 1933, um dia após o incêndio do Reichstag, a que se seguiriam uma caça aos opositores do novo regime e mais de 4000 detenções, Brecht abandona Berlim a caminho do exílio do qual regressaria, de facto, só alguns anos depois de terminada a guerra, em Maio de 1949. Passando por Praga, Viena, Carona, Paris, em busca de um lugar onde pudesse ter liberdade para prosseguir o seu trabalho de autor comprometido com o mundo à sua volta, acaba por se fixar em Agosto de 1933 em Svendborg, na Dinamarca, onde permanece até Abril de 1939. Nos anos seguintes, com o deflagrar da guerra e à medida que as condições de vida como exilado político se vão tornando cada vez mais difíceis nos países invadidos e ocupados pelas tropas nazis, Brecht irá mudar “mais vezes de país do que de sapatos”, como escreve no poema An die Nachgeborenen [Aos que nascerem depois de nós]: depois da Dinamarca segue-se a Suécia (até Abril de 1940), a Finlândia (até Maio de 1941), os Estados Unidos da América (até Outubro de 1947) e a Suiça (até Maio de 1949). Em 1947, no depoimento apresentado à Comissão do Congresso para Actividades Antiamericanas em Washington, descreve o estran-
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Vera San Payo de Lemos
gulamento progressivo da actividade artística, cultural e intelectual da República de Weimar como um plano urdido para forçar os intelectuais e artistas ao exílio e preparar o terreno para a guerra: As perseguições no campo da cultura foram aumentando gradualmente. Pintores, editores e organizadores de revistas conhecidos eram perseguidos judicialmente. Nas universidades, encenavam--se caças políticas às bruxas, faziam-se esconjuros contra filmes como A Oeste nada de novo. Claro que isto eram apenas preparativos para medidas mais drásticas. Quando Hitler tomou o poder proibia-se os pintores de pintar, os escritores de escrever, e o partido nazi apoderou-se das editoras e dos estúdios de cinema. Mas mesmo estes ataques à vida cultural do povo alemão eram apenas um começo. Foram pensados e executados como preparação mental da guerra total que é o inimigo total da cultura. (GBA, 23, 60)
No exílio, privado da interacção entre a escrita e o palco, da comunicação directa com o público e do livre debate de ideias na sua própria língua, impõe-se a Brecht encontrar formas de intervenção viáveis e eficazes mesmo nas novas condições, procurar meios de publicar os seus escritos e levar as suas peças à cena, aprofundar a reflexão teórica sobre a arte e a sociedade, criar novas plataformas de debate ou participar nos fórums de discussão existentes, principalmente nas revistas publicadas por exilados alemães, em Moscovo e Praga, como Das Wort [A Palavra], Internationale Literatur ou Die Neue Weltbühne [O Novo Palco Internacional]. Na realidade, a distância e o isolamento a que se vê forçado pelo exílio têm efeitos ambivalentes: por um lado, a falta do palco possibilita um desenvolvimento mais solto da escrita e um apuramento das técnicas do teatro épico (“para a gaveta não é preciso fazer concessões.”, como aponta no Diário de trabalho em Março de 1939), por outro, a tomada de consciência de que o tempo da acção directa, “dos apelos brilhantes, dos protestos etc.”, passou, abre espaço para o aprofundamento do estudo e eleva o nível de reflexão da sua teoria teatral que permanece apostada em transformar a atitude do espectador, a função do teatro e a forma de organização da sociedade. Na primeira estação de exílio, entre a saída da Alemanha em 1933 e da Dinamarca em 1939, a produtividade de Brecht é intensa. Para além das cinco peças incluídas neste volume, escreve a primeira versão de Vida de Galileu e a peça em um acto Dansen, esboça
Introdução
9
A boa alma de Sé-Chuão, conclui Der Dreigroschenroman [O romance de três vinténs], reúne os seus poemas em três colectâneas, Lieder Gedichte Chöre [Canções poemas canções], Deutsche Kriegsfibel [Manual de guerra alemão], Svendborger Gedichte [Poemas de Svendborg], e começa Der Messingkauf [A compra do latão], uma explanação da teoria do teatro épico em forma de diálogo. É também neste período que retoma o hábito de escrever um diário como fazia nos tempos de juventude. Em 20 de Julho de 1938, abre o que designa por Arbeitsjournal [Diário de trabalho] em que, até Maio de 1955, irá anotar encontros, conversas, acontecimentos quotidianos e comentar a actualidade política, os seus próprios trabalhos e os de outros autores. No plano da reflexão teórica, surgem ensaios sobre aspectos específicos do teatro épico (o efeito de estranhamento, a música, o cenário), artigos e discursos sobre a actuação de intelectuais e artistas nos chamados “tempos sombrios” do fascismo e da preparação do terreno para a guerra assim como textos vários sobre as questões do realismo e da função política da literatura e da arte, escritos a propósito de um debate travado essencialmente na revista Das Wort entre 1937 e 1938 que ficou conhecido como “Debate sobre o expressionismo” ou “Debate BrechtLukács”. Outros projectos de reflexão teórica, como o da realização de uma enciclopédia, a publicar em fascículos, com reflexões de autores antifascistas sobre conceitos, palavras de ordem e slogans políticos do fascismo, ou o da fundação de uma “sociedade Diderot”, só constituída por escritores interessados em debater as questões específicas do teatro, não se chegam a concretizar. Um dos primeiros trabalhos do exílio, ainda imbuído do espírito combativo da República de Weimar, é a colectânea Lieder Gedichte Chöre, com canções, poemas e coros escritos entre 1918 e 1933. Publicada na primavera de 1934, por uma editora antifascista em Paris, com a partitura das canções e dos coros, de modo a poder ser usada, ou seja, cantada, esta colectânea, maioritariamente com composições de Eisler, visa não só manter viva a chama dos coros operários, reportando-se ao papel congregador e interventivo desempenhado pela música na acção política no tempo da República de Weimar, mas também servir de contraponto à apropriação do património das canções populares feita pelos nazis. No lugar da alma alemã e do espírito de comunidade nacional, celebrados pelo repertório das canções populares, as canções de combate de Brecht e Eisler
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Vera San Payo de Lemos
gulamento progressivo da actividade artística, cultural e intelectual da República de Weimar como um plano urdido para forçar os intelectuais e artistas ao exílio e preparar o terreno para a guerra: As perseguições no campo da cultura foram aumentando gradualmente. Pintores, editores e organizadores de revistas conhecidos eram perseguidos judicialmente. Nas universidades, encenavam--se caças políticas às bruxas, faziam-se esconjuros contra filmes como A Oeste nada de novo. Claro que isto eram apenas preparativos para medidas mais drásticas. Quando Hitler tomou o poder proibia-se os pintores de pintar, os escritores de escrever, e o partido nazi apoderou-se das editoras e dos estúdios de cinema. Mas mesmo estes ataques à vida cultural do povo alemão eram apenas um começo. Foram pensados e executados como preparação mental da guerra total que é o inimigo total da cultura. (GBA, 23, 60)
No exílio, privado da interacção entre a escrita e o palco, da comunicação directa com o público e do livre debate de ideias na sua própria língua, impõe-se a Brecht encontrar formas de intervenção viáveis e eficazes mesmo nas novas condições, procurar meios de publicar os seus escritos e levar as suas peças à cena, aprofundar a reflexão teórica sobre a arte e a sociedade, criar novas plataformas de debate ou participar nos fórums de discussão existentes, principalmente nas revistas publicadas por exilados alemães, em Moscovo e Praga, como Das Wort [A Palavra], Internationale Literatur ou Die Neue Weltbühne [O Novo Palco Internacional]. Na realidade, a distância e o isolamento a que se vê forçado pelo exílio têm efeitos ambivalentes: por um lado, a falta do palco possibilita um desenvolvimento mais solto da escrita e um apuramento das técnicas do teatro épico (“para a gaveta não é preciso fazer concessões.”, como aponta no Diário de trabalho em Março de 1939), por outro, a tomada de consciência de que o tempo da acção directa, “dos apelos brilhantes, dos protestos etc.”, passou, abre espaço para o aprofundamento do estudo e eleva o nível de reflexão da sua teoria teatral que permanece apostada em transformar a atitude do espectador, a função do teatro e a forma de organização da sociedade. Na primeira estação de exílio, entre a saída da Alemanha em 1933 e da Dinamarca em 1939, a produtividade de Brecht é intensa. Para além das cinco peças incluídas neste volume, escreve a primeira versão de Vida de Galileu e a peça em um acto Dansen, esboça
Introdução
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A boa alma de Sé-Chuão, conclui Der Dreigroschenroman [O romance de três vinténs], reúne os seus poemas em três colectâneas, Lieder Gedichte Chöre [Canções poemas canções], Deutsche Kriegsfibel [Manual de guerra alemão], Svendborger Gedichte [Poemas de Svendborg], e começa Der Messingkauf [A compra do latão], uma explanação da teoria do teatro épico em forma de diálogo. É também neste período que retoma o hábito de escrever um diário como fazia nos tempos de juventude. Em 20 de Julho de 1938, abre o que designa por Arbeitsjournal [Diário de trabalho] em que, até Maio de 1955, irá anotar encontros, conversas, acontecimentos quotidianos e comentar a actualidade política, os seus próprios trabalhos e os de outros autores. No plano da reflexão teórica, surgem ensaios sobre aspectos específicos do teatro épico (o efeito de estranhamento, a música, o cenário), artigos e discursos sobre a actuação de intelectuais e artistas nos chamados “tempos sombrios” do fascismo e da preparação do terreno para a guerra assim como textos vários sobre as questões do realismo e da função política da literatura e da arte, escritos a propósito de um debate travado essencialmente na revista Das Wort entre 1937 e 1938 que ficou conhecido como “Debate sobre o expressionismo” ou “Debate BrechtLukács”. Outros projectos de reflexão teórica, como o da realização de uma enciclopédia, a publicar em fascículos, com reflexões de autores antifascistas sobre conceitos, palavras de ordem e slogans políticos do fascismo, ou o da fundação de uma “sociedade Diderot”, só constituída por escritores interessados em debater as questões específicas do teatro, não se chegam a concretizar. Um dos primeiros trabalhos do exílio, ainda imbuído do espírito combativo da República de Weimar, é a colectânea Lieder Gedichte Chöre, com canções, poemas e coros escritos entre 1918 e 1933. Publicada na primavera de 1934, por uma editora antifascista em Paris, com a partitura das canções e dos coros, de modo a poder ser usada, ou seja, cantada, esta colectânea, maioritariamente com composições de Eisler, visa não só manter viva a chama dos coros operários, reportando-se ao papel congregador e interventivo desempenhado pela música na acção política no tempo da República de Weimar, mas também servir de contraponto à apropriação do património das canções populares feita pelos nazis. No lugar da alma alemã e do espírito de comunidade nacional, celebrados pelo repertório das canções populares, as canções de combate de Brecht e Eisler
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Vera San Payo de Lemos
apelam à consciência de classe das massas trabalhadoras, alertam para as clivagens sociais entre as classes e lembram a necessidade de os operários fazerem frente à propaganda nazi e não se deixarem arrastar para mais uma guerra. Com excepção do poema final e dos poemas do capítulo 1933, dos quais vários, compostos para serem cantados segundo as melodias de cânticos protestantes muito conhecidos, são alusivos a Hitler, “o pintor de paredes”, a colectânea inclui poemas e composições já existentes, como canções e coros das peças A mãe e A decisão, escolhidos para lembrar, cronológica e criticamente, os passos da Alemanha em direcção ao fascismo. A colectânea abre, significativamente, com Legende vom toten Soldaten [Lenda do soldado morto], uma canção de 1918, com música do próprio Brecht, em que a tradição militar prussiana é denunciada como substrato não só da primeira guerra, mas também das guerras vindouras. Esta canção, que colocara Brecht na lista dos nazis já em 1923, servirá de fundamento para a queima das suas obras em praça pública em 10 de Maio de 1933 e para a sua extradição em 8 de Junho de 1935. As perseguições, prisões e torturas praticadas na Alemanha de Hitler, a par das campanhas de mentalização desenvolvidas pela poderosa máquina de propaganda ao seu serviço, levam os artistas e intelectuais antifascistas a concertar formas de actuação e a procurar realizar a ideia duma frente antifascista em plataformas de discussão como encontros, jornais e revistas. Em 1934, quando o jornal Pariser Tageblatt [Diário de Paris] desafia os escritores alemães exilados a pronunciarem-se sobre a missão do escritor num tempo em que os valores fundamentais da cultura se encontram ameaçados, Brecht responde com um texto considerado de grande impacto que reformula e desenvolve em seguida como ensaio com o título Fünf Schwierigkeiten beim Schreiben der Wahrheit [Cinco dificuldades no escrever da verdade]. Neste texto, que se tornará uma espécie de breviário para os escritores nesta época e chega a circular clandestinamente na Alemanha em separata, essas cinco dificuldades são resumidas do seguinte modo: Quem hoje quiser combater a mentira e a ignorância e escrever a verdade, tem de superar pelo menos cinco dificuldades. Tem de ter a coragem para escrever a verdade embora ela seja reprimida em todo o lado; a inteligência para a reconhecer embora ela seja ocultada em todo o lado; a arte
Introdução
11
para a tornar manejável como uma arma; o discernimento para escolher aqueles em cujas mãos ela se torne eficaz; a astúcia para a difundir entre eles. Estas dificuldades são grandes para os que escrevem sob o fascismo, mas também existem para aqueles que foram expulsos ou fugiram, e até para aqueles que escrevem nos países da liberdade burguesa. (GBA 22.1., 74)
Uma das primeiras iniciativas para congregar esforços e lançar linhas de acção conjuntas contra o fascismo vem a ser o Congresso para a defesa da cultura, um grande encontro internacional de artistas e intelectuais antifascistas realizado em Paris de 21 a 25 de Junho de 1935, do qual resulta, entre outras, a ideia de criação da revista Das Wort, publicada por exilados alemães na União Soviética de Julho de 1936 a Março de 1939. Embora participasse no congresso e se dispusesse a integrar a primeira comissão redactorial da revista Das Wort, Brecht não se identifica com a ideia política da Frente Popular que se procura concretizar no congresso nem com a sua concepção de defesa da cultura. Na comunicação que apresenta, analisa como raiz da barbárie a propriedade privada dos meios de produção e interpela os presentes a debruçarem-se, antes de tudo o mais, sobre as relações de propriedade existentes (cf. Eine notwendige Feststellung zum Kampf gegen die Barbarei [Uma constatação necessária para a luta contra a barbárie], GBA 22.1., 141-146). A sua insistência num ponto de vista de classe, também na própria produção artística, não se coaduna também com a proposta estética (e política) de regresso aos grandes modelos do passado, sobretudo às formas burguesas progressistas do romance, apresentadas como meios a utilizar na construção da sociedade socialista futura. Nesta perspectiva sobre a herança literária e cultural, que já tinha sido defendida como um dos princípios da doutrina estética oficial do realismo socialista no 1º Congresso de Escritores Soviéticos em 1934 e viria a ser corroborada por Lukács nos ensaios publicados em Das Wort no âmbito do chamado Debate sobre o expressionismo de 1937-38, reconhecem-se as directrizes dadas por Lenine para a política cultural do estado socialista fundado depois da Revolução de Outubro. Como marxista sem partido, Brecht não se deixa enquadrar pelos intelectuais e quadros partidários do que apelida de “clique moscovita”, a que associa Lukács, Alfred Kurella, Johannes R. Becher e Fritz Erpenbeck. No clima de terror dos pro-
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apelam à consciência de classe das massas trabalhadoras, alertam para as clivagens sociais entre as classes e lembram a necessidade de os operários fazerem frente à propaganda nazi e não se deixarem arrastar para mais uma guerra. Com excepção do poema final e dos poemas do capítulo 1933, dos quais vários, compostos para serem cantados segundo as melodias de cânticos protestantes muito conhecidos, são alusivos a Hitler, “o pintor de paredes”, a colectânea inclui poemas e composições já existentes, como canções e coros das peças A mãe e A decisão, escolhidos para lembrar, cronológica e criticamente, os passos da Alemanha em direcção ao fascismo. A colectânea abre, significativamente, com Legende vom toten Soldaten [Lenda do soldado morto], uma canção de 1918, com música do próprio Brecht, em que a tradição militar prussiana é denunciada como substrato não só da primeira guerra, mas também das guerras vindouras. Esta canção, que colocara Brecht na lista dos nazis já em 1923, servirá de fundamento para a queima das suas obras em praça pública em 10 de Maio de 1933 e para a sua extradição em 8 de Junho de 1935. As perseguições, prisões e torturas praticadas na Alemanha de Hitler, a par das campanhas de mentalização desenvolvidas pela poderosa máquina de propaganda ao seu serviço, levam os artistas e intelectuais antifascistas a concertar formas de actuação e a procurar realizar a ideia duma frente antifascista em plataformas de discussão como encontros, jornais e revistas. Em 1934, quando o jornal Pariser Tageblatt [Diário de Paris] desafia os escritores alemães exilados a pronunciarem-se sobre a missão do escritor num tempo em que os valores fundamentais da cultura se encontram ameaçados, Brecht responde com um texto considerado de grande impacto que reformula e desenvolve em seguida como ensaio com o título Fünf Schwierigkeiten beim Schreiben der Wahrheit [Cinco dificuldades no escrever da verdade]. Neste texto, que se tornará uma espécie de breviário para os escritores nesta época e chega a circular clandestinamente na Alemanha em separata, essas cinco dificuldades são resumidas do seguinte modo: Quem hoje quiser combater a mentira e a ignorância e escrever a verdade, tem de superar pelo menos cinco dificuldades. Tem de ter a coragem para escrever a verdade embora ela seja reprimida em todo o lado; a inteligência para a reconhecer embora ela seja ocultada em todo o lado; a arte
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para a tornar manejável como uma arma; o discernimento para escolher aqueles em cujas mãos ela se torne eficaz; a astúcia para a difundir entre eles. Estas dificuldades são grandes para os que escrevem sob o fascismo, mas também existem para aqueles que foram expulsos ou fugiram, e até para aqueles que escrevem nos países da liberdade burguesa. (GBA 22.1., 74)
Uma das primeiras iniciativas para congregar esforços e lançar linhas de acção conjuntas contra o fascismo vem a ser o Congresso para a defesa da cultura, um grande encontro internacional de artistas e intelectuais antifascistas realizado em Paris de 21 a 25 de Junho de 1935, do qual resulta, entre outras, a ideia de criação da revista Das Wort, publicada por exilados alemães na União Soviética de Julho de 1936 a Março de 1939. Embora participasse no congresso e se dispusesse a integrar a primeira comissão redactorial da revista Das Wort, Brecht não se identifica com a ideia política da Frente Popular que se procura concretizar no congresso nem com a sua concepção de defesa da cultura. Na comunicação que apresenta, analisa como raiz da barbárie a propriedade privada dos meios de produção e interpela os presentes a debruçarem-se, antes de tudo o mais, sobre as relações de propriedade existentes (cf. Eine notwendige Feststellung zum Kampf gegen die Barbarei [Uma constatação necessária para a luta contra a barbárie], GBA 22.1., 141-146). A sua insistência num ponto de vista de classe, também na própria produção artística, não se coaduna também com a proposta estética (e política) de regresso aos grandes modelos do passado, sobretudo às formas burguesas progressistas do romance, apresentadas como meios a utilizar na construção da sociedade socialista futura. Nesta perspectiva sobre a herança literária e cultural, que já tinha sido defendida como um dos princípios da doutrina estética oficial do realismo socialista no 1º Congresso de Escritores Soviéticos em 1934 e viria a ser corroborada por Lukács nos ensaios publicados em Das Wort no âmbito do chamado Debate sobre o expressionismo de 1937-38, reconhecem-se as directrizes dadas por Lenine para a política cultural do estado socialista fundado depois da Revolução de Outubro. Como marxista sem partido, Brecht não se deixa enquadrar pelos intelectuais e quadros partidários do que apelida de “clique moscovita”, a que associa Lukács, Alfred Kurella, Johannes R. Becher e Fritz Erpenbeck. No clima de terror dos pro-
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cessos estalinistas, ocorridos de 19 a 24 de Agosto de 1936 e de 23 a 30 de Janeiro de 1937, na sequência dos quais são mortos ou presos amigos e conhecidos como Tretiakov, Carola Neher e Meyerhold, Brecht confronta-se com linhas políticas rígidas, transpostas para um ideário estético igualmente rígido, o que explica não só o seu afastamento gradual em relação à revista Das Wort como também o facto de a maior parte dos seus textos sobre a questão do realismo e do formalismo, escritos em reacção aos ensaios de Lukács, não ter sido sequer enviada para publicação ou não ter chegado a ser publicada. Curiosamente, o debate também conhecido por Debate Brecht-Lukács desenrola-se sem o envolvimento directo de Brecht na polémica, mas com a sua concepção dialéctica e materialista da arte e a sua própria prática artística a servir de paradigma oposto ao paradigma defendido por Lukács. Brecht critica sobretudo o carácter modelar, restritivo e estático das teorias de Lukács, a fixação dos grandes realistas do século XIX como exemplos canónicos e a liquidação, com o teorema da “decadência” e do “formalismo”, das técnicas inovadoras da montagem, da reportagem, do monólogo interior, do estranhamento, propostas pelos movimentos da vanguarda. No tom provocatório que o caracteriza, formula a propósito das teorias de Lukács a seguinte máxima: “O que há a fazer não é seguir a linha do velho bom, mas sim a do novo mau”. (GBA 22.1., 457) Rejeitando um método único de representação da realidade, advoga uma adequação eclética e funcional das diversas técnicas do passado literário às condições de uma realidade em permanente transformação, a descoberta de novas formas e a abolição das fronteiras não só entre os géneros literários, mas também entre a literatura e outras formas de conhecimento da realidade como a ciência. Como Walter Benjamin descreve no diário de uma das suas visitas a Brecht em Svendborg em Julho de 1938, ambos hesitam quanto ao envio para publicação em Das Wort de um texto com “ataques velados, mas veementes” às teorias de Lukács. Ciente de que “na Rússia vigora uma ditadura sobre o proletariado”, Brecht inibe-se de tomar uma posição pública contra a situação enquanto “essa ditadura continuar a prestar um serviço prático ao proletariado” (cf. Walter Benjamin, Versuche über Brecht, [Ensaios sobre Brecht], Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, pp. 133-135), mas procura reflectir em vários textos sobre o clima de terror na União
Introdução
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Soviética e os processos estalinistas para perceber melhor o que se passa e clarificar a sua posição (cf. Über meine Stellung zur Sowjetunion [Sobre a minha posição em relação à União Soviética] e Über die Moskauer Prozesse [Sobre os processos de Moscovo], GBA 22.1, 297-298, 365-369) Na análise global dos tempos sombrios, vividos no final dos anos 30, o fascismo, interpretado como consequência do desenvolvimento brutal do capitalismo, continua a ser aos olhos de Brecht o pior dos males cujas ramificações importa expor, desmistificar e combater. Na comunicação apresentada no encerramento do 2º Congresso Internacional de Escritores para a Defesa da Cultura em Londres, em 17 de Julho de 1937, salientara a relação entre a destruição das liberdades fundamentais pelos fascistas na Alemanha e em Itália e a destruição de Guernica e os massacres das populações na Guerra Civil de Espanha. Identificando o ataque à cultura como uma guerra idêntica às outras guerras em curso, apelara a que se movesse uma guerra a todas essas guerras e que a cultura, até aí defendida apenas com armas intelectuais, passasse a ser defendida com armas materiais. (cf. GBA 22.1., 323-325) Este apelo às armas, que Brecht se abstém de especificar, surge no contexto do congresso, que começara em Valencia e prosseguira em Madrid, com a Guerra Civil em curso, e reflecte as ideias que se encontrava a desenvolver na peça As espingardas da Senhora Carrar: no palco da guerra não pode haver neutralidade nem basta prestar ajuda humanitária na rectaguarda, mas impõe-se pegar em armas para defender os valores da vida. No pequeno texto Kunst oder Politik? [Arte ou política?], escrito em Fevereiro de 1938, Brecht recorre ao exemplo desta peça para esclarecer e fundamentar a sua actuação enquanto escritor nas circunstâncias históricas específicas do final dos anos 30, ou seja, o modo como perspectiva a relação entre a sua prática artística e a actualidade política. Em vez de se referir explicitamente ao fascismo, opta por salientar a afinidade sem fronteiras que aproxima as suas vítimas: Brecht, o escritor alemão exilado na Dinamarca, privado da comunicação directa com o seu público na sua própria língua; os seus compatriotas, sujeitos a atrocidades inomináveis na Alemanha de Hitler, e a senhora Carrar, a mulher de um pescador da Andaluzia em luta com os generais franquistas. Esta afinidade cria novos laços e códigos, um novo tipo de comunicação dirigido a um novo público, com expectativas e necessidades diferentes. O escritor sente-se impelido a escrever,
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cessos estalinistas, ocorridos de 19 a 24 de Agosto de 1936 e de 23 a 30 de Janeiro de 1937, na sequência dos quais são mortos ou presos amigos e conhecidos como Tretiakov, Carola Neher e Meyerhold, Brecht confronta-se com linhas políticas rígidas, transpostas para um ideário estético igualmente rígido, o que explica não só o seu afastamento gradual em relação à revista Das Wort como também o facto de a maior parte dos seus textos sobre a questão do realismo e do formalismo, escritos em reacção aos ensaios de Lukács, não ter sido sequer enviada para publicação ou não ter chegado a ser publicada. Curiosamente, o debate também conhecido por Debate Brecht-Lukács desenrola-se sem o envolvimento directo de Brecht na polémica, mas com a sua concepção dialéctica e materialista da arte e a sua própria prática artística a servir de paradigma oposto ao paradigma defendido por Lukács. Brecht critica sobretudo o carácter modelar, restritivo e estático das teorias de Lukács, a fixação dos grandes realistas do século XIX como exemplos canónicos e a liquidação, com o teorema da “decadência” e do “formalismo”, das técnicas inovadoras da montagem, da reportagem, do monólogo interior, do estranhamento, propostas pelos movimentos da vanguarda. No tom provocatório que o caracteriza, formula a propósito das teorias de Lukács a seguinte máxima: “O que há a fazer não é seguir a linha do velho bom, mas sim a do novo mau”. (GBA 22.1., 457) Rejeitando um método único de representação da realidade, advoga uma adequação eclética e funcional das diversas técnicas do passado literário às condições de uma realidade em permanente transformação, a descoberta de novas formas e a abolição das fronteiras não só entre os géneros literários, mas também entre a literatura e outras formas de conhecimento da realidade como a ciência. Como Walter Benjamin descreve no diário de uma das suas visitas a Brecht em Svendborg em Julho de 1938, ambos hesitam quanto ao envio para publicação em Das Wort de um texto com “ataques velados, mas veementes” às teorias de Lukács. Ciente de que “na Rússia vigora uma ditadura sobre o proletariado”, Brecht inibe-se de tomar uma posição pública contra a situação enquanto “essa ditadura continuar a prestar um serviço prático ao proletariado” (cf. Walter Benjamin, Versuche über Brecht, [Ensaios sobre Brecht], Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, pp. 133-135), mas procura reflectir em vários textos sobre o clima de terror na União
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Soviética e os processos estalinistas para perceber melhor o que se passa e clarificar a sua posição (cf. Über meine Stellung zur Sowjetunion [Sobre a minha posição em relação à União Soviética] e Über die Moskauer Prozesse [Sobre os processos de Moscovo], GBA 22.1, 297-298, 365-369) Na análise global dos tempos sombrios, vividos no final dos anos 30, o fascismo, interpretado como consequência do desenvolvimento brutal do capitalismo, continua a ser aos olhos de Brecht o pior dos males cujas ramificações importa expor, desmistificar e combater. Na comunicação apresentada no encerramento do 2º Congresso Internacional de Escritores para a Defesa da Cultura em Londres, em 17 de Julho de 1937, salientara a relação entre a destruição das liberdades fundamentais pelos fascistas na Alemanha e em Itália e a destruição de Guernica e os massacres das populações na Guerra Civil de Espanha. Identificando o ataque à cultura como uma guerra idêntica às outras guerras em curso, apelara a que se movesse uma guerra a todas essas guerras e que a cultura, até aí defendida apenas com armas intelectuais, passasse a ser defendida com armas materiais. (cf. GBA 22.1., 323-325) Este apelo às armas, que Brecht se abstém de especificar, surge no contexto do congresso, que começara em Valencia e prosseguira em Madrid, com a Guerra Civil em curso, e reflecte as ideias que se encontrava a desenvolver na peça As espingardas da Senhora Carrar: no palco da guerra não pode haver neutralidade nem basta prestar ajuda humanitária na rectaguarda, mas impõe-se pegar em armas para defender os valores da vida. No pequeno texto Kunst oder Politik? [Arte ou política?], escrito em Fevereiro de 1938, Brecht recorre ao exemplo desta peça para esclarecer e fundamentar a sua actuação enquanto escritor nas circunstâncias históricas específicas do final dos anos 30, ou seja, o modo como perspectiva a relação entre a sua prática artística e a actualidade política. Em vez de se referir explicitamente ao fascismo, opta por salientar a afinidade sem fronteiras que aproxima as suas vítimas: Brecht, o escritor alemão exilado na Dinamarca, privado da comunicação directa com o seu público na sua própria língua; os seus compatriotas, sujeitos a atrocidades inomináveis na Alemanha de Hitler, e a senhora Carrar, a mulher de um pescador da Andaluzia em luta com os generais franquistas. Esta afinidade cria novos laços e códigos, um novo tipo de comunicação dirigido a um novo público, com expectativas e necessidades diferentes. O escritor sente-se impelido a escrever,
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a partir de um substrato afectivo comum, para uma comunidade de vítimas, em nome da humanidade lesada e ameaçada de extinção. O seu objectivo principal é agora apontar caminhos para que as pessoas possam sair do sofrimento em que se encontram. Escritos na lonjura do exílio, os seus textos cumprem agora a função das cartas que procuram manter a comunicação à distância, por cima das fronteiras, reflectindo sobre os tempos que correm. No caso específico da senhora Carrar, a carta, escrita também em nome dos muitos alemães que não estão ao lado dos generais franquistas nem de Hitler, é por isso também “um apelo aos oprimidos para que se levantem contra os seus opressores, em nome da humanidade” (cf. GBA 22.1., 356-357). Delineada a situação do escritor na primeira estação do seu exílio, importa agora conhecer melhor as suas cartas, as estratégias comunicativas, as formas e os temas encontrados nas cinco peças publicadas neste volume. UMA PARÁBOLA À semelhança de A vida de Eduardo II de Inglaterra (segundo Marlowe), A ópera de três vinténs (segundo Gay) e A mãe (segundo Gorki), As cabeças redondas e as cabeças bicudas surge da adaptação de um texto já existente, neste caso a peça Medida por medida de Shakespeare, que, no processo de escrita e reescrita característico do método de trabalho de Brecht, se transforma numa peça própria, com diversas versões, em que vão sendo incorporadas reflexões sobre a actualidade política e experiências com técnicas do teatro épico desenvolvidas no plano da escrita e do palco. Na escrita desta peça, reconhecem-se cinco fases de trabalho que dão origem a cinco versões distintas, realizadas na Alemanha e na Dinamarca entre 1931 e 1938: a primeira versão são os esboços da adaptação da peça de Shakespeare, feitos em 1931/32; a segunda versão são esses esboços recriados numa primeira peça autónoma, publicada como versão de palco em 1932 e retrabalhada para uma segunda publicação, prevista para Janeiro de 1933, mas que não se chega a concretizar devido às mudanças resultantes da subida de Hitler ao poder; a terceira versão é o texto de 1933 reformulado em 1934 para o projecto de estreia da peça no Teatro Dagmar em Copenhaga que, no entanto, acaba por não se realizar; a quarta versão surge de uma nova tentativa de encenação da peça, que estreia, em
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tradução dinamarquesa, em 4 de Novembro de 1936, no Teatro Riddersalen em Copenhaga; a quinta versão é o texto revisto para a publicação nas obras completas em 1938. Nesta edição portuguesa apresenta-se esta última versão que integra as alterações resultantes da experiência de encenação da peça em Copenhaga e fecha o ciclo de trabalho de Brecht nesta peça. Em Novembro de 1931, o encenador e realizador de cinema Ludwig Berger pede a Brecht para adaptar Medida por medida de Shakespeare para um espectáculo que pretende realizar no Volksbühne de Berlim com o “Grupo de jovens actores”. Nesta adaptação, preparada em conjunto com o encenador, Brecht mantém a estrutura em cinco actos e a linha da fábula do original de Shakespeare, mas perspectiva-a, logo desde o início, num sentido diferente: a crise do Estado, que leva Vicentio, o príncipe de Viena, a delegar, a pretexto de uma viagem a Praga, a governação num substituto de moral elevada chamado Angelo, incumbindo-o de pôr termo à dissolução de valores e à imoralidade existentes, não é interpretada como uma crise moral, mas sim económica. Interessado em salientar a relação entre a economia e a ideologia, assim como a dimensão social dos conflitos, Brecht expõe não só a interpretação moral da crise do Estado como uma manobra ideológica destinada a escamotear a crise económica, mas também o pressuposto de uma justiça igual para todos como mera ilusão numa sociedade marcada pelas diferenças entre as classes sociais. “Será que a exigência de justiça se pode realizar numa determinada base se essa exigência é o sintoma de que a base não está em ordem?”, questiona Brecht numa nota encontrada no espólio. Na adaptação que faz da peça de Shakespeare, a actualização reside fundamentalmente neste novo olhar sobre a fábula em que se reconhece a influência do estudo do marxismo. Mais motivado pelo trabalho de adaptação de A mãe de Gorki, cujos ensaios começam em Dezembro de 1931, Brecht não conclui a adaptação da peça de Shakespeare e o espectáculo no Volksbühne não se realiza. Embora o texto tenha ficado incompleto (existem cinco cenas do 1º acto, três cenas do 2º e uma cena do 4º e do 5º acto), o resultado desta fase de trabalho, em que Brecht observa a estrutura e a linha da fábula do original de Shakespeare, apresenta-se como uma primeira versão, sem título, de As cabeças redondas e as cabeça bicudas.
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a partir de um substrato afectivo comum, para uma comunidade de vítimas, em nome da humanidade lesada e ameaçada de extinção. O seu objectivo principal é agora apontar caminhos para que as pessoas possam sair do sofrimento em que se encontram. Escritos na lonjura do exílio, os seus textos cumprem agora a função das cartas que procuram manter a comunicação à distância, por cima das fronteiras, reflectindo sobre os tempos que correm. No caso específico da senhora Carrar, a carta, escrita também em nome dos muitos alemães que não estão ao lado dos generais franquistas nem de Hitler, é por isso também “um apelo aos oprimidos para que se levantem contra os seus opressores, em nome da humanidade” (cf. GBA 22.1., 356-357). Delineada a situação do escritor na primeira estação do seu exílio, importa agora conhecer melhor as suas cartas, as estratégias comunicativas, as formas e os temas encontrados nas cinco peças publicadas neste volume. UMA PARÁBOLA À semelhança de A vida de Eduardo II de Inglaterra (segundo Marlowe), A ópera de três vinténs (segundo Gay) e A mãe (segundo Gorki), As cabeças redondas e as cabeças bicudas surge da adaptação de um texto já existente, neste caso a peça Medida por medida de Shakespeare, que, no processo de escrita e reescrita característico do método de trabalho de Brecht, se transforma numa peça própria, com diversas versões, em que vão sendo incorporadas reflexões sobre a actualidade política e experiências com técnicas do teatro épico desenvolvidas no plano da escrita e do palco. Na escrita desta peça, reconhecem-se cinco fases de trabalho que dão origem a cinco versões distintas, realizadas na Alemanha e na Dinamarca entre 1931 e 1938: a primeira versão são os esboços da adaptação da peça de Shakespeare, feitos em 1931/32; a segunda versão são esses esboços recriados numa primeira peça autónoma, publicada como versão de palco em 1932 e retrabalhada para uma segunda publicação, prevista para Janeiro de 1933, mas que não se chega a concretizar devido às mudanças resultantes da subida de Hitler ao poder; a terceira versão é o texto de 1933 reformulado em 1934 para o projecto de estreia da peça no Teatro Dagmar em Copenhaga que, no entanto, acaba por não se realizar; a quarta versão surge de uma nova tentativa de encenação da peça, que estreia, em
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tradução dinamarquesa, em 4 de Novembro de 1936, no Teatro Riddersalen em Copenhaga; a quinta versão é o texto revisto para a publicação nas obras completas em 1938. Nesta edição portuguesa apresenta-se esta última versão que integra as alterações resultantes da experiência de encenação da peça em Copenhaga e fecha o ciclo de trabalho de Brecht nesta peça. Em Novembro de 1931, o encenador e realizador de cinema Ludwig Berger pede a Brecht para adaptar Medida por medida de Shakespeare para um espectáculo que pretende realizar no Volksbühne de Berlim com o “Grupo de jovens actores”. Nesta adaptação, preparada em conjunto com o encenador, Brecht mantém a estrutura em cinco actos e a linha da fábula do original de Shakespeare, mas perspectiva-a, logo desde o início, num sentido diferente: a crise do Estado, que leva Vicentio, o príncipe de Viena, a delegar, a pretexto de uma viagem a Praga, a governação num substituto de moral elevada chamado Angelo, incumbindo-o de pôr termo à dissolução de valores e à imoralidade existentes, não é interpretada como uma crise moral, mas sim económica. Interessado em salientar a relação entre a economia e a ideologia, assim como a dimensão social dos conflitos, Brecht expõe não só a interpretação moral da crise do Estado como uma manobra ideológica destinada a escamotear a crise económica, mas também o pressuposto de uma justiça igual para todos como mera ilusão numa sociedade marcada pelas diferenças entre as classes sociais. “Será que a exigência de justiça se pode realizar numa determinada base se essa exigência é o sintoma de que a base não está em ordem?”, questiona Brecht numa nota encontrada no espólio. Na adaptação que faz da peça de Shakespeare, a actualização reside fundamentalmente neste novo olhar sobre a fábula em que se reconhece a influência do estudo do marxismo. Mais motivado pelo trabalho de adaptação de A mãe de Gorki, cujos ensaios começam em Dezembro de 1931, Brecht não conclui a adaptação da peça de Shakespeare e o espectáculo no Volksbühne não se realiza. Embora o texto tenha ficado incompleto (existem cinco cenas do 1º acto, três cenas do 2º e uma cena do 4º e do 5º acto), o resultado desta fase de trabalho, em que Brecht observa a estrutura e a linha da fábula do original de Shakespeare, apresenta-se como uma primeira versão, sem título, de As cabeças redondas e as cabeça bicudas.
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Na elaboração da segunda versão, o primeiro texto completo de As cabeças redondas e bicudas, Brecht conta com a colaboração de Elisabeth Hauptmann, Emil Hesse-Burri, Hermann Borchardt e Margarete Steffin, uma jovem actriz muito culta, do meio operário, por quem se apaixona nos ensaios de A mãe e que o irá acompanhar e coadjuvar em todos os trabalhos realizados no exílio na Dinamarca, Suécia e Finlândia. Nesta segunda versão, realizada em 1932, num ambiente social e político cada vez mais conturbado devido ao avanço do nazismo, a figura de Angelo (agora apelidado de Angelas) adquire os traços de um demagogo semelhante a Hitler. Para escamotear a crise económica, que tenta resolver também através da cobrança de um imposto sobre o sal, Angelas divide a população em duas raças: os tchuchos, a população primitiva, os bons, com cabeças redondas, e os tchichos, a população imigrada, os maus, com cabeças bicudas. A introdução do movimento da Foice, que, seguindo o modelo soviético, procura organizar uma revolta dos rendeiros contra os proprietários das terras, e a acção em torno do rendeiro Callas, que se desliga do movimento da Foice e se deixa iludir pela demagogia dos discursos do governante, reforçam a perspectiva de que a teoria da raça aplicada por Angelas é um meio demagógico para encobrir as relações de propriedade e a luta entre as classes. Embora com o paralelismo com a figura de Hitler e a introdução da ideologia da raça a peça se afaste decisivamente do original de Shakespeare e se transforme numa peça autónoma em que Brecht trabalha, pela primeira vez, a temática do fascismo, os esboços da segunda versão reflectem, nos seus vários títulos, ainda a adaptação que lhe serviu de ponto de partida: Medida por medida ou O imposto sobre o sal. De Brecht segundo Shakespeare ou Os ricos dão-se bem. De Brecht segundo Shakespeare. O título completo da segunda versão, que é publicada como versão de palco no fim de 1932, mas não chega a ser publicada em 1933, já se aproxima do título definitivo: As cabeças bicudas e as cabeças redondas ou Os ricos dão-se bem. Esta versão, incluída juntamente com a última versão na actual edição das obras completas, abre com uma pequena nota em que Brecht faz o ponto da situação relativamente à peça de Shakespeare: “Esta peça de teatro surgiu de conversas que tinham como objectivo uma adaptação cénica de Medida por medida de Shakespeare. O plano de uma renovação de Medida por medida foi abandonado no decurso do trabalho”. (GBA, 4, 8)
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Interessado em promover a encenação da peça, Brecht enviaa de Svendborg a Ernst Josef Aufricht em Paris, a Tretiakov e a Piscator em Moscovo e a outros amigos e conhecidos em Londres, Zurique e Nova Iorque, mas nenhuma dessas possibilidades de encenação se realizam. O primeiro projecto concreto de representação da peça acaba por surgir em Copenhaga, quando o encenador Per Knutzon se propõe levá-la à cena no Teatro Dagmar na Primavera de 1934. Para esse projecto, Brecht retrabalha o texto da segunda versão com Margarete Steffin e Hanns Eisler e cria a terceira versão, agora com o título As cabeças redondas e as cabeças bicudas, que se distingue da versão anterior sobretudo nos seguintes aspectos: as quinze cenas, que na segunda versão quebraram a divisão em actos ainda conservada na primeira versão, são reduzidas às onze cenas que a peça manterá até à última versão, são acrescentadas dez baladas e canções, cuja música Hanns Eisler se compromete a compor e a figura de Angelas, agora chamado Angelo Iberin, passa a agir não apenas a mando do vice-rei ausente, mas também da tropa de choque dos Huas em cujo comandante Zazarante se reconhecem traços de Röhm, o chefe da SA. Para a publicação da segunda versão em 1933, na edição das obras em curso denominada Versuche [Ensaios, experiências, tentativas], Brecht classificara já o género desta sua peça como um “conto de horror”. A função de parábola que atribui à peça será acentuada nas versões posteriores. Como comparação subentendida, empregue para explicar uma coisa ou uma ideia abstracta pela sua semelhança com outras mais conhecidas e concretas, a parábola adequa-se, por um lado, à linguagem do teatro épico, nomeadamente à criação de efeitos de estranhamento, uma vez que não pretende reproduzir a realidade como um espelho num registo naturalista, e, por outro, apresenta-se como uma forma de comunicação inteligente e astuta, capaz de iludir a censura e permitir a difusão da “verdade” junto do público. Apesar de a tradução estar praticamente concluída em Abril de 1934 de modo a se poder programar o início dos ensaios, o projecto acaba por não se realizar, fundamentalmente por duas razões: uma das razões é o facto de Hanns Eisler não se poder deslocar nessa altura a Copenhaga para apresentar a partitura e a outra são os receios manifestados pelos financiadores do espectáculo. Enquanto os financiadores dos círculos judeus temem o tratamento da chamada questão
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Na elaboração da segunda versão, o primeiro texto completo de As cabeças redondas e bicudas, Brecht conta com a colaboração de Elisabeth Hauptmann, Emil Hesse-Burri, Hermann Borchardt e Margarete Steffin, uma jovem actriz muito culta, do meio operário, por quem se apaixona nos ensaios de A mãe e que o irá acompanhar e coadjuvar em todos os trabalhos realizados no exílio na Dinamarca, Suécia e Finlândia. Nesta segunda versão, realizada em 1932, num ambiente social e político cada vez mais conturbado devido ao avanço do nazismo, a figura de Angelo (agora apelidado de Angelas) adquire os traços de um demagogo semelhante a Hitler. Para escamotear a crise económica, que tenta resolver também através da cobrança de um imposto sobre o sal, Angelas divide a população em duas raças: os tchuchos, a população primitiva, os bons, com cabeças redondas, e os tchichos, a população imigrada, os maus, com cabeças bicudas. A introdução do movimento da Foice, que, seguindo o modelo soviético, procura organizar uma revolta dos rendeiros contra os proprietários das terras, e a acção em torno do rendeiro Callas, que se desliga do movimento da Foice e se deixa iludir pela demagogia dos discursos do governante, reforçam a perspectiva de que a teoria da raça aplicada por Angelas é um meio demagógico para encobrir as relações de propriedade e a luta entre as classes. Embora com o paralelismo com a figura de Hitler e a introdução da ideologia da raça a peça se afaste decisivamente do original de Shakespeare e se transforme numa peça autónoma em que Brecht trabalha, pela primeira vez, a temática do fascismo, os esboços da segunda versão reflectem, nos seus vários títulos, ainda a adaptação que lhe serviu de ponto de partida: Medida por medida ou O imposto sobre o sal. De Brecht segundo Shakespeare ou Os ricos dão-se bem. De Brecht segundo Shakespeare. O título completo da segunda versão, que é publicada como versão de palco no fim de 1932, mas não chega a ser publicada em 1933, já se aproxima do título definitivo: As cabeças bicudas e as cabeças redondas ou Os ricos dão-se bem. Esta versão, incluída juntamente com a última versão na actual edição das obras completas, abre com uma pequena nota em que Brecht faz o ponto da situação relativamente à peça de Shakespeare: “Esta peça de teatro surgiu de conversas que tinham como objectivo uma adaptação cénica de Medida por medida de Shakespeare. O plano de uma renovação de Medida por medida foi abandonado no decurso do trabalho”. (GBA, 4, 8)
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Interessado em promover a encenação da peça, Brecht enviaa de Svendborg a Ernst Josef Aufricht em Paris, a Tretiakov e a Piscator em Moscovo e a outros amigos e conhecidos em Londres, Zurique e Nova Iorque, mas nenhuma dessas possibilidades de encenação se realizam. O primeiro projecto concreto de representação da peça acaba por surgir em Copenhaga, quando o encenador Per Knutzon se propõe levá-la à cena no Teatro Dagmar na Primavera de 1934. Para esse projecto, Brecht retrabalha o texto da segunda versão com Margarete Steffin e Hanns Eisler e cria a terceira versão, agora com o título As cabeças redondas e as cabeças bicudas, que se distingue da versão anterior sobretudo nos seguintes aspectos: as quinze cenas, que na segunda versão quebraram a divisão em actos ainda conservada na primeira versão, são reduzidas às onze cenas que a peça manterá até à última versão, são acrescentadas dez baladas e canções, cuja música Hanns Eisler se compromete a compor e a figura de Angelas, agora chamado Angelo Iberin, passa a agir não apenas a mando do vice-rei ausente, mas também da tropa de choque dos Huas em cujo comandante Zazarante se reconhecem traços de Röhm, o chefe da SA. Para a publicação da segunda versão em 1933, na edição das obras em curso denominada Versuche [Ensaios, experiências, tentativas], Brecht classificara já o género desta sua peça como um “conto de horror”. A função de parábola que atribui à peça será acentuada nas versões posteriores. Como comparação subentendida, empregue para explicar uma coisa ou uma ideia abstracta pela sua semelhança com outras mais conhecidas e concretas, a parábola adequa-se, por um lado, à linguagem do teatro épico, nomeadamente à criação de efeitos de estranhamento, uma vez que não pretende reproduzir a realidade como um espelho num registo naturalista, e, por outro, apresenta-se como uma forma de comunicação inteligente e astuta, capaz de iludir a censura e permitir a difusão da “verdade” junto do público. Apesar de a tradução estar praticamente concluída em Abril de 1934 de modo a se poder programar o início dos ensaios, o projecto acaba por não se realizar, fundamentalmente por duas razões: uma das razões é o facto de Hanns Eisler não se poder deslocar nessa altura a Copenhaga para apresentar a partitura e a outra são os receios manifestados pelos financiadores do espectáculo. Enquanto os financiadores dos círculos judeus temem o tratamento da chamada questão
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judaica, outros temem que a censura dinamarquesa venha a proibir o espectáculo devido às alusões à Alemanha de Hitler. Em Maio de 1934, Brecht responde a esses receios numa carta dirigida ao encenador Per Knutzon: [A peça] não tem de certeza o efeito de despoletar uma discussão sobre a questão judaica. Isso só aconteceria se apresentasse os sofrimentos injustificados dos judeus. O que ela apresenta é que aquilo que é “judeu”, na utilização política da questão da raça pelo nacional-socialismo (e por outros sistemas reaccionários, por exemplo, o antigo czarismo, o pilsudskismo), não tem importância absolutamente nenhuma. O público não vai de modo algum dizer: os cabeça bicudas são bons ou são maus, é bem feito ou não há direito, mas: não há realmente diferenças. Se a peça for representada como deve ser, as pessoas vão rir e isso purifica, em todo o caso, a situação. Seja como for, tudo o que é especificamente judeu foi evitado. Passados 10 minutos já só se vai ver cabeças redondas e bicudas e rir como se o novo governante dividisse a sério as pessoas em ciclistas e peões. […] No palco, a peça vai resultar, como espero, mais como um conto indiano à la “Vasantasena”, suave e a troçar um pouco da simplicidade humana. A música vai contribuir muito para isso. Não há, por exemplo, uma única canção sobre o problema da raça., nós nem pensámos nisso! Como socialista, o problema da raça não me diz absolutamente nada; no palco, tudo o que tiver a ver com isso vai resultar cómico. O que vai resultar sério é a questão social. Na música é onde isso se vê melhor. (GBA, 28, 414) A música só será ouvida dois anos mais tarde, quando o projecto de encenação finalmente se concretiza e o espectáculo estreia, em 4 de Novembro de 1936, no Teatro Riddersalen em Copenhaga. Distribuídas como separadores ao longo da peça, de acordo com a função atribuída à música no teatro épico, as canções e as baladas caracterizam os diversos grupos sociais e parodiam, tanto ao nível do texto como da música, que cita cânticos religiosos, canções populares e ritmos de dança como o foxtrot, a “mística podre” da retórica da propaganda nazi. Devido à escassez de meios do Teatro Riddersalen, a instrumentação é feita apenas por dois pianos. Tratando-se de um teatro experimental, dirigido pelo encenador Per Knutzon, Brecht tem a possibilidade de modificar o texto durante os ensaios e de intervir na encenação, imprimindo-lhe uma série de efeitos de estranhamento e outros artifícios do teatro épico, como descreve depois com pormenor em Anmerkung zu “Die Spitzköpfe und die Rundköpfe” Beschreibung der Kopenha-
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gener Uraufführung [Nota a “As cabeças bicudas e as cabeças redondas” Descrição da estreia absoluta em Copenhaga] (cf. GBA, 24, 207-219) Na reformulação do texto para esta encenação, da qual resulta a quarta versão da peça, Brecht reforça a dimensão ficcional e alegórica da parábola com a introdução de um prólogo em que a figura do director do teatro, acompanhado pelos intérpretes, se dirige ao público, sublinhando a ficcionalidade da história que lhe irá ser contada. A simplificação narrativa própria do modelo da parábola permite-lhe, para além disso, acentuar os contornos dos conflitos sociais. Como salientara na carta a Per Knutzon, mais do que a ideologia fascista importava-lhe expor na peça o modo como essa ideologia, aqui apresentada na teoria da raça, era utilizada para encobrir as questões sociais. Nesse sentido, poder-se-ia interpretar o próprio título, As cabeças redondas e as cabeças bicudas, como artifício irónico, propagandístico ou mesmo publicitário da manobra com que os nazis procuram encobrir o fulcro da questão, referido apenas no subtítulo, ou seja, que Os ricos dão-se bem. Essa função da teoria da raça torna-se especialmente clara nas duas cenas de tribunal colocadas, em contraponto, no centro da acção: no primeiro processo, o proprietário de Guzman, um tchicho, é condenado à morte, alegadamente por razões rácicas, ou seja, por ter seduzido Nanna, uma tchucha, filha do rendeiro Callas; no segundo processo, repõe-se a ordem, retirando ao rendeiro Callas os cavalos que eram a sua fonte económica, o que para ele equivale a uma condenação à morte. A solução encontrada para ambos os casos revela, mais uma vez e de forma caricata, a verdadeira natureza da luta de classes que faz com que os pobres tchuchos sejam levados a rebaixarem-se e sacrificarem-se pelos tchichos ricos. Na nota já referida, o absurdo da situação é resumido do seguinte modo: “Nanna Callas está disposta a prostituir-se, em troca de pagamento, para salvar o proprietário da terra que foi condenado à morte, porque a prostituiu; […] Em troca do abatimento da renda, Callas, o rendeiro de cabeça redonda, dispõe-se a correr o risco de se deixar enforcar em vez do proprietário da terra de cabeça bicuda.” (GBA, 24, 214)
Na nota escrita em Outubro de 1936 para o jornal do Teatro Riddersalen, por ocasião da estreia mundial da peça, Brecht volta
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judaica, outros temem que a censura dinamarquesa venha a proibir o espectáculo devido às alusões à Alemanha de Hitler. Em Maio de 1934, Brecht responde a esses receios numa carta dirigida ao encenador Per Knutzon: [A peça] não tem de certeza o efeito de despoletar uma discussão sobre a questão judaica. Isso só aconteceria se apresentasse os sofrimentos injustificados dos judeus. O que ela apresenta é que aquilo que é “judeu”, na utilização política da questão da raça pelo nacional-socialismo (e por outros sistemas reaccionários, por exemplo, o antigo czarismo, o pilsudskismo), não tem importância absolutamente nenhuma. O público não vai de modo algum dizer: os cabeça bicudas são bons ou são maus, é bem feito ou não há direito, mas: não há realmente diferenças. Se a peça for representada como deve ser, as pessoas vão rir e isso purifica, em todo o caso, a situação. Seja como for, tudo o que é especificamente judeu foi evitado. Passados 10 minutos já só se vai ver cabeças redondas e bicudas e rir como se o novo governante dividisse a sério as pessoas em ciclistas e peões. […] No palco, a peça vai resultar, como espero, mais como um conto indiano à la “Vasantasena”, suave e a troçar um pouco da simplicidade humana. A música vai contribuir muito para isso. Não há, por exemplo, uma única canção sobre o problema da raça., nós nem pensámos nisso! Como socialista, o problema da raça não me diz absolutamente nada; no palco, tudo o que tiver a ver com isso vai resultar cómico. O que vai resultar sério é a questão social. Na música é onde isso se vê melhor. (GBA, 28, 414) A música só será ouvida dois anos mais tarde, quando o projecto de encenação finalmente se concretiza e o espectáculo estreia, em 4 de Novembro de 1936, no Teatro Riddersalen em Copenhaga. Distribuídas como separadores ao longo da peça, de acordo com a função atribuída à música no teatro épico, as canções e as baladas caracterizam os diversos grupos sociais e parodiam, tanto ao nível do texto como da música, que cita cânticos religiosos, canções populares e ritmos de dança como o foxtrot, a “mística podre” da retórica da propaganda nazi. Devido à escassez de meios do Teatro Riddersalen, a instrumentação é feita apenas por dois pianos. Tratando-se de um teatro experimental, dirigido pelo encenador Per Knutzon, Brecht tem a possibilidade de modificar o texto durante os ensaios e de intervir na encenação, imprimindo-lhe uma série de efeitos de estranhamento e outros artifícios do teatro épico, como descreve depois com pormenor em Anmerkung zu “Die Spitzköpfe und die Rundköpfe” Beschreibung der Kopenha-
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gener Uraufführung [Nota a “As cabeças bicudas e as cabeças redondas” Descrição da estreia absoluta em Copenhaga] (cf. GBA, 24, 207-219) Na reformulação do texto para esta encenação, da qual resulta a quarta versão da peça, Brecht reforça a dimensão ficcional e alegórica da parábola com a introdução de um prólogo em que a figura do director do teatro, acompanhado pelos intérpretes, se dirige ao público, sublinhando a ficcionalidade da história que lhe irá ser contada. A simplificação narrativa própria do modelo da parábola permite-lhe, para além disso, acentuar os contornos dos conflitos sociais. Como salientara na carta a Per Knutzon, mais do que a ideologia fascista importava-lhe expor na peça o modo como essa ideologia, aqui apresentada na teoria da raça, era utilizada para encobrir as questões sociais. Nesse sentido, poder-se-ia interpretar o próprio título, As cabeças redondas e as cabeças bicudas, como artifício irónico, propagandístico ou mesmo publicitário da manobra com que os nazis procuram encobrir o fulcro da questão, referido apenas no subtítulo, ou seja, que Os ricos dão-se bem. Essa função da teoria da raça torna-se especialmente clara nas duas cenas de tribunal colocadas, em contraponto, no centro da acção: no primeiro processo, o proprietário de Guzman, um tchicho, é condenado à morte, alegadamente por razões rácicas, ou seja, por ter seduzido Nanna, uma tchucha, filha do rendeiro Callas; no segundo processo, repõe-se a ordem, retirando ao rendeiro Callas os cavalos que eram a sua fonte económica, o que para ele equivale a uma condenação à morte. A solução encontrada para ambos os casos revela, mais uma vez e de forma caricata, a verdadeira natureza da luta de classes que faz com que os pobres tchuchos sejam levados a rebaixarem-se e sacrificarem-se pelos tchichos ricos. Na nota já referida, o absurdo da situação é resumido do seguinte modo: “Nanna Callas está disposta a prostituir-se, em troca de pagamento, para salvar o proprietário da terra que foi condenado à morte, porque a prostituiu; […] Em troca do abatimento da renda, Callas, o rendeiro de cabeça redonda, dispõe-se a correr o risco de se deixar enforcar em vez do proprietário da terra de cabeça bicuda.” (GBA, 24, 214)
Na nota escrita em Outubro de 1936 para o jornal do Teatro Riddersalen, por ocasião da estreia mundial da peça, Brecht volta
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Vera San Payo de Lemos
a apresentá-la, certamente para criar um terreno favorável à sua recepção, como “uma nova adaptação literária da velha fábula que Shakespeare utilizou na sua peça Medida por medida. Medida por medida é para muitos a mais filosófica de todas as obras shakespearianas, é sem dúvida a mais progressista.” (GBA, 24, 203). Numa outra nota, escrita depois da estreia, a forma da parábola é explicitamente referida como um meio de contornar a censura: “A forma da parábola possibilitou, apesar da censura existente na Dinamarca, levar à cena uma peça anti-nazi num pequeno país que faz fronteira com a Alemanha e entretém com Alemanha relações comerciais importantes para a sua sobrevivência.” (GBA, 24, 205) Anunciado como uma “comédia satírico-grotesca”, o espectáculo é recebido pelo público da estreia com agrado, mas as críticas são reservadas ou abertamente violentas, acusando Brecht de sectarismo. Um grupo de fascistas locais manifesta-se à frente do teatro, exigindo a suspensão do espectáculo. Chamado a intervir, o ministro da Justiça pronuncia-se a favor da manutenção da peça em cena em nome da liberdade de expressão, mas a peça acaba por ser retirada de cartaz depois de vinte e uma representações. Uns meses depois, numa carta dirigida a Arnold Zweig, em 18 de Fevereiro de 1937, Brecht avalia o espectáculo como “uma experiência muito interessante”, mas reconhece que para o público, tanto o de Copenhaga como, visto à distância, também o de Berlim, esta forma de teatro é estranha e difícil de compreender. (cf. GBA, 29, 10) Pela descrição do espectáculo, feita na nota atrás referida, para essa estranheza e dificuldade terão sem dúvida contribuído a acentuação das contradições no comportamento das personagens e a mutabilidade das suas atitudes nas diferentes situações assim como todo um conjunto de técnicas anti-ilusionistas do teatro épico: a redução do cenário a elementos simbólicos e socialmente significativos, os projectores a descoberto, a iluminação constante dos dois pianos, com o mecanismo à vista, a utilização não-naturalista de sons e ruídos, o aproveitamento ocasional da plateia como espaço de representação e a caracterização exagerada das figuras (“As cabeças tinham aproximadamente 20 cm de altura. As máscaras mostravam deformações acentuadas dos narizes, orelhas, cabelos, queixos. As mãos e os pés dos Huas eram gigantescos.”). (cf. GBA, 24, 207-219)
Introdução
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Para a publicação de As cabeças redondas e as cabeças bicudas em 1938, Brecht retrabalha a peça numa quinta e última versão com base na experiência do espectáculo de estreia em Copenhaga. Em carta a Otto Bork, escrita em 30 de Novembro de 1936, as modificações e os melhoramentos que se apressa a fazer são fundamentados com o facto de a actualidade dos assuntos tratados ter suscitado “uma série de malentendidos políticos, etc.” que é muito importante esclarecer. (cf. GBA, 28, 566) Como a Nota a “As cabeças bicudas e as cabeças redondas” Descrição da estreia absoluta em Copenhaga documenta, as alterações procuram acentuar as características da parábola e esbater comparações demasiado directas com a actualidade política na Alemanha. De acordo com os princípios do teatro épico, pretendia-se assim quebrar os efeitos tradicionais da ilusão teatral e apelar ao poder de abstracção e à atitude reflexiva do espectador. O facto de as técnicas do teatro épico proporcionarem, ao mesmo tempo, um disfarce para iludir a censura torna-se especialmente claro no apontamento relativo à construção e caracterização da personagem de Angelo Iberin: “Angelo Iberin não foi caracterizado com nenhuma semelhança exterior a Hitler. Já o facto de ele ser, de certo modo, uma reprodução muito idealizada de um profeta da raça (o que para a parábola é suficiente) impediu também que isso se fizesse onde a polícia não o teria impedido. No entanto, foram utilizados alguns gestos, em parte baseados em material fotográfico.” (GBA, 24, 210-211)
A atenção à actualidade política na Alemanha, seguida através da rádio e acompanhada pela compilação de fotografias e recortes de jornais, mantém-se ao longo do exílio, como se verifica particularmente no Diário, no Manual de guerra alemão, nos vários textos teóricos sobre o fascismo e em peças como Terror e miséria do III Reich, A resistível ascensão de Arturo Ui e Schweyk na Segunda Guerra Mundial. Depois da encenação e da reformulação de As cabeças redondas e as cabeças bicudas realizadas na Dinamarca Brecht não volta a trabalhar na peça que, durante a sua vida, também não volta a ser representada. Hanns Eisler retrabalha a partitura para a primeira encenação alemã da peça que estreia em 21 de Outubro de 1962 no Landestheater Hannover, pouco depois da sua morte. Num ambiente de tensão política, marcado pela construção recente
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a apresentá-la, certamente para criar um terreno favorável à sua recepção, como “uma nova adaptação literária da velha fábula que Shakespeare utilizou na sua peça Medida por medida. Medida por medida é para muitos a mais filosófica de todas as obras shakespearianas, é sem dúvida a mais progressista.” (GBA, 24, 203). Numa outra nota, escrita depois da estreia, a forma da parábola é explicitamente referida como um meio de contornar a censura: “A forma da parábola possibilitou, apesar da censura existente na Dinamarca, levar à cena uma peça anti-nazi num pequeno país que faz fronteira com a Alemanha e entretém com Alemanha relações comerciais importantes para a sua sobrevivência.” (GBA, 24, 205) Anunciado como uma “comédia satírico-grotesca”, o espectáculo é recebido pelo público da estreia com agrado, mas as críticas são reservadas ou abertamente violentas, acusando Brecht de sectarismo. Um grupo de fascistas locais manifesta-se à frente do teatro, exigindo a suspensão do espectáculo. Chamado a intervir, o ministro da Justiça pronuncia-se a favor da manutenção da peça em cena em nome da liberdade de expressão, mas a peça acaba por ser retirada de cartaz depois de vinte e uma representações. Uns meses depois, numa carta dirigida a Arnold Zweig, em 18 de Fevereiro de 1937, Brecht avalia o espectáculo como “uma experiência muito interessante”, mas reconhece que para o público, tanto o de Copenhaga como, visto à distância, também o de Berlim, esta forma de teatro é estranha e difícil de compreender. (cf. GBA, 29, 10) Pela descrição do espectáculo, feita na nota atrás referida, para essa estranheza e dificuldade terão sem dúvida contribuído a acentuação das contradições no comportamento das personagens e a mutabilidade das suas atitudes nas diferentes situações assim como todo um conjunto de técnicas anti-ilusionistas do teatro épico: a redução do cenário a elementos simbólicos e socialmente significativos, os projectores a descoberto, a iluminação constante dos dois pianos, com o mecanismo à vista, a utilização não-naturalista de sons e ruídos, o aproveitamento ocasional da plateia como espaço de representação e a caracterização exagerada das figuras (“As cabeças tinham aproximadamente 20 cm de altura. As máscaras mostravam deformações acentuadas dos narizes, orelhas, cabelos, queixos. As mãos e os pés dos Huas eram gigantescos.”). (cf. GBA, 24, 207-219)
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Para a publicação de As cabeças redondas e as cabeças bicudas em 1938, Brecht retrabalha a peça numa quinta e última versão com base na experiência do espectáculo de estreia em Copenhaga. Em carta a Otto Bork, escrita em 30 de Novembro de 1936, as modificações e os melhoramentos que se apressa a fazer são fundamentados com o facto de a actualidade dos assuntos tratados ter suscitado “uma série de malentendidos políticos, etc.” que é muito importante esclarecer. (cf. GBA, 28, 566) Como a Nota a “As cabeças bicudas e as cabeças redondas” Descrição da estreia absoluta em Copenhaga documenta, as alterações procuram acentuar as características da parábola e esbater comparações demasiado directas com a actualidade política na Alemanha. De acordo com os princípios do teatro épico, pretendia-se assim quebrar os efeitos tradicionais da ilusão teatral e apelar ao poder de abstracção e à atitude reflexiva do espectador. O facto de as técnicas do teatro épico proporcionarem, ao mesmo tempo, um disfarce para iludir a censura torna-se especialmente claro no apontamento relativo à construção e caracterização da personagem de Angelo Iberin: “Angelo Iberin não foi caracterizado com nenhuma semelhança exterior a Hitler. Já o facto de ele ser, de certo modo, uma reprodução muito idealizada de um profeta da raça (o que para a parábola é suficiente) impediu também que isso se fizesse onde a polícia não o teria impedido. No entanto, foram utilizados alguns gestos, em parte baseados em material fotográfico.” (GBA, 24, 210-211)
A atenção à actualidade política na Alemanha, seguida através da rádio e acompanhada pela compilação de fotografias e recortes de jornais, mantém-se ao longo do exílio, como se verifica particularmente no Diário, no Manual de guerra alemão, nos vários textos teóricos sobre o fascismo e em peças como Terror e miséria do III Reich, A resistível ascensão de Arturo Ui e Schweyk na Segunda Guerra Mundial. Depois da encenação e da reformulação de As cabeças redondas e as cabeças bicudas realizadas na Dinamarca Brecht não volta a trabalhar na peça que, durante a sua vida, também não volta a ser representada. Hanns Eisler retrabalha a partitura para a primeira encenação alemã da peça que estreia em 21 de Outubro de 1962 no Landestheater Hannover, pouco depois da sua morte. Num ambiente de tensão política, marcado pela construção recente
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do Muro de Berlim, a apresentação, na República Federal da Alemanha, de uma peça de dois autores com um passado assumidamente antifascista e que depois da guerra tinham fixado residência na República Democrática Alemã é vista como uma ousadia. Mesmo a eliminação de passagens e canções consideradas demasiado críticas não chega para retirar à parábola o potencial corrosivo que os dois autores lhe tinham atribuído. UM BAILADO CANTADO Nas críticas ao espectáculo de As cabeças redondas e as cabeças bicudas em Copenhaga, não houve qualquer referência à música de Hanns Eisler, mas acusou-se Brecht de ser um autor menor que devia a sua notoriedade à colaboração com Kurt Weill, principalmente em A ópera de três vinténs (cf. Monika Wyss, Brecht in der Kritik. Rezensionen aller Brecht-Uraufführungen sowie ausgewählter deutsch-und fremdsprachiger Premieren, München, Kindler Verlag, 1977, pp. 170-176). Tal como Brecht e Eisler, também Kurt Weill partira para o exílio depois da ascensão de Hitler ao poder. Em 23 de Março de 1933, rumara a Paris, onde era reconhecido como um compositor de prestígio, tinha contactos para trabalhar no cinema com René Clair e Jean Renoir e rapidamente obteve a encomenda do que viria a ser Os sete pecados mortais. O magnata e grande apreciador de arte inglês Edward James pede-lhe para compor um “ballet chanté” para uma bailarina, a sua mulher Tilly Losch, e uma cantora amiga, Lotte Lenya, mulher de Weill. Esse “ballet chanté” deveria ser apresentado pelo grupo Les ballets 1933, recém-fundado em Paris por Georges Balanchine e Boris Kochno, antigos colaboradores de Diaghilev. Desgastado pelos pequenos e grandes conflitos com Brecht nos últimos trabalhos em Berlim, Weill propõe Jean Cocteau como libretista, mas quando este declina o convite, por falta de tempo, aceita a sugestão de James e contacta com Brecht para a realização desse trabalho. Em meados de Abril de 1933, Brecht desloca-se a Paris e, em duas semanas, desenvolve com Weill a obra a que dão o título Os sete pecados mortais. As premissas colocadas por James vão ao encontro de um tema que Brecht tinha esboçado em Berlim, por volta de 1930, para o projecto de uma peça com o título Die Ware Liebe [A mercadoria amor, que contém também um jogo sonoro, irónico, com Die
Introdução
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wahre Liebe, O verdadeiro amor]. Na figura de uma prostituta, que é simultaneamente sujeito e objecto de uma transacção comercial, vendedora e mercadoria no mercado do amor, pretendia problematizar a divisão e alienação do indivíduo numa sociedade regida pelo poder do dinheiro. Este projecto será retomado e desenvolvido entre 1939 e 1941 na peça A boa alma de Sé-Chuão, na figura de Shen Te, uma prostituta bondosa e idealista, que se vê obrigada a desdobrar-se no seu impiedoso primo, um homem de negócios chamado Shui Ta, de modo a poder manter a loja que constitui a nova base da sua subsistência e lhe permite continuar a praticar o bem e tentar melhorar o mundo em que vive. O tema da personalidade dividida ou do desdobramento da personalidade adequa-se à encomenda de um bailado cantado em que o papel principal deveria ser repartido equitativamente por uma bailarina e uma cantora e é assim que, antes de Shen Te e Shui Ta em A boa alma de Sé-Chuão, Brecht cria em Os sete pecados mortais a figura de Anna I e Anna II, duas irmãs que se apresentam como sendo, na realidade, uma só pessoa:”No fundo não somos duas pessoas/Mas apenas uma/Chamamo-nos as duas Anna/Temos um passado e um futuro/Um coração e uma conta bancária/E cada uma só faz aquilo que é bom para a outra”. Anna I, a cantora, é a racional, a gestora da carreira de Anna II, a bailarina, a emocional. Como instância reguladora, Anna I intervém para corrigir os impulsos de Anna II, a sua irresistível tentação de cair em pecado e se desviar do caminho traçado, o caminho do emigrante que abandona a sua terra e parte para as grandes cidades para ganhar dinheiro e construir no regresso uma casinha para si e para a sua família. Estruturado como um pequeno drama em estações ou uma pequena peça musical em quadros ou números, à semelhança do que Brecht e Weill tinham realizado em Berlim nas peças didácticas O voo de Lindbergh e O que diz sim, o bailado cantado Os sete pecados mortais narra, tal como essas duas peças, a história de uma viagem. Partindo de Louisiana, a sua terra natal, rumo às chamadas grandes cidades, situadas numa América ficcional em que Brecht localiza alguns dos seus trabalhos dos anos 20, como Na selva das cidades, Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, Santa Joana dos Matadouros ou os fragmentos Dan Drew e Joe Fleischhacker, Anna I e Anna II prevêem ter de ficar sete anos fora para conseguir realizar o seu projecto. A cada estação, número ou quadro corresponde uma cidade e um
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do Muro de Berlim, a apresentação, na República Federal da Alemanha, de uma peça de dois autores com um passado assumidamente antifascista e que depois da guerra tinham fixado residência na República Democrática Alemã é vista como uma ousadia. Mesmo a eliminação de passagens e canções consideradas demasiado críticas não chega para retirar à parábola o potencial corrosivo que os dois autores lhe tinham atribuído. UM BAILADO CANTADO Nas críticas ao espectáculo de As cabeças redondas e as cabeças bicudas em Copenhaga, não houve qualquer referência à música de Hanns Eisler, mas acusou-se Brecht de ser um autor menor que devia a sua notoriedade à colaboração com Kurt Weill, principalmente em A ópera de três vinténs (cf. Monika Wyss, Brecht in der Kritik. Rezensionen aller Brecht-Uraufführungen sowie ausgewählter deutsch-und fremdsprachiger Premieren, München, Kindler Verlag, 1977, pp. 170-176). Tal como Brecht e Eisler, também Kurt Weill partira para o exílio depois da ascensão de Hitler ao poder. Em 23 de Março de 1933, rumara a Paris, onde era reconhecido como um compositor de prestígio, tinha contactos para trabalhar no cinema com René Clair e Jean Renoir e rapidamente obteve a encomenda do que viria a ser Os sete pecados mortais. O magnata e grande apreciador de arte inglês Edward James pede-lhe para compor um “ballet chanté” para uma bailarina, a sua mulher Tilly Losch, e uma cantora amiga, Lotte Lenya, mulher de Weill. Esse “ballet chanté” deveria ser apresentado pelo grupo Les ballets 1933, recém-fundado em Paris por Georges Balanchine e Boris Kochno, antigos colaboradores de Diaghilev. Desgastado pelos pequenos e grandes conflitos com Brecht nos últimos trabalhos em Berlim, Weill propõe Jean Cocteau como libretista, mas quando este declina o convite, por falta de tempo, aceita a sugestão de James e contacta com Brecht para a realização desse trabalho. Em meados de Abril de 1933, Brecht desloca-se a Paris e, em duas semanas, desenvolve com Weill a obra a que dão o título Os sete pecados mortais. As premissas colocadas por James vão ao encontro de um tema que Brecht tinha esboçado em Berlim, por volta de 1930, para o projecto de uma peça com o título Die Ware Liebe [A mercadoria amor, que contém também um jogo sonoro, irónico, com Die
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wahre Liebe, O verdadeiro amor]. Na figura de uma prostituta, que é simultaneamente sujeito e objecto de uma transacção comercial, vendedora e mercadoria no mercado do amor, pretendia problematizar a divisão e alienação do indivíduo numa sociedade regida pelo poder do dinheiro. Este projecto será retomado e desenvolvido entre 1939 e 1941 na peça A boa alma de Sé-Chuão, na figura de Shen Te, uma prostituta bondosa e idealista, que se vê obrigada a desdobrar-se no seu impiedoso primo, um homem de negócios chamado Shui Ta, de modo a poder manter a loja que constitui a nova base da sua subsistência e lhe permite continuar a praticar o bem e tentar melhorar o mundo em que vive. O tema da personalidade dividida ou do desdobramento da personalidade adequa-se à encomenda de um bailado cantado em que o papel principal deveria ser repartido equitativamente por uma bailarina e uma cantora e é assim que, antes de Shen Te e Shui Ta em A boa alma de Sé-Chuão, Brecht cria em Os sete pecados mortais a figura de Anna I e Anna II, duas irmãs que se apresentam como sendo, na realidade, uma só pessoa:”No fundo não somos duas pessoas/Mas apenas uma/Chamamo-nos as duas Anna/Temos um passado e um futuro/Um coração e uma conta bancária/E cada uma só faz aquilo que é bom para a outra”. Anna I, a cantora, é a racional, a gestora da carreira de Anna II, a bailarina, a emocional. Como instância reguladora, Anna I intervém para corrigir os impulsos de Anna II, a sua irresistível tentação de cair em pecado e se desviar do caminho traçado, o caminho do emigrante que abandona a sua terra e parte para as grandes cidades para ganhar dinheiro e construir no regresso uma casinha para si e para a sua família. Estruturado como um pequeno drama em estações ou uma pequena peça musical em quadros ou números, à semelhança do que Brecht e Weill tinham realizado em Berlim nas peças didácticas O voo de Lindbergh e O que diz sim, o bailado cantado Os sete pecados mortais narra, tal como essas duas peças, a história de uma viagem. Partindo de Louisiana, a sua terra natal, rumo às chamadas grandes cidades, situadas numa América ficcional em que Brecht localiza alguns dos seus trabalhos dos anos 20, como Na selva das cidades, Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, Santa Joana dos Matadouros ou os fragmentos Dan Drew e Joe Fleischhacker, Anna I e Anna II prevêem ter de ficar sete anos fora para conseguir realizar o seu projecto. A cada estação, número ou quadro corresponde uma cidade e um
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dos sete pecados mortais: à primeira cidade, a única não nomeada, a preguiça; à segunda, Memphis, o orgulho; à terceira, Los Angeles, a ira; à quarta, Filadélfia, a gula; à quinta, Boston, a luxúria; à sexta, Tennessee, a avareza; à sétima, San Francisco, a inveja. Na partitura, há um prólogo que enuncia o objectivo da viagem e um epílogo que narra o regresso a casa e apresenta na casinha entretanto construída em Louisiana, junto ao Mississipi, a concretização do objectivo. Em cada um dos sete andamentos, que marcam as sete etapas da viagem, Weill cita, adapta e recria, numa mistura com sonoridades sinfónicas, uma forma de música ligeira, como a valsa, o foxtrott, a marcha, o shimmy ou a tarantela, desenvolvendo com grande virtuosismo o estilo que o celebrizara sobretudo com A ópera de três vinténs. À semelhança do processo utilizado em Hauspostille [Sermões domésticos], o primeiro livro de poemas, publicado em 1927, em que as formas dos cânticos protestantes são irreverentemente desconstruídas por conteúdos profanos, Brecht recorre em Os sete pecados mortais ao catálogo dos sete pecados capitais, instituído no século XII pela teologia moral católica, para o secularizar e subverter. O calvário marcado pelas sete cidades e pelos sete pecados não visa a redenção da humanidade nem revela nenhum ideal elevado de sacrifício individual em prol da comunidade, mas apenas a realização do projecto, mais tarde caracterizado como pequeno-burguês, da construção de uma casinha para a família na terra natal. A esta luz, os próprios pecados (ou vícios privados) de Anna II, a artista que se vê transformada em mercadoria, surgem como prováveis virtudes ou ideais que são censurados pelas leis do mercado e pela necessidade de adequação às condições económicas e sociais existentes, aqui apresentadas por Anna I como o preço a pagar para o seu empreendimento individual e familiar ter sucesso. Anna II não pode cometer o pecado do orgulho, que se reflecte no seu desejo de “ser artista e fazer arte em Memphis”, mas tem de se vender e ir ao encontro do desejo do público que pagou para lhe ver o corpo. Do mesmo modo, depois de conseguir um contrato como bailarina em Filadélfia, não pode cometer o pecado da gula e comer a seu bel-prazer, porque a entidade empregadora zela pelo investimento que fez e pesa-a todos os dias para se certificar que a mercadoria não excede os 52 quilos pelos quais foi comprada. No último pecado, o pecado da inveja, resumem-se todos os outros pecados: Anna II é chamada a não invejar aqueles que se podem dar ao luxo de não tra-
Introdução
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balhar e não se vender, de se enfurecer com a brutalidade, se entregar aos prazeres do amor e da comida e ficar com aquilo de que se precisa sem pesos na consciência. Para fundamentar o pedido deste último esforço, Anna I cita a parábola bíblica das virgens prudentes e imprudentes: os pecados são cometidos por gente tonta que, no fim, ficará “tremendo no nada diante de uma porta fechada” enquanto Anna II irá ver o seu esforço recompensado e triunfar. Para além de Anna I, que acompanha de perto a viagem da irmã, também a família, a mãe, o pai e os dois irmãos, que ficaram em Louisiana e a acompanham através de cartas e notícias de jornais, relatam a acção e exercem a função de entidade reguladora nos comentários que vão fazendo, ora expressando os seus temores em relação a possíveis desvios comportamentais de Anna II ora queixando-se do pouco dinheiro que lhes é enviado para a construção da ambicionada casinha junto ao Mississipi. Na partitura, Weill representa a família, inclusive a mãe, por um quarteto de vozes masculinas que recorda, por vezes, o grupo na altura muito popular dos Comedian Harmonists. O humor subtil que pontua a composição das Canções da família contrasta com a tristeza de um leitmotiv que atravessa a linha musical das Canções da irmã, cantadas por Anna I. Ao associar Anna II ao princípio do prazer, às emoções e à afirmação do indivíduo, e Anna I e a família ao princípio da realidade, à razão e às regras da sociedade, seja no espaço privado da família seja no espaço público do mundo do trabalho, Brecht retoma o tema do “acordo”, do apagamento, da dissolução e da morte do indivíduo no confronto com os imperativos da sociedade e do colectivo, tratado de diversos modos nas peças didácticas e também em Um homem é um homem. Um apontamento, conservado no espólio e anterior ao primeiro esboço de Os sete pecados mortais, revela que o ponto de partida de Brecht não foi a conhecida lista dos sete pecados capitais, mas sim uma lista própria, em que se encontram enumerados comportamentos, situações, ideias e valores, entre os quais figuram a pobreza, a doença, o amor verdadeiro, o amor à justiça, a afirmação da verdade, a fidelidade a si próprio, o amor ao próximo, que impedem o indivíduo de singrar na sociedade (cf. GBA, 4, 494). Nesta lista, reconhece-se a influência da leitura de The Fable of the Bees or Private Vices, Publick Benefits, uma obra do médico e escritor inglês Bernard de Mandeville, datada de 1705, que Brecht deve ter conhe-
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dos sete pecados mortais: à primeira cidade, a única não nomeada, a preguiça; à segunda, Memphis, o orgulho; à terceira, Los Angeles, a ira; à quarta, Filadélfia, a gula; à quinta, Boston, a luxúria; à sexta, Tennessee, a avareza; à sétima, San Francisco, a inveja. Na partitura, há um prólogo que enuncia o objectivo da viagem e um epílogo que narra o regresso a casa e apresenta na casinha entretanto construída em Louisiana, junto ao Mississipi, a concretização do objectivo. Em cada um dos sete andamentos, que marcam as sete etapas da viagem, Weill cita, adapta e recria, numa mistura com sonoridades sinfónicas, uma forma de música ligeira, como a valsa, o foxtrott, a marcha, o shimmy ou a tarantela, desenvolvendo com grande virtuosismo o estilo que o celebrizara sobretudo com A ópera de três vinténs. À semelhança do processo utilizado em Hauspostille [Sermões domésticos], o primeiro livro de poemas, publicado em 1927, em que as formas dos cânticos protestantes são irreverentemente desconstruídas por conteúdos profanos, Brecht recorre em Os sete pecados mortais ao catálogo dos sete pecados capitais, instituído no século XII pela teologia moral católica, para o secularizar e subverter. O calvário marcado pelas sete cidades e pelos sete pecados não visa a redenção da humanidade nem revela nenhum ideal elevado de sacrifício individual em prol da comunidade, mas apenas a realização do projecto, mais tarde caracterizado como pequeno-burguês, da construção de uma casinha para a família na terra natal. A esta luz, os próprios pecados (ou vícios privados) de Anna II, a artista que se vê transformada em mercadoria, surgem como prováveis virtudes ou ideais que são censurados pelas leis do mercado e pela necessidade de adequação às condições económicas e sociais existentes, aqui apresentadas por Anna I como o preço a pagar para o seu empreendimento individual e familiar ter sucesso. Anna II não pode cometer o pecado do orgulho, que se reflecte no seu desejo de “ser artista e fazer arte em Memphis”, mas tem de se vender e ir ao encontro do desejo do público que pagou para lhe ver o corpo. Do mesmo modo, depois de conseguir um contrato como bailarina em Filadélfia, não pode cometer o pecado da gula e comer a seu bel-prazer, porque a entidade empregadora zela pelo investimento que fez e pesa-a todos os dias para se certificar que a mercadoria não excede os 52 quilos pelos quais foi comprada. No último pecado, o pecado da inveja, resumem-se todos os outros pecados: Anna II é chamada a não invejar aqueles que se podem dar ao luxo de não tra-
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balhar e não se vender, de se enfurecer com a brutalidade, se entregar aos prazeres do amor e da comida e ficar com aquilo de que se precisa sem pesos na consciência. Para fundamentar o pedido deste último esforço, Anna I cita a parábola bíblica das virgens prudentes e imprudentes: os pecados são cometidos por gente tonta que, no fim, ficará “tremendo no nada diante de uma porta fechada” enquanto Anna II irá ver o seu esforço recompensado e triunfar. Para além de Anna I, que acompanha de perto a viagem da irmã, também a família, a mãe, o pai e os dois irmãos, que ficaram em Louisiana e a acompanham através de cartas e notícias de jornais, relatam a acção e exercem a função de entidade reguladora nos comentários que vão fazendo, ora expressando os seus temores em relação a possíveis desvios comportamentais de Anna II ora queixando-se do pouco dinheiro que lhes é enviado para a construção da ambicionada casinha junto ao Mississipi. Na partitura, Weill representa a família, inclusive a mãe, por um quarteto de vozes masculinas que recorda, por vezes, o grupo na altura muito popular dos Comedian Harmonists. O humor subtil que pontua a composição das Canções da família contrasta com a tristeza de um leitmotiv que atravessa a linha musical das Canções da irmã, cantadas por Anna I. Ao associar Anna II ao princípio do prazer, às emoções e à afirmação do indivíduo, e Anna I e a família ao princípio da realidade, à razão e às regras da sociedade, seja no espaço privado da família seja no espaço público do mundo do trabalho, Brecht retoma o tema do “acordo”, do apagamento, da dissolução e da morte do indivíduo no confronto com os imperativos da sociedade e do colectivo, tratado de diversos modos nas peças didácticas e também em Um homem é um homem. Um apontamento, conservado no espólio e anterior ao primeiro esboço de Os sete pecados mortais, revela que o ponto de partida de Brecht não foi a conhecida lista dos sete pecados capitais, mas sim uma lista própria, em que se encontram enumerados comportamentos, situações, ideias e valores, entre os quais figuram a pobreza, a doença, o amor verdadeiro, o amor à justiça, a afirmação da verdade, a fidelidade a si próprio, o amor ao próximo, que impedem o indivíduo de singrar na sociedade (cf. GBA, 4, 494). Nesta lista, reconhece-se a influência da leitura de The Fable of the Bees or Private Vices, Publick Benefits, uma obra do médico e escritor inglês Bernard de Mandeville, datada de 1705, que Brecht deve ter conhe-
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cido através de O capital de Marx e utiliza para a sua reflexão sobre o comportamento do indivíduo na sociedade. Enquanto Mandeville realça a utilidade dos pecados para o desenvolvimento da sociedade, Brecht interessa-se sobretudo em focar o problema da perspectiva do indivíduo, realçando, especialmente em Vida de Galileu, Mãe Coragem e os seus filhos e A boa alma de Sé-Chuão, os chamados grandes dramas do exílio, quanto o apego a ideais e virtudes se pode revelar nefasto para a sobrevivência do indivíduo na sociedade. Esta temática do confronto do indivíduo com a sociedade, da relação dialéctica entre os ideais e as condições materiais, entre a superstrutura formada pelas ideias e a base económica e social, que surge como um leitmotiv na obra de Brecht, adquire nos tempos sombrios do exílio e da guerra uma acuidade particular, uma vez que contempla uma componente biográfica e se aplica à situação concreta em que se encontram os intelectuais e os artistas antifascistas. Como Brecht sintetiza numa pequena nota, escrita em 1935 e intitulada Der Künstler im Dritten Reich [O artista no Terceiro Reich], o cerne da questão é o seguinte: “O artista no Terceiro Reich tem de escolher entre a prática de duas artes incompatíveis: a de fazer obras de arte e a de continuar vivo”. (GBA, 22.1., 182) O bailado, cantado em alemão, estreia em 7 de Junho de 1933, no Théâtre des Champs-Elysées, com coreografia de Georges Balanchine, cenário de Caspar Neher, encenação de Edward James e direcção musical de Maurice Abravanel, num programa em que são apresentadas cinco outras peças da companhia, com música de Mozart, Tchaikovski, Milhaud, Schubert, Sauguet e Beethoven. Os exilados alemães em Paris e os especialistas consideraram o bailado criado por Brecht e Weill um acontecimento artístico de relevo e louvaram as prestações de Tilly Losch, Lotte Lenya e Caspar Neher, mas a maior parte do público esperava mais de Weill e manifesta, tal como a crítica e os próprios artistas durante os ensaios do espectáculo, estranheza e desconforto tanto em relação à inusitada crítica social como à forma inovadora de um bailado cantado, difícil de classificar, como revelam as designações híbridas de cantata mímica, pantomima balética ou ópera curta com características do teatro épico e do songspiel na base de um bailado que foram propostas mais tarde. Depois da estreia em Paris, o bailado vai em tournée até Londres, onde é apresentado como Anna Anna. Music by Kurt Weill
Introdução
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from the poems of Bert Brecht no Savoy Theatre de 28 de Junho a 15 de Julho de 1933. Publicado em francês e alemão no programa do espectáculo da estreia em Paris, com o título Les sept péchés capitaux. Spectacle sur des poèmes de Bert Brecht. Musique de Kurt Weill. Décor e costumes de Caspard Neher, mas sem a indicação das cenas e a descrição da coreografia, o texto completo em alemão não chega a ser editado em vida de Brecht que, possivelmente por a crítica não ter salientado o seu contributo, não atribuiu a esta sua última colaboração com Weill nenhum significado artístico especial, antes a confirmação de que não seria Paris, mas sim a Dinamarca o lugar onde poderia continuar a desenvolver melhor o seu trabalho. De facto, é no Kongeligen Teater em Copenhaga que, em 12 de Novembro de 1936, estreia a segunda encenação do bailado, sob a direcção de Harald Lander. A sua recepção é no entanto ensombrada pela campanha de imprensa desencadeada contra Brecht depois da estreia de As cabeças redondas e as cabeças bicudas, ocorrida uma semana antes. Embora a música de Weill fosse apreciada pela crítica, o bailado é desqualificado, por causa do texto, como “uma peçazinha de propaganda encapotada sem espírito e sem graça”, e retirado de cena após o segundo espectáculo por pressão exercida pelo governo alemão na Embaixada da Dinamarca em Berlim. A terceira encenação de Os sete pecados mortais retoma, depois da morte de Weill e de Brecht, a coreografia de Georges Balanchine para a estreia mundial do bailado em Paris. Estreado em 4 de Dezembro de 1958, no City Theatre em Nova Iorque, com tradução de W.H.Auden e Chester Kalman e interpretação de Lotte Lenya como Anna I e Allegra Kent como Anna II, o espectáculo é celebrado como redescoberta de uma obra esquecida e abre caminho para o sucesso junto do público e a grande variedade de interpretações que tem suscitado até aos dias de hoje. Contam-se, entre as gravações mais recentes e disponíveis em cd, as interpretações de Doris Bierett (Capriccio, 1993), Anne Sofie von Otter (Deutsche Grammophon, 1994), Angelina Réaux (Teldec Classics, 1994) e Marianne Faithfull (RCA Victor, 1997). A primeira publicação integral do texto, a cujo título foi acrescentado ”dos pequeno-burgueses” numa correcção feita já depois da estreia em 1933, ocorre no entanto apenas em 1959. Escolhida para a última edição das obras completas de Brecht, é essa versão que se publica nesta edição portuguesa.
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cido através de O capital de Marx e utiliza para a sua reflexão sobre o comportamento do indivíduo na sociedade. Enquanto Mandeville realça a utilidade dos pecados para o desenvolvimento da sociedade, Brecht interessa-se sobretudo em focar o problema da perspectiva do indivíduo, realçando, especialmente em Vida de Galileu, Mãe Coragem e os seus filhos e A boa alma de Sé-Chuão, os chamados grandes dramas do exílio, quanto o apego a ideais e virtudes se pode revelar nefasto para a sobrevivência do indivíduo na sociedade. Esta temática do confronto do indivíduo com a sociedade, da relação dialéctica entre os ideais e as condições materiais, entre a superstrutura formada pelas ideias e a base económica e social, que surge como um leitmotiv na obra de Brecht, adquire nos tempos sombrios do exílio e da guerra uma acuidade particular, uma vez que contempla uma componente biográfica e se aplica à situação concreta em que se encontram os intelectuais e os artistas antifascistas. Como Brecht sintetiza numa pequena nota, escrita em 1935 e intitulada Der Künstler im Dritten Reich [O artista no Terceiro Reich], o cerne da questão é o seguinte: “O artista no Terceiro Reich tem de escolher entre a prática de duas artes incompatíveis: a de fazer obras de arte e a de continuar vivo”. (GBA, 22.1., 182) O bailado, cantado em alemão, estreia em 7 de Junho de 1933, no Théâtre des Champs-Elysées, com coreografia de Georges Balanchine, cenário de Caspar Neher, encenação de Edward James e direcção musical de Maurice Abravanel, num programa em que são apresentadas cinco outras peças da companhia, com música de Mozart, Tchaikovski, Milhaud, Schubert, Sauguet e Beethoven. Os exilados alemães em Paris e os especialistas consideraram o bailado criado por Brecht e Weill um acontecimento artístico de relevo e louvaram as prestações de Tilly Losch, Lotte Lenya e Caspar Neher, mas a maior parte do público esperava mais de Weill e manifesta, tal como a crítica e os próprios artistas durante os ensaios do espectáculo, estranheza e desconforto tanto em relação à inusitada crítica social como à forma inovadora de um bailado cantado, difícil de classificar, como revelam as designações híbridas de cantata mímica, pantomima balética ou ópera curta com características do teatro épico e do songspiel na base de um bailado que foram propostas mais tarde. Depois da estreia em Paris, o bailado vai em tournée até Londres, onde é apresentado como Anna Anna. Music by Kurt Weill
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from the poems of Bert Brecht no Savoy Theatre de 28 de Junho a 15 de Julho de 1933. Publicado em francês e alemão no programa do espectáculo da estreia em Paris, com o título Les sept péchés capitaux. Spectacle sur des poèmes de Bert Brecht. Musique de Kurt Weill. Décor e costumes de Caspard Neher, mas sem a indicação das cenas e a descrição da coreografia, o texto completo em alemão não chega a ser editado em vida de Brecht que, possivelmente por a crítica não ter salientado o seu contributo, não atribuiu a esta sua última colaboração com Weill nenhum significado artístico especial, antes a confirmação de que não seria Paris, mas sim a Dinamarca o lugar onde poderia continuar a desenvolver melhor o seu trabalho. De facto, é no Kongeligen Teater em Copenhaga que, em 12 de Novembro de 1936, estreia a segunda encenação do bailado, sob a direcção de Harald Lander. A sua recepção é no entanto ensombrada pela campanha de imprensa desencadeada contra Brecht depois da estreia de As cabeças redondas e as cabeças bicudas, ocorrida uma semana antes. Embora a música de Weill fosse apreciada pela crítica, o bailado é desqualificado, por causa do texto, como “uma peçazinha de propaganda encapotada sem espírito e sem graça”, e retirado de cena após o segundo espectáculo por pressão exercida pelo governo alemão na Embaixada da Dinamarca em Berlim. A terceira encenação de Os sete pecados mortais retoma, depois da morte de Weill e de Brecht, a coreografia de Georges Balanchine para a estreia mundial do bailado em Paris. Estreado em 4 de Dezembro de 1958, no City Theatre em Nova Iorque, com tradução de W.H.Auden e Chester Kalman e interpretação de Lotte Lenya como Anna I e Allegra Kent como Anna II, o espectáculo é celebrado como redescoberta de uma obra esquecida e abre caminho para o sucesso junto do público e a grande variedade de interpretações que tem suscitado até aos dias de hoje. Contam-se, entre as gravações mais recentes e disponíveis em cd, as interpretações de Doris Bierett (Capriccio, 1993), Anne Sofie von Otter (Deutsche Grammophon, 1994), Angelina Réaux (Teldec Classics, 1994) e Marianne Faithfull (RCA Victor, 1997). A primeira publicação integral do texto, a cujo título foi acrescentado ”dos pequeno-burgueses” numa correcção feita já depois da estreia em 1933, ocorre no entanto apenas em 1959. Escolhida para a última edição das obras completas de Brecht, é essa versão que se publica nesta edição portuguesa.
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UMA PEÇA DIDÁCTICA A peça Os horácios e os curiácios, escrita entre o fim de Agosto e o princípio de Outubro de 1935 em Svendborg, foi desde o início concebida como peça didáctica, ou seja, tal como O voo dos Lindberghs, A peça didáctica de Baden-Baden sobre o acordo, O que diz sim, O que diz não e A decisão, dos últimos anos da República de Weimar, como uma peça de música vocal, construída em estreita colaboração com um compositor, curta e simples de modo a ser executada também por intérpretes amadores, à margem dos circuitos profissionais e comerciais dos teatros e das salas de concerto. Visando a demonstração e problematização de atitudes do indivíduo face ao colectivo, a peça didáctica pretende proporcionar aos seus intérpretes uma reflexão filosófica através da arte, um “exercício de flexibilidade” intelectual, que, no espírito do learning by doing, não envolve apenas a mente, mas o corpo e todos os sentidos. Destinada fundamentalmente aos intérpretes e à promoção do seu auto-conhecimento por meio de uma experiência artística colectiva, a peça didáctica dispensa a presença de espectadores, mas, no caso de estes estarem presentes, transforma-os também em elementos participativos, englobando-os, por exemplo, na interpretação dos coros, que constituem também um dos elementos característicos da sua composição. Como aconteceu com as outras peças didácticas, a iniciativa deste projecto partiu de um compositor, neste caso de Hanns Eisler, com quem Brecht tinha trabalhado por último em A decisão, A mãe e As cabeças redondas e as cabeças bicudas, mas, por contingências próprias da situação do exílio, como a distância e incompatibilidades de calendário, o trabalho conjunto acaba por não se efectuar. Sem a colaboração do compositor, mas com uma composição musical em mente, Brecht escreve Os horácios e os curiácios com o apoio de Margarete Steffin e publica a peça em 1936, na revista literária de exilados alemães na União Soviética chamada Internationale Literatur, juntamente com um texto em oito pontos intitulado Anweisung für die Spieler [Indicação aos intérpretes], com sugestões para a realização cénica e a indicação de que para suprir a falta da música se poderia recorrer simplesmente a tambores (cf. GBA, 24, 221-222). Apesar do carácter de urgência que imprime desde o início à realização do projecto, do qual resulta uma des-
Introdução
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avença com Eisler e a decisão de desenvolver o trabalho mesmo sem a sua colaboração, Os horácios e os curiácios só será estreada postumamente. Trabalhando sempre em vários projectos ao mesmo tempo, Brecht ia estabelecendo prioridades de acordo com as circunstâncias, que podiam ser ditadas por uma encomenda, como no caso de Os sete pecados mortais dos pequeno-burgueses, pela oportunidade de levar uma peça à cena, como no caso de As cabeças redondas e as cabeças bicudas, ou pelo significado político, pelo valor de agitação e propaganda, atribuído à apresentação de uma determinada temática numa determinada conjuntura, como no caso de As espingardas da senhora Carrar, escrita em 1937, a pedido do realizador e encenador Slatan Dudow, com o objectivo de intervenção directo e imediato de promover a ajuda internacional às forças republicanas na Guerra Civil de Espanha iniciada em 1936. Como se depreende de uma carta dirigida a Eisler em 29 de Agosto de 1935, dias depois da desavença, resultante do facto de o compositor ter outros compromissos e não se mostrar disponível para trabalhar em Os horácios e os curiácios em Svendborg, nos prazos desejados por Brecht, a urgência surge motivada tanto pela necessidade de dar uma resposta rápida a uma encomenda como ao significado político atribuído ao projecto: O trabalho na peça didáctica começou por iniciativa tua, apesar de eu estar a meio do trabalho na minha peça de teatro [As cabeças redondas e as cabeças bicudas], uma vez que se tratava de uma encomenda do Exército Vermelho e se podia contar com um efeito de propaganda considerável se a peça fosse levada à cena nas escolas americanas, inglesas, francesas e nórdicas com posições de esquerda. […] Nas dificuldades enormes do exílio, só se pode dar continuidade a uma produção político-artística com o empenho de todas as forças. Mesmo se tivesses concordado, como eu te estava a exigir, a conclusão do trabalho na peça didáctica não estaria garantido, tendo em conta as dificuldades objectivas, mas sem isso a continuação do trabalho por mim não fazia qualquer sentido. Não vais com certeza querer insistir na tua afirmação de que tu não serias necessário para o texto e eu não seria necessário para a forma musical. (GBA, 28, 518-520)
Embora não se tenha conseguido apurar se o Exército Vermelho fez realmente essa encomenda e se possa estranhar o facto de a peça, publicada em Moscovo, nunca ter sido utilizada para os referidos efeitos, é certo que o estímulo para a realização de Os horá-
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UMA PEÇA DIDÁCTICA A peça Os horácios e os curiácios, escrita entre o fim de Agosto e o princípio de Outubro de 1935 em Svendborg, foi desde o início concebida como peça didáctica, ou seja, tal como O voo dos Lindberghs, A peça didáctica de Baden-Baden sobre o acordo, O que diz sim, O que diz não e A decisão, dos últimos anos da República de Weimar, como uma peça de música vocal, construída em estreita colaboração com um compositor, curta e simples de modo a ser executada também por intérpretes amadores, à margem dos circuitos profissionais e comerciais dos teatros e das salas de concerto. Visando a demonstração e problematização de atitudes do indivíduo face ao colectivo, a peça didáctica pretende proporcionar aos seus intérpretes uma reflexão filosófica através da arte, um “exercício de flexibilidade” intelectual, que, no espírito do learning by doing, não envolve apenas a mente, mas o corpo e todos os sentidos. Destinada fundamentalmente aos intérpretes e à promoção do seu auto-conhecimento por meio de uma experiência artística colectiva, a peça didáctica dispensa a presença de espectadores, mas, no caso de estes estarem presentes, transforma-os também em elementos participativos, englobando-os, por exemplo, na interpretação dos coros, que constituem também um dos elementos característicos da sua composição. Como aconteceu com as outras peças didácticas, a iniciativa deste projecto partiu de um compositor, neste caso de Hanns Eisler, com quem Brecht tinha trabalhado por último em A decisão, A mãe e As cabeças redondas e as cabeças bicudas, mas, por contingências próprias da situação do exílio, como a distância e incompatibilidades de calendário, o trabalho conjunto acaba por não se efectuar. Sem a colaboração do compositor, mas com uma composição musical em mente, Brecht escreve Os horácios e os curiácios com o apoio de Margarete Steffin e publica a peça em 1936, na revista literária de exilados alemães na União Soviética chamada Internationale Literatur, juntamente com um texto em oito pontos intitulado Anweisung für die Spieler [Indicação aos intérpretes], com sugestões para a realização cénica e a indicação de que para suprir a falta da música se poderia recorrer simplesmente a tambores (cf. GBA, 24, 221-222). Apesar do carácter de urgência que imprime desde o início à realização do projecto, do qual resulta uma des-
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avença com Eisler e a decisão de desenvolver o trabalho mesmo sem a sua colaboração, Os horácios e os curiácios só será estreada postumamente. Trabalhando sempre em vários projectos ao mesmo tempo, Brecht ia estabelecendo prioridades de acordo com as circunstâncias, que podiam ser ditadas por uma encomenda, como no caso de Os sete pecados mortais dos pequeno-burgueses, pela oportunidade de levar uma peça à cena, como no caso de As cabeças redondas e as cabeças bicudas, ou pelo significado político, pelo valor de agitação e propaganda, atribuído à apresentação de uma determinada temática numa determinada conjuntura, como no caso de As espingardas da senhora Carrar, escrita em 1937, a pedido do realizador e encenador Slatan Dudow, com o objectivo de intervenção directo e imediato de promover a ajuda internacional às forças republicanas na Guerra Civil de Espanha iniciada em 1936. Como se depreende de uma carta dirigida a Eisler em 29 de Agosto de 1935, dias depois da desavença, resultante do facto de o compositor ter outros compromissos e não se mostrar disponível para trabalhar em Os horácios e os curiácios em Svendborg, nos prazos desejados por Brecht, a urgência surge motivada tanto pela necessidade de dar uma resposta rápida a uma encomenda como ao significado político atribuído ao projecto: O trabalho na peça didáctica começou por iniciativa tua, apesar de eu estar a meio do trabalho na minha peça de teatro [As cabeças redondas e as cabeças bicudas], uma vez que se tratava de uma encomenda do Exército Vermelho e se podia contar com um efeito de propaganda considerável se a peça fosse levada à cena nas escolas americanas, inglesas, francesas e nórdicas com posições de esquerda. […] Nas dificuldades enormes do exílio, só se pode dar continuidade a uma produção político-artística com o empenho de todas as forças. Mesmo se tivesses concordado, como eu te estava a exigir, a conclusão do trabalho na peça didáctica não estaria garantido, tendo em conta as dificuldades objectivas, mas sem isso a continuação do trabalho por mim não fazia qualquer sentido. Não vais com certeza querer insistir na tua afirmação de que tu não serias necessário para o texto e eu não seria necessário para a forma musical. (GBA, 28, 518-520)
Embora não se tenha conseguido apurar se o Exército Vermelho fez realmente essa encomenda e se possa estranhar o facto de a peça, publicada em Moscovo, nunca ter sido utilizada para os referidos efeitos, é certo que o estímulo para a realização de Os horá-
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cios e os curiácios resultou de uma estadia dos dois autores em 1935 em Moscovo: Brecht esteve entre meados de Março e meados de Maio desse ano em Moscovo para dar a conhecer, sobretudo através da rádio, a dramaturgia e o teatro revolucionário alemão e estabelecer contactos com o meio do teatro e do cinema soviéticos, Eisler entre meados de Junho e meados de Agosto para reorganizar a estrutura do Internationales Musikbüro do qual era presidente. O interesse de Brecht pela lenda romana da guerra entre os horácios e os curiácios, narrada por Tito Lívio em Ab urbe condita, é no entanto anterior à sua estadia em Moscovo. Num apontamento de 1934, Brecht reflectia sobre a construção da fábula desta lenda, imaginando já então dividir a acção de forma diferente do original, em três partes, marcadas pelas três batalhas: “A primeira batalha poderia ser ganha por um melhor aproveitamento da qualidade do armamento. A segunda pelo aproveitamento do terreno. A terceira depois pela organização.” (GBA, 24, 220) Outras diferenças introduzidas posteriormente, quando resolve utilizar esta fábula na peça didáctica, visam reforçar a oposição entre as duas facções. As duas famílias da lenda são substituídas por dois povos que não são iguais nem lutam para decidir quem merece obter a supremacia: para escamotear os conflitos internos pela posse da terra e das minas de cobre, os curiácios unem-se para mover uma guerra de ataque contra os horácios que, sendo militarmente inferiores, ostentam a superioridade moral de uma comunidade solidária obrigada a recorrer a tácticas inteligentes para se defender dos seus agressores. Num jogo de representações contrastantes, os dois coros, o coro dos horácios e o coro dos curiácios, assim como as respectivas mulheres, posicionam-se ao lado de cada uma das facções, representando, como grupo, cada uma das comunidades a que os combatentes pertencem, enquanto estes representam, como indivíduos, não só a respectiva comunidade, mas também, especificamente, cada um dos corpos do exército chamado a intervir no campo de batalha: os arqueiros, os lanceiros e os espadeiros. De acordo com a importância atribuída ao coro no novo tipo de oratória que a peça didáctica pretende ser, cabe-lhe desempenhar uma multiplicidade de funções: o coro narra o decurso das batalhas, incita os combatentes, dialoga com eles, comenta o seu comportamento e aconselha-os quanto à táctica a adoptar no pros-
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-seguimento da luta. O plano inicial de colocar o coro a dialogar também com os espectadores, incluindo-os como elementos participativos no espectáculo, à semelhança do que tinha acontecido na estreia de A peça didáctica de Baden-Baden sobre o acordo, fica apenas em esboço. Acompanhando a acção a par e passo e influindo com apelos, comentários e conselhos no seu decurso, é ao coro que cabe demonstrar a relação dialéctica entre a prática e a teoria, entre a actuação em campo e a reflexão sobre essa mesma actuação, e formular, no fim, a síntese, a constatação de que a vitória dos horácios não se deve apenas à táctica hábil do último horácio, mas contempla igualmente a acção dos outros dois: “O nosso arqueiro debilitou o inimigo. / O nosso lanceiro feriu gravemente o inimigo. / E o nosso espadeiro consumou a vitória.” Outra dimensão particularmente interessante da vitória dos horácios reside no facto de esta resultar de uma atitude de inconformismo do indivíduo face ao colectivo. Embora o coro incite o último horácio a persistir e a fazer frente ao adversário, mesmo nas condições objectivamente desfavoráveis em que se encontra, este decide não cumprir a ordem da instância superior, que representa os interesses da comunidade, e fugir. Nesta atitude de dizer que não, de recusar o acordo, reconhece-se mais uma variação do tema do acordo, recorrente nas peças didácticas, mas também a problematização da relação dialéctica entre os ideais e as condições materiais, recorrente nos chamados grandes dramas do exílio: enquanto os filhos de Mãe Coragem sucumbem aos ideais de coragem, honestidade e amor ao próximo, que norteiam o seu comportamento, Galileu mantém-se vivo e dá continuidade à sua obra por assumir a atitude não heróica da abjuração e negar as suas teorias com medo da tortura e da morte. À afirmação revoltada do seu jovem discípulo Andrea Sarti, “Infeliz o país que não tem heróis”, o velho mestre contrapõe “Infeliz o país que precisa de heróis”. Em Os horácios e os curiácios, assim como em Mãe Coragem e os seus Filhos e Vida de Galileu, Brecht lança de diversas formas uma luz crítica sobre a historiografia baseada no culto dos heróis e, mais especificamente, sobre a propaganda nazi que prepara o terreno da Segunda Guerra Mundial, apelando ao sacrifício individual em prol de pretensos ideais de toda a comunidade, com slogans como “Tu nasceste para morrer pela Alemanha” ou “Tu não és nada, o teu povo é tudo”.
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cios e os curiácios resultou de uma estadia dos dois autores em 1935 em Moscovo: Brecht esteve entre meados de Março e meados de Maio desse ano em Moscovo para dar a conhecer, sobretudo através da rádio, a dramaturgia e o teatro revolucionário alemão e estabelecer contactos com o meio do teatro e do cinema soviéticos, Eisler entre meados de Junho e meados de Agosto para reorganizar a estrutura do Internationales Musikbüro do qual era presidente. O interesse de Brecht pela lenda romana da guerra entre os horácios e os curiácios, narrada por Tito Lívio em Ab urbe condita, é no entanto anterior à sua estadia em Moscovo. Num apontamento de 1934, Brecht reflectia sobre a construção da fábula desta lenda, imaginando já então dividir a acção de forma diferente do original, em três partes, marcadas pelas três batalhas: “A primeira batalha poderia ser ganha por um melhor aproveitamento da qualidade do armamento. A segunda pelo aproveitamento do terreno. A terceira depois pela organização.” (GBA, 24, 220) Outras diferenças introduzidas posteriormente, quando resolve utilizar esta fábula na peça didáctica, visam reforçar a oposição entre as duas facções. As duas famílias da lenda são substituídas por dois povos que não são iguais nem lutam para decidir quem merece obter a supremacia: para escamotear os conflitos internos pela posse da terra e das minas de cobre, os curiácios unem-se para mover uma guerra de ataque contra os horácios que, sendo militarmente inferiores, ostentam a superioridade moral de uma comunidade solidária obrigada a recorrer a tácticas inteligentes para se defender dos seus agressores. Num jogo de representações contrastantes, os dois coros, o coro dos horácios e o coro dos curiácios, assim como as respectivas mulheres, posicionam-se ao lado de cada uma das facções, representando, como grupo, cada uma das comunidades a que os combatentes pertencem, enquanto estes representam, como indivíduos, não só a respectiva comunidade, mas também, especificamente, cada um dos corpos do exército chamado a intervir no campo de batalha: os arqueiros, os lanceiros e os espadeiros. De acordo com a importância atribuída ao coro no novo tipo de oratória que a peça didáctica pretende ser, cabe-lhe desempenhar uma multiplicidade de funções: o coro narra o decurso das batalhas, incita os combatentes, dialoga com eles, comenta o seu comportamento e aconselha-os quanto à táctica a adoptar no pros-
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-seguimento da luta. O plano inicial de colocar o coro a dialogar também com os espectadores, incluindo-os como elementos participativos no espectáculo, à semelhança do que tinha acontecido na estreia de A peça didáctica de Baden-Baden sobre o acordo, fica apenas em esboço. Acompanhando a acção a par e passo e influindo com apelos, comentários e conselhos no seu decurso, é ao coro que cabe demonstrar a relação dialéctica entre a prática e a teoria, entre a actuação em campo e a reflexão sobre essa mesma actuação, e formular, no fim, a síntese, a constatação de que a vitória dos horácios não se deve apenas à táctica hábil do último horácio, mas contempla igualmente a acção dos outros dois: “O nosso arqueiro debilitou o inimigo. / O nosso lanceiro feriu gravemente o inimigo. / E o nosso espadeiro consumou a vitória.” Outra dimensão particularmente interessante da vitória dos horácios reside no facto de esta resultar de uma atitude de inconformismo do indivíduo face ao colectivo. Embora o coro incite o último horácio a persistir e a fazer frente ao adversário, mesmo nas condições objectivamente desfavoráveis em que se encontra, este decide não cumprir a ordem da instância superior, que representa os interesses da comunidade, e fugir. Nesta atitude de dizer que não, de recusar o acordo, reconhece-se mais uma variação do tema do acordo, recorrente nas peças didácticas, mas também a problematização da relação dialéctica entre os ideais e as condições materiais, recorrente nos chamados grandes dramas do exílio: enquanto os filhos de Mãe Coragem sucumbem aos ideais de coragem, honestidade e amor ao próximo, que norteiam o seu comportamento, Galileu mantém-se vivo e dá continuidade à sua obra por assumir a atitude não heróica da abjuração e negar as suas teorias com medo da tortura e da morte. À afirmação revoltada do seu jovem discípulo Andrea Sarti, “Infeliz o país que não tem heróis”, o velho mestre contrapõe “Infeliz o país que precisa de heróis”. Em Os horácios e os curiácios, assim como em Mãe Coragem e os seus Filhos e Vida de Galileu, Brecht lança de diversas formas uma luz crítica sobre a historiografia baseada no culto dos heróis e, mais especificamente, sobre a propaganda nazi que prepara o terreno da Segunda Guerra Mundial, apelando ao sacrifício individual em prol de pretensos ideais de toda a comunidade, com slogans como “Tu nasceste para morrer pela Alemanha” ou “Tu não és nada, o teu povo é tudo”.
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Na apresentação da fuga do último horácio como uma manobra táctica, inteligente, para alcançar a vitória, reconhece-se também a problemática do exílio, a fuga da Alemanha, a que Brecht e outros intelectuais e artistas se viram forçados depois da subida de Hitler ao poder. A vida, a possibilidade de continuar vivo e trabalhar, surge como o valor elementar e fundamental a defender. Em Os horácios e os curiácios, essa defesa é feita, de forma muito subtil, sobretudo pelas mulheres. No início, perante a insuficiência das armas, as mulheres dos horácios mostram-se apenas apreensivas: “Quando o arqueiro não está de acordo com o seu arco / Não pode combater”. Antes da última batalha, depois de a mulher do arqueiro e a mulher do lanceiro terem envergado o traje de viúvas, o lamento pelos mortos não nega a necessidade da luta, mas lembra que aquela que importa vencer é a da vida: “Se choramos é porque tombaram / E não porque lutaram. Ai, nem todos os / Que regressam, são vencedores, mas / Não venceram aqueles que não regressarem”. Neste lamento ecoam as palavras parcas, e por isso especialmente incisivas, pronunciadas no início pelas mulheres dos horácios e dos curiácios em conjunto: “Agora ide. Nem todos / Hão-de regressar”. Sendo o único momento em que a oposição entre as duas facções é abolida, esta afirmação adquire uma força expressiva e um significado particulares. Como as reflexões sobre a construção da fábula no apontamento de 1934 denotam, Brecht encontra na lenda romana dos horácios e dos curiácios a apresentação depurada, quase abstracta, de um conflito e da variedade de comportamentos que vão sendo adoptados nas diversas situações do seu decurso. A etapa seguinte, o tratamento da fábula na forma simples, curta e também depurada da peça didáctica, revela, mesmo sem a certeza de ter havido uma encomenda por parte do Exército Vermelho, a influência marcante de uma experiência tida durante a sua estadia entre Março e Maio de 1935 em Moscovo: o contacto com o teatro chinês a que teve oportunidade de assistir ao vivo por ocasião de uma tournée realizada na União Soviética pelo célebre actor chinês Mei Lan-fang e o seu grupo. Na primeira carta que escreve a Helene Weigel depois de chegar a Moscovo, Brecht confessa-se admirado com a diversidade da oferta cultural no âmbito do teatro e do cinema e refere a expectativa com que no meio artístico se aguarda as actuações de Mei Lan-fang, “o maior actor chinês”(cf. GBA, 28, 495).
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Através de Tretiakov, o escritor responsável pelo acompanhamento dos artistas chineses, Brecht e Margarete Steffin têm acesso não só aos dois espectáculos da tournée, Kuei-fei tsui-chiu [A beleza embriagada], uma peça sobre uma das concubinas mais famosas das lendas chinesas, e Ta-yü sha chia [A vingança do pescador], uma peça de entretenimento popular com canções, mas também a encontros e sessões especiais, mais restritas, como o espectáculo apresentado na residência do embaixador chinês em 19 de Março, a sessão feita no dia a seguir para os directores e actores dos teatros de Moscovo, com uma palestra sobre o teatro chinês em que Mei Lanfang representava os exemplos referidos, ou o debate final, realizado em 14 de Abril, sobre as questões artísticas suscitadas por este encontro com o teatro chinês. O interesse de Brecht pelo teatro asiático e pela filosofia chinesa manifestara-se já em finais dos anos 20 na escrita de duas peças didácticas: na adaptação de uma peça de teatro nô para o libreto de O que diz sim e de uma narrativa chinesa para A excepção e a regra. Para além disso, na sua procura de modelos para o teatro épico, destacara, num texto teórico de 1929, intitulado Weg zu gro?em zeitgenössischem Theater [Caminho para um grande teatro contemporâneo], “o modelo asiático” como um caminho a seguir pelo teatro contemporâneo ocidental. Os conhecimentos superficiais sobre o teatro asiático, transmitidos por algumas fotografias e descrições de encenações, poderiam servir de ponto de partida. Para frisar que não era a estranheza do exotismo asiático que o interessava, mas sim o exemplo de um estilo de representação marcadamente teatral, não naturalista e não psicológico, referira que as características “asiáticas” também se podiam encontrar nos espectáculos do conhecido cómico de Munique Karl Valentin. (cf. GBA, 21, 377-381) Na estadia em Moscovo, Brecht tem a oportunidade de assistir pela primeira vez ao vivo a espectáculos de teatro asiático e aprofundar a reflexão sobre o que considera ser um modelo não só para o teatro épico em particular, mas também para a renovação de todo o teatro contemporâneo ocidental. Numa série de pequenos textos, como Über die Zuschaukunst [Sobre a arte do espectador], Theater und Publikum [Teatro e público], Über das Theater der Chinesen [Sobre o teatro dos chineses], Über ein Detail des chinesischen Theaters [Sobre um pormenor do teatro chinês], Die
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Na apresentação da fuga do último horácio como uma manobra táctica, inteligente, para alcançar a vitória, reconhece-se também a problemática do exílio, a fuga da Alemanha, a que Brecht e outros intelectuais e artistas se viram forçados depois da subida de Hitler ao poder. A vida, a possibilidade de continuar vivo e trabalhar, surge como o valor elementar e fundamental a defender. Em Os horácios e os curiácios, essa defesa é feita, de forma muito subtil, sobretudo pelas mulheres. No início, perante a insuficiência das armas, as mulheres dos horácios mostram-se apenas apreensivas: “Quando o arqueiro não está de acordo com o seu arco / Não pode combater”. Antes da última batalha, depois de a mulher do arqueiro e a mulher do lanceiro terem envergado o traje de viúvas, o lamento pelos mortos não nega a necessidade da luta, mas lembra que aquela que importa vencer é a da vida: “Se choramos é porque tombaram / E não porque lutaram. Ai, nem todos os / Que regressam, são vencedores, mas / Não venceram aqueles que não regressarem”. Neste lamento ecoam as palavras parcas, e por isso especialmente incisivas, pronunciadas no início pelas mulheres dos horácios e dos curiácios em conjunto: “Agora ide. Nem todos / Hão-de regressar”. Sendo o único momento em que a oposição entre as duas facções é abolida, esta afirmação adquire uma força expressiva e um significado particulares. Como as reflexões sobre a construção da fábula no apontamento de 1934 denotam, Brecht encontra na lenda romana dos horácios e dos curiácios a apresentação depurada, quase abstracta, de um conflito e da variedade de comportamentos que vão sendo adoptados nas diversas situações do seu decurso. A etapa seguinte, o tratamento da fábula na forma simples, curta e também depurada da peça didáctica, revela, mesmo sem a certeza de ter havido uma encomenda por parte do Exército Vermelho, a influência marcante de uma experiência tida durante a sua estadia entre Março e Maio de 1935 em Moscovo: o contacto com o teatro chinês a que teve oportunidade de assistir ao vivo por ocasião de uma tournée realizada na União Soviética pelo célebre actor chinês Mei Lan-fang e o seu grupo. Na primeira carta que escreve a Helene Weigel depois de chegar a Moscovo, Brecht confessa-se admirado com a diversidade da oferta cultural no âmbito do teatro e do cinema e refere a expectativa com que no meio artístico se aguarda as actuações de Mei Lan-fang, “o maior actor chinês”(cf. GBA, 28, 495).
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Através de Tretiakov, o escritor responsável pelo acompanhamento dos artistas chineses, Brecht e Margarete Steffin têm acesso não só aos dois espectáculos da tournée, Kuei-fei tsui-chiu [A beleza embriagada], uma peça sobre uma das concubinas mais famosas das lendas chinesas, e Ta-yü sha chia [A vingança do pescador], uma peça de entretenimento popular com canções, mas também a encontros e sessões especiais, mais restritas, como o espectáculo apresentado na residência do embaixador chinês em 19 de Março, a sessão feita no dia a seguir para os directores e actores dos teatros de Moscovo, com uma palestra sobre o teatro chinês em que Mei Lanfang representava os exemplos referidos, ou o debate final, realizado em 14 de Abril, sobre as questões artísticas suscitadas por este encontro com o teatro chinês. O interesse de Brecht pelo teatro asiático e pela filosofia chinesa manifestara-se já em finais dos anos 20 na escrita de duas peças didácticas: na adaptação de uma peça de teatro nô para o libreto de O que diz sim e de uma narrativa chinesa para A excepção e a regra. Para além disso, na sua procura de modelos para o teatro épico, destacara, num texto teórico de 1929, intitulado Weg zu gro?em zeitgenössischem Theater [Caminho para um grande teatro contemporâneo], “o modelo asiático” como um caminho a seguir pelo teatro contemporâneo ocidental. Os conhecimentos superficiais sobre o teatro asiático, transmitidos por algumas fotografias e descrições de encenações, poderiam servir de ponto de partida. Para frisar que não era a estranheza do exotismo asiático que o interessava, mas sim o exemplo de um estilo de representação marcadamente teatral, não naturalista e não psicológico, referira que as características “asiáticas” também se podiam encontrar nos espectáculos do conhecido cómico de Munique Karl Valentin. (cf. GBA, 21, 377-381) Na estadia em Moscovo, Brecht tem a oportunidade de assistir pela primeira vez ao vivo a espectáculos de teatro asiático e aprofundar a reflexão sobre o que considera ser um modelo não só para o teatro épico em particular, mas também para a renovação de todo o teatro contemporâneo ocidental. Numa série de pequenos textos, como Über die Zuschaukunst [Sobre a arte do espectador], Theater und Publikum [Teatro e público], Über das Theater der Chinesen [Sobre o teatro dos chineses], Über ein Detail des chinesischen Theaters [Sobre um pormenor do teatro chinês], Die
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Beibehaltung der Gesten durch verschiedene Generationen [A conservação dos gestos através de várias gerações] (cf. GBA, 22.1., 124134), regista primeiras ideias e impressões que irá desenvolver mais tarde, no regresso à Dinamarca, em Bemerkungen über die chinesische Schauspielkunst [Observações sobre a arte teatral chinesa] e Verfremdungseffekte in der chinesischen Schauspielkunst [Efeitos de estranhamento na arte teatral chinesa] (cf. GBA, 22.1., 151-155, 200-210). Este último texto, escrito em 1936 e publicado pela primeira vez em inglês, com o título The Fourth Wall of China. An essay on the effect of disillusion in the Chinese Theatre, tem uma particularidade curiosa: surge aqui pela primeira vez por escrito um dos conceitos mais citados, polémicos e também malentendidos da teoria do teatro épico, o efeito de estranhamento. Recordando que esse efeito se encontra, de forma primitiva, no teatro de feira, e, de forma mais elaborada, nas experiências do teatro épico, Brecht descobre no teatro chinês apresentado por Mei Lan-fang outro modelo da linguagem cénica que pretende criar, uma linguagem de assumida teatralidade e invenção, deliberadamente “estranha” por não se querer reger pelo princípio da imitação da realidade. Mei Lan-fang, vestido de smoking, representando com gestos lentos, coreograficamente definidos, uma mulher a esconder o choro ou a preparar o chá, dá um exemplo claro do efeito de estranhamento: a sua representação não é naturalista nem psicológica, ele não é ela, o actor não procura transformar-se na personagem e dar ao espectador a ilusão de o actor e a personagem serem realmente a pessoa representada como acontece, por exemplo, no teatro praticado por Stanislavski. A teatralidade da sua representação não visa exprimir as idiossincrasias do indivíduo, mas sobretudo expor atitudes e formas de comportamento em diversas situações. Contudo, como refere Brecht, o princípio da imitação da realidade e a subsequente identificação emocional do espectador com as personagens estão de tal modo enraizados na cultura do teatro ocidental que Mei Lan-fang, nas suas tournées pelo Ocidente, faz questão de explicar que representa, mas não imita figuras de mulher e que, na realidade, é um “homem viril, bom pai de família e até banqueiro”. Para além do estilo de representação não naturalista, Brecht encontra no teatro chinês outras possibilidades de produzir efeitos de estranhamento, nomeadamente nos vários símbolos próprios
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da linguagem cénica que, sendo concretos, mas também abstractos, permitem criar uma grande teatralidade com uma economia de meios. Contam-se entre esses efeitos a caracterização das personagens apenas pela maquilhagem ou por determinados adereços e figurinos e a construção do espaço cénico por gestos ou apontamentos cenográficos muito simples e inventivos. Como se verifica no texto Indicação aos intérpretes, que acompanha a primeira publicação de Os horácios e os curiácios em 1936, é esta simplicidade inventiva e eminentemente teatral do teatro chinês visto em Moscovo que inspira Brecht na escrita e na concepção cénica desta peça: Os comandantes dos exércitos são ao mesmo tempo os representantes desses exércitos. Segundo um costume do teatro chinês, as várias formações do exército podem ser indicadas por pequenas bandeiras que os comandantes ostentam numa ripa de madeira presa à nuca, mais larga do que os ombros. Os movimentos dos intérpretes têm de ser lentos e resultar da sensação de terem as tábuas nos ombros e de uma certa amplitude. Os intérpretes indicam a eliminação das suas formações tirando uma série de bandeiras da ripa de madeira e deitando-as fora. (GBA, 24, 221)
A força expressiva da simplicidade da linguagem teatral chinesa, que anima a concepção da peça, reflecte-se também na indicação de que “ na batalha dos arqueiros não são precisas setas” e de que “para indicar a queda da neve são espalhados alguns pedacinhos de papel sobre o lanceiro”. Embora um dos últimos pontos deste texto refira que “se pode prescindir da música e utilizar apenas tambores”, esta possibilidade surge, na realidade, como uma solução de compromisso uma vez esgotadas as hipóteses de Eisler compor a partitura no tempo pretendido. De facto, depois da desavença com Eisler no fim de Agosto de 1935 e com o esboço da peça já concluído, Brecht voltara a insistir na importância da música e na colaboração do compositor numa carta que lhe dirigira no princípio de Setembro: Seria agora muito necessário nós discutirmos o assunto. Nos coros pus por enquanto só o que é necessário para a acção. Ainda haveria determinadas partes a fazer. A questão da música desta vez não é mesmo nada fácil, para diversas partes falta-me por enquanto a forma. Tal como está agora, não pode ser tudo cantado. Mas a música é necessária em todo o lado uma vez que o movimento dos “exércitos” tem de ser fixado com preci-
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Beibehaltung der Gesten durch verschiedene Generationen [A conservação dos gestos através de várias gerações] (cf. GBA, 22.1., 124134), regista primeiras ideias e impressões que irá desenvolver mais tarde, no regresso à Dinamarca, em Bemerkungen über die chinesische Schauspielkunst [Observações sobre a arte teatral chinesa] e Verfremdungseffekte in der chinesischen Schauspielkunst [Efeitos de estranhamento na arte teatral chinesa] (cf. GBA, 22.1., 151-155, 200-210). Este último texto, escrito em 1936 e publicado pela primeira vez em inglês, com o título The Fourth Wall of China. An essay on the effect of disillusion in the Chinese Theatre, tem uma particularidade curiosa: surge aqui pela primeira vez por escrito um dos conceitos mais citados, polémicos e também malentendidos da teoria do teatro épico, o efeito de estranhamento. Recordando que esse efeito se encontra, de forma primitiva, no teatro de feira, e, de forma mais elaborada, nas experiências do teatro épico, Brecht descobre no teatro chinês apresentado por Mei Lan-fang outro modelo da linguagem cénica que pretende criar, uma linguagem de assumida teatralidade e invenção, deliberadamente “estranha” por não se querer reger pelo princípio da imitação da realidade. Mei Lan-fang, vestido de smoking, representando com gestos lentos, coreograficamente definidos, uma mulher a esconder o choro ou a preparar o chá, dá um exemplo claro do efeito de estranhamento: a sua representação não é naturalista nem psicológica, ele não é ela, o actor não procura transformar-se na personagem e dar ao espectador a ilusão de o actor e a personagem serem realmente a pessoa representada como acontece, por exemplo, no teatro praticado por Stanislavski. A teatralidade da sua representação não visa exprimir as idiossincrasias do indivíduo, mas sobretudo expor atitudes e formas de comportamento em diversas situações. Contudo, como refere Brecht, o princípio da imitação da realidade e a subsequente identificação emocional do espectador com as personagens estão de tal modo enraizados na cultura do teatro ocidental que Mei Lan-fang, nas suas tournées pelo Ocidente, faz questão de explicar que representa, mas não imita figuras de mulher e que, na realidade, é um “homem viril, bom pai de família e até banqueiro”. Para além do estilo de representação não naturalista, Brecht encontra no teatro chinês outras possibilidades de produzir efeitos de estranhamento, nomeadamente nos vários símbolos próprios
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da linguagem cénica que, sendo concretos, mas também abstractos, permitem criar uma grande teatralidade com uma economia de meios. Contam-se entre esses efeitos a caracterização das personagens apenas pela maquilhagem ou por determinados adereços e figurinos e a construção do espaço cénico por gestos ou apontamentos cenográficos muito simples e inventivos. Como se verifica no texto Indicação aos intérpretes, que acompanha a primeira publicação de Os horácios e os curiácios em 1936, é esta simplicidade inventiva e eminentemente teatral do teatro chinês visto em Moscovo que inspira Brecht na escrita e na concepção cénica desta peça: Os comandantes dos exércitos são ao mesmo tempo os representantes desses exércitos. Segundo um costume do teatro chinês, as várias formações do exército podem ser indicadas por pequenas bandeiras que os comandantes ostentam numa ripa de madeira presa à nuca, mais larga do que os ombros. Os movimentos dos intérpretes têm de ser lentos e resultar da sensação de terem as tábuas nos ombros e de uma certa amplitude. Os intérpretes indicam a eliminação das suas formações tirando uma série de bandeiras da ripa de madeira e deitando-as fora. (GBA, 24, 221)
A força expressiva da simplicidade da linguagem teatral chinesa, que anima a concepção da peça, reflecte-se também na indicação de que “ na batalha dos arqueiros não são precisas setas” e de que “para indicar a queda da neve são espalhados alguns pedacinhos de papel sobre o lanceiro”. Embora um dos últimos pontos deste texto refira que “se pode prescindir da música e utilizar apenas tambores”, esta possibilidade surge, na realidade, como uma solução de compromisso uma vez esgotadas as hipóteses de Eisler compor a partitura no tempo pretendido. De facto, depois da desavença com Eisler no fim de Agosto de 1935 e com o esboço da peça já concluído, Brecht voltara a insistir na importância da música e na colaboração do compositor numa carta que lhe dirigira no princípio de Setembro: Seria agora muito necessário nós discutirmos o assunto. Nos coros pus por enquanto só o que é necessário para a acção. Ainda haveria determinadas partes a fazer. A questão da música desta vez não é mesmo nada fácil, para diversas partes falta-me por enquanto a forma. Tal como está agora, não pode ser tudo cantado. Mas a música é necessária em todo o lado uma vez que o movimento dos “exércitos” tem de ser fixado com preci-
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são. Se ainda dispuseres de algum tempo, valeria de facto a pena sempre passares ainda pela Dinamarca. (GBA, 28, 524)
cios passam por uma revolução e combatem com meios novos que possibilitam uma paz autêntica, justa para ambos os povos. (GBA, 26, 458)
A caminho de Nova Iorque, onde ia desempenhar funções docentes na New School for Social Research, Eisler acaba por não ter tempo para passar pela Dinamarca, mas dispõe-se a fazer sugestões, pedindo que lhe seja mandada uma cópia da peça. Brecht não acede a este pedido. Quando envia Os horácios e os curiácios para publicação com a Indicação para os intérpretes, desiste da colaboração de Eisler nesta peça, mas não da sua amizade e da sua participação noutros projectos: em Outubro desse ano, encontram-se em Nova Iorque para acompanhar a encenação de A mãe e posteriormente, tanto no exílio nos Estados Unidos como no regresso à Alemanha depois da guerra, irão voltar a colaborar em diversos trabalhos. Mesmo sem música, a peça é publicada em 1936 com a designação de “peça didáctica”, mas em 1938, quando surge, com ligeiras alterações, no âmbito da primeira edição das obras completas, apresenta a designação de “peça escolar”. No entanto, Brecht não desiste do papel fundamental que atribui à música desde o início da sua concepção e em 1941, no tempo do exílio na Finlândia, propõe ao compositor Simon Parmet, que se encontrava a trabalhar na partitura de Mãe Coragem e os seus Filhos, a composição de Os horácios e os curiácios. Este novo alento resulta de um novo olhar sobre a peça, motivado pela avaliação do decurso da guerra. Nesse ano, em que a União Soviética ainda não tinha sido invadida pela Alemanha, mas o confronto se revelava próximo, Brecht prevê a derrota da Alemanha e a subsequente necessidade de reflectir sobre o modo de lidar com os vencidos, nomeadamente com os alemães vítimas de Hitler, com essa outra Alemanha em cuja existência nunca deixara de acreditar. Essas considerações levam-no a retomar a peça e a pensar acrescentar-lhe um capítulo final, como anota em 16 de Abril de 1941 no diário:
A derrota da Alemanha não estava, no entanto, ainda assim tão próxima. Brecht abandona a Finlândia em Maio de 1941 rumo à União Soviética para daí partir para os Estados Unidos e tanto a reformulação como a composição da peça ficam por fazer. Só em 1954, no regresso a Berlim depois da guerra, é que volta a surgir outra oportunidade de se criar a música para Os horácios e os curiácios e levar finalmente a peça à cena. Quando Hella Brock, uma musicóloga de Halle, pretende desenvolver um projecto de uma “ópera escolar” semelhante ao de O que diz sim, mas com uma temática mais actual, Brecht sugere-lhe o texto pouco conhecido e ainda não musicado da sua última peça didáctica: no ambiente tenso da guerra fria, com a remilitarização em curso, o tema da guerra parecia-lhe actual e o exercício de reflexão dialéctica proposto pela peça um instrumento útil para questionar o dogmatismo oficial cada vez mais acentuado no estado socialista em construção na Alemanha Oriental em que vivia. O compositor escolhido para escrever a música de Os horácios e os curiácios é Kurt Schwaen que, no ano anterior, trabalhara para um espectáculo no Berliner Ensemble. Segundo Isot Kilian, uma das assistentes de encenação nessa altura, Brecht tinha ideias muito definidas tanto para a música como para toda a realização do projecto: os intérpretes deveriam ser alunos entre o segundo e o sexto ano de escolaridade, crianças entre os 7 e os 12 anos de idade, e, por conseguinte, a música deveria ser simples, fácil de cantar e de executar pelos pequenos intérpretes; os coros deveriam tornar o texto sempre perceptível; os adereços e os figurinos deveriam ser bonitos de modo a dar prazer às crianças usá-los; todo o espectáculo deveria ter uma concepção coral e resultar “como um grande bailado”. Embora a peça didáctica fosse, na teoria e na prática, principalmente um exercício para os intérpretes, neste caso para ser realizado no espaço escolar, pensava-se apresentar o projecto também ao grande público no Theater am Schiffbauerdamm, o espaço do Berliner Ensemble (cf. Klaus-Dieter Krabiel, Brechts Lehrstücke. Entstehung und Entwicklung eines Spieltyps, Stuttgart/Weimar, Verlag J. B. Metzler, 1993, p. 272).
tenho falado com o músico parmet sobre a peça didáctica OS HORÁCIOS E OS CURIÁCIOS (há 8 anos que está sem trabalho apesar de ser o melhor maestro do país, e não consegue obter um emprego público, porque é judeu para os suecos e sueco para os finlandeses.) na realidade, falta um capítulo final. os horácios triunfam no terreno militar, mas os curiá-
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são. Se ainda dispuseres de algum tempo, valeria de facto a pena sempre passares ainda pela Dinamarca. (GBA, 28, 524)
cios passam por uma revolução e combatem com meios novos que possibilitam uma paz autêntica, justa para ambos os povos. (GBA, 26, 458)
A caminho de Nova Iorque, onde ia desempenhar funções docentes na New School for Social Research, Eisler acaba por não ter tempo para passar pela Dinamarca, mas dispõe-se a fazer sugestões, pedindo que lhe seja mandada uma cópia da peça. Brecht não acede a este pedido. Quando envia Os horácios e os curiácios para publicação com a Indicação para os intérpretes, desiste da colaboração de Eisler nesta peça, mas não da sua amizade e da sua participação noutros projectos: em Outubro desse ano, encontram-se em Nova Iorque para acompanhar a encenação de A mãe e posteriormente, tanto no exílio nos Estados Unidos como no regresso à Alemanha depois da guerra, irão voltar a colaborar em diversos trabalhos. Mesmo sem música, a peça é publicada em 1936 com a designação de “peça didáctica”, mas em 1938, quando surge, com ligeiras alterações, no âmbito da primeira edição das obras completas, apresenta a designação de “peça escolar”. No entanto, Brecht não desiste do papel fundamental que atribui à música desde o início da sua concepção e em 1941, no tempo do exílio na Finlândia, propõe ao compositor Simon Parmet, que se encontrava a trabalhar na partitura de Mãe Coragem e os seus Filhos, a composição de Os horácios e os curiácios. Este novo alento resulta de um novo olhar sobre a peça, motivado pela avaliação do decurso da guerra. Nesse ano, em que a União Soviética ainda não tinha sido invadida pela Alemanha, mas o confronto se revelava próximo, Brecht prevê a derrota da Alemanha e a subsequente necessidade de reflectir sobre o modo de lidar com os vencidos, nomeadamente com os alemães vítimas de Hitler, com essa outra Alemanha em cuja existência nunca deixara de acreditar. Essas considerações levam-no a retomar a peça e a pensar acrescentar-lhe um capítulo final, como anota em 16 de Abril de 1941 no diário:
A derrota da Alemanha não estava, no entanto, ainda assim tão próxima. Brecht abandona a Finlândia em Maio de 1941 rumo à União Soviética para daí partir para os Estados Unidos e tanto a reformulação como a composição da peça ficam por fazer. Só em 1954, no regresso a Berlim depois da guerra, é que volta a surgir outra oportunidade de se criar a música para Os horácios e os curiácios e levar finalmente a peça à cena. Quando Hella Brock, uma musicóloga de Halle, pretende desenvolver um projecto de uma “ópera escolar” semelhante ao de O que diz sim, mas com uma temática mais actual, Brecht sugere-lhe o texto pouco conhecido e ainda não musicado da sua última peça didáctica: no ambiente tenso da guerra fria, com a remilitarização em curso, o tema da guerra parecia-lhe actual e o exercício de reflexão dialéctica proposto pela peça um instrumento útil para questionar o dogmatismo oficial cada vez mais acentuado no estado socialista em construção na Alemanha Oriental em que vivia. O compositor escolhido para escrever a música de Os horácios e os curiácios é Kurt Schwaen que, no ano anterior, trabalhara para um espectáculo no Berliner Ensemble. Segundo Isot Kilian, uma das assistentes de encenação nessa altura, Brecht tinha ideias muito definidas tanto para a música como para toda a realização do projecto: os intérpretes deveriam ser alunos entre o segundo e o sexto ano de escolaridade, crianças entre os 7 e os 12 anos de idade, e, por conseguinte, a música deveria ser simples, fácil de cantar e de executar pelos pequenos intérpretes; os coros deveriam tornar o texto sempre perceptível; os adereços e os figurinos deveriam ser bonitos de modo a dar prazer às crianças usá-los; todo o espectáculo deveria ter uma concepção coral e resultar “como um grande bailado”. Embora a peça didáctica fosse, na teoria e na prática, principalmente um exercício para os intérpretes, neste caso para ser realizado no espaço escolar, pensava-se apresentar o projecto também ao grande público no Theater am Schiffbauerdamm, o espaço do Berliner Ensemble (cf. Klaus-Dieter Krabiel, Brechts Lehrstücke. Entstehung und Entwicklung eines Spieltyps, Stuttgart/Weimar, Verlag J. B. Metzler, 1993, p. 272).
tenho falado com o músico parmet sobre a peça didáctica OS HORÁCIOS E OS CURIÁCIOS (há 8 anos que está sem trabalho apesar de ser o melhor maestro do país, e não consegue obter um emprego público, porque é judeu para os suecos e sueco para os finlandeses.) na realidade, falta um capítulo final. os horácios triunfam no terreno militar, mas os curiá-
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Tendo em conta as crianças como grupo-alvo, e também o contexto social e político da República Democrática Alemã em que a peça iria ser representada pela primeira vez, Brecht publica-a em 1955, incluída “na 24ª experiência (peças para escolas)”, com a nova designação de “uma peça didáctica sobre dialéctica para crianças”. Kurt Schwaen compõe a partitura entre Outubro e Dezembro de 1955. Estruturada em trinta números, com umas partes só cantadas, outras só instrumentais e outras só faladas, mesmo algumas das intervenções do coro, a composição destaca o contraste da agressão e da defesa. Em Junho de 1956, Brecht tem oportunidade de ouvir a música em gravação. Embora satisfeito com o resultado, desafia o compositor a compor ainda mais música e a musicar praticamente toda a peça. Kurt Schwaen começa a compor uma abertura, mas depois da morte de Brecht, em 14 de Agosto de 1956, suspende o trabalho. Irá retomá-lo em 1962 para a primeira encenação escolar da peça, realizada numa escola em Pirna por alunos dos 11º e 12º anos. A estreia absoluta de Os horácios e os curiácios, com música de Kurt Schwaen, ocorre em 26 de Abril de 1958 no Theater der Jungen Garde em Halle, sob a direcção artística da musicóloga Hella Brock. A concepção cénica e o estilo de representação seguem em grande medida a simplicidade “asiática” sugerida em 1936 no texto Indicação para os intérpretes, mas diferentemente do que Brecht tinha imaginado em 1954 e 1955, os seus primeiros intérpretes não são crianças de escola, mas jovens estudantes do Conservatório e dos Institutos de Ciências Musicais e de Elocução da Universidade de Halle. Como se trata de um espectáculo produzido como um exercício num contexto formativo, não suscita a atenção da crítica e passa praticamente despercebido. A música de Os horácios e os curiácios, que Brecht considerara desde o início essencial, precisamente por a peça didáctica ser sobretudo um género musical, só chega a um público mais alargado quando a peça é transmitida pela Rádio de Berlim em 1970 e divulgada pela editora kreuzberg records em cd em 1999. No entanto, tal como as outras peças didácticas, também Os horácios e os curiácios continua a ser utilizada principalmente como uma peça de teatro, seja nas escolas seja nos teatros, e não como uma peça de música que poderia integrar a programação de uma sala de concertos.
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UM APELO No conjunto das peças de Brecht, As espingardas da Senhora Carrar destaca-se pela relação estreita e imediata com a actualidade do tempo para o qual foi escrita, mas também por um outro aspecto aparentemente contraditório: apesar de se debruçar sobre a Guerra Civil de Espanha então em curso e ter sido escrita para apelar a uma tomada de posição e intervenção activa nesse conflito, não foi votada ao esquecimento como uma peça datada, circunscrita a esse propósito concreto, continuando a ser até hoje uma das suas peças mais representadas. O desafio para a escrita da peça parte do realizador Slatan Dudow que, no exílio em Paris, pretende desenvolver com actores alemães também aí exilados um projecto de teatro antifascista e propõe a Brecht, numa carta de 4 de Setembro de 1936, o assunto da Guerra Civil de Espanha, que dominava então a actualidade política e era o foco das mais acesas discussões e emoções. Desencadeada em Julho de 1936 por um golpe militar movido por generais contra o governo republicano eleito cinco meses antes, a Guerra Civil de Espanha adquirira rapidamente uma dimensão internacional: enquanto França, Inglaterra e os Estados Unidos, declarando optar pela neutralidade e pela não intervenção, bloqueavam o fornecimento de armas às forças republicanas, Alemanha e Itália prestavam abertamente o seu apoio militar aos generais. A polarização ideológica que se tinha extremado na Europa com o fortalecimento totalitário tanto do regime nazi como do regime estalinista confrontava-se pela primeira vez de forma sangrenta no terreno desta guerra. Para socialistas e comunistas de vários países e muito especialmente para os exilados políticos da Alemanha de Hitler, a necessidade de apoiar por todos os meios a causa republicana abria um campo de acção concreto em que podiam lutar contra o avanço do fascismo. Embora o desafio lançado por Slatan Dudow e o carácter urgente da resposta fossem de imediato motivadores para Brecht, a escrita de As espingardas da Senhora Carrar só será iniciada em Abril de 1937 e concluída pouco antes da estreia que se realiza em 16 de Outubro desse ano na Salle Adyar em Paris. Uma das primeiras dificuldades com que depara na concepção da peça, que para apelar à tomada de posição sobre a guerra em curso tem de apresentar dados actualizados e objectivamente convincentes, é a rápida evolução da guerra no terreno. Em Agosto de 1937, o título inicial Gene-