Cesare Pavese fotografado por Ghitta Carell.
Título original: Lavorare stanca © Giulio Einaudi editore s.p.a., Torino, 1961 © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1997 Concepção gráfica de João Botelho ISBN 972-8423-09-8 A presente edição contou com o apoio do Ministero degli Affari Esteri Italiano Direzione Generale delle Relazioni Culturali
Cesare Pavese
Trabalhar Cansa
Tradução e introdução de Carlos Leite
Cotovia
Índice
Introdução O ofício de viver — o ofício de escrever
p. 13
TRABALHAR CANSA Antepassados Os mares do sul Antepassados Paisagem I Desenraizados O deus-cabrão Paisagem II O filho da viúva Lua de Agosto Eles estiveram lá Paisagem III A noite
25 33 37 41 43 47 51 55 59 63 65
Depois Encontro Mania da solidão Revelação Manhã Verão Nocturno Agonia Paisagem VII Mulheres apaixonadas
69 71 75 77 79 81 83 87 89
Terras queimadas Tolerância A puta camponesa Pensamentos de Deola Dois cigarros Depois
93 97 101 105 109 113
Cidade no campo O tempo passa Gente que não compreende Casa em construção Cidade no campo Atavismo Aventuras Civilização antiga Ulisses Disciplina Paisagem V Indisciplina Retrato de autor Bagaço em Setembro Ballet Paternidade Atlantic Oil Crepúsculo dos areeiros O carroceiro Trabalhar cansa
119 123 127 131 135 139 141 145 149 151 155 159 163 167 169 171 175 179 181
Maternidade Uma estação Prazeres nocturnos O jantar triste Paisagem IV Uma recordação A voz Maternidade A esposa do barqueiro
187 191 195 199 203 205 207 211
A velha bêbada Paisagem VIII
215 219
Lenha verde Exterior Fumadores de papel Uma geração Revolta Lenha verde Poggio Reale Palavras do político
223 227 231 235 239 243 245
Paternidade Mediterrânica Paisagem VI Mito O paraíso sobre os telhados Simplicidade O instinto Paternidade A estrela da manhã
249 253 257 261 263 265 269 273
Apêndice O ofício de poeta (a propósito de Trabalhar Cansa) A propósito de certas poesias ainda não escritas
279 301
VIRÁ A MORTE E TERÁ OS TEUS OLHOS A terra e a morte Terra vermelha terra negra És como uma terra Também és colina Tens rosto de pedra esculpida Tu não sabes as colinas De salsugem e de terra Vens sempre do mar
317 319 321 325 327 329 333
E então nós cobardes És a terra e a morte
337 339
Virá a morte e terá os teus olhos To C. from C. In the morning you always come back Tens sangue, respiras Virá a morte e terá os teus olhos A casa You, wind of March Passarei pela Praça de Espanha As manhãs passam claras The night you slept The cats will know Last blues, to be read some day
343 345 347 351 353 355 359 361 363 365 369
INTRODUÇÃO
O ofício de viver — o ofício de escrever
A primeira edição da recolha de poemas Trabalhar Cansa foi publicada em 1936, com o autor preso por antifascismo (a edição definitiva, aumentada, é de 1943) e não teve grandes repercussões, talvez porque os seus versos longos, que pareciam assemelhar-se aos versos livres de Walt Whitman, ressoassem duma maneira escandalosa aos ouvidos dos leitores habituados ao lirico-cantabile aristocrático, espartilhado, do hermetismo vigente na poesia italiana do primeiro quarto do século, e os temas à primeira leitura naturalistas dos poemas indiciassem um autor solipsista com pendores populistas. «Uma das vozes mais isoladas da poesia contemporânea» foi a epígrafe escolhida para envolver o volume de Lavorare stanca (1943), ditada pelo próprio Pavese. Nos textos de reflexão e crítica da sua poética — O ofício de poeta e A propósito de certas poesias ainda não escritas, incluídos em apêndice à edição definitiva de Trabalhar Cansa, mas também o Segredo profissional, com que abre O Ofício de Viver, o seu diário publicado postumamente —, Pavese sintetiza este seu cancioneiro como «a aventura do adolescente que, orgulhoso do seu campo, imagina que a cidade é igual, mas nela encontra a solidão e lhe opõe o sexo e a paixão que apenas servem para o desenraizar e o lançar para longe do campo e da cidade, numa mais trágica solidão que é o fim da adolescência». Trabalhar Cansa possui, na apreciação crítica que dele faz, uma coerência formal dada pela «evocação de figuras absolutamente solitárias mas vivas no plano imaginário porque soldadas ao seu pequeno mundo por meio da imagem interna». A grande cidade (Turim) choca o jovem intelec-
13
TRABALHAR CANSA
tual pequeno-burguês; os valores do mundo rural da infância (as Langhe natais, Santo Stefano Belbo, nos contrafortes dos Alpes piemonteses) são obsoletos e em decomposição acelerada face à industrialização capitalista; os valores que governam a cidade (Turim é capital do trabalho; a pletora fascista impera em Itália) e o mundo dos adultos (o sexo, a paixão) acabaram por lhe causar uma profunda decepção, ressente-os como uma barreira intransponível; solitário, desenraizado, sem outra realidade pessoal que não seja a estranheza de si e do mundo, viverá a sua solidão existencial como uma tragédia. O poeta conhece, por conseguinte, a sonoridade da sua lira. Inicia a busca do real e do sentido da existência reapropriando-se dos símbolos da infância, que desenvolve de forma mítica e irracional. Sobre essa base constrói uma mitologia pessoal, elaborada na contemplação do mundo rural piemontês, à luz dos escritores realistas americanos, que os estudos de etnologia e um simbolismo de origem junghiana reforçam e cujos primeiros resultados naturalistas têm muito a ver com o D’Annunzio «verista» e Nietzsche. Mas os ritos arcaicos de sangue e sexo acabam sempre por ser, para o homem da cidade — logo, para o intelectual —, mais um espelho da sua própria solidão, pois no mito não há evasão, mas uma forma transfigurada de autoconsciência, a descoberta terrível de um «destino», duma maldição. Esta é a demanda intelectual de Pavese. No entanto, a sua consciência das potencialidades do fundo cultural de que parte nem sempre é isenta de contradições, que o impedem de as aprofundar com coerência. Por vezes parece atraído por concepções ideológicas, outras é a sua concepção romântica do artista (o valor exemplar da sua vida) que o faz desviar-se, confundem-no as suas próprias frustrações de intelectual pequeno-burguês. Parece ter necessidade de se camuflar, de se conformar, de se fazer passar por aquilo que não é, de vestir peles que não são a sua, pela rudeza, pela grosseria, pelo excesso de virilidade e desenvoltura.
14
INTRODUÇÃO
Trabalhar Cansa tem como leitmotiv a solidão, em que se repetem obsessivamente os temas da evasão e da fuga, a vida é um cárcere, repetição inútil, destino inelutável. Das suas páginas ressaltam sobretudo as figuras do rapaz que foge de casa, do velho, da prostituta, enfim, dos que são incapazes de inserir-se no ritmo da existência comum, que é a dos adultos que trabalham. O sonho da paternidade (outra obsessão de Pavese) é um desejo doentio e jamais satisfeito, como também não compensa e é causa de frustrações a aventura amorosa, vivida (Encontro) ou espiada e desejada de longe (em Crepúsculo dos areeiros). Prisioneiro do próprio corpo, como da vida, o outro é uma presença opaca, sem rosto, ou de rosto indecifrável, que apenas se manifesta pela necessidade de satisfazer os instintos. Todas as janelas, reais ou figuradas, se abrem para a rua rectilínea e sem fim, para as colinas mudas de indiferença. A fome de companhia, de calor, de sexo, angustia e isola ainda mais, mas os encontros são bruscos, breves, ditados pela necessidade mais primária, o amor é linear e de desfecho pré-estabelecido, o silêncio a sós ou acompanhado enche-se de gritos mudos e de fumo de cigarros, na cidade os solitários juntam-se para pôr em comum a solidão e sentir algum calor na construção da solidariedade. Os fumadores de papel ou Uma geração mostram uma vontade de rebelião contra situações de impotência e opressão, que assumem o valor de metáfora do fascismo. O deus-cabrão cheira a sangue e a sexo numa reminiscência infantil. Os poemas narrativos de Trabalhar Cansa revelam uma evolução técnica na sua construção, do jogo simples de alguns símbolos evidentes (de que o exemplo mais conseguido será talvez Desenraizados), mas recorrentes noutros poemas (colina-sexo, flores-raparigas), à consumação duma concentração lírico-simbólica, cujo resultado mais equilibrado é A estrela da manhã, o poema com que se encerra a recolha. Paralelamente, o narrador passa «de um eu naturalista a um eu monologante» (Cidade no campo), com uma lição de estilo que tem a ver, uma vez mais, com a técnica da narrativa. A descoberta do valor simbólico (mas não alegórico, não
15
TRABALHAR CANSA
explicativo) da imagem-metáfora é um princípio eminentemente técnico apenas, que tem a ver com a estrutura do poema e não com a «mensagem», com o significante e não com o significado. A composição dum poema parte sempre dum acontecimento externo, duma problemática pessoal (a «história»), mas a sua estrutura é imediatamente já outra realidade, metáfora (não necessariamente consonante, ou afim, ou análoga à realidade da trama) subterrânea, diluída, sublimada. Por exemplo, uma história de amor é contada como se fosse um facto de sangue; a grosseria que serve de pano de fundo a um idílio campestre pode recobrir toda a tela, mas não se lhe sobrepõe nem condiciona ocultamente a força ou a função poética de nenhum dos seus elementos — um princípio refinadamente oblíquo do acto artístico genuinamente moderno. Pavese fala dos modelos elisabetheanos, e reivindica-se especialmente do Shakespeare «metafísico», mas poderia igualmente reivindicar-se de Proust, Joyce, Kafka. Ou até de alguma música dodecafónica e serial,1 e de certas técnicas de trompe l’oeil da pintura. A primeira aplicação desta técnica, data-a do poema do «eremita» (Paisagem I), em que a imagem deixou de ser «translacção, decoração mais ou menos arbitrária sobreposta à objectividade narrativa», para passar a ser «obscuramente, a própria narração». No diário analisará outras composições seriais, em que a «relação imaginária» entre o primeiro e o segundo termos do processo metafórico é «o próprio argumento da narração». 1 No prefácio da tradução francesa de Lavorare stanca, Dominique Fernandez cita o crítico musical Massimo Mila. Segundo este, «a função poética de Pavese parece hoje singularmente próxima da dos novos músicos italianos, de Casella a Petrassi, de Busoni a Dallapiccola, de Malipiero a Nono, comprometidos numa dupla tarefa: por um lado, conquistar as posições da cultura europeia contemporânea, por outro, recuperar as posições duma antiga civilização instrumental italiana, obliterada durante a invasão da ópera no séc. XIX.». (Cesare Pavese, Travailler fatigue, Gallimard)
16
INTRODUÇÃO
Ainda e sempre no diário, Pavese coloca a questão da unidade da obra poética: «O problema estético mais urgente, meu e do meu tempo, é sem dúvida o da unidade duma obra de poesia» — e encontra essa unidade no tempo: «A dificuldade do tempo da narração consiste na transformação do tempo material, monótono e bruto, num tempo imaginário que tenha a mesma consistência que o outro». O escandir dos temas, a sua recorrência, são um artefacto que dá «significado ao tempo» e a «realidade secreta» do poema, ao emergir repetidamente, funciona como um relógio que ritma a obra, ligando e unindo o princípio e o fim e todas as partes do objecto narrado, e confere uma consistência real ao tempo «imaginário». E por isso «narrar é sentir na diversidade do real uma cadência significativa»; «dizer estilo é dizer cadência, ritmo, retorno obsessivo do gesto e da voz, da própria posição na realidade». A obra conseguida só pode ser «puro ritmo», uma vez que o artista não é aquele que «conhece a natureza humana», mas sim o que «possui blocos de realidade, experiências significativas que lhe ritmam e cadenciam e subtendem o discurso». Criar é estilizar, buscar um ritmo, simetrias, cadências «sob as coisas e sob os factos da realidade externa». Se bem que Trabalhar Cansa seja a obra poética principal de Cesare Pavese, pela qual é reconhecido como um dos grandes poetas europeus do séc. XX, mas que parece não ter ultrapassado as fronteiras dos habituais grupos de iniciados, Virá a Morte e Terá os Teus Olhos, publicado em 1950 após a sua morte, incluindo A Terra e a Morte (já publicado em 1945), é a obra que o deu a conhecer ao público italiano — como poeta, sublinhe-se; o romancista e o intelectual eram figuras preponderantes na cultura e na vida italianas — e dele fez um poeta célebre. Foi, sem dúvida, a circunstância de Virá a Morte e Terá os Teus Olhos ter sido inspirado pelos amores infelizes do poeta por uma actriz americana, Constance Dowling, a quem de resto era dedicado, que contribuiu
17
TRABALHAR CANSA
para tanto; as duas recolhas seriam inclusivamente musicadas e gravadas em disco. O Pavese que se lê nestes dois conjuntos é muito diferente do de Trabalhar Cansa, um Pavese que fala na primeira pessoa para alguém que está ausente, que se abandona em censuras magoadas à mulher amada (diferente num e no outro livro), em versos curtos e rápidos, impregnados de uma musicalidade vibrante mas dolente de nostalgia, de cansaço, de renúncia, nas formas do lirismo que o temperamento italiano acabaria por ouvir com mais facilidade, por serem mais próximas da sua sensibilidade. Os temas reduzem-se também, ou melhor, concentram-se: a mulher é o sangue, é a terra, é a morte. Aceite a derrota da luta contra a solidão, resta a inutilidade da vida e a conclusão do seu destino sobre a terra. A beleza destes poemas não é, porém, inferior à dos de Trabalhar Cansa, é outra, simplesmente: mais espontânea, mais simples, mais directa, menos «fabricada», menos «programática». Como se o poeta desse, enfim, vez à sua voz natural. Há livros que, uma vez lidos, não se conseguem fechar. Ficam abertos numa mesa qualquer da memória, esquecidos, irradiando uma luz inquietante e incompreensível, à espera que as mãos que os abriram voltem, para os fecharem e guardarem como se devem guardar os livros, numa estante. O Ofício de Viver é um deles, a anotação lúcida e impiedosa dos dias e do pensamento de um escritor para ele próprio, seu primeiro leitor. Lido no final dos anos 60 na tradução portuguesa então publicada, foi um livro obrigatório para quem na altura era jovem, com curiosidade intelectual e vontade de fazer a experiência duma cultura a fazer-se, viva, em liberdade — como também a experiência da própria vida — que a realidade social e política portuguesa da época não consentia, antes anquilosava. Hoje é sobretudo um livro que mostra de que matéria era feito o homem Cesare Pavese, a lucidez atormentada com que viveu o seu próprio papel de intelectual empe-
18
INTRODUÇÃO
nhado politicamente na sociedade italiana antifascista e pós-fascista (as décadas de 30 e 40), num fundo de solidão essencial cuja única escapatória acabou por ser a autodestruição vivida como «vício absurdo». Traduzir Lavorare stanca e Verrà la morte e avrà i tuoi occhi — toda a sua obra poética — tratou-se, pois, de fechar um livro que ficou aberto abrindo outro, ou de abrir o mesmo, relendo-o nas suas páginas de «poética prática».
Alguns dados biográficos
Cesare Pavese nasceu em Santo Stefano Belbo, nas Langhe (província de Cuneo) em 1908, tendo-se mudado ainda criança para Turim, donde se ausentou sempre apenas durante pouco tempo: passou um ano na prisão em Brancaleone (Reggio Calabria), comprometido por amigos políticos; passou algum tempo em Roma em trabalho para o editor Einaudi, de quem foi um dos mais eficazes conselheiros editoriais; suicidou-se em Turim em 1950. A sua tese de licenciatura foi sobre Walt Whitman e já não era um desconhecido quando em 1936 publicou Lavorare stanca: tinha já publicado e continuaria a publicar estudos sobre literatura norte-americana clássica e contemporânea, reunidos num volume (La letteratura americana e altri saggi) publicado postumamente em 1951. Traduziu Daniel Defoe (Moll Flanders), Dickens, Melville (Moby Dick e Benito Cereno), Joyce (Dedalus), Sinclair Lewis, John dos Passos, Gertrude Stein. As suas traduções são consideradas de rara qualidade, constituindo um capítulo essencial, ainda por investigar, da moderna prosa italiana. Autor de inúmeros romances (muitos dos quais traduzidos para português), foi considerado por muitos um dos chefes-de-fila do neo-realismo italiano, o que o irritava e é bom de entender, já que
19
TRABALHAR CANSA
a sua obra se afasta do provincianismo naturalista inerente a essa corrente literária, para o aproximar da consciência da crise (e da ambiguidade com que esta é vivida pelo intelectual) que é própria da cultura e da literatura europeias. É no entanto verdade que muita da literatura neo-realista italiana nasce do seu romance Paese tuoi, publicado em 1941. A sua influência fez-se sentir em escritores mais novos, como Pasolini e Italo Calvino, entre outros.
Bruxelas, Janeiro de 1997 Carlos Leite
Para esta introdução consultei (e utilizei) as seguintes obras: de Gianfranco Contini, La Letteratura italiana, 1974, Sansoni/Accademia; de Romano Luperini, Il Novecento, 1981, Loeschi Editore; de Tibor Wlassics, Pavese falso e vero. Vita, poetica, narrativa, 1985, Centro di Studi Piemontesi.
20
LAVORARE STANCA TRABALHAR CANSA
Antenati Antepassados
TRABALHAR CANSA
(a Monti)
I MARI DEL SUD
Camminiamo una sera sul fianco di un colle, in silenzio. Nell’ombra del tardo crepuscolo mio cugino è un gigante vestito di bianco, che si muove pacato, abbronzato nel volto, taciturno. Tacere è la nostra virtú. Qualche nostro antenato dev’essere stato ben solo — un grand’uomo tra idioti o un povero folle — per insegnare ai suoi tanto silenzio. Mio cugino ha parlato stasera. Mi ha chiesto se salivo con lui: dalla vetta si scorge nelle notti serene il riflesso del faro lontano, di Torino. «Tu che abiti a Torino...» mi ha detto «...ma hai ragione. La vita va vissuta lontano del paese: si profitta e si gode e poi, quando si torna, come me a quarant’anni, si trova tutto nuovo. Le Langhe non si perdono». Tutto questo mi ha detto e non parla italiano, ma adopera lento il dialetto, che, come le pietre di questo stesso colle, è scabro tanto che vent’anni di idiomi e di oceani diversi non gliel’hanno scalfito. E cammina per l’erta con lo sguardo raccolto che ho visto, bambino, usare ai contadini un poco stanchi. Vent’anni è stato in giro per il mondo. Se n’andò ch’io ero ancora un bambino portato da donne
24
ANTEPASSADOS
(para Monti)
OS MARES DO SUL
Caminhamos uma tarde pela encosta dum monte, em silêncio. Na sombra do lento crepúsculo, o meu primo é um gigante vestido de branco, de andar pausado, o rosto bronzeado, taciturno. O silêncio é a nossa força. Um antepassado nosso deve ter-se sentido muito só — grande homem entre imbecis, um louco coitado — para ensinar aos seus tanto silêncio. Esta tarde o meu primo falou. Perguntou-me se queria ir com ele: do alto, vê-se em noites serenas o brilho das luzes ao longe, de Turim. “Tu que vives em Turim...” disse-me “... tu é que tens razão. A vida vive-se longe da terra: ganha-se, goza-se e depois, quando se volta, como eu aos quarenta, tudo é novo e diferente. As Langhe não se perdem”. Disse-me isto tudo e não fala italiano, mas serve-se, pausado, do dialecto que, como as pedras deste mesmo monte, é tão áspero que vinte anos de línguas e oceanos diversos lho não arranharam. E sobe a encosta com o olhar ensimesmado que vi, menino, nos olhos dos camponeses já um pouco cansados. Durante vinte anos correu mundo. Abalou era eu ainda um menino que as mulheres levavam ao colo
25
TRABALHAR CANSA
e lo dissero morto. Sentii poi parlarne da donne, come in favola, talvolta; ma gli uomini, piú gravi, lo scordarono. Un inverno a mio padre già morto arrivò un cartoncino con un gran francobollo verdastro di navi in un porto e augurî di buona vendemmia. Fu un gran stupore, ma il bambino cresciuto spiegò avidamente che il biglietto veniva da un’isola detta Tasmania circondata da un mare piú azzurro, feroce di squali, nel Pacifico, a sud dell’Australia. E aggiunse che certo il cugino pescava le perle. E staccò il francobollo. Tutti diedero un loro parere, ma tutti conclusero che, se non era morto, morirebbe. Poi scordarono tutti e passò molto tempo. Oh da quando ho giocato ai pirati malesi, quanto tempo è trascorso. E dall’ultima volta che son sceso a bagnarmi in un punto mortale e ho inseguito un compagno di giochi su un albero spaccandone i bei rami e ho rotta la testa a un rivale e son stato picchiato, quanta vita è trascorsa. Altri giorni, altri giochi, altri squassi del sangue dinanzi a rivali piú elusivi: i pensieri ed i sogni. La città mi ha insegnato infinite paure: una folla, una strada mi han fatto tremare, un pensiero talvolta, spiato su un viso. Sento ancora negli occhi la luce beffarda dei lampioni a migliaia sul gran scalpiccío. Mio cugino è tornato, finita la guerra, gigantesco, tra i pochi. E aveva denaro. I parenti dicevano piano: «Fra un anno, a dir molto, se li è mangiati tutti e torna in giro.
26
ANTEPASSADOS
e deram-no como morto. Depois ouvi falarem dele as mulheres às vezes, como uma fábula; mas os homens, mais sérios, esqueceram-no. Num Inverno, para o meu pai já falecido chegou um postal de grande selo esverdeado com navios num porto e votos de boa vindima. O espanto foi grande, mas o menino crescido explicou avidamente que o postal vinha duma ilha chamada Tasmânia, rodeada por um mar mais azul, feroz de tubarões, no Pacífico, ao sul da Austrália. E acrescentou que o primo pescava pérolas, de certeza. E arrancou o selo. Deram todos a sua opinião, mas todos concluiram que, se ainda não morrera, havia de morrer. Depois esqueceram-no e passou muito tempo. Oh, quanto tempo passou desde que brinquei aos piratas malaios. E desde a última vez em que fui nadar para um sítio perigoso e persegui um companheiro por uma árvore acima, quebrando-lhe os belos ramos, e rachei a cabeça a um rival e me deram uma tareia, quanta vida passou. Outros dias, outros jogos, outros abalos do sangue frente a rivais mais esquivos: os pensamentos e os sonhos. A cidade ensinou-me infinitos medos: uma multidão, uma rua fizeram-me tremer, às vezes um pensamento, espreitado num rosto. Sinto ainda nos olhos a luz escarninha dos milhares de candeeiros sobre o tropel dos passos. O meu primo voltou, acabada a guerra, entre poucos, um gigante. E tinha dinheiro. Os parentes diziam em voz baixa: “Daqui a um ano, e já é muito, tem-no todo comido e abala outra vez.
27
TRABALHAR CANSA
I disperati muoiono cosí». Mio cugino ha una faccia recisa. Comprò un pianterreno nel paese e ci fece riuscire un garage di cemento con dinanzi fiammante la pila per dar la benzina e sul ponte ben grossa alla curva una targa-réclame. Poi ci mise un meccanico dentro a ricevere i soldi e lui girò tutte le Langhe fumando. S’era intanto sposato, in paese. Pigliò una ragazza esile e bionda come le straniere che aveva certo un giorno incontrato nel mondo. Ma uscí ancora da solo. Vestito di bianco, con le mani alla schiena e il volto abbronzato, al mattino batteva le fiere e con aria sorniona contrattava i cavalli. Spiegò poi a me, quando fallí il disegno, che il suo piano era stato di togliere tutte le bestie alla valle e obbligare la gente a comprargli i motori. «Ma la bestia» diceva «piú grossa di tutte, sono stato io a pensarlo. Dovevo sapere che qui buoi e persone son tutta una razza». Camminiamo da piú di mezz’ora. La vetta è vicina, sempre aumenta d’intorno il frusciare e il fischiare del vento. Mio cugino si ferma d’un tratto e si volge: «Quest’anno scrivo sul manifesto: — Santo Stefano è sempre stato il primo nelle feste della valle del Belbo — e che la dicano quei di Canelli». Poi riprende l’erta. Un profumo di terra e di vento ci avvolge nel buio, qualche lume in distanzia: cascine, automobili che si sentono appena; e io penso alla forza che mi ha reso quest’uomo, strappandolo al mare, alle terre lontane, al silenzio che dura. Mio cugino non parla dei viaggi compiuti.
28
ANTEPASSADOS
Os desesperados morrem assim”. O meu primo tem um ar decidido. Comprou um rés-do-chão na aldeia e nele fez prosperar uma garagem de cimento com a bomba da gasolina à frente, flamejante, e um cartaz-reclame na ponte, na curva, bem à vista. Depois meteu um mecânico a receber o dinheiro e foi dar um giro pelas Langhe, de cigarro na boca. Entretanto tinha-se casado na aldeia. Arranjou uma rapariga esguia e loura como as estrangeiras que sem dúvida encontrara um dia por esse mundo. Mas saía sempre sozinho. Vestido de branco, de mãos atrás das costas e o rosto bronzeado, batia as feiras de manhã e com ar manhoso apreçava cavalos. Explicou-me depois, quando aquilo não deu nada, que a sua intenção fora limpar o vale de bestas de carga e obrigá-los a comprar-lhe os motores. “Mas a besta maior de todas” dizia “fui eu, quando tive a ideia. Devia saber que aqui bois e pessoas é tudo a mesma raça”. Caminhamos há mais de meia hora. O cume está próximo, à nossa volta o vento ruge e assobia cada vez mais forte. O meu primo pára de repente e volta-se: “Este ano vou pôr no cartaz: — A festa do Santo Estevão foi sempre a primeira do vale do Belbo — e que o digam os de Canelli”. E depois retoma a subida. Um perfume de terra e vento envolve-nos na escuridão, ao longe algumas luzes: quintas, automóveis que mal se ouvem; e eu penso na força que me restituiu este homem, arrancando-o ao mar, às terras longínquas, ao silêncio sem fim. O meu primo não fala das viagens que fez.
29
TRABALHAR CANSA
Dice asciutto che è stato in quel luogo e in quell’altro e pensa ai suoi motori. Solo un sogno gli è rimasto nel sangue: ha incrociato una volta, da fuochista su un legno olandese da pesca, il cetaceo, e ha veduto volare i ramponi pesanti nel sole, ha veduto fuggire balene tra schiume di sangue e inseguirle e innalzarsi le code e lottare alla lancia. Me ne accenna talvolta. Ma quando gli dico ch’egli è tra i fortunati che han visto l’aurora sulle isole piú belle della terra, al ricordo sorride e risponde che il sole si levava che il giorno era vecchio per loro.
30
ANTEPASSADOS
Diz simplesmente que esteve em tal ou tal sítio e pensa nos seus motores. Só um sonho lhe ficou no sangue: cruzou-se, uma vez, era fogueiro num pesqueiro holandês, com o cetáceo e viu os pesados arpões voarem ao sol, viu fugirem baleias no meio duma espuma de sangue e perseguirem-nas e erguerem-se as caudas, e a luta das baleeiras. Às vezes fala-me disto. Mas quando lhe digo que é um dos afortunados que viram a aurora nas mais belas ilhas da terra, sorri ao lembrar-se e responde que quando o sol nascia já o dia era velho para eles.
31