Três homens num barco

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TRÊS HOMENS NUM BARCO

(já para não falar do cão)


Título original: Three Men in a Boat (to say nothing of the dog) © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2004 ISBN 972-795-103-1


Jerome K. Jerome

Três homens num barco (já para não falar do cão)

Tradução de Luísa Feijó

Cotovia



Prefácio à Primeira Edição

A principal beleza deste livro não decorre tanto do seu estilo literário ou da vastidão e utilidade das informações que encerra como, e sobretudo, da simples verdade que contém. As suas páginas são o registo de acontecimentos que, de facto, ocorreram. Tudo o que se fez foi dar-lhes um certo colorido; e para tal nem sequer se cobrou qualquer extra. O George, o Harris e o Montmorency não são ideais poéticos, são criaturas de carne e osso — especialmente o George, que pesa quase uns oitenta quilos. Outras obras haverá que podem ultrapassar esta em profundidade de raciocínio e conhecimento da natureza humana; outros livros haverá que podem rivalizar em originalidade e dimensão; mas, no que toca a uma veracidade incurável e incorrigível, nada se descobriu ainda que possa ultrapassar este livro. É isto, mais do que todos os seus outros encantos, que tornará este volume precioso aos olhos do leitor interessado; e trará um peso adicional à lição que a história nos conta. Londres, Agosto de 1889

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CAPÍTULO I

Três inválidos — Sofrimentos do George e do Harris — Uma vítima de cento e sete doenças fatais — Receitas úteis — Cura para os padecimentos do fígado nas crianças — Concordamos que estamos extenuados e que precisamos de descanso — Uma semana no mar revolto — O George sugere o rio — O Montmorency objecta — Moção original vence por uma maioria de três contra um.

Éramos quatro — o George, o William Samuel Harris, eu próprio e o Montmorency. Estávamos sentados no meu quarto a fumar e a dizer quão mal nos sentíamos — mal, quero eu dizer, de um ponto de vista clínico, evidentemente. Estávamos a sentir-nos em baixo de forma, o que nos deixava a todos bastante nervosos. O Harris disse que sentia uns ataques tão extraordinários de tonturas a abater-se sobre ele que, às vezes, mal sabia o que estava a fazer; e depois o George disse que ele também tinha ataques de tonturas e que, nessas alturas, mal sabia o que fazia. Comigo era o fígado que estava desarranjado. Eu sabia que era do fígado porque, ainda há pouco, tinha lido um folheto que anunciava umas pílulas hepáticas e no qual vinham, em pormenor, todos os sintomas que levam uma pessoa a perceber que tem o fígado desarranjado. E eu tinha os sintomas todos. É uma coisa realmente extraordinária mas, sempre que leio um anúncio a um determinado medicamento, chego à conclusão de que sofro da doença particular que ali é abordada e sempre na sua forma mais virulenta. 9


O diagnóstico parece-me corresponder exactamente a tudo aquilo que sinto. Lembro-me de ir uma vez ao Museu Britânico para ver que tratamento existiria para uma afecção benigna de que tinha alguns sintomas — acho que era febre dos fenos. Fui buscar o livro e li o artigo que tinha ido consultar. E então, displicentemente, fui folheando o livro e comecei a estudar, com alguma indolência, as doenças em geral. Já não me lembro de qual foi a primeira doença em que mergulhei — sei que, de qualquer forma, era um padecimento horrendo e devastador — e, antes de ter conseguido percorrer metade da lista dos “sintomas premonitórios”, percebi que sofria precisamente daquela doença. Por instantes fiquei gelado de horror; depois, abatido pelo desespero, continuei a voltar as páginas. Cheguei à febre tifóide — li os sintomas, descobri que sofria de febre tifóide, já devia sofrer há meses sem o saber — perguntei a mim próprio de que mais sofreria; cheguei à Dança de São Vito — descobri, como já previa, que também padecia desta doença — comecei a interessar-me pelo meu caso e, determinado a passar-me ao crivo dos pés à cabeça, pus-me a ler tudo por ordem alfabética: li tudo o que havia sobre angina, soube que sofria daquela maleita e que a fase aguda começaria mais ou menos dali a quinze dias. Fiquei aliviado ao saber que sofria apenas de uma forma atenuada da Doença de Bright e que, no que a essa matéria diz respeito, podia viver por muitos anos. Cólera tinha, e com complicações graves; difteria era algo com que já devia ter nascido. Conscienciosamente percorri as vinte e seis letras e, conforme pude concluir, a única doença de que eu não padecia era a artrose da lavadeira. 10


A princípio, isto magoou-me bastante. Parecia-me de certo modo uma ofensa. Porque não sofreria eu de artrose da lavadeira? Porquê esta restrição injusta? Mas, passado um bocado, os meus sentimentos tornaram-se menos mesquinhos. Reflecti que tinha todas as outras doenças conhecidas da farmacologia e, sentindo-me menos egoísta, decidi esquecer a artrose da lavadeira. A gota, na sua fase mais maligna, parecia ter-me caído em cima sem eu dar por ela; e zimose era algo de que sofria, evidentemente, desde a adolescência. Como não havia mais doenças depois de zimose, cheguei à conclusão de que não sofria de mais nada. Sentei-me e pus-me a meditar. Pensei que, do ponto de vista médico, eu devia ser um caso muitíssimo interessante e uma autêntica benção numa sala de aulas! Os estudantes deixariam de precisar de “correr os hospitais” se me tivessem a mim. Eu era um hospital ambulante. Bastava-lhes andar à minha volta e, em seguida, pedir o diploma. Depois comecei a pensar no tempo que me restaria de vida. Tentei examinar-me. Tomei o pulso. A princípio não consegui sentir nenhuma pulsação. Depois, de repente, aquilo pareceu disparar. Rapei do relógio e pus-me a contar. Contei cento e quarenta e sete por minuto. Tentei ouvir o coração. Não consegui ouvir nada. O coração tinha parado de vez. Desde então tentaram convencer-me de que o coração nunca deixou de estar no seu sítio e que nunca parou de bater. Mas não era capaz de o afirmar sob juramento. Apalpei-me todo, daquilo a que chamo cinta até à cabeça, um bocadinho de cada lado e um bocadinho nas costas. Mas não senti nem ouvi nada. Tentei ver a língua. Deitei-a de fora, esticando-a o 11


mais possível, e fechei um olho, tentando examiná-la com o outro. Só enxerguei a pontinha e a única coisa que lucrei com isso foi confirmar as minhas certezas de que tinha escarlatina. Quando entrei naquela sala de leitura eu era um homem saudável e feliz. Arrastei-me para fora dela como um farrapo decrépito. Fui consultar o meu médico. É um velho amigo meu que me toma o pulso, me vê a língua e fala do tempo, tudo de graça, sempre que penso que estou doente; por isso, achei que lhe ia fazer um grande favor se fosse agora ter com ele. “Aquilo de que um médico precisa”, pensei eu, “é prática e cá estou eu para isso. Ele vai praticar mais comigo do que com setecentos pacientes vulgares que só têm uma ou duas doenças cada.” E assim fui de imediato ter com ele e ele perguntou-me: — Então, que te aconteceu? Eu disse: — Não vou roubar-te tempo, caro amigo, a contar-te o que me aconteceu. A vida é breve e ainda podias morrer antes de eu acabar. Mas vou dizer-te aquilo que não me aconteceu. Não tenho artrose da lavadeira. A razão por que não tenho artrose da lavadeira é coisa que não percebo; mas é um facto que disso não sofro. Porém, de tudo o resto sofro. E disse-lhe como tinha feito aquela descoberta. Então ele mandou-me abrir a boca e olhou por mim abaixo, e agarrou-me o pulso, depois deu-me uma pancada no peito quando eu menos esperava — o que, na minha opinião, foi uma grande cobardia — e logo a seguir deu-me uma cabeçada. Depois sentou-se, escreveu uma receita, dobrou-a e entregou-ma, e eu meti-a no bolso e fui-me embora. 12


Não a abri. Entrei na farmácia mais próxima e estendi-a ao farmacêutico. O homem leu-a e devolveu-ma. Disse que não tinha aquilo. Eu disse: — Não é farmacêutico? Ele respondeu: — Sou farmacêutico. Se fosse a junção de uma mercearia com uma pensão de família, talvez pudesse servi-lo. O facto de ser um simples farmacêutico impede-me de o satisfazer. Li a receita. Dizia assim: Meio quilo de carne com Meio litro de cerveja preta de seis em seis horas Uma caminhada de quinze quilómetros todas as manhãs Uma cama às onze em ponto todas as noites E não enchas a cabeça com coisas de que não percebes nada.

Segui estas instruções com o feliz resultado — falando por mim — de ter salvo uma vida, a minha, que ainda hoje perdura. No caso que agora nos interessa, voltando ao folheto sobre as pílulas hepáticas, eu tinha indubitavelmente todos os sintomas, sendo que o principal era uma “falta de vontade generalizada para realizar qualquer tipo de trabalho”. Não há palavras que descrevam o quanto sofro deste sintoma. Desde a mais tenra infância fui sempre um mártir. Em rapaz, a doença não me deu tréguas praticamente nem um só dia. Na altura ninguém sabia que era do fígado. A ciência médica estava muito menos avançada do que está agora e atribuíam aquilo à preguiça. Diziam-me: 13


— Anda, preguiçoso. Levanta-te e faz pela vida! — Claro que não sabiam que eu estava doente. E não me davam pílulas, davam-me tabefes nas têmporas. Por estranho que pareça, aqueles tabefes na cabeça curaram-me muitas vezes — pelo menos momentaneamente. E reconheço que, naquela altura, alguns daqueles tabefes tiveram mais efeito sobre o meu fígado e me deram mais vontade de andar direito e de fazer sem mais delongas aquilo que queriam que eu fizesse, do que agora acontece com uma caixa inteira de pílulas. Sabem, isso é uma coisa que acontece muitas vezes — aquelas mezinhas simples e antiquadas são frequentemente mais eficazes do que as preparações da farmácia. Ali ficámos meia hora a descrever uns aos outros os nossos sofrimentos. Eu expliquei ao George e ao William Harris como me sentia quando, de manhã, me punha a pé, e o William Harris contou-nos o que sentia quando ia para a cama; e o George, de pé em cima do tapete, em frente à lareira, brindou-nos com uma representação inteligente e impressionante do modo como se sentia durante a noite. O George tem a mania de que é doente; mas, na realidade, podem crer que ele não sofre de nada. Nesse momento, a Senhora Poppets bateu à porta e perguntou se estávamos prontos para o jantar. Sorrimos uns para os outros com tristeza, dizendo que se calhar era melhor tentar engolir qualquer coisa. O Harris disse que às vezes qualquer coisita no estômago ajudava a conter a doença; e a Senhora Poppets trouxe o tabuleiro e nós arrastámo-nos para a mesa onde petiscámos um bifito de cebolada e um pouco de tarte de ruibarbo. Eu, naquela altura, devia estar mesmo fraco; porque me lembro que, passada a primeira meia hora, perdi todo 14


o interesse na comida — coisa rara em mim — e nem sequer quis queijo. Cumprido este dever, voltámos a encher os nossos copos, acendemos os cachimbos e retomámos a discussão sobre o nosso estado de saúde. Aquilo de que sofríamos, realmente, era algo de que nenhum de nós tinha certezas; mas a opinião unânime era que — fosse aquilo o que fosse — tinha sido provocado por excesso de trabalho. — Precisamos é de repouso — disse o Harris. — De repouso e de uma mudança completa — disse o George. — O excesso de pressão exercido sobre os nossos cérebros produziu uma depressão geral em todo o sistema. Uma mudança de cenário e a ausência da necessidade de pensar há-de restaurar o equilíbrio mental. O George tem um primo que normalmente é descrito no registo da polícia como estudante de medicina, de modo que ele tem uma maneira de dizer as coisas com um ar natural, que lembra um médico de família. Concordei com o George e sugeri que devíamos procurar um lugar retirado e pitoresco, longe dos turbilhões da multidão, onde passaríamos uma semana a devanear ao sol por entre os caminhos tranquilos — um qualquer buraco meio esquecido do mundo, escondido pelas fadas, fora do alcance do barulho do mundo; um ninho de águias empoleirado nas falésias do Tempo, onde mal se ouvem palpitar ao longe as vagas tumultuosas do século XIX. O Harris disse que isso havia de ser muito deprimente. Disse que sabia de que tipo de lugar eu estava a falar: um sítio onde toda a gente ia para a cama às oito da noite, onde não se conseguia arranjar um jornal desportivo nem por amor nem por dinheiro e onde era preciso andar vinte quilómetros a pé para encontrar um cigarro. 15


— Não — disse o Harris — para repouso e mudança não há nada como uma viagem por mar. Eu objectei veementemente contra tal ideia. Um cruzeiro ou uma viagem por mar faz bem quando dura uns dois meses, mas, só por uma semana, pode ser um inferno. Partimos na segunda-feira com a ideia implantada no âmago de que nos vamos divertir. Acenamos um adeus ligeiro aos rapazes que ficam em terra, acendemos o nosso maior cachimbo e deambulamos pela coberta como se fôssemos o capitão Cook, Sir Francis Drake e Cristóvão Colombo reunidos num só homem. Na terça-feira só desejamos não ter vindo. Na quarta, quinta e sexta ansiamos pela morte. No sábado, conseguimos engolir um bocadinho de caldo de carne e sentarmo-nos no tombadilho, respondendo com um sorrisinho fraco e doce quando as pessoas caridosas nos perguntam como estamos. No domingo recomeçamos a andar e a comer comida sólida. E na segunda-feira de manhã, quando, de mala e guarda-chuva na mão, estamos prestes a desembarcar, começamos a gostar da viagem. Lembro-me do meu cunhado ter feito um pequeno cruzeiro por mar, por motivos de saúde. Reservou um camarote de ida e volta de Londres para Liverpool; e quando chegou a Liverpool, a única coisa que lhe interessava era vender o bilhete de regresso. Contaram-me que ele deu a volta à cidade a tentar vender o bilhete com uma enorme redução; e acabou por o vender por 18 pence a um rapazito de tez biliosa a quem o médico acabara de aconselhar o ar do mar e muito exercício. — Ar do mar! — disse o meu cunhado, enfiando-lhe afectuosamente o bilhete na mão. — Ora aqui tem ar do mar que lhe dura para a vida inteira. E quanto a exercício! 16


Faz mais exercício a bordo deste barco do que a dar saltos mortais em terra firme! Ele — o meu cunhado — regressou de comboio. Disse que, em termos de saúde, os Caminhos-de-ferro do Noroeste lhe chegavam e sobravam. Outro tipo meu conhecido fez uma semana de viagem ao longo da costa e, antes de partir, o camareiro veio perguntar se queria pagar as refeições, uma por uma ou a série inteira, antecipadamente. O camareiro recomendou esta última opção, que ficaria muito mais barata. Disse que lhe fazia, para a semana inteira, duas libras e cinco. O pequeno-almoço seria peixe seguido de um grelhado. O almoço era à uma e consistia em quatro pratos. Jantar às seis — sopa, peixe, entrada, carne, aves, salada, doces, queijo e sobremesa. E uma ceia leve às dez. O meu amigo, que é um bom garfo, pensou que o melhor era optar pela solução das duas libras e cinco e assim fez. O almoço foi servido exactamente depois de terem partido de Sheerness. Ele não teve tanta fome como pensava que teria e contentou-se com um bocadinho de carne cozida e uns morangos com natas. Durante a tarde fartou-se de ponderar e, a certa altura, pareceu-lhe que andava há semanas a comer unicamente carne cozida e, de outras vezes, parecia-lhe que andava há anos a viver de morangos e natas. A carne e os morangos com natas também não pareciam satisfeitos — pareciam mesmo bastante descontentes. Às seis vieram dizer-lhe que o jantar estava pronto. O anúncio não despertou nele qualquer entusiasmo mas achou que estava ali uma parte das tais duas libras e cinco 17


e, assim, agarrando-se a uns cabos e a mais umas coisas, lá desceu. Um perfume agradável de cebolas e fiambre quente, misturado com peixe frito e verduras, acolheu-o ao fundo das escadas; e depois o camareiro apareceu com um sorriso untuoso e disse-lhe: — Em que posso ajudá-lo? — Ajude-me a sair daqui — foi a fraca resposta. E levaram-no para cima a correr, deixando-o amparado a apanhar vento na cara. Durante os quatro dias seguintes levou uma vida simples e austera, a comer biscoitos dos marinheiros desenxabidos (desenxabidos eram os biscoitos, não os marinheiros) e a beber água mineral; mas, lá para sábado, sentiu-se melhor e já conseguiu beber um cházinho fraco e uma torrada sem manteiga e, na segunda-feira, fez uma orgia de canja de galinha. Deixou o barco na terça-feira e, ao vê-lo afastar-se do porto, ficou a olhar cheio de saudades. — Ali vai ele — disse — ali vai ele com comida a bordo que vale duas libras, que me pertence e que eu nem sequer vi! Disse-me que, se lhe tivessem dado mais um dia, achava que teria conseguido recuperar o seu dinheiro. Por isso, opus-me veementemente ao cruzeiro no mar. Não por minha causa, expliquei. Nunca fui esquisito. Mas tinha medo pelo George. O George disse que por ele estava tudo bem e até gostava, mas aconselhava-me a mim e ao Harris a não pensar no cruzeiro porque tinha a certeza de que ambos ficaríamos doentes. O Harris disse que achava sempre um mistério como é que as pessoas conseguiam enjoar no mar — pensava que as pessoas faziam de propósito, para se darem ares — e que muitas vezes lhe tinha apetecido enjoar mas que nunca tinha conseguido. 18


Depois contou-nos umas histórias de como tinha atravessado o Canal com um tempo tão mau que os passageiros tiveram de ser amarrados aos beliches e ele e o capitão eram as únicas duas criaturas a bordo que não estavam doentes. Às vezes calhava ser ele e o imediato a não estarem doentes; mas, em geral, era sempre ele e outro homem. Quando não era ele e outro homem, então era ele sozinho. É um facto curioso, mas ninguém enjoa por causa do mar quando está em terra. No mar encontramos inúmeras pessoas em muito mau estado, barcos e barcos carregados delas; mas nunca encontrei um único homem em terra que soubesse o que era enjoar no mar. Onde se escondem, quando estão em terra, os milhares e milhares de maus marinheiros que enxameiam em cada navio é um grande mistério. Se muitos homens fossem como um tipo que encontrei um dia no barco de Yarmouth, seria fácil resolver este aparente enigma. Era ao largo do molhe de Southend, lembro-me, e ele estava debruçado de uma das vigias, numa posição muito perigosa. Dirigi-me a ele e tentei salvá-lo. — Ei! Venha mais para dentro — disse eu, abanando-lhe o ombro. — Ainda cai borda fora. — Oh céus! Quem me dera — foi a única resposta que lhe consegui arrancar; e não tive outro remédio senão deixá-lo ali. Três semanas depois encontrei-o no bar de um hotel de Bath, a falar sobre as suas viagens e a explicar, com todo o entusiasmo, o quanto amava o mar. — Bom marinheiro! — disse ele em resposta à pergunta curiosa de um jovem afável. — Bem, confesso que me senti um dia um bocado esquisito. Foi ao largo de Cape Horn. O navio naufragou no dia seguinte. 19


Eu disse: — Não se sentiu um bocado abananado uma vez, em frente ao molhe de Southend, tanto que só queria ir borda fora? — O molhe de Southend! — replicou ele, com uma expressão atónita. — Sim; viajando para Yarmouth, fez sexta-feira três semanas. — Oh, ah!… sim — respondeu ele, iluminando-se. — Já me lembro. Nessa tarde tive, de facto, uma grande dor de cabeça. Foram os picles, sabe. Foram os picles mais detestáveis que alguma vez comi num barco respeitável. O senhor não comeu? Quanto a mim, descobri um excelente preventivo contra o enjoo no mar que é balançar-me. Ponho-me no centro da coberta e, enquanto o barco oscila ao sabor das ondas, mexo o corpo de forma a contrabalançar o movimento. Quando a proa do navio se levanta, inclino-me para a frente, quase a tocar com o nariz na coberta; e quando é a popa que se levanta, inclino-me para trás. Funciona perfeitamente, durante uma ou duas horas. Mas é impossível balançarmo-nos durante uma semana. O George disse: — Vamos para o rio. Disse que teríamos ar fresco, exercício e sossego. A mudança constante de cenário ocuparia as nossas mentes (incluindo aquilo que restava da do Harris) e o trabalho árduo havia de nos espevitar o apetite e de nos fazer dormir bem. O Harris disse que achava que o George não devia fazer nada que pudesse pô-lo a dormir mais ainda do que aquilo que já dormia, pois podia ser perigoso. Disse 20


que não entendia muito bem como é que o George poderia dormir mais, dado que só havia vinte e quatro horas em cada dia, isto tanto de verão como de inverno; mas pensava que, se dormisse mais, era preferível estar morto porque assim poupava em comida e alojamento. O Harris disse, porém, que o rio convinha perfeitamente. De qualquer forma, o rio parecia convir a todos, o que jogava muito a seu favor. A mim também me convinha perfeitamente e tanto o Harris como eu dissemos que o George tinha tido uma boa ideia e dissemo-lo num tom que, de certo modo, implicava que estávamos surpreendidos por ver o George dizer uma coisa tão sensata. O único que não pareceu ficar impressionado com a sugestão foi o Montmorency. Rios eram algo que o Montmorency nunca apreciou. — Para vocês está tudo muito bem — diz ele. — Vocês gostam, mas eu não. Não há nada para eu fazer. O cenário não é nada que me entusiasme e eu não fumo. Se eu vir um rato, vocês não param. E se eu adormecer, vocês põem-se a disparatar com o barco e eu ainda caio à água. Se querem a minha opinião, acho que é um disparate total. Mas éramos três contra um e a moção foi aprovada.

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