Uma paciência selvagem

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UMA PACIÊNCIA SELVAGEM ANTOLOGIA POÉTICA


Título: Uma Paciência Selvagem © Adrienne Rich da Tradução © Maria Irene Ramalho e Monica Varese Andrade © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2008 ISBN 978-972-795-239-7


Adrienne Rich

Uma Paciência Selvagem Antologia poética

Tradução de Maria Irene Ramalho e Monica Varese Andrade

Cotovia



ÍNDICE

Introdução

p. 11

A Change of World (Mudança de mundo) Os tigres da Tia Jennifer A chuva de sangue

29 29

The Diamond Cutters (Os lapidadores de diamantes) Paisagem ideal

35

Snapshots of a Daughter-in-Law (Instantâneos de uma nora) Instantâneos de uma nora Antínoo: Os diários O caminheiro dos telhados Futuros imigrantes tomai nota por favor

39 49 51 53

Necessities of Life (Necessidades da vida) Necessidades da vida Corro perigo — Senhor — Cara a cara

59 63 65

Leaflets (Folhetos) Ao anoitecer O amante-demónio Jerusalém

69 69 77

7


ADRIENNE RICH

The Will to Change (A vontade de mudar) Queimar papéis em vez de crianças Sonho que sou a morte de Orfeu

83 91

Diving into the Wreck (Mergulhando no barco naufragado) Incipiência Mergulhando no barco naufragado A nona sinfonia de Beethoven finalmente entendida como mensagem sexual De uma sobrevivente

95 97 105 105

Poems Selected and New, 1950-1984 (Poemas escolhidos, 1950-1984) O facto de uma ombreira

111

The Dream of a Common Language (O sonho de uma língua comum) O poder Origens e história da consciência Vinte e um poemas de amor

115 117 121

A Wild Patience Has Taken Me This Far (Uma paciência selvagem trouxe-me até aqui) Integridade O que é possível Para Ethel Rosenberg

149 153 157

Sources (Fontes – Selecção)

171

Your Native Land, Your Life (Tua terra, tua vida) Tempo norte-americano Uma espécie de terror: Poema de amor Pedra azul Yom Kippur 1984 Contradições: Sequência de poemas [Selecção]

8

185 193 205 209 217


ÍNDICE

Time’s Power (O poder do tempo) Numa sala de aula O deserto como jardim do paraíso Madeira-de-sonho

225 225 239

An Atlas of the Difficult World (Atlas do mundo difícil) Atlas do mundo difícil [Selecção]

245

Dark Fields of the Republic (Campos negros da República) Que tempos são estes Aos dias E agora Gazel tardio

265 265 269 269

Midnight Salvage (Salvados da meia-noite) Salvados da meia-noite Char Camino Real

275 285 291

Fox (Raposa) Raposa Outúbrico 1999 Terza Rima

299 301 303 303

The School among the Ruins (A escola entre ruínas) O requiem do Centauro

323

Telephone Ringing in the Labyrinth (Telefone a tocar no labirinto) Esta não é a sala

327

NOTAS

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Introdução

Em 1997, não poderia ter sido mais justa a escolha de Adrienne Rich, à altura dona de uma carreira notável como poeta, ensaísta e activista da cidadania plena, para receber The National Medal for the Arts, o mais alto galardão das artes outorgado pelo governo dos Estados Unidos. A condecoração tem por objectivo premiar artistas e mecenas que se distingam pelo seu contributo para a excelência, desenvolvimento e divulgação das artes. Todos os anos, desde 1984, o presidente dos Estados Unidos escolhe um máximo de doze artistas ou fundações em diferentes áreas (as artes literárias são apenas uma das modalidades consideradas) de entre os nomes que lhe são apresentados pelo National Endowment for the Arts mediante proposta do National Council on the Arts. Em 1997, era presidente Bill Clinton, Adrienne Rich figurava nas listas de propostas. Clinton seleccionou-a, mas Rich recusou o galardão. Em carta endereçada a Jane Alexander, presidente do National Endowment for the Arts, Rich explica a recusa, com cópia para o presidente dos Estados Unidos. Não posso aceitar, diz ela, e nós parafraseamos, porque o que entendo por arte é incompatível com o cinismo da política da administração Clinton. E acrescenta: Quem conheça o meu trabalho a partir dos anos sessenta sabe bem que eu acredito na função social da arte; que acredito na arte como interrupção dos silêncios oficiais; que acredito na arte como um direito humano inato; que acredito na arte como a voz dos excluídos. 11


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Diremos, pois, que aceitar The National Medal for the Arts em 1997 teria sido, para Rich, o mesmo que negar o seu ser mais autêntico. Mais tarde, a convite do Director de Los Angeles Times Book Review, Rich publica um artigo nas páginas deste jornal, em que alarga e aprofunda a justificação da sua recusa. O ideal primeiro dos fundadores da democracia americana de um governo “do povo, pelo povo, para o povo” deixara, afinal, muita gente de fora — e continua a deixar. Como Whitman fizera já em Democratic Vistas, Rich escalpeliza agora, de modo diferente, a grande contradição da sociedade americana. Onde Whitman lamentara a corrupção dos ideais, Rich insurge-se contra o puro cinismo de quem defende interesses corporativos, fazendo de conta que tem em vista o bem geral da nação, ou mesmo do mundo inteiro. O ideal democrático, observa ela, suspende-se à porta das escolas, dos hospitais, do serviço nacional de saúde, da habitação, dos bancos, das editoras, das prisões, da família, da etnia, da raça, da orientação sexual. A pergunta fundamental de Rich é: quanta desigualdade na multiplicidade enriquecedora da diferença teremos de tolerar no país mais rico e poderoso do mundo? Para Rich, The National Medal for the Arts, uma iniciativa lançada pelo governo de Ronald Reagan, não é senão o outro lado da exclusão social e a sua legitimação pela manipulação da arte. A exacerbada mercantilização da arte que Rich observa no seu país serve os interesses do capitalismo avançado e dos poderes instalados. É cúmplice a poesia se nada disser contra este estado de coisas — mesmo que apenas em seus silêncios, ou sobretudo se apenas em seus silêncios. A poesia não se detém no que é dado. Na poesia, o projecto da democracia não pode ter fim. Por alguma razão o poder estremece sempre que não consegue cooptar a arte. Porque a arte, e a poesia acima de todas as artes, é, como diz Rich neste documento notável, a voz da fome, a voz do desejo, a voz do descontentamento, a voz da paixão. Por isso, por ser a língua-da-verdade-de-ser, como já nos anos quarenta do século passado dizia a sua muito admirada Muriel Rukey12


INTRODUÇÃO

ser, a poesia assusta até quem não está no poder. A poesia é o “momento da prova”.1 Nunca o pensamento poético e político de Rich foi tão oportuno como hoje. Em um poema de William Carlos Williams, de onde Rich retirou o título de um dos seus livros de ensaios, pode ler-se: “É difícil / obter as notícias em poemas / e contudo, todos os dias morre gente pateticamente / por lhe faltar / o que lá se encontra”.2 A poesia é a vigília da realidade e, por isso mesmo, vigília de si própria: “Velo por ti”, diz Rich a um poeta da Resistência francesa que, tal como ela, se não deteve demasiado na “estratosfera do Verbo” e, por isso, jamais perdeu “a noção da realidade” (“Char”):3 trazias a poesia nos teus lábios uma ponta de tomilho bravo arrancada de um prado em chamas um ramo de mimosa de terras ainda invioladas Assim não perdeste a noção da realidade e por isso velo eu por ti. 1

Adrienne Rich, “Why I Refused the National Medal for the Arts” [Por que razão recusei … ]. Rich, Arts of the Possible. Essays and Conversations (New York: Norton, 2001) 98ss. Para a referência a Rukeyser, cf. Muriel Rukeyser, The Life of Poetry. With a New Foreword by Jane Cooper (Ashfield, Massachusetts: Paris Press, 1996 [1949]) 7 e passim. Ver também Rukeyser, “Moment of Proof”. The Collected Poems of Muriel Rukeyser (New York: McGraw-Hill, 1978) 161-162. Rich escreve sobre este poema de Rukeyser em What Is Found There. Notebooks on Poetry and Politics [O que lá se encontra. Cadernos de poesia e política] (New York: Norton, 1993) 124-127. 2 Adrienne Rich, What Is Found There. Cf. William Carlos Williams, “Asphodel, That Greeny Flower”. The Collected Poems of William Carlos Williams. Volume II, 1939-1962. Ed. Christopher MacGowan (New York: New Directions, 1988) 318. 3 A “estratosfera do Verbo” é expressão de René Char em Feuillets d’Hypnos, aforismo 19. “Char” tem ressonâncias claras dos aforismos 33,

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* Adrienne Rich nasceu em 1929 em Baltimore, Maryland, filha de pai judeu e mãe cristã. Médico patologista e professor da Universidade de Johns Hopkins, Arnold Rich assimilara perfeitamente os valores da cultura dominante e vivia como se os conceitos de “identidade”, “raça”, “etnicidade” ou mesmo, porventura, “sexualidade” lhe não dissessem respeito. Só quem sofre as consequências directas de não ter a identidade “certa” sente necessidade de afirmar a sua. Talvez por isso, Adrienne Rich, filha de mãe não judia e, portanto, segundo o judaísmo ortodoxo, não judia ela própria, tenha mais tarde escolhido identificar-se como judia. O povo eternamente perseguido, e que o nazismo se propusera exterminar radicalmente, era-lhe exemplo monstruoso das discriminações da sua própria cultura, onde se não pode esquecer a ocupação do território, o extermínio dos povos indígenas e a construção do poder e das prerrogativas de minorias privilegiadas sobre alicerces escravocratas. É com o mesmo espírito que Adrienne Rich apoia o activismo de organizações como Jewish Voice for Peace [Vozes Judaicas a Favor da Paz] que nos Estados Unidos se opõem firmemente à ocupação dos territórios palestinianos. Assumidamente lésbica e profundamente crítica dos valores dominantes, Rich escolheu praticar a solidariedade humana com os marginalizados e os oprimidos do seu país e do mundo inteiro, e é também a esse lugar precário que convoca a sua força de poeta. “Com quem acreditas estar lançada a tua sina?/ De onde vem a tua força?” (Fontes IV) Como judia ou como lésbica, identificações que, como tan138, 148, 154 e 217. São as seguintes as edições de Char de que Rich se terá servido (v. nota da autora na p. 334): René Char, Hypnos Waking: Poems and Prose. Sel. e trad. Jackson Mattews (New York: Random House, 1956) e René Char, Leaves of Hypnos. Trad. Cid Corman (New York: Grossman, 1973).

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INTRODUÇÃO

tas outras, podem ter consequências terríveis numa sociedade feita de tão ignorante quanto preconceituosa arrogância, é-lhe mais fácil conceber a existência de um mundo outro, em que a fixação de identidades possa ser interrogada, problematizada ou mesmo superada: “ninguém, homem ou mulher, a tentar assumir responsabilidade pela sua identidade, devia ter de estar tão só”, escreve ela em Fontes (XXII), a propósito do homem com quem foi casada e pai dos seus três filhos, um judeu não assimilado que se suicidou em 1970. Nesta rara e discreta referência ao seu casamento,4 pode observar-se o seu “sonho de uma língua comum”, que para a poeta não seria apenas uma língua para as mulheres (como alguma crítica feminista a viria a entender), nem uma língua apenas para as mulheres lésbicas, mas uma língua de partilha da vida toda de toda a gente que por ela desejasse lutar. O que melhor exprime esta língua comum é a poesia, “o impulso de estabelecer ligação” que se lê em “Origens e história da consciência” (1972-74), um poema de crise e redescoberta da vida onde o conceito aparece pela primeira vez. Como Rich explica no difícil diálogo imaginário com o marido desaparecido, onde parece até faltar-lhe vocabulário (“Penso que pensaste”): “Tem de haver aqueles entre os quais nos possamos sentar e chorar, e mesmo assim sermos considerados guerreiros (Preparo para ti esta encomenda estranha e cheia de ira, entrelaçada de amor). Penso que pensaste não haver lugar nenhum como esse para ti, e talvez não houvesse nenhum então, e talvez não haja nenhum agora; mas teremos de o fazer, nós que queremos o fim do sofrimento, que queremos mudar as leis da história, se é que não queremos entregar-nos” (Fontes XXII). 4

Mas veja-se “A Marriage in the Sixties” [Casamento nos anos sessenta] (1961), um poema de Instantâneos de uma nora (1963) sobre os desencontros e frustrações de uma relação conjugal convencional, que Rich preferiu não incluir na selecção portuguesa.

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A escolha da prosa para as reflexões interruptivas do poema sobre a identidade é significativa5 e aproxima Fontes de alguns dos ensaios mais importantes de Rich, recolhidos até à data em quatro volumes, sobre o seu próprio percurso literário e cívico: “When We Dead Awaken: Writing as Re-Vision” [Quando nós mortos acordamos: A escrita como re-visão] (1971), “Vesuvius at Home: The Power of Emily Dickinson” [O Vesúvio em casa: O poder de Emily Dickinson] (1975), “Motherhood in Bondage” [Maternidade em cativeiro] (1976),6 “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence” [Heterossexualidade compulsória e existência lésbica] (1981), “Split at the Root: An Essay on Jewish Identity” [Rachada na Raiz: Ensaio sobre a identidade judaica] (1982), “Blood, Bread and Poetry: The Location of the Poet” [Sangue, pão e poesia: O local da poesia] (1984), “Woman and Bird” [Mulher e pássaro] (1993), “Beginners” [Iniciadores] (1993), “Arts of the Possible” [Artes do possível] (1997).7 O modo histórico-autobiográfico-efabulador, que informa em larga medida a poesia de Rich, é particularmente bem suce5

A técnica fora já utilizada com grande eficácia em “Queimar papéis em vez de crianças” (1968). 6 “Motherhood in Bondage” foi um controverso artigo de opinião aparecido no New York Times em 20 de Novembro de 1976, ano de publicação da obra de Rich sobre a maternidade e o patriarcado, intitulada Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution [De mulher nascidos: A maternidade como experiência e instituição] (New York: Norton, 1976). 7 São as seguintes, até à data, as colectâneas de ensaios de Rich: On Lies, Secrets, and Silence. Selected Prose 1966-1978 [Sobre mentiras, segredos e silêncios] (New York, Norton, 1979); Blood, Bread, and Poetry. Selected Prose 1979-1985 [Sangue, pão e poesia] (New York: Norton, 1986); What Is Found There. Notebooks on Poetry and Politics [O que lá se encontra. Cadernos de poesia e política] (New York: Norton, 1993; ed. rev. 2003); Arts of the Possible, já citado na nota 1; e Poetry and Commitment, 2007.

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INTRODUÇÃO

dido em Fontes, aparecido em 1983, trinta e dois anos depois da estreia literária da autora. A estreia deu-se em 1951 com a publicação do primeiro livro de Rich, A Change of World [Mudança de mundo], vencedor do cobiçado Yale Younger Poets Prize, por decisão de W. H. Auden. Como o próprio explicaria no prefácio decididamente paternalista que então escreveu, os poemas de Rich agradaram a Auden pela elegância de formas e contenção de sentimento recomendadas pela estética dominante do New Criticism. No segundo livro, The Diamond Cutters [Os lapidadores de diamantes] (1953), persistem o mesmo formalismo cuidado, a mesma reserva temática e a preocupação metapoética que Rich aprendera com Yeats, Frost, Stevens e o próprio Auden. “Ideal Landscape” [Paisagem ideal], o único poema deste livro que teve lugar em Uma paciência selvagem, teria também agradado a Auden. A jovem mulher poeta domina as formas e os temas com elegância, e os seus poemas não parecem ameaçar o status quo. A insatisfação que o poema deixa desde logo adivinhar (“Tínhamos de aceitar o mundo como nos era dado”) está perfeitamente contida em versos regulares e rimas oportunas. A poeta que escreve este poema é a esposa e mãe que busca ainda a perfeição da mulher “completa” (“exigindo mais do que podíamos tolerar”). A partir do livro seguinte, a imperfeição do ser-mulher na imperfeição do mundo passa a ser o tema central da poesia de Rich. Oito anos foi quanto Rich levou até publicar o terceiro livro de poemas. Em Snapshots of a Daughter-in-Law [Instantâneos de uma nora] (1963) reflecte-se a experiência de vida de Rich, que em 1953 casara com um jovem economista de Harvard e tivera três filhos em cinco anos. A dura vivência do doméstico, enquanto esposa prioritariamente destinada a apoiar a carreira universitária do marido, ameaça-a de fracasso como mulher e como poeta, e por isso mesmo lhe aguça as antenas políticas. Nos anos sessenta do século passado, as mulheres começavam a entender plena17


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mente que “o pessoal é político” e que a heterossexualidade não é, necessariamente, um destino obrigatório. Rich é, a este respeito, exemplar. Em “A heterossexualidade compulsória e a existência lésbica” (1981), Rich reflecte sobre a heterossexualidade como uma instituição patriarcal que historicamente foi mantendo as mulheres sob o domínio dos homens, ao deliberadamente suspender a possibilidade da existência lésbica. A existência lésbica, ou o continuum lésbico, explica Rich, define uma experiência vinculada pelo ser-mulher, e não por referência ao homem como identificação. No entender de Rich, mais do que o domínio masculino, mais do que a desigualdade sexual, ou mesmo mais do que os tabus contra a homossexualidade, o factor que tem mantido as mulheres subordinadas na estrutura social dominante é a obrigatoriedade da heterossexualidade como forma de realização feminina. Em 1970, Rich separa-se do marido e empenha-se numa luta feminista que tem como prioridade dar visibilidade ao lesbianismo como possibilidade de realização. Com Instantâneos de uma nora, a história ganha uma nova dimensão para a poeta, que começa a datar os seus poemas e acrescentar notas contextualizadoras. A poesia sofre uma evolução palpável. A poeta, consciente de que fora a vida a escolhê-la e não ela a vida (“O caminheiro dos telhados”), está agora disposta a sacudir o poema sobre a página, a imaginar a vida que quer viver e não a que a sociedade lhe destina, e a mergulhar fundo na língua e a correr riscos nela. O poema que empresta o título a Instantâneos é uma meditação misto de revolta e fascínio sarcástico perante imagens (ou fotos) das vivências das mulheres na sociedade patriarcal. O poema, escrito em verso livre e composto de dez secções irregulares, está salpicado de nomes de autoridades da cultura ocidental, e também de citações, à maneira de Marianne Moore, sendo que apenas uma dessas citações (também à maneira de Marianne Moore) é identificada em nota. Que essa citação seja retirada de Thoughts on the Education of Daughters (1787) [Pen18


INTRODUÇÃO

samentos sobre a educação de filhas], da feminista inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797), não deixa de ter significado. O poema destina-se a abalar as consciências das mulheres (e da própria poeta), como mostra o último verso da terceira estrofe (ma semblable, ma soeur! [minha semelhante, minha irmã]), a evocar o famoso vocativo de Baudelaire no poema-dedicatória de As flores do mal (“hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère” [leitor hipócrita — meu semelhante — meu irmão]). Não é de excluir igualmente uma referência a um outro poema de Baudelaire, “L’invitation au voyage” [Convite à viagem], em que o poeta infantiliza a mulher ao dirigir-se à amada como “Mon enfant, ma soeur” [Minha filha, minha irmã]. O poema termina anunciando aquela que haveria de ser “mais impiedosa consigo do que a história”. A publicação, nos dez anos seguintes, de Necessities of Life [Necessidades da vida] (1966), Leaflets [Folhetos] (1969), The Will to Change [A vontade de mudar] (1971) e Diving into the Wreck [Mergulhando no barco naufragado] (1973) dá testemunho de uma mulher poeta cada vez mais atenta aos problemas sociais e políticos do seu tempo, e a exigir escolher a sua própria vida. O Movimento pelos Direitos Cívicos, o Movimento de Libertação das Mulheres, a Frente de Libertação Gay, o feminismo lésbico, a Guerra do Vietname e o apartheid na África do Sul têm eco claro nos seus poemas, que de igual modo não prescindem de uma interrogação rigorosa e inovadora dos modelos poéticos da tradição. O cânone literário é questionado através da relação entre Emily Dickinson e o seu “preceptor”, Thomas Wentworth Higginson, em “Corro perigo — Senhor —” (1964); o lirismo amoroso tradicional é subvertido em “O amante demónio” (1966); a inspiração e a cena da escrita são revistas em “Sonho que sou a morte de Orfeu” (1968). O poema que, de forma magistral, traça a difícil e solitária evolução da imaginação da poeta, do “mito” à “coisa em si”, é “Mergulhando no barco naufragado” (1972): 19


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“Desço. / As minhas barbatanas aleijam-me / rastejo como um insecto pela escada abaixo / e não há ninguém / que me diga onde o oceano / vai começar”. Em artigo de balanço escrito um ano antes e que pré-glosa de certo modo este poema, “Quando nós mortos acordamos: a escrita como re-visão”, a autora reflecte sobre a sua trajectória pessoal e poética: de um livro de mitos que exclui quase todos os nomes, o seu nome e o de muitos outros, até ao entendimento das consequências da “heterossexualidade compulsória” e à descoberta da “existência lésbica”, que a sociedade dominante teima em fazer submergir. A partir dos anos setenta, a poesia de Rich definitivamente rejeita os “nomes apodrecidos”, de que falava Wallace Stevens, e constrói-se, a um tempo só, do risco de viver e de poemar: 8 Agora, de novo, a poesia, violenta, arcana, comum, talhada da mais comum substância viva em arcada, portal, ombreira que tento agarrar, tuas farpas ensanguentadas, tua firmeza antiga e teimosa — enquanto a terra treme — ardendo de dentro do veio (“O facto de uma ombreira”, 1974) Em 1976 aparecia um dos livros mais importantes do cânone richiano: o longo poema intitulado Vinte e um poemas de amor, que viria depois a ser integrado em The Dream of a Common Language [O sonho de uma língua comum] (1978). Impossível não

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Sobre os “nomes apodrecidos” [“rotted names”] de Stevens, cf. Rich, “‘Rotted Names’”. What Is Found There, 197-205.

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INTRODUÇÃO

pensar em Pablo Neruda e nos seus Veinte poemas de amor y una canción desesperada. Mas há diferenças abissais. O belíssimo lirismo de Neruda canta o amor erótico heterossexual idealizado, como manda a tradição: o corpo da mulher oferece-se, estático e silencioso, ao desejo ávido do homem poeta, como se do próprio cosmos se tratasse, para no fim lhe escapar (“Es la hora de partir. Oh abandonado!”). Os poemas de Rich, por sua vez, são igualmente eróticos e, ao mesmo tempo, desassombrada e subversivamente políticos: o pessoal é político. Neles se recupera uma sexualidade feminina que a tradição se esforça por sufocar. Duas mulheres lésbicas amam-se e desejam-se mutuamente, e partilham a vida toda, numa sociedade onde impera a injustiça e a violência, e que também contra elas discrimina. Porém, em vez de uma canção desesperada para rematar a sequência, Rich interrompe-a com um poema flutuante, sem número, que é um verdadeiro hino ao prazer sexual lésbico, reivindicado na sua totalidade plena: “aconteça o que acontecer, isto é”. No final da sequência, uma mulher escolhe caminhar e traçar, ela própria, um círculo. Esta mulher, que ao longo dos anos foi aprendendo a escolher, é o sujeito lírico forte que preside aos restantes livros de Rich. A Wild Patience Has Taken Me This Far [Uma paciência selvagem trouxe-me até aqui] apareceu em 1981. O título deste livro, a que pedimos emprestado o nosso, é, por sua vez, uma citação exacta do primeiro verso de um dos poemas incluídos, “Integridade” (1978). O poema celebra a inteireza-de-ser que uma mulher conquista na sociedade patriarcal, na coragem desse processo encontrando, com paciência selvagem, a sua força: “… nada / se aguenta no reino da pura necessidade / senão o que as minhas mãos conseguem segurar”. Não será por acaso que neste mesmo livro esteja incluído o poema que Rich dedica à mulher acusada de espionagem e executada na cadeira eléctrica, Ethel Rosenberg (1980), num gesto que é, da parte da poeta, mais de auto-análise (da 21


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mulher, da judia, da intelectual e da esquerdista) do que porventura do desejo de repor justiça. Em 1986, Rich publicou Your Native Land, Your Life [Tua terra natal, tua vida], onde se inclui “Tempo norte-americano”. Este poema afirma e problematiza a função da poesia que Rich haveria de equacionar teoricamente uma vez mais dez anos depois em “Arts of the Possible” [Artes do possível] (1997). A dificuldade da poesia reside em que, como diria Fernando Pessoa, o privilégio verbal do poema só é apreendido ou, na versão explicitada de Rich, usurpado no dia seguinte. “Nós seguimos”, diz o sujeito poético de “Tempo norte-americano”, “mas as nossas palavras ficam / tornam-se responsáveis / por mais do que tínhamos na intenção / e isto é privilégio verbal”. Em 1989 aparece Time’s Power [O poder do tempo], dedicado a Michelle [Cliff ], a escritora e artista de origem jamaicana que é a companheira de Rich desde 1976. Seguiram-se-lhe An Atlas of the Difficult World [Atlas do mundo difícil] (1991), Dark Fields of the Republic [Campos negros da República] (1995), Midnight Salvage [Salvados da meia-noite] (1999), Fox [Raposa] (2001), igualmente dedicado a Michelle Cliff (“uma vez mais, após vinte e cinco anos”), The School among the Ruins [A escola entre as ruínas] (2004) e Telephone Ringing in the Labyrinth [Telefone a tocar no labirinto] (2007). O duplo compromisso com a terra e com a vida que a poeta exige de si e de quem a lê, explicitamente anunciado em livro anterior (Tua terra natal, tua vida), faz-se sentir cada vez mais na sua poesia. Cada vez mais a poeta assume o papel de uma historiadora ou de uma cartógrafa, registando com rigor o que os relatos oficiais tendem a deixar de fora, por irrelevante, dos mapas e livros de história. “Através dos olhos raiados de sangue da história”, a poeta observa “…mulheres / sem tachos para arear ou camas por fazer / ou pentes para passar pelos cabelos / ou água quente para tirar gordura …” (“Salvados da meia-noite”). É a “contaminação” do poético e do político, de que 22


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fala Silviano Santiago, essa forma “anfíbia” que o crítico brasileiro define como a marca de toda a grande literatura.9 Em “Salvados da meia-noite”, a “paciência selvagem”, invocada vinte anos antes como fundamento do poético, reaparece como a “horrível paciência” que não aceita limites para a poesia. “Estou presa à terra”, diz a poeta em “Atlas do mundo difícil” (1990-1991), um poema que pergunta pela “América” em tudo o que a nação tem de belo e de terrível. Em “Terza Rima” (2000), a poeta, Dante e Virgílio de si própria, desce “aos infernos” para dissecar implacavelmente as contradições do seu mundo (“nossas sombras… / deslizam para o mapa / do acaso e do desígnio”). O poema que empresta o título a A escola entre as ruínas vai mais longe, ao escalpelizar a devastação da guerra na escola e os pequenos terríveis gestos de sobrevivência. A própria poesia é agora uma “escola entre as ruínas”, e é também parte integrante das ruínas: lugar de aprendizagem que está para lá do ensinar e do aprender, e que desapiedadamente descobre. O título do poema (datado de 2001 e mencionando Setembro na terceira secção) coloca-o no meio das “ruínas”. Vem imediatamente à ideia o montão de destroços que Benjamin via erguer-se até aos céus ante os olhos do Angelus Novus de Klee, voltado para trás.10 A poeta de Rich não está, no entanto, interessada em mostrar, mais uma vez, que sem a arte, sem a poesia, tudo o que nos resta são ruínas. O que ela mostra é que, no “tempo norte-americano”, a poesia não pode entender-se sem as ruínas: no país devastado-que-devasta, as ruínas são a escola, a escola é também ruínas. Logo a seguir ao título, à laia de epígrafe, pode ler-se em itálico no original: “Beirut. Baghdad. Sarajevo. Bethlehem. Kabul. 9

Silviano Santiago, “Uma literatura anfíbia”, em Santiago, O cosmopolitismo do pobre (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004) 64-73 [69]. 10 Cf. Walter Benjamin, “Über den Begriff der Geschichte,” Gesammelte Schriften, vol. I-2, 691-703 [697-698]. O anjo aparece na secção 9, p. 697-698. “Geschichtsphilosophische Thesen. IX.” Illuminationen, 272.

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Not of course here” [Beirute. Bagdade. Sarajevo. Belém. Kabul. Aqui não, claro]. A referência a “Que tempos são estes” (Campos negros da República), escrito dez anos antes, não pode escapar-nos (“isto não é um poema russo, isto não é outro lugar qualquer mas aqui, / o nosso país a aproximar-se cada vez mais da sua verdade e pavor, / / os seus próprios modos de fazer desaparecer gente”). O último livro de poemas de Rich até à data, Telefone a tocar no labirinto, é, como mostra “Esta não é a sala”, um livro particularmente assombrado pelos crimes dos Estados Unidos no nosso tempo. Os poemas destas colectâneas mais recentes incluídos na Rich portuguesa da Cotovia são de tal severidade e rigor e de tal beleza agreste que não nos resta senão dizer, parafraseando a poeta em “O requiem do Centauro”: o que de maravilhoso és não pudemos suportar. Por isso traduzimos. * Tradução será contrabando para as autoridades alfandegárias, escreve Rich com sarcasmo num poema de Salvados da meia-noite, intitulado “The Art of Translation” [A arte da tradução], e que fala, afinal, de poesia: “Que os livros são só de uso / pessoal — seria eu capaz de jurar? / Que nem uma palavra / é contrabando — como poderia eu provar?”. Não temos pejo em admitir que é contrabando o que em Uma paciência selvagem oferecemos. Procurámos verter na linguagem agreste de Rich, sem interpretar, e muito menos adocicar, o rigor da sua poesia em língua portuguesa. Quisemos uma (multi)americana Rich em português, não uma Rich vestida de poesia portuguesa. Não hesitámos perante a estranheza do termo ou da estrutura sintáctica. Onde a poeta escreve, em “Queimar papéis em vez de crianças”, deliberadamente atropelando a gramática oficial, “Some of the suffering are: a child did not had dinner (…) a mother say she do not have money to buy food (…) to see a child without cloth (…)”, nós 24


INTRODUÇÃO

procurámos reproduzir a estranheza gramatical e vocabular em português. Neste caso, violentar a “língua do opressor” reflecte a questão problemática e potencialmente discriminatória da correcção linguística num país, afinal, todo feito de imigrantes. Noutros casos, é a pura recriação de palavras cuja falta se sente, como o inexistente “blankening [with steam]”, na oitava estrofe de “Instantâneos de uma nora”, que recriámos em português como “enalvecendo [de vapor]”. Traduzir não é fácil. Traduzir Rich, mestre maior da acribia linguística, lutadora empenhada contra o abismo insuperável entre a palavra e a coisa, menos fácil ainda. As tradutoras agradecem a quem as ajudou a dizer em português as árvores, flores, animais ou temas e técnicas cinematográficos a que Rich alude. A sua gratidão vai, em particular, para Anabela Marisa Azul, Beatriz Tercoa Álvarez Aias, Adriana Bebiano, João Ramalho Santos e Abílio Hernandez. Ana Luísa Amaral e António Sousa Ribeiro leram o manuscrito por inteiro e fizeram sugestões valiosas, que nem sempre foram seguidas. * Uma paciência selvagem reúne poemas de todos os livros de versos que Rich publicou até à data, incluindo as colectâneas intituladas The Fact of a Doorframe. Poems Selected and New 1950-1984 [O facto de uma ombreira. Selecção e novos poemas] (1984), Collected Earlier Poems 1950-1970 [Poemas coligidos, 1950-1970] (1993) e The Fact of a Doorframe. Selected Poems 1950-2001 (2002). A selecção proposta pelas tradutoras foi revista pela autora, que eliminou alguns dos poemas inicialmente escolhidos e acrescentou outros que não constavam da lista original. Dois exemplos apenas: “A chuva de sangue” [The Rain of Blood], um tour-de-force em dístico rimado, que não pensamos resultar bem nem em português, nem em inglês, foi incluído por expressa 25


UMA PACIÊNCIA SELVAGEM

vontade da autora; pela mesma razão foi eliminado da lista inicial o poema que empresta o título a Os lapidadores de diamantes. Ao contrário de “A chuva de sangue”, pensamos, “Os lapidadores de diamantes” é um belo poema em qualquer das línguas. As razões de Rich para o eliminar, que muito respeitamos, podem ler-se na nota que a poeta acrescentou na primeira edição de The Fact of a Doorframe, p. 329: “Trinta anos mais tarde, tenho dificuldade com a metáfora que preside a este poema. Aos vinte anos, procurava escrever sobre o ofício (craft) da poesia. Mas, por ignorância, estava a servir-me da longa tradição de dominação, segundo a qual o recurso precioso é entregue nas mãos do dominador como se de um acontecimento natural se tratasse. O trabalho forçado e a exploração dos trabalhadores africanos reais em minas de diamantes reais eram-me invisíveis e, por isso, ficaram invisíveis no poema. O poema não assume responsabilidade pela sua metáfora. Faço esta observação aqui porque este tipo de metáfora continua a ser amplamente aceite e eu continuo a ter de lutar contra ele no meu trabalho”. Rich devia ter acontecido em Portugal há trinta anos, quando apareceu em muitas outras línguas europeias. O panorama da poesia portuguesa, sobretudo a poesia escrita por mulheres, seria porventura diferente. As mentalidades das portuguesas e dos portugueses seriam hoje decerto também diferentes. Não se lê Rich impunemente. É, pois, motivo de regozijo que Rich surja agora entre nós em tão generosa selecção. Ficamos em dívida para com a Cotovia por esta publicação. Coimbra, Agosto de 2006 Madison, WI, 2008 MIR e MVA

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A CHANGE OF WORLD MUDANÇA DE MUNDO (1951)


ADRIENNE RICH

AUNT JENNIFER’S TIGERS Aunt Jennifer’s tigers prance across a screen, “Bright topaz denizens of a world of green. They do not fear the men beneath the tree; They pace in sleek chivalric certainty. Aunt Jennifer’s fingers fluttering through her wool Find even the ivory needle hard to pull. The massive weight of Unde’s wedding band Sits heavily upon Aunt Jennifer’s hand. When Aunt is dead, her terrified hands will lie Still ringed with ordeals she was mastered by. The tigers in the panel that she made Will go on prancing, proud and unafraid.

THE RAIN OF BLOOD In that dark year an angry rain came down Blood-red upon the hot stones of the town. Beneath the pelting of that liquid drought No garden stood, no shattered stalk could sprout, As from a sunless sky all day it rained And men came in from streets of terror stained With that unnatural ichor. Under night Impatient lovers did not quench the light, But listening heard above each other’s breath That sound the dying heard in rooms of death. Each loudly asked abroad, and none dared tell 28


MUDANÇA DE MUNDO

OS TIGRES DA TIA JENNIFER Habitantes de um mundo verde vestidos de topázio, Curveteiam sobre a tela os tigres da Tia Jennifer. Não temem os homens por debaixo das árvores; Movem-se seguros e lustrosos como cavaleiros. Esvoaçando por entre as lãs os dedos da Tia Jennifer Acham até difícil puxar a agulha de marfim. O volume maciço da aliança de casamento do Tio Carrega pesadamente na mão da Tia Jennifer. Quando ela estiver morta, as mãos aterradas da Tia Jennifer Ostentarão ainda os anéis das provações que a dominaram. Os tigres que ela fez em cima daquela tela Continuarão a curvetear, altivos e destemidos.

A CHUVA DE SANGUE Nas pedras quentes da vila naquele ano de breu, Uma chuva irada, de sangue vermelha, choveu. Sob as arremetidas daquela aridez molhada Jardim algum se ergueu, ou cresceu haste tombada, Como de um céu sem sol todo o dia choveu E os homens voltavam das ruas de terror Todos manchados daquele desnatural icor. Sob a noite os amantes irritados não apagavam A luz, mas por sobre o seu respirar escutavam O som que ouve na morte quem está para morrer. Cada um perguntava, e ninguém ousava dizer 29


ADRIENNE RICH

What omen in that burning torrent fell. And all night long we lay, while overhead The drops rained down as if the heavens bled; And every dawn we woke to hear the sound, And all men knew that they could stanch the wound, But each looked out and cursed the stricken town, The guilty roofs on which the rain came down.

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MUDANÇA DE MUNDO

Que ominoso sinal naquela torrente de fogo caía. E jazíamos toda a noite, enquanto em cima chovia Forte a chuva de pingos como se sangrasse o céu; E cada madrugada despertávamos para aquele escarcéu E os homens sabiam que podiam estancar a ferida, Mas todos amaldiçoavam a cidade acometida, Os telhados culpados pela chuva fustigados.

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