VERSOS
Título: Versos 1.a
edição: Outubro de 1997 7.a edição: Outubro de 2005 © Amália Rodrigues e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1997 Todos os direitos reservados. É interdita a reprodução de qualquer parte do material incluso, sem prévia autorização escrita. Coordenação, nota final e cronologia: Vítor Pavão dos Santos Na contracapa: fotografia de Jacinto Luís Fotografias do Arquivo do Museu Nacional do Teatro ISBN 972-795-140-6
Amรกlia Rodrigues
Versos
Cotovia
Índice
ENTREI NA VIDA A CANTAR Entrei na vida a cantar Estranha forma de vida Ai esta pena de mim Lavava no rio lavava Teus olhos são duas fontes Fui ao mar buscar sardinhas Gostava de ser quem era Ó pinheiro meu irmão Tive um coração perdi-o Se deixas de ser quem és Trago fados nos sentidos Quando se gosta de alguém Contigo fica o engano Lágrima Flor de lua Ai minha doce loucura Ai Maria O fado chora-se bem Olha a ribeirinha Morrinha Ai as gentes ai a vida Amor de mel amor de fel Sou filha das ervas Asa de vento Grito Nasçam os amores
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Vi o menino Jesus Perlimpimpim S. João Menino
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SE ME QUISERES VER DESCALÇA Cá por dentro da cabeça Cá vou cantando cantando Saloia bonita Lavadeira cheirosa Quando lavava no rio Fui atrás da lua A lua Menina da saia verde Menina que sabe ler Quando o domingo chegava Os teus lindos olhos pretos Gosto de te ver assim Menina menina Ai vida que dura Quadras soltas Feijoca Catarina A laranja e a tangerina A minha panela A onda 335 gafanhotos Grilo O bicho de conta O mosquito mordeu-me no olho Tenho uma cabra cabrita
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TEIMOSAMENTE SANGRANDO Horas de vida perdida O tempo dantes corria Fiquei à espera de ti Sofrendo da alma
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Tenho desgostos de amor Tenho dois corações Meu coração sem direito Por que voltas de que lei Se é vida não me parece Mãos desertas Ai de mim que me perdi Faz-me pena Ilusão Desespero Quem conseguir esquecer Eu vivo a vida perdida A Primavera chegou Quero cantar para a lua Ó gente da minha terra Adeus amigos Tenho campos tenho flores Perdoai Senhor Depois disto… desisto
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CARTAS Carta a Vitorino Nemésio (I) Carta a Vitorino Nemésio (II) Carta à irmã Détinha Carta a Amélia Rey Colaço
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NOTA FINAL CRONOLOGIA ÍNDICE DE PRIMEIROS VERSOS
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Existe, em casa de Amália, com o descuido de quem não suspeita do interesse alheio, uma profusão surpreendente de poemas: poemas que partilham versos, versões muito aproximadas, quadras soltas, cantigas, cartas em verso. Foi preciso dar ao que se escolheu a dimensão da ‘obra’. Amália não datou o que escreveu: a tentação de uma organização cronológica estava assim afastada. Poder-se-ia ter enveredado pela organização alfabética, por primeiros versos, mas a leitura acabou por ditar o seu próprio critério: numa primeira parte (‘Entrei na vida a cantar’), os poemas gravados e editados em disco; depois (‘Se me quiseres ver descalça’; ‘Teimosamente sangrando’) os restantes, primeiro joviais, bem dispostos, muito domésticos, logo entristecidos, mais cansados; e, por fim, algumas cartas, evidência de uma escrita que se impôs por tudo e por nada. Todos os poemas foram revistos, e alguns ligeiramente modificados, pela Autora. Nota do Editor
Foto Jacques Verrier
Ai se eu pudesse falar Dizia coisas agora Que me faziam chorar O melhor é ir-me embora Ai se eu pudesse falar Se não fosse proibido O que tenho de calar O que me está no sentido O que distingue os poetas Os faz diferentes da gente É dizer em duas letras O que toda a gente sente …é esta limitação Que Deus me deu a escrever Que enche o meu coração De coisas para dizer
ENTREI NA VIDA A CANTAR*
* Poemas gravados.
ENTREI NA VIDA A CANTAR Entrei na vida a cantar E o meu primeiro lamento Se foi cantado a chorar Foi logo com sentimento Com as outras raparigas Pelas ruas a brincar Corri ao som das cantigas Parava só p’ra cantar Mais tarde já mulherzinha Cantei meu primeiro amor E também cantei sozinha A minha primeira dor A vida tenho passado Alegre triste a chorar Tem sido vário o meu fado Mas constante o meu penar
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ESTRANHA FORMA DE VIDA Foi por vontade de Deus Que eu vivo nesta ansiedade Que todos os ais são meus Que é toda minha a saudade Foi por vontade de Deus Que estranha forma de vida Tem este meu coração Vive de vida perdida Quem lhe daria o condão Que estranha forma de vida Coração independente Coração que não comando Vives perdido entre a gente Teimosamente sangrando Coração independente Eu não te acompanho mais Pára deixa de bater Se não sabes onde vais Porque teimas em correr Eu não te acompanho mais
AI ESTA PENA DE MIM Ai esta angústia sem fim Ai este meu coração Ai esta pena de mim Ai a minha solidão
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Ai minha infância dorida Ai o meu bem que não foi Ai minha vida perdida Ai lucidez que me dói Ai esta grande ansiedade Ai este não ter sossego Ai passado sem saudade Ai minha falta de apego Ai de mim que vou vivendo Em meu grande desespero Ai tudo o que não entendo Ai o que entendo e não quero
LAVAVA NO RIO LAVAVA Lavava no rio lavava Gelava-me o frio gelava Quando ia ao rio lavar Passava fome passava Chorava também chorava Ao ver minha mãe chorar Cantava também cantava Sonhava também sonhava E na minha fantasia Tais coisas fantasiava Que esquecia que chorava Que esquecia que sofria
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Já não vou ao rio lavar Mas continuo a chorar Já não sonho o que sonhava Se já não lavo no rio Porque me gela este frio Mais do que então me gelava Ai minha mãe minha mãe Que saudades desse bem Do mal que então conhecia Dessa fome que eu passava Do frio que me gelava E da minha fantasia Já não temos fome mãe Mas já não temos também O desejo de a não ter Já não sabemos sonhar Já andamos a enganar O desejo de morrer
TEUS OLHOS SÃO DUAS FONTES Teus olhos são duas fontes Que eu queria ver chorar Água a correr pelos montes Que chegasse até ao mar Teus olhos são meus pecados Teus olhos pecados são Que eu mesmo d’olhos fechados Sei onde teus olhos estão
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Teus olhos são andorinhas Que aparecem com o calor Meu amor vê se adivinhas O que já sabes de cor Teus olhos duas asinhas Que tu bates de mansinho Teus olhos são andorinhas Que perderam o caminho
FUI AO MAR BUSCAR SARDINHAS Fui ao mar buscar sardinhas Para dar ao meu amor Perdi-me nas janelinhas Que espreitavam do vapor A espreitar lá do vapor Vi a cara dum francês E seja lá como for Eu vou ao mar outra vez Eu fui ao mar outra vez Ia o vapor de abalada Já lá não vi o francês Vim de lá toda molhada Saltou de mim toda a esperança Saltou do mar a sardinha Salta a pulga da balança Não faz mal não era minha
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Vou ao mar buscar sardinha Já me esqueci do francês A ideia não é minha Nem minha nem de vocês Coisas que eu tenho na ideia Depois de ter ido ao mar Será que me entrou areia Onde não devia entrar Pode não fazer sentido Pode o verso não caber Mas o que eu me tenho rido Nem vocês queiram saber Não é para adivinhar Que eu não gosto de adivinhas Já sabem que fui ao mar E fui lá buscar sardinhas Sardinha que anda no mar Deve andar consoladinha Tem água sabe nadar Quem me dera ser sardinha
GOSTAVA DE SER QUEM ERA Tinha alegria nos olhos Tinha sorrisos na boca Tinha uma saia de folhos Tinha uma cabeça louca
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Tinha uma louca esperança Tinha fé no meu destino Tinha sonhos de criança Tinha um mundo pequenino Tinha toda a minha rua Tinha as outras raparigas Tinha estrelas tinha a lua Tinha rodas de cantigas Gostava de ser quem era Pois quando eu era menina Tinha toda a Primavera Só numa flor pequenina
Ó PINHEIRO MEU IRMÃO Ribeiro não corras mais Que não hás-de ser eterno O Verão vai-te roubar O que te deu o Inverno Até a lenha do monte Tem sua separação Duma lenha se faz santos E d’outra lenha Se faz o carvão Ando caída em desgraça O que é que eu hei-de fazer Todos os santos que pinte Demónios têm que ser
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São tão grandes minhas penas Que me deitam a afogar Vêm umas atrás das outras Tal como as ondas Andam no mar Apanho e como as raízes Que estão debaixo da terra Só as ramas não as como Porque essas o vento as leva Ó pinheiro meu irmão Tu também és como eu Também tu estendes em vão Ó pinheiro meu irmão Teus braços p’ró céu
TIVE UM CORAÇÃO PERDI-O Tive um coração perdi-o Ai quem mo dera encontrar Preso no fundo do rio Ou afogado no mar Quem me dera ir embora Ir embora sem voltar A morte que me namora Já me pode vir buscar
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Tive um coração perdi-o Ainda o vou encontrar Preso no lodo do rio Ou afogado no mar
SE DEIXAS DE SER QUEM ÉS Meu amor d’alfazema De alecrim e rosmaninho Queria fazer-te um poema Mas perco-me no caminho Nossa Senhora das Dores Meu raminho d’oliveira Eu ando cega d’amores Não me cureis a cegueira Nossa Senhora das Dores Sede a minha padroeira Entra em mim um mar gelado Em dias que te não vejo Sou um barco naufragado Mesmo sem sair do Tejo Ai de mim que ando perdida Que ando perdida de amores Perdida entre temores Perdida entre as marés Ai de mim fico perdida Se deixas de ser quem és
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Tens mãos macias de gato Meio manso meio bravio Olhas às vezes regato Outras mar e outras rio
TRAGO FADOS NOS SENTIDOS Trago fados nos sentidos Tristezas no coração Trago os meus sonhos perdidos Em noites de solidão Trago versos trago sons Duma grande sinfonia Tocada em todos os tons Da tristeza e da agonia Trago amarguras aos molhos Lucidez e desatinos Trago secos os meus olhos Que choram desde meninos Trago noites de luar Trago planícies de flores Trago o céu e trago o mar Trago dores ainda maiores
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