DRAMATURGIA PESSOAL DO ATOR

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DRA MA TUR GIA PESSOAL

DO ATOR


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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO E DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

DRAMATURGIA PESSOAL DO ATOR: A HISTÓRIA DE VIDA NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE HAMLET – UM EXTRATO DE NÓS COM O GRUPO CUÍRA, EM BELÉM DO PARÁ.

WLADILENE DE SOUSA LIMA

PARÁ-BAHIA. 2004


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WLADILENE DE SOUSA LIMA

DRAMATURGIA PESSOAL DO ATOR: A HISTÓRIA DE VIDA NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE HAMLET – UM EXTRATO DE NÓS COM O GRUPO CUÍRA, EM BELÉM DO PARÁ.

Dissertação apresentada, como exigência parcial para a obtenção do Título de Mestre em Artes Cênicas, à Banca Examinadora da Universidade Federal da Bahia, elaborada sob a orientação da profa. Dra. Antônia Pereira.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

BAHIA-PARÁ 2004


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A minha avó, Isaurica Pinheiro do Nascimento Lima, filha da Vila de Quatipuru, interior do Estado do Pará, fonte do meu imaginário e das minhas emoções.


4 AGRADECIMENTOS

Quanta instituição, quanta gente amiga e amada, para agradecer...Que bom!

Às Universidades Federais do Pará e da Bahia. Á coordenação do Núcleo de Artes da UFPA. À coordenação do Programa de Pós-Graduação da UFBA. À Escola de Teatro e Dança da UFPA. Às Escolas de Teatro e de Dança da UFBA. À Fundação Curro Velho. Ao CNPq. As funcionárias do NUAR. As funcionárias do PPGAC. As funcionárias da ETDUFPA. Alex Fiúza de Melo, Sérgio Faria, Armindo Bião, Eliene Benícios, Afonso Medeiros, Valzely Sampaio, Lia Braga, Lúcia Uchôa, Paulo Paixão, Dina Oliveira. Antônia Pereira, Edvaldo Couto, Sônia Rangel, Roberto Sidnei, Edwald Hackler, Lia Rodrigues, Cleise Mendes, Suzana Martins. Nani Tavares, Edielson Goiano, Telma Monteiro, Valéria Andrade, Maridete Daibes Zé Charone, Cláudio Barros, André Mardock, Antônia Leal, Henrique da Paz, José Carlos Gondim, Nilza Maria, Mendara Mariane,


5 Cacá Carvalho. Allyson Santos, Adriano Barroso, Leonel Ferreira, Edyr Augusto Proença, Nando Lima, Lúcia Chedieck, Cláudio Rego, Telma Lima, Walter Freitas, Marta Letícia, Suely Brito, Miguel Chicaoka. Waldete Brito, Leonora Leal, Mariana Marques, Eder Jastes, Maria Ana, Jaime Amaral, Ana Cristina, Miguel Santa Brígida, Marton Maués, Susane, Gerhad, Sílvia, Ana Flávia Rodrigues Neto, Walter Bandeira Edinaldo Santos, José Maria, Vera, Márcia, Fafá, Tarefa, Moacir, Gideon, Márcio Meireles, Fábio, Danilo, Jacian, Luciana, Pinzoh, Pinduca, Mauricio, Fabinho, Cristina, Vanda e tantos outros baianos.

E com muito, muito amor à... Dolores Lima, Luís Otávio Barata, Maria Sylvia Nunes, Eloi Correa, Alberto Silva Neto, Karine Jansen, Olinda Charone.


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RESUMO

As perguntas, O que é Dramaturgia Pessoal do Ator? e Qual o papel das Histórias de Vida na dramaturgia pessoal do ator, são os motes centrais deste estudo na medida em que o processo de criação do trabalho do ator, sob a regência deste método, não possui nenhum documento de investigação científica e as histórias de vida estão presentes no Teatro Brasileiro, como um dos aspectos da contemporaneidade. Minha dissertação aponta um caminho de experimentação artística, cuja matéria-prima principal de criação são as histórias de vida, os depoimentos pessoais dos atores na construção da cena. Para compor as bases de tal proposição, sirvo-me do referencial teórico de Deleuze e Guattari. Do ponto de vista metodológico, exploro os fundamentos da etnometodologia, intentando trabalhar com os depoimentos dos criadores deste processo como conhecimento prático, etnométodos de um fazer. Os aspectos conclusivos advindos deste estudo estão inteiramente comprometidos pelo grau de implicação da pesquisadora.

Termos-chave: Dramaturgia pessoal – Histórias de Vida – Processo de Criação – Teatro do Devir.


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RESUMÉ

Les questions “Qu‟est-ce que c‟est la dramaturgie personnelle de l‟acteur” et “Que est le rôle des histoires de vie chez la dramaturgie personnelle de l‟acteur” sont les motifs centraux de cette étude dans la mésure dont le processus de création du travail d‟acteur, sous l‟imposition de cette méthode, n‟a pas de documents de recherche scìentifique et que les histoires de vie se font présentes au sein du Théâtre Brésilien, comme un des aspects de l‟actualité. Ma dissertation signale un chemin de “expérimentation artistique” dont les principales matières prémières sont des histoires de vie, le temoignage des acteurs pendant la construction des rôles. Comme des axes de cette proposition je me sers de la pensée théorique de Deleuze et Guattari. Du point de vue de la méthode je m‟approprie des fondaments de l‟etnométhodologie, essayant de travailler sur les témoignage des créateurs de ce processus, en tant que connaissance pratique, etnométhodes de l‟acte de faire. Les aspects conclusifs provenant du prèsent travail sont entièrement soumis aux dégrés d‟engajement du chercheur.

Mots-clefs: Dramaturgie personnelle – Histoire de Vie – Processus de création – Théatre du Devenir.


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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS 1

APRESENTAÇÃO

001.

2 INTRODUÇÃO As histórias de vida no contemporâneo Teatro Brasileiro  Rir para começar bem.  O Laboratório Dramático de Antônio Januzelli (Janô).  O Processo Colaborativo do Teatro da Vertigem.

010.

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019.

PENSANDO TEATRO.

1.1. A ABORDAGEM CONCEITUAL DELEUZE-GUATTARIANA. 1.1.1. Teatro como rizoma. 1.1.2. Uma dramaturgia feita de acontecimentos. 1.1.3. A construção de cena como fabulação. 1. 2 A ETNOMETODOLOGIA COMO METODOLÓGICO. 1.2.1 As propriedades dos procedimentos interpretativos. 1.2.2. Os instrumentos de coleta de dados.

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A CONSTRUÇÃO DA DRAMATURGIA PESSOAL DO ATOR.

2.1. OS INTERCESSORES 2.1.1. Um amigo cúmplice. 2.1.2. Uma concepção de teatro.

2.2. 2.2.1. 2.2.2. 2.2.3. 2.2.4.

REFERENCIAL

TEÓRICO-

. 036. 036

OS PRINCÍPIOS DA CRIAÇÃO 041 Refletir o seu espaço natal (a cidade): o primeiro princípio. Criar com a matéria: o segundo princípio. Capturar o ator, duplamente: o terceiro princípio. Construir uma realidade inventada, (as flores de plástico ou a artificialidade): o quarto princípio.

2.3. O PROCESSO DE CRIAÇÃO 2.3.1. Estratégias Preparatórias da Direção. 2.3.2 O Manual de Cavalaria.

058


9 2.3.2.1. Fazer observações de rua 2.3.2.2. Trazer histórias de vida (pessoais) 2.3.2.3. Escolher quatro pontos no espaço físico da cena – deslocamento no espaço. 2.3.2.4.Trazer um objeto pessoal que tenha relação com o trabalho 2.3.2.5. Compor uma música para o trabalho 2.3.2.6. Fazer desenhos sobre o personagem e sobre o trabalho como um todo 2.3.2.7. Escolher três linhas do texto que representem o seu personagem e três linhas do texto que representem o trabalho como um todo 2.3.2.8. Fazer observações sobre um outro ator do elenco.

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O PAPEL DA HISTÓRIA DE VIDA NA DRAMATURGIA PESSOAL DO

ATOR.

081

3.1. A EXPERIMENTAÇÃO COM AS HISTÓRIAS DE VIDA COMO FABULAÇÃO NA ARTE DO ATOR 082 3.1.1 Os perceptos arrancados pelos atores 3.1.2. Os afectos ou devires construídos pelos atores: cenas de Hamlet – Um Extrato de Nós

3.2.

A INFLUÊNCIA DIRETA DO VIVIDO SOBRE OS OUTROS ELEMENTOS DA DRAMATURGIA PESSOAL DO ATOR 097

3.2.1. Os quatro pontos no espaço. 3.2.2. O objeto pessoal. 3.2.3. Composição musical.

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ASPECTOS CONCLUSIVOS.

102

7

REFERENCIAS.

108

8

ANEXOS.

112


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LISTA DE FIGURAS1

Figura 1: O diretor e o elenco.

006

Figura 2: Cacá Carvalho e a equipe de criação.

009

Figura 3: Momento de exposição de histórias no ensaio.

010

Figura 4: O diretor Cacá Carvalho expondo sua concepção de teatro para o elenco.

040

Figura 5: Marambiré, manifestação espetacular indutora do processo.

042

Figura 6: o ator Alberto Silva Neto e o ator Allyson Santos.

047

Figura 7: imagem simbólica do processo de criação do espetáculo \ cartaz.

051

Figura 8: imagem do escudo do Estado do Pará visto da platéia.

052

Figura 9: as conduções do diretor para o elenco.

054

Figura 10: momento dos comentários do diretor sobre o trabalho do ator.

061

Figura 11: a atriz Zé Charone em momento de experimentação.

072

Figura 12: o ator Henrique da Paz e o ator André Mardock (com barba).

075

Figura 13: a atriz Nilza Maria e a atriz Mendara Mariane.

077

Figura 14: o ator Cláudio Barros e a atriz Zé Charone.

086

Figura 15: a atriz Antônia Leal e o ator José Carlos Gondin.

090

Figura 16: cena de abertura do espetáculo no momento do velório.

095

Figura 17: cena de abandono de Ofélia.

097

Figura 18: cena do cemitério. Cláudio Barros com a caveira.

099

Figura 19: momento de experimentação entre atores e objetos.

101

Figura 20: o ator André Mardock trabalhando a cena do teatro com bonecos.

106

Figura 21: última imagem do espetáculo visto pelo espectador.

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Os créditos das fotografias são de Miguel Chikaoka e Wlad Lima.


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Como possível então, nessa circulação urbana que invoca tanta coisa, fazer o passado virar futuro. Peter Pal Pelbart.


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APRESENTAÇÃO A dissertação de mestrado provoca um estado paradoxal. Ao mesmo tempo em que é um trabalho solitário, é um trabalho de múltiplos diálogos. O primeiro deles, que não é só fala, é também um fazer-junto, foi com a Profª. Dra. Antonia Pereira2, minha orientadora nesta criação. Um prazer imenso foi a troca de afectos e perceptos 3 com o diretor Cacá Carvalho4, com os atores deste grande DEVIR-HAMLET e com os técnicos desta Dinamarca-Pará. E foi pensando muito nesta nossa comunidade emocional5, construída durante o processo desta pesquisa, que a solidão deu passagem a novos agenciamentos6, isto é, a novas descobertas nesta máquina-teatro.

Este estudo tem como objeto de investigação a dramaturgia pessoal do ator, construída no processo de criação do espetáculo Hamlet - Um Extrato de Nós, realizado pelo Grupo Cuíra, em Belém do Pará. A pesquisa empírica ocorreu nos meses de junho, julho e agosto de 2002, paralelamente ao período de montagem, estréia e primeira temporada deste espetáculo7.

O meu objetivo principal foi investigar a construção da dramaturgia pessoal do ator, inscrita em cena, no processo de encenação deste espetáculo, dirigido por Cacá Carvalho com atores paraenses, na perspectiva de compreender o que seja, nesta obra, a proposta de trabalho do ator com histórias de vida. 2

Antonia Pereira, Profa.Dra. do PPGAC. Doutora em literatura comparada da universidade de Tolouse II. Afecto e percepto, são duas figuras do bloco estético, dois conceitos operatórios dos filósofos Deleuze e Guattari, cujo sistema conceitual é referência teórica deste estudo e que será desenvolvido no primeiro capítulo desta dissertação. 4 Carlos Augusto Carvalho é uma das maiores figuras nacionais na área teatral. O paraense que saiu do Grupo Experiência, ganhou fama mundial como Macunaíma, dirigido por Antunes Filho. Ao longo dos últimos anos, como ator, vem colecionando êxitos como Meu Tio Iauaretê, 25 Homens e mais recentemente, O Homem com a Flor na Boca. Faz parte do Centro de Experimentação e Pesquisa Teatral em Pontedera, Itália, onde passa grande parte do ano. Em Belém, dirigiu Senhora dos Afogados, para o Grupo Experiência; Nunca houve uma mulher como Gilda, Convite de Casamento e Toda minha vida por ti para o Grupo Cuíra do Pará. Trabalhou na novela Torre de Babel e nas séries, Você Decide e A Muralha, da Rede Globo. Dirigiu a peça O Visconde Partido, do Grupo Galpão, de Belo Horizonte. Como ator, seus espetáculos mais recentes são Fim do Jogo, de Samuel Beckett e A poltrona Escura, de Luigi Pirandelo. 5 Comunidade emocional é todo e qualquer grupo de pessoas que se agrupam menos por interesse projetivo e mais por interesse em um sentir-junto estético e ético. Conceito da Sociologia Compreensiva de Michel Maffesoli. 6 Agenciamento, no sistema Deleuzo-Guattariano, é troca, comunicação, acontecimento. 7 O espetáculo teve sua estréia no dia 09 de agosto, permanecendo em temporada até o dia 01 de setembro, sempre de quinta a domingo, às 21h no Teatro Waldemar Henrique, Praça da República. 3


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Para tanto, os objetivos específicos de minha pesquisa foi, em primeiro lugar, compreender as concepções, de teatro e de trabalho de ator, do diretor Cacá Carvalho e compreender o processo de construção das dramaturgias pessoais de cada ator. Em segundo, analisar a concepção de história de vida, construída como um dos elementos de criação da dramaturgia pessoal do ator e a sua relação com os demais elementos, na perspectiva de investigar a minha hipótese: a história de vida, como elemento construtor da dramaturgia pessoal do ator, contamina todos os outros, influenciando todos eles. E em terceiro lugar, objetivei introduzir a pesquisa cartografando8 duas práticas cênicas do Teatro Brasileiro, cuja utilização de histórias de vida é um dos aspectos de sua contemporaneidade.

Ativei o objeto de minha pesquisa com a seguinte problematização: O que é dramaturgia pessoal do ator, quais os seus princípios e como se processou a sua construção pelos atores de Hamlet – Um Extrato de Nós? Qual o papel da história de vida nesta dramaturgia pessoal do ator? Para esta problematização optei pelo método de abordagem da etnometodologia 9, especificamente, a busca dos etnométodos10 dos sujeitos. Por que ouvi-los, diretamente. Os sujeitos desta pesquisa são criadores, e muitos com uma vastíssima experiência nas artes cênicas. Para responder a toda esta problematização foi fundamental tratar, tanto as concepções do diretor Cacá Carvalho quanto as concepções dos atores, nesta dissertação, como teorias, pensamentos-de-ação que refletem um fazer artístico, uma prática cênica. Estas teorias, produção de conhecimento dos sujeitos desta pesquisa, foram articulados com o pensamento de outros praticantes, estabelecendo um perfil de trama, de linhas, a esta obra. Uma obra tecida, tramada com falas-retalho de muitos criadores-criaturas. Criadores

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Cartografar é mapear. Fazer um mapa, desmontável, conectável, reversível, modificável com múltiplas entradas e saídas. 9 Abordagem metodológica adotada para este estudo e apresentada no primeiro capítulo deste trabalho. Na palavra etnometodologia, etno sugere que um membro dispõe do saber de senso comum de sua sociedade e metodologia visa a utilização de métodos comuns por tal membro. 10 Conceito da etnometodologia. Os etnométodos são as atividades cotidianas, enquanto método dos membros de uma determinada sociedade, passíveis de serem descritíveis e portadoras de reflexibilidade.


14 porque constroem universos ficcionais, e criaturas, porque neste fazer reconstroem a simesmo.

Quando estes criadores se unem em torno de uma idéia, de um desejo, formam uma comunidade emocional, precisando existir enquanto durar o processo ou perdurar este desejo. A realidade de um grupo de teatro, unidos por uma vontade de estar-junto, de sentirjunto, é o de ser um coletivo do estético, e do ético, como diria Michel Maffesoli11, mais do que um coletivo-projetivo do sócio/econômico. Há, portanto aí, uma grande produção de conhecimento e, há que se reconhecer, que são eles que detêm a produção deste conhecimento; são eles que sabem de seus próprios métodos de trabalho. A eles é que deve ser dada a palavra, a vez da fala. Coube a mim como pesquisadora oportunizar meios; técnicas para que estes etnométodos fossem revelados pelos próprios sujeitos. Fui testemunha de depoimentos preciosos assim como dos abismos encontrados nesta opção. Mas foi confiando no livre acesso que me foi dado ao trabalho que pude me colocar entre o perigo e a sorte, o risco que é todo processo de criação. Minha observação, no processo deste trabalho, não poderia ser menos que participante. Observar, registrar, por todos os meios possíveis (vídeo, gravador, diário de trabalho) e contribuir com todos os olhares e falas comprometidas com este fazer artístico. Desta comunidade sou criadora e cria; Cuíra12 de natureza, e só poderia fazer esta pesquisa, totalmente implicada.

Antes de apresentar os criadores deste processo, é vital registrar que os depoimentos de cada um não são do conhecimento dos outros sujeitos. Este trabalho expõe falas delicadíssimas, por serem extremamente pessoais. As histórias de vida de cada ator, aqui apresentadas, foram levadas à cena totalmente ocultas, tanto do público quanto do resto do elenco. Muitas, de total desconhecimento da direção, que assim determinou. Elas foram reveladas a mim com muita generosidade e total conhecimento de todos, das finalidades desta pesquisa, frente ao grupo: documentar o processo de construção da dramaturgia

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Filósofo francês, expoente da Sociologia Compreensiva. Autor de livros como: No fundo das aparências, O tempo das tribos, Conhecimento comum, A Parte do Diabo, etc. 12 Cuíra – Interesse, curiosidade, ânsia de saber. ( fonte: Dicionário Papachibé: A língua paraense, vol. 1, de Raymundo Mário Sobral. )


15 pessoal do ator que o Cuíra estava vivendo. Como agora eu as torno públicas, espero corresponder, eticamente, às expectativas em mim depositadas.

Quem forma esta Comunidade Emocional?

A Sociedade Civil Grupo Cuíra do Pará foi formada por jovens atores egressos da Sociedade Civil Grupo Experiência13. No ano de 1982 o Grupo Experiência vivia uma fase de muita produtividade e reconhecimento, tanto no Estado do Pará quanto em outras capitais do país. Com montagens como Mãe D’água, Ver de Ver-o-Peso, Foi Boto, Sinhá e Gudibai Pororoca, o Grupo Experiência competia nos grandes festivais nacionais de teatro amador e obtinha o que na época era o grande reconhecimento institucional, a participação no projeto Mambembão14. Por três anos consecutivos, o Grupo Experiência percorreu algumas capitais do país sob os auspícios do então Instituto Nacional de Artes Cênicas – INACEN, depois FUNDACEN e hoje FUNARTE15.

O Grupo Cuíra do Pará nasce aí neste berço esplêndido do teatro amador. Alguns atores, inconformados pelo fato da única opção de um fazer teatral fosse a via do teatro regionalista batem em retirada entusiasmada e anárquica para um outro fazer que não se sabia bem o que seria. Só se tinha uma certeza: havia uma cuíra, uma coceira, uma agoniação, um entusiasmo em fazer algo novo. Com esta cuíra, o Grupo completou vinte anos em 2002. Com um histórico de quinze produções artísticas entre teatro e vídeo, desenlaces e parcerias, o Cuíra desejou festejar bonito as duas décadas de produção. Articulou parcerias e propôs a montagem do texto Hamlet de Shakespeare, como o grande pré-texto de trabalho. De fato, o texto de Shakespeare foi um pretexto, mas nunca o único, para o encontro desta comunidade, desses sujeitos-criadores. 13

Sociedade Civil Grupo Experiência é um grupo de teatro de Belém do Pará, fundado em 1969, sob a direção de Geraldo Salles. 14 Projeto de incentivo ao teatro amador nacional, mantido pelo governo federal através do INACEM, na década de 80. 15 Órgão do governo federal responsável pelo fomento cultural em todo país.


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Para a direção do trabalho, a escolha não poderia ser outra: o ator e diretor paraense Cacá Carvalho, que há muitos anos vinha mantendo uma relação profissional e emocional com os integrantes do Grupo Cuíra. Hamlet seria a quarta montagem do grupo dirigida por Cacá e, estas, não foram únicas na cidade. Já havia dirigido as montagens dos espetáculos Senhora dos Afogados, com o Grupo Experiência, e Fica Comigo Esta Noite, com o produtor Eduardo Silva16. Desde 1995, Cacá vem não apenas dirigindo alguns espetáculos no Cuíra, como também orientando o grupo, nas escolhas de novas montagens, elencos e direção cênica para estes diversos trabalhos.

Para acompanhar a direção em todo o processo de criação de Hamlet - Um Extrato de Nós, o Cuíra abriu suas portas a uma equipe de criadores da cidade, estabelecendo uma rede de profissionais que, de alguma maneira, mobilizam a produção teatral de Belém: Nando Lima17 para a cenografia, Lúcia Chedieck18 na iluminação, Cláudio Rego19 para os figurinos, Walter Freitas20 na direção musical, Marta Letícia21 para a produção executiva, Telma Lima22 na confecção dos figurinos e Suely Brito23, contra-regragem. Todas as adaptações necessárias ao texto de Shakespeare, para este processo de criação, foram realizadas pelo dramaturgo Edyr Augusto Proença.

No elenco, além de Cláudio Barros e Zê Charone, atores-administradores do Grupo Cuíra, participam – porque o espetáculo ainda vive - Nilza Maria, Mendara Mariani, José Carlos Gondim, Alberto Silva Neto e André Mardock, atores de outras montagens do Grupo e com experiências anteriores sob a direção de Cacá Carvalho. Completando o elenco foi convidado o bailarino Allyson Santos, a atriz Antonia Leal e o ator e diretor Henrique da Paz. Este último, fundador do GRUTA, um grupo de teatro com mais de trinta

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Eduardo Silva, produtor cultural em Belém do Pará nas décadas de 70 e 80. Nando Lima, diretor e cenógrafo paraense. Atualmente diretor de artes cênicas da Secretaria de Estado da Cultura – SECULT. 18 Lúcia Chedieck, cenógrafa e iluminadora paraense. Atualmente radicada em São Paulo. 19 Cláudio Rego, cenógrafo, figurinista e carnavalesco paraense. 20 Walter Freitas, roteirista, compositor e músico paraense. 21 Marta Letícia, estreante no ofício. Hamlet – Extrato de Nós, foi sua primeira produção executiva. 22 Telma Lima, especialista em confecção de figurinos para teatro. Trabalha para diversas produções artísticas paraenses. 23 Suely Brito, clown e atriz paraense. No Cuíra, regulamente, exerce a função de contra-regra. 17


17 anos na produção artística paraense. Todo o elenco terá uma breve apresentação, logo que as suas falas forem introduzidas no segundo e terceiro capítulos desta dissertação. É importante observar que os atores Allyson Santos e André Mardock, no período de conclusão desta, já haviam sido substituídos pelos atores Leonel Ferreira e Adriano Barroso, respectivamente. Estas substituições são matérias de algumas conclusões sobre este fazer, apresentadas no final deste trabalho de pesquisa.

Figura 1: O diretor e o elenco. Como atriz e diretora que sou24, inclusive dentro do próprio Cuíra, fui convidada a participar deste projeto como assistente de direção. Desisti desta função em detrimento do papel de pesquisadora e aluna do mestrado da UFBA. Acredito nos ganhos desta escolha. Tenho o desejo de devolver ao grupo Cuíra, pelos presentes-espetáculos que temos feito juntos, um trabalho amoroso, em forma de dissertação, que inaugurará uma nova maneira de ser Cuíra.

24

Wlad Lima, nome artístico da autora desta dissertação. Paraense. Atriz e diretora de teatro. Professora de interpretação e prática de montagem da Escola de Teatro e Dança da UFPA. Fundadora do Grupo Cuíra, em 1982.


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Por tudo isso, talvez seja compreensível o porquê de tantas falas destes criadores, correndo junto com a minha escrita; o porquê da manutenção de um jeito muito particular de escrever os depoimentos dos criadores, exatamente como eles falam; de não transformar o nosso “tu” (segunda pessoa) dos discursos, bem como, manter o constante “ele” – referente ao diretor - adotado pelos atores e técnicos deste processo. Um jeito paraense de falar misturado com um jeito característico do povo de teatro.

Destaco, ainda, a contextualização geográfica e cultural desta proposta: Belém do Pará, Amazônia, Brasil. Contexto fundamental na compreensão da elaboração desse processo de pesquisa artística dentro da construção da fictícia Dinamarca-Pará. Porque é inexistente na prática dos grupos teatrais de Belém a documentação dos seus processos de criação e, menos ainda, a relação destes, com as práticas teatrais das outras regiões do país.

Uma outra maneira de ser Cuíra: Antes de apresentar a estrutura desta dissertação é importante reconhecer seu perfil “frankeinsteiniano”. São pedaços, fragmentos, conectados, agenciados com a fala de muita gente. Não é só isto. É, na verdade, um exercício de experimentação e de criação. O personagem do Dr. Frankenstein, que é o criador do monstro, mas é também a criatura de Mary Shelley, está, para mim, como imagem ontológica para o trabalho de pesquisadora cênica. Fazendo a minha criatura-dissertação, eu criadora-pesquisadora me re-construí. Esta obra tem suas cicatrizes ainda muito visíveis, e isto importa muito, porque as cicatrizes são os rastros do meu fazer.

A introdução é uma reflexão sobre a história de vida, como um aspecto da contemporaneidade. Dialoguei com outros pensadores do teatro contemporâneo brasileiro, sobre a presença da história de vida como elemento de criação em seus experimentos cênicos. Ouvir a fala de outros pensadores, além dos criadores envolvidos diretamente na montagem de Hamlet - Um Extrato de Nós, foi importante porque eles nos oferecem conceitos que são como chaves de leitura do nosso próprio fazer.


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O primeiro capítulo articula o sistema conceitual Deleuzo-Guattariano escolhido para esta pesquisa, com a área de conhecimento onde ela se insere: as artes cênicas, mais especificamente,

o

teatro.

Fundamenta

a

abordagem

teórico-metodológica

da

etnometodologia, justificando a busca dos etnométodos dos sujeitos-criadores deste processo artístico, bem como a escolha dos instrumentos de coleta de dados.

No segundo capítulo o foco de atenção é sobre o objeto desta pesquisa: a dramaturgia pessoal do ator. Proponho-me a ouvir diretamente as concepções de Cacá Carvalho e de seus atores e técnicos, sobre os princípios que envolveram este processo de criação. O meu trabalho foi, além de colher as falas dos próprios sujeitos e agrupá-las em blocos de construção de sentidos para edificar, visivelmente, todos os etnométodos dos atores no processar de suas criações, compreender a dramaturgia pessoal do ator como um pensamento-arte de constituição rizomática, segundo a abordagem filosófica DeleuzoGuattariana. Componho com suas falas, com o objetivo de criar um itinerário de atenção ao leitor desta obra. No terceiro capítulo analiso o papel da história de vida, tanto como um dos elementos de criação da dramaturgia pessoal do ator proposto pelos sujeitos da pesquisa quanto de que a história de vida é o elemento constituinte da dramaturgia pessoal do ator que contamina todo o sistema, influenciando os demais elementos. Esta é a minha hipótese e é este papel que investigarei, no processo de criação de Hamlet – Um Extrato de Nós.

A conclusão, através da análise das substituições de atores ocorridas no espetáculo Hamlet –Um Extrato de Nós, aponta para o sentido do que abandonar e do que não abandonar das histórias de vida, no processo de manutenção deste espetáculo construído com as dramaturgias pessoais dos atores. Com esta cartografia da dramaturgia pessoal do ator posso desejar que minhas conclusões, que não serão nunca conclusivas, sejam como o espetáculo: um extrato de nós. Para tanto, deixo aos leitores deste texto a possibilidade de novas conclusões através da leitura de meus anexos.


20 Nesta articulação de pensamentos e práticas, o que me fascinou foi perceber que mesmo com toda a singularidade de um processo de criação - singularidades desejantes de sujeitos-criadores - foi possível perceber o encontro de fios; foi possível, nestas conexões, estabelecer nós. Por isso, fecho esta apresentação revelando o meu deslumbramento diante da palavra “nós”, do duplo desta palavra: os nós de amarração e o nós, de coletivo.

FIGURA 2: Cacá Carvalho e equipe de criação.


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1 INTRODUÇÃO

Devo confessar que ouvir histórias é o foco de minhas investigações artísticas. Mais ainda, ouvir as histórias de vida, histórias que foram vividas por cada um dos criadores do processo. E quanto mais essas histórias podem ser contadas no palco, mais me interessa. No processo de criação de Hamlet – Um Extrato de Nós, a coisa mais deliciosa era o espaço reservado para esta boa fala, para estas tantas histórias desta comunidade emocional.

Figura 2: Momento de histórias no ensaio

Cacá Carvalho, sendo um mestre nas palavras, dirigia o seu ator, falando, conversando muito, como se não houvesse pressa e nem data marcada para estrear. E os atores eram estimulados, e por que não dizer provocados, a contarem suas histórias em


22 cena, em ensaios. Enquanto falavam, e isso religiosamente todos os dias por pelo menos seis horas, Cacá e seus atores iam deixando em mim, atentíssima, a impressão de que havia sim uma urgência, só que esta era em dividir pensamentos, trocar idéias. Isto sim, me pareceu, era o que importava a estes criadores. Na medida em que fui procurando gravarlhes as palavras – não importando em que meios: gravadores, câmera de vídeo e diários de trabalho – algumas histórias ficavam, na verdade, impressas em mim e ressoavam, inquietas, por dias e dias. Se estão elas em meu corpo e no corpo do espetáculo, serão elas o corpo do meu estudo.

A história de vida é o foco de interesse deste trabalho, tanto por ser um dos elementos constitutivos da dramaturgia pessoal do ator – método de trabalho para o ator organizado neste processo pelo diretor Cacá Carvalho por ser considerado como portador de perspectivas cênicas interessantes – quanto por ser uma prática onde, “os atores ignorados eou excluídos econômica e culturalmente adquirem a dignidade e sentido de finalidade ao rememorar a própria vida”. (MACEDO; 2000 p. 177).

1.1.Rir para começar bem (Um homem em situação de representação. Um grupo que o observa. Este homem representa a si-mesmo em um tempo-espaço diferente daquele vivido pelo coletivo. Opera um jogo; o faz-de-conta do aqui-e-agora. O homem é Cacá Carvalho, já deitado de bruços, como se estivesse recebendo uma massagem. Brincando de ser ele e de ser outro.)

Massagista: (o próprio Cacá com uma voz muito suave) Seu Cacá, eu estou sentindo, aqui, no centro de suas costas, que existe uma pequena caixinha. Um bauzinho! Neste bauzinho, o senhor guarda os seus segredos, os acontecimentos de sua vida, as emoções, suas dores e frustrações. Vamos juntos, seu Cacá, nós dois, pegarmos este bauzinho e levá-lo para bem longe. Vamos jogá-lo fora e livrar suas costas, o seu coração, deste peso.


23 Cacá: (com uma voz sonolenta) Não posso.

Massagista: (Cacá com uma voz estridente) Como seu Cacá? Relaxe...Nós vamos fazer isso juntos. Vamos pegar o bauzinho e jogá-lo... Cacá: (com uma voz de boca amassada na cama e o olho arregalado) Não posso!

Massagista: (Cacá batendo nas próprias costas) Relaxe seu Cacá! É preciso. Nós vamos fazer isso.

Cacá: (com voz estupefata) Não posso. Este bauzinho é o meu material de trabalho.

(Riso Geral)

Esta pequena situação dramática é na verdade uma piada. Ela foi contada muitas vezes por Cacá Carvalho, ator e diretor paraense, para os atores do Grupo Cuíra do Pará, durante a montagem de Hamlet - Um Extrato de Nós. Uma piada de ator.

Quando Cacá Carvalho conta esta piada, ele estabelece uma conexão entre o seu cotidiano e o seu fazer teatral. Propõe que a vida, cotidiana e vivida, deva ser matéria-prima para a cena. Pequenos recortes tirados do baú da memória, mas com o olhar do presente. Pois, se é o presente que diz do vivido, é então, o entorno, o contexto deste presente que fala.

Como, nesta pesquisa, o foco de interesse se concentra em buscar, dentro da dramaturgia do ator, o papel das histórias de vida dos atores como matéria-prima de cena, gostaria - ao fazer referência a estas outras duas experiências cênicas do Teatro Brasileiro que apresentam esta prática como aspecto de sua contemporaneidade – de melhor contextualizar minhas escolhas investigativas, menos no intuito de justificá-las, e mais na intenção de introduzir o leitor no corpo desta dissertação.


24

1.2.O Laboratório Dramático de Antônio Januzelli (Janô)25 Em artigo26 sobre a performance, Januzelli faz um estreito paralelo entre a experiência do ator contemporâneo e a do performer. Para ele, “o ator de teatro cada vez mais engloba em sua arte as características daquele, centrada na improvisação e suas vertentes e no desejo de ativar o inusitado, visando a ângulos inexplicados de expressão e novas abordagens de contato com o espectador”. (1996, p. 85)

Segundo o autor, no período que antecede à aparição do laboratório dramático, que pretendia ser um veículo de exploração das fronteiras do trabalho do ator, este – o ator – tinha, basicamente, três funções: decorar as falas, expressar dramática e cenicamente o texto de um autor e, por fim, ser dirigido por um encenador. Este ator dificilmente explorava áreas mais profundas do seu eu, nem se colocava como gerador de conteúdos e formas dramatúrgicas.

Muitas questões sugiram, para este pesquisador de teatro, ao analisar esta postura, principalmente, quanto ao papel do ator como autor cênico, para tornar-se homem de teatro no sentido pleno, isto é, aquele que vivencia as funções de seu ofício como um todo. A partir desta, e de outras questões, surge o que Janô denomina de “teatro da pessoalidade” e que para ele, atinge o cerne das experiências performáticas. “O teatro da pessoalidade nasce desta urgência do ator em explorar o seu „texto pessoal‟ como substância dramatúrgica”. (ibid, p. 86).

Januzelli conceitua duas categorias de ator: o ator clássico e o ator atual. O primeiro, é aquele escolhido para um papel pelo encenador. Este ator passa por todo o procedimento de leitura e análise do texto até a prática das repetições de cena para a incorporação do personagem. O conceito de ator atual é a do ator que, iniciado nos 25

Antônio Januzelli, Janô – ator, diretor, professor e pesquisador da prática teatral. Atuou na ECA-USP. Januzelli, Antônio – Breve Reflexão sobre a Formação do Performático; in Performáticos, Performance e Sociedade -TRANSE  João Gabriel L. C. Teixeira (organizador) – Brasília; Editora UNB, 1996, 100p. 26


25 laboratórios dramáticos, procura dar elasticidade à sua capacidade expressiva e criativa, tornando-se investigador de sua linguagem, procurando penetrar-lhe o âmago.

Como aspecto da contemporaneidade, este caminho aponta para o ator a performance como um instrumento a seu dispor. Para desencadear um trajeto de preparação deste ator é necessário ter como ponto de partida o homem. E como pesquisadora, autorizome a dizer que esta preparação tem, necessariamente, que fazer trafegar elementos da vida ao palco. Freqüentemente, quando se prepara o indivíduo que pretende ser ator, trabalha-se sobre as suas características de ator, esquecendo-se quase sempre de se trabalhar antes as bases expressivas deste indivíduo como indivíduo. Este passo é prérequisito indiscutível para ampliar e aprofundar as capacidades sensitivas e expressivas do artista cênico. (JANUZELLI; 1996 p. 86).

Citando Gregory Battock27, Janô diz que mesmo antes de trabalhar o ator no indivíduo é preciso trabalhar o indivíduo na pessoa. Por isso, no laboratório dramático, há uma primeira etapa deste aprendizado. [...] desencadear a autoconsciência, como vontade, desejos, travas, carga expressiva, consciência dos gestos, movimentos e estereótipos, exploração da articulação dos movimentos e sentimentos, da criação de climas e atmosferas corporais, interacionais e espaciais...Autoconsciência: capacidade de ver a si mesmo, como conteúdo e imagem. Vemos o outro. Como se ver Percebendonos! Quais os exercícios que nos facilitam esta percepção O laboratório dramático tem como uma de suas funções a investigação de exercícios com esta finalidade. (JANUZELLI; 1996 p. 87).

Na conclusão do artigo, o autor, afirmando que tanto na performance quanto no teatro a figura do artista é a própria arte, coloca uma questão: e como está, conscientemente, a figura deste artista que expõe a si próprio em cena Segundo Janô, isto esbarra nas máscaras sociais do cotidiano, que estão inscritas nos gestos, em todo o corpo do ator, levando o carimbo da inconsciência.

27

“Antes de o homem estar consciente da arte, ele tornou-se consciente de si mesmo. Autonomia é, portanto, a primeira arte”. (BATTOCK apud JANUZELLI).


26

1.3.O Processo Colaborativo do Teatro da Vertigem28 Outra experiência importante para desenhar este contexto é a natureza do processo de criação exercido no Teatro da Vertigem. Analisando esta realidade artística, Fernandes 29 diferencia este processo da prática de criação coletiva, afirmando que há semelhanças, mas que ambas não devem ser confundidas. A autora expõe que este processo é hoje bastante comum entre os grupos de teatro. (...) o processo colaborativo do Teatro da Vertigem mantém a criação conjunta, mas preserva as diferenças, como se cada criador – ator, dramaturgo ou diretor – não precisasse abdicar de uma leitura própria do material experimentado em conjunto. O que se nota, nesse caso, é que a participação ativa de atores, dramaturgo e diretor na concepção do texto e do espetáculo não impede que os envolvidos construam dramaturgias específicas da atuação, da palavra e da encenação, que às vezes podem não estar em completa sintonia. As fricções e as dissonâncias são bem recebidas pelo grupo, pois abrem espaço para leituras insuspeitadas. (FERNANDES; 2002 p. 38).

Em outro artigo30, na mesma publicação, Rinaldi expõe alguns princípios que fazem da prática destes atores, o Teatro da Vertigem. A autora inicia o texto com a seguinte pergunta: “o que nos faz atores do Teatro da Vertigem” (2002 p. 45). Para ela, são várias as afinidades que mantém o grupo junto: ideológica, estética e, principalmente, afetiva. Considerado tribal, o trabalho é lento porque busca uma transformação pessoal. Um mergulho para dentro como risco e crença de todo processo de criação. Durante o processo de criação de Apocalipse 1,11. deparei com questões que me acompanham no decorrer da vida. Tornei-me um vulcão em erupção constante: meus segredos, minhas conquistas, emoções, frustrações, meus desejos e fantasias escorriam descontroladamente. A instabilidade e a liberdade faziam parte de meu processo de autoconhecimento. (Roberto Audio)

28

Teatro da Vertigem – Grupo de teatro paulista, criado na década de 90 e dirigido por Antônio Araújo. Uma característica de destaque do grupo, além do processo colaborativo, é as suas montagens em espaços não convencionais. 29 FERNANDES, Sílvia – O Lugar da Vertigem; in Teatro da Vertigem: Trilogia Bíblica. São Paulo; Publifolha, 2002. 30 RINALDI, Miriam – O Que Fazemos na Sala de Ensaio; in Teatro da Vertigem: Trilogia Bíblica. São Paulo; Publifolha, 2002.


27 Identificados na prática como Processo Colaborativo, onde cada ator é simultaneamente autor e performer, este processo é a expressão do diálogo artístico, num jogo de complementariedade, porque durante a criação estão livres de proibições. “Não há nenhuma restrição à forma ou conteúdo daquilo que se quer trazer para a cena, com exceção da sinceridade. É o que chamamos de depoimento pessoal. Somos estimulados a descobrir em nós o que isso significa.” (RINALDI; 2002 p. 46) Quero ter um espaço para transcrever as definições de depoimento pessoal - bem como seu entendimento – construídas e publicadas pelos próprios atores do Teatro da Vertigem. Acredito que será fundamental para a compreensão dos leitores desta dissertação, na futura análise do objeto desta pesquisa. O depoimento pessoal é a possibilidade de o ator se colocar na obra de uma forma tanto consciente como inconsciente. Ele dá margem para o ator/artista fazer de seu ofício urna ferramenta de auto-análise e de transformação. (Vanderlei Bernardino31) Depoimento pessoal é sua colocação como ser humano, como cidadão e artista. Muitos depoimentos viraram personagens, como a Talidomida do Brasil. Eu queria falar de uma coisa pessoal e fiz aquela menina torta. E deixar que sua experiência vire arte, seja manipulada. (Mariana Lima 32) O depoimento pessoal não precisa necessariamente se fixar em situações vividas pelo artista; também situações análogas - o outro, a rua - são fontes de inspiração. (Luciana Schwinden33) Sou negro e interpreto um negro humilhado. Essa personagem me oferece a dimensão de meu papel como artista. As palavras do texto me fazem estar permanentemente vivo, como se a cada espetáculo se reafirmasse ninha condição que precisa ser mudada e de que nenhum negro, seja qual for sua classe social, está livre. (Luis Miranda34) Não somos atores de todos os papéis, mas de alguns. Isso tem a ver com o conhecimento de nós mesmos. Não camuflar nossas características, mas ampliálas, num processo de auto-afirmação. Não negar defeitos: assumi-los. (Miriam Rinaldi35)

31

Ator do Teatro da Vertigem. Atriz do Teatro da Vertigem. 33 Atriz do Teatro da Vertigem. 34 Ator do Teatro da Vertigem. 35 Atriz do Teatro da Vertigem. 32


28 Rinaldi sintetiza em linhas gerais o trabalho do ator, os procedimentos de criação, caracterizando-o em quatro qualidades de exercício: a vivência, a improvisação, os workshops e as visitas. Uma consideração importante da autora, representando todo o elenco, é que não há distribuição das personagens, mas sim, são elas que escolhem os atores. Elas nascem da aproximação entre universo pessoal e o texto escrito; um paralelo entre ficção e realidade.Para o elenco, o ofício do teatro oferece a possibilidade de ampliar a consciência de cada um sobre si mesmo.

1.4. As Histórias de Vida, tiradas do Baú, na Dramaturgia Pessoal do Ator.

O vivido de cada um e por cada um, isto é, a história de vida, teve um espaço tão significativo na prática da dramaturgia pessoal do ator de Cacá Carvalho – mais especificamente no processo de criação de Hamlet – Um Extrato de Nós - quanto tem a pessoalidade do ator e o depoimento pessoal do ator, nos processos de criação do Teatro Laboratório de Janô e do Teatro da Vertigem de Antônio Araújo, respectivamente. Há, nos três processos de criação, o aspecto auto-referente, característico da arte contemporânea.

Este estudo analisará a dramaturgia pessoal do ator no segundo capítulo, após a exposição do sistema conceitual e do referencial teórico-metodológico, que darão suporte a esta análise.


29

2

PENSANDO TEATRO

Percebo que a minha maneira de pensar teatro tem uma certa configuração. Como se configura este meu pensar? Não penso o teatro como uma forma enraizada no texto e só nele. Gosto de pensá-lo independente de qualquer ponto; não dependente de uma única raiz. O meu pensar teatro não quer que, apenas um, dos elementos da linguagem cênica como a luz, o som, a cenografia, o texto ou qualquer outro - seja o tronco da obra e para este tronco, tudo converta. Ele quer diversificar-se. Quer dar mais autonomia ao ator como criador de cenas. Por pensar o fazer teatral com esta configuração, elegi a montagem de Hamlet – Um Extrato de Nós, mais especificamente, a construção da dramaturgia pessoal do ator que este processo de criação propunha - como objeto de minha pesquisa. O Grupo Cuíra, com a direção cênica de Cacá Carvalho, não intencionava fazer apenas mais uma montagem do texto shakespeariano. O que eles estavam propondo era que o texto fosse o último elemento a ser visitado para a construção das cenas. As cenas seriam acontecimentos inventados a partir de vários elementos indutores da criação36, de diferentes naturezas. Para a direção, a cena deveria ser um extrato: o sumo de uma mistura de várias construções, questões, respondidas e não respondidas pelos atores, a diferentes estímulos e estratégias montadas para capturar o que chama de dramaturgia pessoal do ator, um dos problemas de minha pesquisa desenvolvido no próximo capítulo.

2.1. A ABORDAGEM CONCEITUAL DELEUZO-GUATTARIANA. Para o corpo da dissertação, eu desejei que a abordagem conceitual acompanhasse este pensar artístico, este objeto de pesquisa. Encontrei-me com o pensamento de Deleuze e Guattari e seu sistema conceitual rizomático. 36

Elementos indutores da criação ou Manual de cavalaria é o sistema de estímulos e estratégias para a criação da dramaturgia pessoal do ator.


30

Estes filósofos propõem que o pensamento, além da forma arborescente – que implica uma hierarquização - pode também configurar-se de outra maneira: o pensamento como rizoma, um pensamento que se faz múltiplo, que se quer com diferentes formas, que quer subtrair o uno da multiplicidade a ser construída. Segundo os autores, “o rizoma tem muitas formas diversificadas que vão desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos”. (2000; 15). Acreditam eles que o pensamento humano está mais para um perfil rizomático, do que para um perfil arborescente.

2.1.1.Teatro como rizoma. O conceito de rizoma é pertinente a um pensar teatro específico deste estudo. Este teatro-pensamento se quer radículas em muitas partes (pequenas raízes espalhadas pela superfície, ampliando-se em todas as direções e não apenas na vertical). Ele quer espalharse, fazer conecções, rupturas, comunicar-se, abrir pontos de fuga, vir a ser algo ou alguma coisa que não sabe de antemão, que desconhece. Nesse sentido o que me foi narrado pelos sujeitos, e o que me foi possível analisar durante a pesquisa, encontra ecos no pensamento destes criadores. Sinto que não convencerei ninguém se não enumerar certas características aproximativas do rizoma. O rizoma segue seis princípios: os princípios de conexão e de heterogeneidade são os dois primeiros. O da conexão, revela que qualquer ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. O da heterogeneidade, que cada um dos traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; um traço lingüístico não remete somente a outro traço lingüístico.


31 Quando penso nesta natureza de fazer teatral creio ser dela também estes dois princípios. Nesta forma de fazer, mais precisamente, da dramaturgia pessoal do ator, é possível conectar qualquer ponto da obra cênica com qualquer outro ponto (princípio da conexão), assim como, um traço de uma determinada natureza - como, por exemplo, a sonora - pode remeter a um traço de uma outra natureza como a plástica; um traço lingüístico remeter a um traço gestual (princípio da heterogeneidade).

O rizoma opera com um terceiro princípio: o da multiplicidade. Deleuze e Guattari concebem a realidade como substantiva; ela não é apenas múltipla, ela é multiplicidade. Para eles, “uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de combinações crescem então com a multiplicação)” (2000 p.16).

O rizoma, sendo multiplicidade, é como os fios que desenham a trama, que é a realidade. O teatro tem na trama uma de suas grandes metáforas; no que é tecido. O fazer teatral apresenta uma maior performance quanto maior for sua possibilidade de combinações. Como a realidade, o teatro precisa ser multiplicidade e a dramaturgia pessoal do ator, através de sua configuração de elementos, busca esta multiplicidade.

As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades, a suas relações, que são devires, a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres, a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização.(DELEUZE; GUATTARI,1995, P.8).

O pensamento Deleuzo-Guattariano propõe um quarto princípio para o rizoma: o princípio de ruptura a-significante. Este pensamento coloca que um rizoma pode ser


32 rompido, quebrado em um lugar qualquer. Que ele pode retomar em qualquer uma de suas linhas e até mesmo segundo outras linhas. Todo rizoma compreende linhas de segmentariedade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. (...) Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas corre-se sempre o risco de retornar nela organizações que reestratificam o conjunto, formações que dão novamente o poder a um significante, que reconstituem um sujeito – tudo o que se quiser, desde as ressurgências edipianas até as concreções fascistas. (DELEUZE; GUATTARI, 1995 p.18).

Este quarto princípio, do qual estamos tratando, é também chamado de o princípio do Devir. Acredito ser ele o mais importante neste diálogo com o fazer teatral. O trabalho do ator é esse jogo de desterritorializar-se. Ele quer encontrar uma linha de fuga à sua figura territorializada e apresentada como identificatória: a da pessoa social do ator, que é uma de suas possíveis configurações territoriais. Ele tem a pretensão de, ao sair, se reterritorializar com uma outra configuração.O trabalho do ator é um jogo do Devir.

DEVIR é a palavra-chave de todo o processo de criação deste trabalho acadêmico. O primeiro encontro com este conceito aconteceu na leitura de um livro de ensaios sobre loucura. Seu autor, Peter Pal Pelbart37, nos apresentou o DEVIR-ANJO do homem. O livro foi de um encantamento tão intenso que, para mim, aquela obra foi a melhor publicação sobre teatro e arte daquele ano. Na verdade, era das áreas da psicanálise e da filosofia. Mas havia algo ali, a ser descoberto: era Gilles Deleuze num DEVIR-GUATTARI e Felix Guattari num DEVIR-DELEUZE.

A palavra DEVIR encontrada nas obras destes dois pensadores franceses induzia-me, imediatamente, a pensar sobre o trabalho do ator. Talvez fosse sempre um DEVIR, o trabalho

do

ator.

MACUNAÍMA, 37

um

Um

DEVIR-OFÉLIA,

DEVIR-ALGUMA

um

COISA.

DEVIR-MEDÉIA, Confirmei

a

um

DEVIR-

possibilidade

PELBART, Peter pal – A Nau do Tempo Rei: 7 ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro; IMAGO Ed.,1993.

de


33 experimentar o fazer de minha pesquisa, com as idéias-forças contidas neste conceito, por estas palavras de Deleuze, sobre o DEVIR. Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem se ajustar a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A questão “o que você está se tornando?” é, particularmente, estúpida. Pois à medida que alguém se torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, núpcias entre dois reinos.(DELEUZE; PARNET; 1998, p. 10).

No momento deste encontro, todo o meu fazer teatral estava voltado para o exercício de experimentação cênica com as histórias de vida dos atores. A expectativa era conduzir todo o trabalho, no sentido de que a construção da cena, fosse esta dirigida ou não para a montagem de um texto pré-escrito, partisse de suas próprias histórias de vida, ou melhor, que qualquer construção estivesse desligada do texto de autor e totalmente ligada a um texto pessoal dos atores, para só assim ser posteriormente induzida pelo texto pré-escrito.

Nestes tempos que já se foram, gostava muito de pensar que trabalhar sobre a matéria mais pessoal dos atores nos afastaria de uma concepção de ator, como um simples intérprete do texto, das idéias de um outro criador que não ele próprio. Com o passar dos tempos e, principalmente com o exercício do fazer, foi possível ver que haveria possibilidades, nesta questão, para novas experimentações. O trabalho, a partir de novas questões, poderia ser o de encontrar linhas de fuga a esta concepção de ator como simples intérprete. Para Deleuze, “fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano”. Com texto pré-escrito ou sem ele, havia a certeza de que o criador primeiro na cena era o ator, e este sempre operando com o seu texto pessoal, pude pensar em linhas de fuga sobre outras linhas de fuga.

Simone Reis, levantando como hipótese a configuração de personagem Rizomático, baseada na noção de Devir e não de Ser, dialoga com estas idéias: “Quando Sou, corro o


34 risco de estagnar, bloquear, paralisar e cair num rígido sistema de estruturação. A noção de Devir viabiliza a vertiginosidade do que é vivo, do jogo que não é estático, reduzível e delimitável” (2002; 24). Em sua dissertação de mestrado38, a autora apontou para um “Teatro de Estados”, onde para o ator a questão não é ser ou não ser, mas estar Ofélia, Hamlet, Gertrudes ou Yórick. Ela ainda aponta para as potencialidades do rizoma: reprodução horizontal (como a grama) e proliferação múltipla de devires de devires de devires (como os fractais).

O quarto e o quinto princípios do rizoma são o de cartografia e de decalcomania. Não há nenhum modelo estrutural ou gerativo que justifique o rizoma. Ele não precisa de nada assim para o justificar. O rizoma não apresenta uma unidade pivotante objetiva sobre a qual se organizam estados sucessivos e, muito menos, uma lógica do decalque e da reprodução. Para Deleuze e Guattari, o rizoma é diferente: ele é mapa e não decalque.

O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revestido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas.(...) Um mapa é uma questão de performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida „competência”. (DELEUZE; GUATTARI; 2000; p. 22)

O pensamento-ação que rege a dramaturgia pessoal do ator quer a cena como um mapa e não como um decalque, uma reprodução. Quer sua obra conectável, desmontável, possuindo entradas múltiplas e prontas para todas as naturezas de modificações. Não obedece ao texto como o pivô de toda a sua concepção cênica. Constrói o espetáculo como um plano de consistência; um campo de gramado, ampliando-se na horizontalidade, e não só nela – a transversalidade é bem própria a um sistema que se quer rizomático - para deste horizonte imanar algo vivo, totalmente aberto para os devires de devires de devires.

38

REIS, Simone Silva – Teatro de Devires: Um Olhar Multiplicante sobre o Imaginário Afro-Brasileiro. Dissertação de Mestrado apresentada e defendida no PPGAC da UFBA, em novembro de 2002.


35 Gilles Deleuze, em sua obra Comversações, escreve que um mapa é um conjunto de linhas diversas funcionando ao mesmo tempo como as linhas das mãos. Ele acredita que as linhas são os elementos constitutivos das coisas e dos acontecimentos. Como o autor considera que cada coisa tem sua geografia, sua cartografia, e que o que há de interessante, inclusive numa pessoa, são as linhas que a compõem, ou que ela compõe, que ela toma emprestado ou que ela cria, posso dialogar com esta mesma imagem em relação à personagem, a essa coisa, essa pessoa-ficcional. Portanto, uma personagem é um mapa, uma cartografia, dentro de outros mapas que são as cenas, de outra cartografia que é o espetáculo, cada vez mais dentro de outros dentros, de outros foras e, de foras cada vez maiores.

2.1.2. Uma dramaturgia feita de acontecimentos.

Quando um ator do Hamlet-Cuíra empenhava-se na construção de sua dramaturgia pessoal, ele se conectava com vários corpos: histórias vividas, observações de rua, objetos pessoais, exercícios de criação musical, verbal, plástica, etc. Cada elemento do Manual de Cavalaria39, de Cacá Carvalho, foi um corpus para o ator, com ele, estabelecer um acontecimento, um agenciamento. O agenciamento de um corpo COM um outro corpo.

Segundo o referencial teórico Deleuzo-Guattariano, a obra é um corpo, sim, mas um corpo constituído por fluxos e linhas de fuga. Nesta teoria, agenciar é estar no meio, sobre a linha de encontro de um mundo interior e de um mundo exterior. Posso dizer que, para os autores, agenciar-se é estabelecer acontecimentos, encontros; é principiar-se no caminho de um DEVIR. E que a única unidade do agenciamento é de co-funcionamento, é a “simpatia“, a simbiose. Para Deleuze, simpatia “não é um sentimento vago de estima ou de participação espiritual, ao contrário, é o esforço ou a penetração dos corpos; ódio ou amor (...) Os corpos

39

Manual de Cavalaria – denominação empregada pelo diretor Cacá Carvalho a uma série de tarefas propostas aos atores para a construção de sua dramaturgia pessoal. O detalhamento deste manual está inserido no segundo capítulo desse estudo.


36 podem ser físicos, biológicos, psíquicos, socios, verbais, são sempre corpos ou corpus”. (1998 p. 66). Agenciar é estar entre corpos, entre obras de diferentes naturezas. Agenciar é o verbo que orienta a análise do fazer atoral desta pesquisa. O ator tem à sua disposição toda a realidade, para, com ela, estabelecer uma simbiose. A realidade, já disse Deleuze, é multiplicidade. Repito que é bem diferente de entendê-la como múltipla. É necessário substanciá-la: multiplicidade. O teatro sendo realidade inventada, precisa inventar as suas multiplicidades. Os atores precisam inventar acontecimentos, conectar-se com acontecimentos - e estes, de diferentes naturezas e não apenas lingüísticos - para vir a ser, tornar-se, estar em devir, em movimento. Construir mapas com múltiplas entradas para esta invenção, que não é jamais imitação, nem interpretação, é experimentação. Deleuze pergunta-nos: “Como recusar ao agenciamento - para o autor, o mesmo que acontecimento - o nome que lhe cabe, desejo?” (DELEUZE; PARNET; 1998 p. 51).. Quando o ator da Dinamarca-Pará experimenta um processo de criação rizomático para o seu trabalho, ele jamais interpreta algo pré-existente a esta experimentação. Para ele não há o pré-existente, pré-escrito, pré-modelado, há somente o experinciado, o vivido, o desejado. Para esta experimentação do desejo é necessário que este teatro construa acontecimentos, faça agenciamentos, traia toda e qualquer escritura. Ser traidor de seu próprio reino, ser traidor de seu sexo, de sua classe, de sua maioria – que outra razão para escrever. É ser traidor da escritura. (...) É que trair é difícil, é criar. É preciso perder sua identidade. É preciso desaparecer, tornar-se desconhecido. (...) Perder o rosto. (DELEUZE; PARNET; 1998 p. 58).

Em um artigo, que discute a possibilidade de uma estética Deleuzeana, Catarina Pombo40 apresenta toda uma estratificação do acontecimento. Segundo a autora, Deleuze propõe o acontecimento nos seguintes estratos: num estrato físico, o acontecimento é o resultado das ações dos corpos e tem caráter duplo porque pode ser corporal, mas também incorporal41; num estrato metafísico, o acontecimento deve ser determinado enquanto singularidade, enquanto elemento de diferenciação; num estrato transcendental, o 40 41

Doutoranda em filosofia na Universidade de Paris VIII. Incorporal no sentido do quase-ser enquanto fronteira entre as palavras e as coisas.


37 acontecimento é heterogenese, condição de realidade; num estrato temporal, o acontecimento tem tempo duplo: Chronos enquanto tempo físico (corporal) e Aiôn enquanto tempo eterno (incorporal); finalmente, num estrato modal, o acontecimento é ideal, problemático, virtual: passado e futuro.

2.1.3. A construção de cena como fabulação:

Como o trabalho do ator é agenciar-se com toda a realidade, que se manifesta na forma de acontecimentos, o que cabe a ele, ator, captar destes acontecimentos? Segundo Almeida42, os artistas teriam que arrancar o percepto das percepções e o afecto das afecções vividas. Para esta pesquisadora, “o percepto é esta visão hiper-dimensionada que excede a percepção (...) e o afecto é o que penetra nas transformações de sentimentos mais desconhecidas (...), fabulando, por fim, um afeto novo, como o tornar-se-girassol de Van Gogh”. (2001, p. 85).

Para Deleuze a obra artística é a única coisa no mundo que se conserva e se conserva em si. É certo que ela não dure mais que seu suporte e seus materiais. A obra cênica dura o tempo de um gesto, mas se conserva enquanto ele existir, em toda a sua plenitude. Mas o que conserva a obra teatral, este gesto artístico, para o filósofo? O que se conserva, em cada obra de arte como monumento, é um bloco de sensações presentes, que celebra um acontecimento, para além da representação dos objetos e dos sujeitos, para além das percepções e dos sentimentos do vivido. (...) A obra de arte é um ser de sensações, e nada mais: ela existe por si”. (1992, p. 213).

Como arrancar perceptos e afectos dos corpos – estas duas figuras estéticas que compõem a sensação - com os quais os atores se agenciam, com os quais produzem acontecimentos? O ator precisa inventar procedimentos. E isso varia de criador para criador. Cada ator precisa ter a sua própria escritura, sua própria dramaturgia; uma 42

Doutora em Lingüística (Unicamp) e professora-visitante da Universidade Federal Fluminense.


38 dramaturgia pessoal, diz Cacá Carvalho, toda ela construída com as histórias vividas pelos atores. Este diretor propõe que o ator exponha sensações, em relação a diferentes corpos; rememore suas experiências de vida, em experimentos de cena. Com este pensar, é possível ir dialogando, por atrito, com o sistema conceitual escolhido.

Como cada artísta tem seus próprios métodos e técnicas, cada ator tem sua própria dramaturgia, cada processo de criação seus próprios métodos, Deleuze propôs caracterizar grandes tipos monumentais, ou, como ele chama, “variedades de compostos de sensações”. Segundo a sua proposta, há a vibração, que é aquela sensação simples, mas já é durável ou composta, porque sobe e desce, implicando uma diferença de nível constitutiva, seguindo uma corda invisível, esta, mais nervosa que cerebral. Há também o enlace ou corpo-a-corpo, que é quando duas sensações ressoam uma na outra esposando-se tão estreitamente, num corpo-a-corpo que, para o pensador, é puramente energético. E finalmente, o que ele chama de o recuo, a divisão, a distensão que é quando duas sensações se distanciam, mas para só serem reunidas pela luz, o ar ou o vazio que se inscrevem entre elas, ou nelas. Concluo, com palavras de Deleuze: vibrar a sensação – acoplar a sensação – abrir ou fender, esvaziar a sensação. (1992, p. 218-219). Deleuze formulou nesta relação com a sensação o conceito de fabulação. Eu me pergunto: o ator fabula com as suas lembranças? O que o autor diz é que a fabulação criadora não é lembrança, mesmo amplificada, como um percepto. Ele diz que o artista excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido. Como contaria ele o que lhe aconteceu, ou o que imagina, já que é uma sombra? Ele viu na vida algo muito grande, demasiado intolerável também, e a luta da vida com o que a ameaça, de modo que o pedaço de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul, que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos. (DELEUZE; GUATTARI;1992, p. 222).


39 O trabalho do ator com as histórias de vida, não tendo nada com lembranças , talvez tenha com memória. Mas com que tipo de memória trabalha o processo artístico do ator? Nos escritos de Deleuze e Guattari, mais precisamente em Mil Platôs, há uma distinção entre memória curta e memória longa. Entendo que para os autores a memória curta é do tipo rizoma, diagrama, enquanto que a longa é arborescente e centrada. Eles afirmam que o mais interessante, é que a memória curta compreende o esquecimento como processo, como é possível ler neste depoimento:

Para sair das percepções vividas, não basta evidentemente memória que convoque somente antigas percepções, nem uma memória involuntária, que acrescente a reminiscência, como fator conservante do presente. A memória intervém pouco na arte (mesmo e sobretudo em Proust). É verdade que toda a obra de arte é um monumento, mas o monumento não é aqui o que comemora um passado, é um bloco de sensações presentes que só devem a si mesmas sua própria conservação, e dão ao acontecimento o composto que o celebra. O ato do monumento não é a memória, mas a fabulação. Não se escreve com lembranças de infância, mas por blocos de infância, que são devires-criança do presente. A música está cheia disso. Para tanto é preciso não memória, mas um material complexo que não se encontra na memória, mas nas palavras, nos sons: "Memória, eu te odeio." Só se atinge o percepto ou o afecto como seres autônomos e suficientes, que não devem mais nada àqueles que os experimentam ou os experimentaram. (DELEUZE; 1992, p. 218).

Neste estado da questão, considero que disponho de dispositivos e conceitos suficientes para dialogar com os sujeitos-criadores desta proposta-objeto, no desenvolvimento dos capítulos. Neste percurso, faz-se necessário a exposição do referencial teórico-metodológico que acompanha este sistema conceitual e o porquê desta escolha, no estudo proposto.

2.2. O REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO:

2.2.1. A etnometodologia:


40 Do ponto de vista metodológico, acredito que a etnometodologia responda aos cuidados que preciso ter com os conhecimentos produzidos pelos sujeitos-criadores deste processo teatral. Na sua nascente sociológica, segundo Alain Coulon, a etnometodologia tem como projeto científico “analisar os métodos – ou, se quisermos, os procedimentos – que os indivíduos utilizam para levar a termo as diferentes operações que realizam em sua vida cotidiana”. (COULON; 1995 p. 15).

O autor denomina de etnométodos, o corpus da pesquisa etnometodológica, definindo a etnometodologia como a “ciência dos etnométodos”. No presente estudo, a etnometodologia auxiliará na análise dos procedimentos que o diretor, atores e técnicos utilizaram para a construção da dramaturgia pessoal do ator na montagem de Hamlet – Um Extrato de Nós; aprofundando a análise do raciocínio prático e do conhecimento prático destes criadores.Coulon, citando Harold Garfinkel – o fundador da corrente e inventor da palavra etnometodologia – diz: o modo de conhecimento prático é „essa faculdade de interpretação que todo indivíduo, erudito ou não, possui e põe em ação na rotina de suas atividades práticas cotidianas. (...) Procedimento regido pelo senso comum, a interpretação é considerada como indissociável da ação e igualmente como partilhada pelo conjunto dos atores sociais‟. (...) Se os atores sociais comuns produzem também objetivação, isso implica que os modos de conhecimento eruditos não detêm o monopólio da objetivação”. (ibid., p.17)

Com estas reflexões de Coulon, é possível crer que, se a produção científica sobre um processo criativo for elaborada, dialogando com os etnométodos dos próprios sujeitos, tornar-se-á conhecimento prático, passível de questionamento. Com a etnometodologia, posso objetivar uma busca empírica dos métodos, aqui denominados de etnométodos, que os atores utilizaram para dar sentido e, ao mesmo tempo, construir as ações criativas de sua dramaturgia pessoal.

Baseado em Aaron Cicourel, Alain expõe as propriedades dos procedimentos interpretativos, caracterizando-os. Para ele, “os procedimentos de interpretação dos


41 indivíduos permitem dar um sentido às „regras superficiais‟ que são, antes de tudo, uma „estrutura aberta‟ com um „horizonte‟ de significações”. (ibid; p. 20).

2.2.1.1.

As

propriedades

dos

procedimentos

interpretativos

da

etnometodologia: A primeira propriedade é a da reciprocidade das perspectivas, formada por duas idealizações: a permeabilidade dos pontos de vista e a conformidade do sistema de pertinência. Esta propriedade permite que, como pesquisadora, eu assuma o papel de produtora artística que também sou, para permear o meu ponto de vista com os dos criadores deste processo, bem como, assuma pertencer a esta comunidade, que é a categoria teatral, mais especificamente, os cuíras. A segunda propriedade é a hipótese da cláusula “et caetera”. É a partilha de uma compreensão comum, entre os sujeitos, de suas trocas. Não basta a reciprocidade das perspectivas. É esta cláusula que dá autorização para considerar algumas descrições como adequadas. Este acordo faz-se no decorrer da integração e não por antecipação. A aplicação desta cláusula implica numa conseqüência que o autor revela: “O locutor e o ouvinte aceitam tacitamente e assumem em conjunto a existência de significações e compreensões comuns, quer seja evidente ou não o conteúdo de suas descrições”. (ibid; p. 21).

Esta propriedade, para mim, é muito similar a uma convenção teatral, ou melhor, ao acordo entre partes que isso implica. Uma convenção só ocorre, de fato, se ambos os lados aceitarem aquilo como verdade cênica, tanto atores quanto espectadores. As formas normais de expressão é a terceira propriedade. Pelas propriedades anteriores é passível de conclusão que os membros possuam formas de expressão comuns a todos e que qualquer dissonância é restaurada, pelos atores, a formas de normalidade. Em cada membro há competência porque todos sabem o que todos sabem.


42 A quarta propriedade é a do caráter prospectivoretrospectivo dos acontecimentos; é a busca de sentido em enunciados particulares. Esta propriedade permite que o locutor e o ouvinte mantenham seu sentido relativamente à estrutura social, a despeito de suas incompreensões passageiras ou dúvidas. [...] Os princípios de completude e conexão permitem que o ator mantenha um sentido da estrutura social, para além do tempo dos relógios e do tempo da experiência, a despeito do caráter deliberadamente vago, ou suposto como tal, e mínimo, da informação transmitida pelos atores no decorrer de suas trocas. (CICOUREL apud COULON; 1995 p. 22).

As propriedades, a própria linguagem é reflexiva e os vocabulários descritivos são indiciais, são as últimas expostas por Coulon. A linguagem é um elemento constitutivo fundamental da vida e permite reconhecer e tornar inteligível as instituições. Os vocabulários são índices da experiência e pretendem descrever os traços constitutivos da própria experiência.

No estudo deste objeto, observa-se a existência de uma língua própria, formada pelos signos verbal e gestual, exclusiva deste processo de criação. É comum no meio teatral, no período de criação, a invenção de termos ligados, somente, aquela montagem, além da própria linguagem do meio. Pela convivência na montagem do espetáculo para coleta de dados, pesquisadora e pesquisados aprenderam a falar a língua específica desta criação, uma mesma língua.

Este autor cita que H. Garfinkel considera como instruções reflexivas estas seis propriedades, e que são estas instruções que os membros se dão entre si a fim de chegarem a se compreender e tomar decisões a respeito de suas ações. Num processo de criação como o de Hamlet – Um Extrato de Nós, são os criadores desta obra que possuem a chamada competência única43 para refletir sobre este processo. Portanto, como pesquisadora que deseja produzir um conhecimento etnometodológico sobre este método de trabalho do ator, preciso produzir COM os praticantes e suas práticas. 43

Competência única – conceito de Garfinkel para o conhecimento nascido de dentro - profundo sobre as atividades práticas - e desenvolvido pelos próprios sujeitos. (MACEDO; 2000 p. 113).


43

Segundo Macedo, “o conceito de prática distancia-se do de práxis, para aproximarse mais daquele de poyesis, que significa produção, fabricação do próprio existir humano, individual e social, objetivo e subjetivo”. Chamando os criadores de praticantes e considerando este conceito de Macedo, quero

oloca-los, nesta minha criação, como

poetas do seu próprio existir e, como poesia, as suas histórias de vida.

2.2.1.2. Os métodos e instrumentos de coleta de dados: Em primeiro lugar, é necessário reiterar que esta pesquisa comporta uma implicação da pesquisadora. A implicação é a qualidade de se reconhecer como membro da comunidade-objeto deste estudo, portanto, de estar implicada, como sujeito, em toda a produção de conhecimento que este possa gerar. Por isso, a observação participante completa foi um dos métodos de coleta de dados, que apontei para este caso de pesquisa, baseada nos escritos de Macedo. [...] a observação participante completa (OPC), pode se dar enquanto pertencimento original e por conversão. No primeiro caso, o pesquisador emerge dos próprios quadros da instituição e dos segmentos da comunidade, recebendo destes a autorização para realizar estudos em que a realidade comum é o próprio objeto de pesquisa. Na participação que implica conversão, o pesquisador é originalmente de fora da situação pesquisada. (MACEDO; 2000 p. 159).

Para capturar as observações, utilizei os recursos dos seguintes instrumentos: registro videográfico dos ensaios e o diário de bordo ou de trabalho da pesquisa. Confesso, – antecipando os aspectos conclusivos, que o resultado obtido por estes dois recursos foi aplicado em menor escala de eficiência (a minha, é lógico) – na construção deste texto dissertativo do que sobre o resultado obtido com as entrevistas. Por isso, me deterei sobre elas.

Para corresponder às metas da pesquisa, além da observação participante completa, foram realizadas entrevistas com os dez atores do elenco, os sete técnicos da equipe e o


44 diretor do processo. A minha outra opção metodológica pela entrevista deve-se ao fato de assumir, neste estudo, a definição de entrevista a partir da compreensão dada por Macedo. A entrevista é um rico instrumento e pertinente recurso metodológico na apreensão de sentidos e significados e na compreensão das realidades humanas, na medida em que toma como uma premissa irremediável que o real é sempre resultante de uma conceituação; o mundo é aquilo que pode ser dito, é um conjunto ordenado de tudo que tem nome, e as coisas existem através das denominações que lhes são emprestadas. (MACEDO; 2000 p. 165).

As entrevistas tiveram um caráter aberto ou semi-estruturado, isto é, abertas para estabelecer um verdadeiro diálogo, um encontro, um face-a-face entre a pesquisadora e os atores, mas semi-estruturada pela minha própria presença na sala de ensaio, dirigindo as perguntas sobre as experimentações presenciadas in loco.

Ao expor o referencial teórico, articulando-o com o meu próprio pensamento artístico, desejo qualificar melhor o diálogo que proponho manter com o objeto desta pesquisa (a dramaturgia pessoal do ator), nos próximos capítulos. E, principalmente, assumi-lo como prática teatral, geradora de novos conhecimentos para a linguagem cênica.


45

3

A CONSTRUÇÃO DA DRAMATURGIA PESSOAL DO ATOR

Neste capítulo pretendo responder o primeiro problema de pesquisa: O que é dramaturgia pessoal do ator, quais os seus princípios e como se processou a sua construção pelos atores? É o espaço onde a fala de cada criador deste processo conversa diretamente com a minha escrita. Meu objetivo é compreender as concepções, de teatro e de trabalho de ator, do ator e diretor Cacá Carvalho, e compreender o processo de construção das dramaturgias pessoais de cada ator. Este capítulo está organizado em três blocos. O primeiro bloco chama-se Intercessores: as forças que influenciam na criação de Cacá Carvalho. O segundo traz os princípios de criação implícitos nas concepções do diretor. No terceiro, o processo dos atores, na construção de cada elemento da dramaturgia pessoal.

3.1. OS INTERCESSORES Como eu havia dito antes, intuir UM DEVIR-GUATTARI em Deleuze e UM DEVIR-DELEUZE em Guattari, o que significa isto? Segundo Gallo 44, em uma entrevista de 1985, Deleuze pronunciou-se sobre a sua parceria com Guattari, declarando que um era intercessor do outro. O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim; sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. E mais ainda quando é visível: Félix Guattari e eu somos intercessores um do outro. (DELEUZE apud GALLO; 2003, p. 21).

44

GALLO, Silvio – Deleuze e a Educação. Belo Horizonte; Autêntica, 2003.


46 Ao rever as entrevistas que fiz com Cacá Carvalho, fui identificando o que chamei de seus intercessores: o primeiro, uma pessoa, e o segundo, uma concepção de teatro. É com eles dois que Cacá compõe uma série; é com eles que Cacá se exprime, cria.

3.1.1.O amigo cúmplice: Roberto Bacci. No período das disciplinas na pós-graduação e nas diversas leituras que fui fazendo, uma denominação me chamou a atenção: existiram os “reformuladores” do teatro. Antoine, Stanislavski, Meyerhold, Craig, Artaud, Appia, Brecht, Grotowski e outros. Sei que estes homens transformaram as idéias e o fazer teatral no Séc XX, como muito bem coloca Eugênio Barba: Esses criadores, também chamados de rebeldes, heréticos e etc., são os criadores de um teatro de transição. Seus espetáculos sacudiram o modo de ver e fazer teatro e obrigaram a refletir sobre presente e passado com uma consciência completamente distinta. O que se pode aprender de suas escolas é ser homens e mulheres da transição que inventam o valor pessoal de seu próprio teatro. (1994 p. 62)

Em todas as entrevistas que fiz com Cacá, ficou evidente que a sua maior influência é um cúmplice, e este é, explicitamente, apontado e denominado de detonador do teatro. Ele diz: “eu tenho alguns cúmplices, pouquíssimos, deste modo de operação. [...] O cúmplice maior disso é, na realidade, a pessoa que me detonou, que detonou esse processo de trabalho em mim, que é o Roberto Bacci”.

Roberto Bacci é um diretor italiano, ligado ao Centro Per La Sperimentazione e La Ricerca Teatrale de Pontedera. Bacci conviveu com Grotowski durante os vinte anos em que este morou na Itália. Veio algumas vezes ao Brasil trazendo espetáculos e por aqui tem falado sobre o seu trabalho para jovens atores, como foi a sua passagem pela Escola Livre de Teatro de Santo André em São Paulo. Dirigiu alguns espetáculos tendo o Cacá Carvalho como único ator. Os espetáculos O homem com a flor na boca e A poltrona escura, ambos


47 de Luigi Pirandello, são excelentes exemplos desta parceria. É uma pessoa presente na vida de Cacá. Roberto Bacci, nesse sentido, é a pessoa, dentro da minha trajetória de teatro, ultimamente de trabalho, é a pessoa que de quatorze anos pra cá, e desde que encontrei com ele pela primeira vez em 1988, detonou isso, forte mesmo, e provocou uma mudança radical no modo de olhar o trabalho e de talvez fazer este trabalho. Porque não é um simples trabalho, é um trabalho antes de qualquer coisa em cima de mim, no teatro. (Cacá Carvalho)

Cacá tem tido a oportunidade, além de ser dirigido por Bacci, de dar aulas de teatro, juntamente com ele, em Pontedera. Em algumas ocasiões eles trabalharam juntos com um grupo de atores italianos num trabalho de formação. O interessante é que na estrutura do curso, mesmo como professor, ao lado de Bacci, Cacá se sente como seu aluno. Melhor seria deixar o próprio Cacá dizer do quanto a presença de Bacci, na sua vida e nos seus trabalhos, induz-lhe aos riscos da criação, provocando-o sempre. Eu me lembro dele dizer assim: “Como é que você quer que eu acredite que pode ser feito Hamlet da Dinamarca na Amazônia? Esta é a tua questão primeira”, dizia ele: “Se você me fizer acreditar que é possível, eu posso vir a me interessar em assistir”. Essa coisa virou um elefante na minha orelha. (Cacá Carvalho)

O Brasil será palco desta parceria a partir de 2004. O Centro Per La Sperimentazione e La Ricerca Teatrale de Pontedera abrirá uma filial neste país, segundo notícia publicada pelo Estado de São Paulo, no mês de janeiro de 2004 e assinada pela jornalista Nespoli. A Fondazione Pontedera Teatro, em conjunto com a Secretaria Municipal da Cultura, o Sesc, a Funarte e o Istituto Italiano di Cultura, criará no Brasil a Casa Laboratório para as Artes do Teatro, espaço destinado à formação de atores e produtores. Com um investimento do instituto e da Região de Toscana de US$60 mil dólares (cerca de R$ 220 mil reais) para a primeira etapa da empreitada. O projeto ocupará uma das salas do prédio da Funarte, no bairro de Campos Elíseos, região central de São Paulo. Será ali oferecido um curso gratuito, que terá como objetivo constituir um núcleo brasileiro estável da fundação. Trata-se do primeiro centro estabelecido pela Pontedera fora de seu país de origem. O porquê da escolha do Brasil? Quando questionado, o diretor italiano Roberto Bacci aponta com o dedo o ator paraense Cacá Carvalho. Ambos trabalham juntos há 15 anos e dividem a responsabilidade artística pela nova instituição, que conta ainda com a coordenação de Carla Pollastrelli, Silvia Pasello, Luca Dini e dois atores da


48 Fondazione Pontedera Teatro. (NESPOLI; O Estado de São Paulo; 100104 f. D5).

3.1.2. Uma concepção de teatro: a construção de sentido. Não querendo desejar explicações ou mesmo tentar encontrá-las, mas sim querendo compreendê-lo em suas palavras, que dão um sentido muito pessoal ao seu fazer teatral, permito-me trazer para o corpo deste texto algumas palavras de Barba: Trabalhar no teatro pode transformar-se, não em afirmação de um ponto de vista, mas em um exemplo de uma visão encarnada. O teatro pode, assim, converter-se no instrumento que multiplica. E prolonga a vontade individual de recusar (...) Porém, o que é o teatro? Tratou-se de reduzir esta palavra a algo tangível, e o que encontra são homens, mulheres, seres humanos que se reúnem. O teatro é uma relação particular num contexto escolhido. Esta relação acontece, primeiramente, entre pessoas que se juntam umas às outras para criarem juntas; e, mais tarde, entre a criação deste grupo e seus espectadores. (BARBA;1991, 90).

Outras palavras de Barba iluminam o meu pensar. Quando ele diz, em uma carta ao ator D, que “Sejam quais forem as motivações que o trouxeram ao teatro, agora que você exerce esta profissão, você deve encontrar um sentido que vá além de sua pessoa e que o confronte socialmente com os outros” (1991, p.30), volta à minha cabeça as palavras de Cacá que muito dizem sobre a função do teatro e sobre como ele divide estes pensamentos com os outros: É por isso que o teatro hoje, para mim, é para que eu me acorde e para que talvez, alguém venha a ser acordado, por um momento talvez; dura talvez um minuto, quando ele se dá conta... Depois a própria magia do teatro o embala novamente [...] E eu volto a me adormentar neste momento dentro desta caixa de fazer dormir [...] Nasce aí, talvez, uma espécie de crueldade, antes de tudo para comigo, porque somente sendo cruel comigo é que eu possa acordar um outro eu que está dormindo [...] Mas os atores não precisam saber disso, sob o risco de se colocar num momento em que eles precisam ficar atentos e acordados para tanta coisa operacional, e paralisá-los. Então, os atores precisam saber em parte. Talvez um dia, num futuro, alguma reflexão já com o passado atuando, no caso o tempo, eles possam ter alguma percepção da coisa, num outro plano que não é plano simplesmente da máquina espetáculo funcionando, da máquina processo funcionando, dessa estruturinha que é criada e das ciladas criadas para capturar


49 algum tipo de animal que possa servir para a construção do sentido, que é o que interessa no teatro, a construção do sentido. (Cacá Carvalho)

Exposto os intercessores deste criador, é preciso conseguir revelar os princípios de sua criação. Estes princípios são aquilo que, de maneira alguma, ele pode abrir mão. São pensamentos-ações, isto é, pensamentos que movem as ações, em todas as atividades cotidianas, principalmente, as experimentações criativas.

Figura 3: O diretor Cacá Carvalho expondo sua concepção de teatro para o elenco.

3.2. PRINCÍPIOS DE CRIAÇÃO DA DRAMATURGIA PESSOAL DO ATOR. Nas entrevistas que fiz com Cacá Carvalho, observei que algumas imagens eram constantemente revisitadas, tanto nas respostas que dava às minhas questões, como no diálogo diário com seus atores. Com o passar dos dias, estas imagens-pensamentos foram


50 se firmando para muito além de simples indutoras neste processo de montagem. Na verdade, elas foram se revelando como princípios de criação deste artista, neste e em outros processos de criação.

3.2.1. Refletir o seu espaço natal (a cidade): o primeiro princípio. Ao tentar “definir” o espetáculo que estava construindo, Cacá disse: “é um trabalho de fora, vestido de meu lugar”. Hoje eu sei que esta idéia-força está relacionada com muitas outras: por que montar Hamlet na Amazônia? A Dinamarca é aqui? O que há de podre nesta Dinamarca? O que torna este lugar uma Dinamarca-Pará? Foram questões como estas que ajudaram a construir um sentido para este fazer teatral. Atrás de toda construção existe um pensamento-ação que a gera. Como este que, por trás das palavras de Cacá Carvalho, vai lentamente se revelando: Em todo o trabalho que eu faço, eu me pergunto como é isso em mim, em Belém? [..] Eu queria que este espetáculo tivesse uma opinião onde o material de que ele é feito, as pessoas que o fazem, a qualidade sonora, tivessem a cara de tudo isso, de onde eu sou. Não é autobiográfico, mas tem uma coisa ligada à minha origem em particular. Então, coisas que a mim soam fortes eu gostaria que estivessem no trabalho [...] não é só porque tem o Marambiré 45, ou porque tem a rede, ou porque tem outro objeto... regional. Não, não é isso que o caracteriza. Revestido de um texto tão universal, mas é o modo de olhar, como transcodificar para uma coisa do nosso modo de olhar. (Cacá Carvalho)

Segundo Cacá Carvalho, o texto Hamlet de Shakespeare, é uma tragédia da juventude. Ela conta a história de um jovem príncipe que estuda fora e que volta porque seu pai morreu e ao chegar, encontra a mãe nas comemorações de casamento com o tio, no caso, o irmão do pai de Hamlet. A partir daí, o fantasma do pai chega até Hamlet pedindo vingança, porque ele não morreu, mas foi assassinado com um veneno posto em seu ouvido. Assim Hamlet começa o processo de vingança, fingindo-se de louco, e tenta descobrir, utilizando o teatro, se realmente o assassino de seu pai é seu tio. A partir daí ele enlouquece e perde o controle de tudo. Então morre a mãe, morre a namorada, o pai e o

45

Marambiré: dança originária da região do Pacoval, Estado do Pará.Suas origens são da etnia negra.


51 irmão da namorada, morre Hamlet, morrem todos. E a Dinamarca fica acéfala. Esta é a história.

Figura 4: Marambiré, manifestação espetacular, indutora do processo de criação de Hamletcuíra. Eu queria fazer um espetáculo que fosse muito direto, que as pessoas que conhecem Hamlet... Eu não sei quantas pessoas já leram Hamlet, mas todas, de um modo ou de outro, conhecem Hamlet, porque alguém já ouviu falar “Ser ou não ser”. “Ser ou não ser” todo mundo já ouviu. Mas o que é ser ou não ser? A questão que me interessa, e aí é que eu coloco o plano pessoal, é o que eu estou sendo quando eu estou aqui. Eu acho que esta é uma questão que todos nós devemos nos colocar. Eu moro fora de Belém há 30 anos. Venho pouco aqui, gostaria de estar sempre. Quando eu sou aquilo lá, o que eu estou deixando de ser aqui? O que ainda existe disso daqui, em mim? Por isso, com Hamlet, é essa questão da essência que me interessa. Então, ao fazer Hamlet, é como se eu me colocasse como inteiro. (Cacá Carvalho)

Pensei ter percebido, no decorrer da criação deste espetáculo, que o processo de construção da cena proposta pela dramaturgia pessoal do ator poderia, muito claramente,


52 prescindir de texto-fala e, mais especificamente, de uma dramaturgia pré-escrita. Bastaria o texto cênico, construído pelos atores a partir desta proposta. Mas o meu pensar estava equivocado. O texto de Shakespeare interessava ao Cacá, por uma série de implicações. Ele mesmo diz: “este texto de Shakespeare tem algumas frases que para mim são terríveis, porque elas servem ao espetáculo, mas elas me servem também. Uma frase que o fantasma chega pro Hamlet e diz: lembra-te de mim”.

Uma montagem pode não ser só um texto, mas deve ser uma maneira de olhar este texto, uma idéia sobre ele, uma concepção. Cacá fala muito para os seus atores que um texto, qualquer texto, deve ser tratado como se fosse uma parábola. Há, assim, a possibilidade do ator tentar enxergar um “o que” atrás deste texto. “Num texto escrito, o que está escrito é só o que está escrito”, pergunta Cacá. O que ele está querendo dizer é que é preciso dar uma qualidade a essa escrita; é que ela, a escrita, está querendo dizer algo além do que ela está dizendo. Para Cacá, atrás desse texto há uma Belém a ser descoberta, uma Dinamarca-Pará. Substituir o OU, do “Ser ou não ser” de Shakespeare, pelo E do Cuíra. Tornar-se o SER E NÃO SER é prova de uma potencialidade, da constituição de uma multiplicidade. [...] Não são nem elementos, nem conjuntos que definem a multiplicidade. O que a define é o E, como alguma coisa que ocorre entre os elementos ou entre os conjuntos. E, E, E, a gagueira. Até mesmo, se há apenas dois termos, há um E entre os dois, que não é nem um nem outro, nem um que se torna o outro, mas que constitui, precisamente, a multiplicidade. (DELEUZE; PARNET; 1998 p. 45).

Não para fechar a questão, se de uma dramaturgia mais rigorosa ou não, mas sim para dar a perceber o perfil paradoxal deste criador, encerramos este bloco com um trecho da fala de Cacá, para mim polêmico, mas que estimula o avanço deste estudo. Se o único material de trabalho para o ator for o texto escrito no papel, sobra muito pouco pra você estimular-se. A não ser que você tenha uma idéia genial em casa.; que todo mundo fale só aquela idéia, na encenação, digamos assim, do grande encenador. E funciona. O teatro está cheio de gente assim. Mas eu não tenho a competência de dizer desse modo. Eu sinto, mas eu não queria assim,


53 talvez, gostar dessa coisa de juntar pedaços e... Talvez seja isso. Só sei é que se pensar em Shakespeare, fodeu! (Cacá Carvalho)

3.1.2. Criar com a matéria: o segundo princípio. Durante todo o processo de criação de Hamlet – Um Extrato de Nós, além da fascinação que o trabalho de ator conduzido por Cacá Carvalho - pelas vias do depoimento de cada ator, materializado em uma dramaturgia pessoal - exercia sobre mim, o seu trabalho de encenador, a materialidade de sua cena, me deixava muitas vezes surpresa. Eu dizia: “essa matéria que está no palco carrega todo um sentido, para mim, que faço teatro nesta terra”. Muitas vezes procuramos uma matéria cênica que carregue o visível a todos nós: os acontecimentos que sofremos todas os dias. Mas desejávamos que esta cena pudesse carregar, também, o invisível desta terra, deste povo; tudo o que sentimos, concretamente, em nós. Uma matéria que trabalhasse com os nossos sentidos, mas sem ficar com aquela cara de regional. Cacá é muito claro sobre isso. Mas o regional não me interessa, o regional vira folclore, vira retrato. Não me interessa o retrato, me interessa a radiografia. A radiografia é mais interessante do que o retrato para o teatro. Radiografia você captura bem. Fotografia captura o aluno talvez num momento ou outro, mas... o retrato... Você chega talvez ao retrato, mas entendendo primeiro a radiografia [...] Eu ainda não sei dizer, os sentidos do trabalho. Eu ainda estou fazendo o trabalho. O sentido do trabalho é como o sentido da vida, só aparece no fim, quando se conclui. (Cacá Carvalho)

A proposta de montar Hamlet com o Grupo Cuíra, em Belém do Pará, foi do próprio Cacá. Algumas coisas vieram antes do processo de Hamlet-Cuíra. Na verdade, Cacá foi acionando algumas coisas, numa espécie de aquecimento. No principio ele pensava em montá-lo somente com dois atores: Cláudio Barros, como Hamlet e Zê Charone como Ofélia. Mas, como ele mesmo fala, no transcorrer destes três anos, desde o momento da proposta, ele se envolveu com outras pessoas, outros atores de Belém, e seria impossível fazer um espetáculo com apenas dois atores, centralizando a montagem sobre a questão do amor, que era a coisa que ele gostaria de tocar.


54

Quando ainda pensava em apenas dois atores, Cacá realizou uma oficina em São Paulo, para doze atores. Os doze atores tinham que trabalhar só sobre Hamlet e Ofélia. Um estudo próprio para a montagem de Belém. Desarmando o seu jogo com outras intenções, é o próprio Cacá que vai me dando pistas sobre o seu aquecimento. Vou te falar uma coisa que me serviu muito, quando eu li um texto de Ludwik Flaszen sobre o trabalho que na Polônia era feito pelo grupo de Grotowski. O trabalho chamava-se Estudo para Hamlet e a colocação dele naquele texto dizia assim: “eu tentei trabalhar como se aquele fantasma fosse aquele grande símbolo do soldado desconhecido. O soldado desconhecido que vem para acordar o Hamlet que somos todos nós”.Quando eu vi esta frase escrita, eu pensei: eu preciso encontrar o equivalente meu...Quem seria nosso soldado desconhecido? (Cacá Carvalho)

Nesse exercício de levantar questões, buscar respostas, Cacá Carvalho estudou a figura de Magalhães Barata, um político interventor – hoje uma figura emérita em Belém – mas foi abandonando esta e outras figuras da política paraense, por outras involuções, chegando à conclusão que: Bom, tem que ser uma coisa que nos represente. O que nos representa? Se nós juntássemos todos, o que nos retrataria? A bandeira? Porém a bandeira não é desconhecida. O que é desconhecido? É o brasão. Porque o brasão é antigo. Quando a gente se dá conta, a gente diz: “meu Deus, o brasão é diferente da bandeira!”. Então o brasão é uma coisa que existe, mas que você não se dá conta dele, do que ele significa, quão dourado ele é, quão luxuoso, quão... Então eu decidi uma coisa: vai ser ele. Agora, como ele entra? Aí soma tudo: a rede, o mosquiteiro, a imagem dele; ele é presente, mas ele não é presente. (Cacá Carvalho)

Sendo aquecido com a oficina, com a sua decisão sobre os parceiros deste trabalho e as suas leituras, Cacá começa devagarzinho a armar uma verdadeira trama: os fios de seu pensar, junto com atores e equipe técnica, e os fios escolhidos por seus atores, sob o seu olhar, de diferentes fontes. Antes de ouvi-lo sobre esta trama, o tramado desta rede de intrigas, gostaria de esclarecer que o brasão, pintado sobre o mosquiteiro, veio citado antes da rede porque é a primeira imagem visível ao espectador quando se entra no teatro. Este brasão sobre a tela mantém, nos primeiros momentos do espetáculo, uma separação entre palco e platéia e entre o devir-Hamlet de Cláudio e a Dinamarca-Pará.


55 Para esclarecer melhor esta construção, escrevo agora, com a narrativa do ator Alberto Silva. Esse ator é considerado por mim, no percurso desta pesquisa, como um atorguia neste processo de criação: No primeiro dia, o Cacá colocou alguns pontos, alguns pilares que ele já tinha definido em estudo anterior. O centro, no meu entendimento, foi que Hamlet, de Shakespeare, que era o nosso pré-texto para estar ali, partia de uma rede de intrigas. Aí depois ele fez uma decupagem desse termo e perguntou pra nós: “O que é material, em rede de intrigas?”. Nós descobrimos que era a rede. E a rede começou a ser uma palavra que se desdobrava, se desmembrava em outros materiais como trançado, como tela, como punho, corda, amarra, essas coisas. O mosqueteiro foi surgindo depois... O “S” da rede que podia ser anzol, que podia ser não sei quê... e a rede como elemento da região, né? E as várias partes da rede, que depois vai juntar com outra coisa lá na frente, que é à parte de tecido, tem as costuras, as cordas, a franja e que essas redes em determinados momentos criam também tramas, trançados, teias. Aí essa idéia foi colocada, depois ele falou na idéia da guerra, de uma situação de guerra, colocando que a Dinamarca do Shakespeare, para nós, tinha um sentido claro, neste trabalho, de ser aqui. A Dinamarca é aqui. (Alberto Silva)

Figura 5: o ator Alberto Silva Neto (mais alto) e o ator Allyson Santos.

Este jogo de desconstrução da matéria e reconstrução de tramas imaginárias é claramente um condutor de Cacá, como uma estratégia de caça desses animais criadores. A imagem de rede-matéria foi tecendo uma rede-idéias que, contaminou tanto o elenco quanto


56 o cenógrafo, a iluminadora, o figurinista e por que não dizer, a pesquisadora. Neste envolvimento emocional – porque ali, eu me permito assumir, já pertencia totalmente àquela comunidade – fui tomada pela beleza do exercício da imaginação. Uma imaginação que surge do encontro com a matéria. Uma imaginação material e não formal, que se forma no transbordamento do cortar da rede, da sua desmontagem, para assim, montá-la de infinitas maneiras como deve ser um devir; no vazamento de seus cheiros, de suas atmosferas.

Pessanha, na introdução do livro O Direito de Sonhar, de Bachelard, diz: [...] a imaginação formal, que nutre a formalização, resulta de uma operação desmaterializadora, que intencionalmente “utiliza” a matéria ao torná-la apenas objeto de visão, ao vê-la apenas enquanto figuração, formas e feixes de relações entre formas e grandezas, como uma fantasmática incorpórea, clarificada, mas intangível [...] Já a imaginação material recupera o mundo como provocação concreta e como resistência, a solicitar a intervenção ativa e modificadora do homem: do homem – devindo, artesão, manipulador, criador, fenômeno técnico, obreiro – tanto na ciência quanto na arte. (BACHELARD; 1994 p. XV).

Com esta diferenciação entre imaginação formal e imaginação material posso entender o resultado criativo; a produção de conhecimento gerado no encontro das mãos desses criadores com a matéria rede. Para aumentar a potência indutora desta matéria e ajudar na compreensão do porquê da potencialidade desta imagem-matéria num processo de criação, cito algumas palavras de Câmara Cascudo, retiradas de sua pesquisa etnográfica intitulada, Rede de Dormir. [...] Verifiquei que a primeira citação nominal de rede datava de abril de 1500. Daí para os nossos dias constituía um elemento indispensável e normal na existência de milhões e milhões de brasileiros em quatro séculos. Nasciam, viviam, amavam, morriam na rede. Eram conduzidos para o cemitério na rede. (CASCUDO; 2003 p. 14)

Esta síntese de Cascudo ajuda a perceber que o objeto rede, no contexto brasileiro e, mais especificamente, no amazônico, é matéria rica para a criação por ser presente em todos os momentos da vida. Matéria viva, porque receptora das ações humanas – nascer,


57 dormir, amar, parir, pensar, morrer, enterrar, etc - e ofertada à imaginação de qualquer um. Imagem material com fartura de experiências retiradas do vivido. O momento da rede, no espetáculo, é muito forte pra mim. Na hora da rede, quando eu chego perto e olho, eu sempre lembro da minha infância, o momento que o meu avô morreu. Mas o gozado é que ele não morreu em uma rede, mas tinha uma rede perto da cama, onde ele morreu, e eu associo a forma-rede, à minha perda. (José Carlos Gondim46)

Agora, lentamente, vou desenhando os indutores de criação, propostos por Cacá. Tramar alguma coisa e, sendo esta coisa, a criação de um espetáculo – e que este fazer se deseja como “um quê” maior que um produto artístico, deseja-se um encontro, uma busca de si, do corpo-da-essência – precisa contar com as mãos criadoras de todos os parceiros. Desenvolvendo a imagem deste processo como um rizoma, passarei com a minha escrita por entre a fala do cenógrafo Nando Lima, integrante da equipe técnica do espetáculo: De cara, na primeira conversa, já tinha a palavra-chave TRAMA [...] E de uma maneira muito simples, direta, da trama que se trama, veio a imagem, a matéria dos fios, a rede de intrigas. [...] Uma simplicidade que tem uma sofisticação de pensamentos dirigida por Cacá. [...] Quando ele me falou de rede, me falou de tal maneira que não tinha mais o que pensar, era essa rede. E aí você tem que resolver tecnicamente. E também brincando com as coisas do texto, do ser ou não ser. Eu pensei então: porra esse cenário tem que SER. Ele não pode ser mentiroso. [...] Pessoas que trabalham nesse teatro, eles entram aqui, olham o cenário sendo construído e dizem: “Legal esse negócio, a trama, as tramas da vida, a rede de intrigas. A leitura foi imediata”. (Nando Lima)

Com a rede foi transformada em matéria-prima do trabalho, como tecido, e tecida para construção, ela foi também experimentada em todas as suas possibilidades, pelo figurinista Cláudio Rego, sempre em dobradinha com uma mestra na costura, Telma Lima.

Trabalhar com a rede... Ela tem uma maleabilidade boa e ao mesmo tempo difícil pra fazer deitar no corpo. Tivemos que reforçar o tecido. Surgiu uma questão: ter ou não ter acabamento? Para o forro não usamos outros tecidos, só rede. [...] Duas redes para cada figurino. Eu e a Telma, nós fazemos um casamento maravilhoso. O Cacá queria o acabamento, mas dando uma cara de não acabada. 46 José Carlos Gondim começou a carreira em 1959, como radioator e cantor na Rádio Marajoara

.

Foi aluno da Escola de Teatro da Universidade Federal do Pará e seguiu para o Rio

de Janeiro, onde trabalhou como professor, diretor e ator, inclusive com o Grupo Ta na Rua, de Amir Haddad Foi diretor do Teatro Experimental do Pará “Waldemar Henrique”, de

.

1995-1999, responsável pela reforma e reaparelhamento.Voltou ao palco em “Toda minha vida por ti”, com o Grupo Cuíra do Pará. Agora é o rei Cláudio

.


58 E aí nós brincávamos de “sujar”. Sujar era tingir, fazer um degradê, parecer sombras, dar um volume. Ele tem que ser, não sendo. Achamos o figurino atemporal. (Cláudio Rêgo)

Esse jogo com a matéria é muito bem percebido por Telma, na prática de sua costura. Quando eu costuro pra teatro é uma outra coisa. É prazer e mais alma. E o resto a gente vai levando. [...] Eu fui ver o ensaio já com o figurino e percebi que um dos atores não conseguia trabalhar com uma calça e pedi a calça de volta, devolvi no dia seguinte e ele sentiu a diferença, na hora elogiou. É preciso realmente ver, estar sintonizada. (Telma Lima)

Para a iluminadora, Lúcia Chedieck, estes indutores começavam a gerar questões e, na busca de responde-las, vai aproximando-a de resoluções técnicas. Eu não posso me distanciar da luz cênica. Eu ensino muito trabalho de pesquisa de material experimental dentro da cena. Se eu pudesse fazer toda essa luz experimental, eu faria. Mas o Cacá trabalha com ambientações em que a luz é muito necessária; ele trabalha com fusões espaciais muito grandes, então eu não posso me distanciar da luz cênica. Mas tem um toque meu, tem a ver com a luz regional, que são as ratoeiras que eu chamo de design popular. As cenas, a gente chama de ratos tramando. Peguei então a catiteira que é melhor que a ratoeira. O lustre não é um lustre, é uma ratoeira. No corredor onde existe o lustre da ratoeira, existem as tramas dos ratos-personagens, porque lá eles são o que são e no palco em cena quando tem a luz cênica eles não são. A transformação do não ser. Pelo significado do experimental essa é a coisa mais forte. (Lúcia Chedieck)

Há pouco, eu falava do brasão que representaria a todos nós da Dinamarca-Pará. E que este brasão estava pintado numa tela, que separava palco e platéia, Hamlet da sua Dinamarca. Como esta forma era o resultado de um desdobrar de idéias e materialidades, continuo a encontrar novas dobras com as falas dos criadores de cena. Desde o início foi colocada pelo Cacá a idéia do filtro, que os espectadores assistissem por uma lente e a idéia de que já que teríamos rede, teríamos um mosquiteiro da rede. Associações de idéias. As rendas das senhoras do Marambiré são transparentes e nós precisávamos ter um filtro. Chegamos numa coisa essencialmente teatral, vamos colocar uma tela. Mas esse tinha que ser o nosso filó, o nosso filtro e aí veio o escudo. Estamos falando disso, no nosso poder. E disso, não tem a menor dúvida. É daqui que estamos falando. (Nando Lima)


59

Figura 6: imagem simbólica do processo de criação do espetáculo \ imagem do cartaz.

A representação simbólica destes materiais é tão forte para os paraenses que não posso deixar de dar um depoimento, como espectadora, ao ver pela primeira vez aquele enorme brasão na minha frente. Eu disse: “Que merda! Eu tenho uma sensação de raiva. Está mesmo sobre mim. Eu não consigo me livrar. Tem um urubu mesmo sobre a minha cabeça”. Naquele momento, senti um negócio muito doido, por ser uma mulher de teatro e ter sempre que lidar com o poder que paira sobre esta terra. É incrível como eles, os criadores de devires, conseguem tratar estas matérias no palco para que elas se dilatem, encontrando um sentido – como deseja Cacá em sua concepção de teatro - que vale por milhões de coisas.

Analisando estas palavras, poderia seguir os traços deixados por Cacá sobre a construção de um imaginário natal, amazônico, mas prefiro mergulhar no exercício da imaginação material destes criadores – no encontro com materiais como a rede e/ou outras


60 imagens-indutoras utilizadas no processo de construção, tanto pelos atores quanto pela equipe de criação – indo em direção dos indícios que me dizem, na continuação desta fala de Cacá, muito do seu modo de pensar teatro.

Figura 7: imagem do escudo do Estado do Pará visto da platéia.

É como se, ao encontrar o material da rede, eu me perguntasse: o que é uma rede? O que uma rede faz? Ela nos embala; quando ela nos embala, ela nos tira do ritmo normal; quando ela nos embala, ela nos faz adormecer. Esta sensação de viver neste verdadeiro mormaço, neste viver todo adormentado, o teatro deve acordar. Uma das funções do teatro é acordar quem assiste adormentado, e a outra é fazer refletir as pessoas que o fazem, o quanto elas são adormentadas dentro do teatro e na vida de quem faz teatro [...] O ser humano vive dormindo com a idéia de que está acordado. E acordar é um trabalho. É um trabalho, manter-se acordado. É um trabalho ver acordado as coisas. É basicamente isso: acordar-me! Por isso, eu ainda digo que posso fazer teatro. É só essa palavra [...] Então, a rede é um material que é a nossa cara. (Cacá Carvalho)


61

3.2.3. Capturar o ator, duplamente: o terceiro princípio. Na observação dos ensaios ficou evidente, tanto pelas palavras do Cacá tanto quanto pela minha própria experiência como atriz e encenadora, que outros teatros existem e que junto com eles, outros comportamentos. Quando falo sobre este processo em particular, eu estou falando de leis e regras próprias, que não se adequam a outra natureza de se fazer teatro. São estratégias utilizadas por Cacá para, como ele mesmo fala, capturar estes animais dentro do processo de trabalho. Agora, o que sei é que esta ação de captura não parte só da direção, parte também do ator. É uma dupla captura.

O ato de captura é fundamental para a concepção do trabalho atoral como um DEVIR. Desejo conectar este pensamento de Cacá Carvalho com as propostas de Deleuze para o que ele chama de UM DEVIR-ANIMAL do homem. O devir pode e deve ser qualificado como devir-animal sem ter um termo que seria o animal que se tornou. O devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir-outro do animal é real sem que esse outro seja real. É este ponto que será necessário explicar: como um devir não tem sujeito distinto de si mesmo; mas também como ele não tem termo, porque seu termo por sua vez só existe tomado num outro devir do qual ele é o sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o primeiro. É o princípio de uma realidade própria ao devir (a idéia bergsoniana de uma coexistência de “durações” muito diferentes, superiores ou inferiores à “nossa”, e todas comunicantes).Enfim, devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária.[...] O devir é da ordem da aliança. (DELEUZE; 1997 p. 18/19)

É uma aliança o que Cacá estabelece com Grotowski. Sempre se referindo a ele como “o homem que virou cinza” por uma admiração explicitamente velada. Cacá rouba dele a metáfora do ator-pássaro, para, com ela, alimentar os seus atores. Certa vez, alguém falou assim: nós somos dois. Como dois pássaros. O pássaro que voa e o pássaro que bica. O pássaro que bica, aquele ser que caminha, que convive socialmente, o eu que sou, o eu que vive em sociedade... Tem que atender a uma série de necessidades. Tem que fazer tantas coisas, coisa essas que muitas vezes são contrárias à vontade de uma “coisa” que chamamos de consciência. Então é como se fossem dois, no mínimo, dentro (de cada um de nós) porque tem essa consciência que sobrevoa; esse pássaro que do alto olha a si mesmo devorando a carniça. Essa “coisa outra” que chamemos de consciência – que não é o modo correto de chamarmos, porém chamamos assim – que


62 sobrevoa... Ela nasce onde? Ela existe onde? Que corpo ela tem? Talvez ela nasça no início de tudo, na origem, naquele momento que nós somos uma coisa só. Onde, a consciência e o corpo que se manifesta vivem, digamos, harmoniosamente. A formação, a educação que nos dão, o modo de comportar-se que nos fazem aprender para poder conviver, para poder comportar-se, para poder “ser”, fez com que muitas vezes – e com o passar do tempo, cada vez mais – nos distanciássemos do que somos e da consciência que temos. (Cacá Carvalho)

Foi e é, para o Cacá, tão grande a necessidade de construir armadilhas para capturar estes animais – quem sabe estes pássaros - que, literalmente, Cacá pensou em trabalhar com ratoeiras armadas no palco, onde a atenção e sensibilidade dos atores teriam que estar presentes com precisão e disciplina. Quando desistiu de trabalhar com as armadilhas no palco, tão materialmente concretas e perigosas, estas foram bem aproveitadas pela criadora da luz, Lúcia Chedieck. As ratoeiras diziam muito da trama da Dinamarca-Pará e dos devires-animais dos atores, até aqui já desejados como um DEVIR-RATO-PÁSSARO.

Figura 8: as conduções do diretor para o elenco.

Para Cacá, o ator seria um buscador de si, buscador de um encontro consigo mesmo. Porque para ele, o teatro talvez possa ser o espaço onde a voz desta consciência, ou o corpo desta consciência, se manifeste. No teatro, talvez o ator viesse a ser, não mais um corpo separado da essência, e sim, o corpo-da-essência. Talvez, num trabalho teatral assim,


63 o “ser” passaria a ser corpo-da-minha-essência, não o corpo e a essência. As estratégias de Cacá, com os seus atores, deu a possibilidade de se criar um mapa de busca desta “coisa”. Mas uma pergunta-chave feita por Cacá, detonou uma linha de fuga: “onde você deixou de ser aquilo que você é, para ser aquilo, e só ser aquilo, que esperam que você seja?”. Sinto que os meus problemas são outros, que não consciência e essência. São problemas de geografias desejantes, como diria Deleuze. [...] tento explicar que as coisas, as pessoas, são compostas de linhas bastante diversas, e que elas não sabem, necessariamente, sobre qual linha delas mesmas elas estão, nem onde fazer passar a que estão traçando: em suma, há toda uma geografia nas pessoas, com linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fugas etc [...] Em cada um de nós há como que uma ascese, em parte dirigida contra nós mesmos. Nós somos desertos, mas povoados de tribos, de faunas e floras. Passamos nosso tempo a arrumar essas tribos, a dispô-las de outras. E todos esses povoados, todas essas multidões não impedem o deserto, que é nossa própria ascese; ao contrário, elas o habitam, passam por ele, sobre ele. [...] O deserto, a experimentação sobre si mesmo é nossa única identidade, nossa única chance para todas as combinações que nos habitam. (DELEUZE; 1998 p.18-19).

Acredito que esta cartografia, este mapa geográfico de linhas possíveis para o seu trabalho, foi sendo inscrita pelo ator na medida em que ele foi construindo a sua dramaturgia pessoal. Esta “composição estranha para o personagem”, talvez seja, para o Cacá, uma re-configuração do corpo-da-essência que é o ator. Para mim, o que existe são linhas, traços, figuras, territórios existências nômades que articulam um teatro que pensa mais em desconfigurar a pessoa-ator que configurar a personagem. Um teatro para o Devir. Cacá tem uma fala sobre o que é para ele essa coisa chamada personagem: Talvez possa nos ajudar, para conhecer o que é ser realmente. É por isso que eu falo de todas essas coisas que estão atrás – que impulsionam (referindo-se a todos os elementos que compõem a dramaturgia pessoal do ator), que é a presença de quem está diante do outro, que se chama personagem. Porque não existe essa coisa chamada personagem. Eu não consigo entender o que é o personagem. Quer dizer que é uma espécie de uma coisa que você vai criando com coisas tuas, coisas da literatura, coisas que você escreveu, coisas que são de relação com alguém, coisas que são de espaço, coisas que são dos objetos, que vem de tantas fontes, da observação da vida, da coisa que vem de... Sei lá, isso tudo vai somando e você vai tendo a impressão, sempre, de que a princípio não tem critério, mas depois aparece uma espécie de uma lógica, que é vestida por uma coisa que alguém pensou junto, iluminado por uma pessoa que colocou uma luz clara atrás e uma escura na frente que parece uma coisa estranha. Essa coisa aí se


64 chamará, atenderá pelo nome de Hamlet, por exemplo, ou pelo nome de sei lá quem, blá blá blá na circunstância X. Essa somatória de coisas é muito mais do que um personagem escrito por alguém em 1600 ou contemporaneamente. (Cacá Carvalho).

Em muitos momentos de conversa com o elenco, Cacá fazia questão de colocar que para ele, o teatro é um espaço de recuperação do ser; que o teatro pode ser o caminho da sabedoria. Porque não lhe interessa, hoje em dia, mais O TEATRO. E ele fez questão de afirmar que faz isso também. Mas para ele, existe “teatro” e teatro. Acredita que possa existir um tipo de arte, um teatro que possa servir, não simplesmente para o homem ser aquele elemento que provoca a ilusão. Que o teatro possa ser o lugar onde o ator possa crescer; possa continuar no processo que é viver para conhecer. Acredita que deve servir não para a pessoa, simplesmente, fazer o papel bem ou mal; estar elogiado ou não por A, B ou C, mas porque ao manifestar isso, a pessoa provoca um encontro de coisas. Cacá chega a falar que tudo isto serve para o autoconhecimento. Embora ele reconheça que isto possa durar só por um momento, como um fogo-factual, como um brilho efêmero. Porém único e que queima.

3.2.4. Construir uma realidade inventada, (as flores de plástico ou a artificialidade): o quarto princípio. Uma das imagens mais propagadas entre os atores de Hamlet – Um Extrato de Nós, imagem esta que os conduzia na construção deste trabalho, era a das flores de plástico. Vou escrever com Alberto Silva Neto47, um ator-guia nesta costura e outro bom contador de histórias, repassando ele mesmo, esta metáfora: Um dia ele nos perguntou assim: “Se a gente fosse colocar ali, no nosso espaço de ensaio, um vaso com doze margaridas, sendo seis verdadeiras e seis falsas, e a gente todo dia que chegasse aqui, durante um mês, fosse lá e ficássemos cinco minutos olhando o vaso, que ia acontecer? Claro que em trinta dias umas iam estar podres e as margaridas de plástico iam estar iguaizinhas. Nesse caso, 47

Alberto Silva Neto – começou no teatro em 1987, no espetáculo A Cidade do Ontem do grupo Gafe Cultural. Em 15 anos de carreira, participou de 16 espetáculos, entre eles Senhora dos Afogados de Nelson Rodrigues (90) O mendigo e o cão morto,de Bertolt Brecht (94),A Vida é Sonho, de Calderon de La Barca (97) e O Primeiro Milagre do Menino Jesus, de Dario Fo (93-98). Participou de vários grupos de teatro como o Experiência, Palha, Usina Contemporânea e Cuíra. Agora está em Hamlet.


65 fazendo uma analogia com o teatro, o que seria a arte do teatro? As verdadeiras ou as falsas? E na verdade são as falsas porque o que serve ao ator não é aquilo que vem como fruto de uma emoção, de um momento, mas que pode morrer amanhã, daqui a uma semana, daqui a dois meses. O que serve à arte do ator é aquilo que ele é capaz, concretamente, de executar durante muito tempo, sempre que ele quiser”. E aí ele diz que é a idéia de arte como artifício, que não é real, mas que é tão próximo do real, no caso a flor de plástico, que parece verdade. (Alberto Silva Neto)

Talvez a discussão sobre o teatro como artifício possa estabelecer mais substancialmente esta maneira de pensar e fazer teatro como quer Cacá Carvalho. A minha pergunta é: se existe “teatro” e “teatros”, no que consiste um teatro que se quer um caminho de autoconhecimento? Existiriam aí preocupações com um fazer artístico? É, também, esclarecedora a fala de Cacá.

Mas o teatro também tem que cumprir uma outra função. Ele tem que ser apresentado. Ele tem que ter, além de tudo isso, outras regras. Seja do divertimento, seja do drama que se evoluiu na tragédia. Não tô discutindo isso, tem que ter isso também. E isso aqui, chame de artifício. A arte é sinônima de artifício. Tem esse ingrediente do artifício. E o artifício só aparece quando alguém estudar a natureza para transformá-la, artificialmente, de medo que o espectador acredite. Tem um juízo final. E quando o artifício é tal, feito de modo tal, cercado de uma série de ingredientes, a coisa acontece e você prova a coisa que, como manifestação final aparece como... Aplausos, chamemos assim. Para essa coisa que... me tocou. E vi. Eu acredito. Porque a vida do espetáculo não pode se alimentar só de cadeira cheia de espectadores ou de cadeiras vazias de espectadores, mas sim de outra coisa, também. Que é um tipo de alimento que se toca nos ensaios. Que não é a marcação, não é a luz bem feita, que não é só o encontro do bom ator com um bom autor. Não são esses ingredientes, somente, são outros [...] Com relação às flores de plástico, quando eu cito, são para as pessoas com quem eu trabalho, e isso é muito interno daquele trabalho. Enfim, isso tudo quer dizer... Nisso tudo não tem uma técnica de como chegar a isso. (Cacá Carvalho)

Enquanto eu vou montando este rizoma - esta rede conectada por todos os lados com diversas matérias - vou claramente percebendo que atrás das inúmeras práticas deste criador, há um pensamento que o move para ação, um pensamento-ação. E a certeza, para ele, de que poderia fazer de outro jeito, mas que quer, e pode, fazer do jeito que deseja. Acredito que são mais que pensamentos, são redes, sistemas. Conectar é um dos princípios do pensamento rizomático, para se chegar a uma heterogênese: um corpo de diferentes partes, formado por cada gesto, cada objeto, cada música, todos comportando pensamentos.


66

.Para essa “evolução” que se faz entre heterogêneos, isto é, elementos de naturezas distintas, Deleuze prefere chamar de involução48, mas com a condição de que não se confunda involução com regressão. O devir é involutivo, a involução é criadora. Conexão e heterogênese são os princípios do sistema de pensamento rizomático que instaura o devir. Se você não os cumpre, você não está jogando este jogo. Percebo que falar consigo mesmo - com essa coisa que está dentro de ti, como propõe Cacá - é para ele uma lei. E em qualquer parte do planeta, esta lei estará com ele. Mas eu acredito que isso tenha um preço.

3.3. OS PROCESSOS DE CRIAÇÃO DA DRAMATURGIA PESSOAL DO ATOR: Para falar deste processo de criação e mais especificamente da dramaturgia pessoal do ator, quero dar espaço para a fala de Alberto Silva Neto, o ator-guia deste labirinto metafórico. Ele vai narrar um dos momentos do ensaio, onde Cacá Carvalho fala sobre o seu pensar teatro. O diretor conduzia seus atores através desta analogia: O teatro é uma praça aonde você chega por várias ruas. E aí ele aproveita essa imagem pra dizer pra gente que essa forma de pensar o teatro não é absolutamente a única nem a certa. Isso ele repete sempre; existem outras maneiras de jogar, essa é só mais uma, e ele acha que é muito bacana quando você usa essa imagem da praça. Chegar na Praça da República saindo da Batista Campos, mas ir por São Brás. Não precisa subir a Serzedelo, direto. O que te proporciona de experiência, no teu processo de enriquecimento, na tua criação, quando tu pegas a Mundurucus, vais até São Brás, vais lá no aeroporto, voltas, desces a Senador Lemos e chegas na Praça da República lá pelo Ver-o-peso? E o que tu perdes quando tu vais pela Serzedelo, como ator? E a gente sai correndo na Serzedelo Corrêa pra ver quem chega primeiro, como atores, ou pelo menos normalmente acontece isso, e comigo acontece muito. Ou seja, eu entendo assim: esse processo do Hamlet eu acho que vai ser, pra mim, pra toda vida, aquelas coisas que a gente inventa pra gente. Vai ser pra vida toda. (Alberto Silva Neto).

Quando o Alberto fala que esses percursos de criação são “aquelas coisas que a gente inventa pra gente”, ele pode estar certo. Mas, nestas invenções, revelamos alguns

48

Involução – Conceito de Deleuze para criação.


67 princípios que determinam o nosso fazer artístico. Mais que necessidades, são escolhas. Esta comunidade emocional, esta tribo que é cuíra pelo teatro – pelo saber, pelo construir o seu próprio caminho – não poupa horas de trabalho para chegar na (sua) Praça-Teatro. Para entender esta cartografia, chamada dramaturgia pessoal do ator – este mapa de múltiplas entradas – é preciso seguir as linhas de seu desenho. A primeira pista é uma das falas do articulador desta proposta.

Eu acho que o que aparece para o espectador, que ele reconhece ou acredita ser aquilo que ele entende ou entenderá como personagem e que se chamará ou Hamlet ou Ofélia ou outra coisa, é o resultado de uma série... De uma combinação de uma série de materiais, de histórias que são... Que vêm de naturezas as mais diversas, vêm de material tirado na sala de trabalho, nas relações entre eles; vêm da própria obra básica, no caso o Shakespeare; vêm desta coisa que é analogias ou associações possíveis pessoais que eles possam recorrer para utilizar como um motor, pra ficar assim; vêm da relação com o material; vêm da relação com o figurino, do modo de cortar, como é; vêm da relação que eles estabelecem com o espaço; vêm de tantas outras coisas; vêm de coisas absolutamente fora de tudo isso, e vêm também de indicações que eu possa vir a dar a eles e que eles possam vir a somar nesse conjunto. Este conjunto deve ser operado por cada um. Este trabalho é o que eu chamo de dramaturgia pessoal do ator. (Cacá Carvalho)

A segunda é saber, logo, qual a expectativa do diretor – a partir da construção destas dramaturgias – quanto ao trabalho do ator, além de dar espaço a este diretor para responder o que é dramaturgia pessoal do ator. A dramaturgia de cada um, ou seja, como eu vou escrever isso tudo em mim, em cena, fora de cena, é para o ator ficar vivo durante esse período da duração desse espetáculo de uma hora e vinte. Essa dramaturgia, essa estrutura, essa escrita deve ser rigorosa e todos os dias passada não como garantia de que funcionará, porém como garantia, talvez de, uma vez ativada, vir a provocar alguma coisa no momento, no dia, naquela hora, para aquele público, casa cheia ou vazia, que possa ser considerada teatro. Possa ser considerada personagem, possa ser considerada, enfim, Hamlet. (Cacá Carvalho)

Uma questão fundamental é ouvir deste diretor o que é a criação do ator pela construção da dramaturgia pessoal.

oloca-la em relação às propostas que, diretamente, são

dirigidas para a montagem de um texto X. Uma dramaturgia de autor.


68 É, evidentemente, diferente de você pegar um texto, fazer uma, digamos, uma pré-história, ou criar uma história para aquele personagem X que você capturou da literatura, dali, da literatura do Nelson Rodrigues, do Shakespeare ou de qualquer outro autor e, criar Stanislawskianamente. Digo criar a história dessa pessoa e, a partir daí, vindo da literatura, você acreditar que você é aquilo. Então você se insere naquela história, absolutamente, mental que pode servir sim, para colher um material, para compor outro, não para manter viva a história de um espetáculo. Possa fazer com que o ator apreenda e aprenda a dar vida a alguma coisa a mais do que, simplesmente, fazer uma peça. Quando eu falo de dramaturgia – e os atores utilizam estes termos: dramaturgia pessoal, dramaturgia de relações, dramaturgia do Shakespeare – são pequenos exemplos de tantas outras fontes, por onde sai o tipo de alimento que você precisa misturar com outros, pra ver que monstro nasce. Quando alguém disser: “Hamlet”, eu me viro e digo: “sim?”. Eu acredito que é isso, basicamente, que eu acredito e que me interessa. (Cacá Carvalho)

Há uma tentativa de escapar do fato, para ele Cacá, da literatura dramática em si – o que está escrito no papel, como ele diz – já ser um “personagem”. Isto só não dá, talvez, essa natureza que me interessa que é ver alguma coisa além daquilo que está aí, que é exposição de outras coisas. É possibilidade de que o espectador fique mais ativo para fazer analogias outras. Não responde aquela pergunta que me interessa sempre: e se não for isso? E se eu for um grego, o que eu leria disso? Se eu não falasse a língua que eles estão falando, o que eu leria? Por isso que muitas vezes eu evito colocar o texto logo de cara, as ações em si falam. (Cacá Carvalho)

Cada trabalho tem uma estratégia. Em parte, ela é pré-parada e em parte, depende do encontro entre pessoas, de quais são as condições de trabalho. Porque tudo depende de muitos e variados fatores. Como diria Cacá, o que faz o teatro é o contexto em que o teatro acontece.

3.3.1.Estratégias preparatórias da direção: Após este primeiro traçado do pensamento-ação do ator e diretor Cacá Carvalho é imprescindível conhecer o seu pensar sobre o trabalho com os atores. E muitas são as chaves. Afinal, como ele mesmo fala, “não sou eu que vou fazer, é você (ator) que vai estar lá sozinho, fazendo”.


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Figura 9: momento dos comentários do diretor sobre o trabalho do ator. Pude observar que assim como Cacá Carvalho trabalha com várias idéias-forças, na construção de sentido do seu fazer teatral, também o faz na relação com os atores. E não preciso reforçar aqui, Cacá Carvalho, como um estrategista. Ele próprio fala de sua condução com os atores como “estratégias de caça”. Acredita que é possível capturar um devir-animal, que ele e o ator não conhecem, mas que está lá, no próprio ator. A cada chave, uma espécie de segredo estava com o diretor. Não são receitas, são cuidados experenciados por este artista. Creio ser fundamental conhecer essas chaves e seus segredos, mas principalmente, reiterar que serviram a este criador, e talvez até, a este seu processo de criação apenas; somente para estes atores.

Manter o diálogo é uma chave no trabalho deste diretor com os atores. Para ele, é descobrir o que está por trás da pessoa do ator, o que cada um está fazendo. Na verdade, o diálogo tem que ser mantido com tudo o que você tem: a estrutura, a dramaturgia de Shakespeare e, inclusive, com a platéia inexistente.

Uma segunda chave é esperar pelo tempo do outro. Cacá acredita que é preciso ter a serenidade de perceber que a pessoa está em processo. Muitas vezes é ter a consciência de


70 que ele não está em processo não, ele está perdido mesmo, naquele momento. Perceber que ele precisa que alguém dê um copo d‟água pra ele. Um copo d‟água no sentido da indicação. O diretor, às vezes prefere perder, hoje, para que o ator pense e o trabalho ganhe, amanhã.

Falar consigo mesmo é lei, como regra de comportamento. É uma outra chave. O ator percebe quando você tem uma ética, leis que você tem que respeitar, sob o risco de você pagar um preço muito caro por não respeitá-los, por tê-los violado. Percebe que o preço, muito caro, não é o fracasso, é o remorso. É muito concreto. Atua fisicamente, emocionalmente, altera toda a tua estrutura. O corpo fica alterado. Provoca efeitos terríveis. Se o ator percebe isso no diretor, vai respeitar e buscar suas próprias leis falando consigo mesmo.

Diz Cacá Carvalho que é preciso ter atenção e sensibilidade, se não corre-se o risco, antes de qualquer coisa, de provocar acidentes com o outro, com o trabalho e pior de tudo, consigo. Porque o trabalho vai, o trabalho segue. Se o ator não está atento, o trabalho passa e ele se sente como se não tivesse feito nada. Se o ator não traz, ninguém lhe dá nada, por isso é paradoxo, por isso é, também, uma chave. Ter atenção (diferente de tensão) e sensibilidade.

O teatro exige calma e tranqüilidade, e esta é outra chave do trabalho de diretor. Cacá diz que o segredo é aparentar sempre que está tudo sob controle. Segundo ele, esta é a regra número um. A pior coisa, para ele, é você entrar num barco onde o comandante diz: “Não tenho idéia, mas vão tentando...”.

Não ser paternal é a sexta chave dos segredos de trabalho deste diretor. Ele fala que em alguns momentos, com determinadas pessoas, em algumas situações, você faz uma espécie de idiotismo enquanto comportamento. Mas é porque você está armando, na realidade, uma outra armadilha para capturar alguma outra coisa.


71 A chave, capturar o máximo de informações até o mínimo detalhe, exige que o diretor conduza o ator solicitando a ele que junte isto com aquilo, pedindo que ele guarde estes achados para o diretor utilizar mais adiante. Como Cacá, o ator também precisa formar arquivos.

Para o diretor, cada ator é um ator. Outra chave estratégica. Ele não pode trabalhar como um grupo. Porque cada um é um. Para alguns é necessário dar tranqüilidade e com outros, tirar-lhes a segurança funciona para que achem algo que está por aparecer. Provocar neles um outro tipo de preocupação. Quando um ator relaxa no trabalho a direção tem que cercá-lo de entendimentos, de sentimentos. Estabelecer, durante o processo de criação, que o espetáculo independa do público. O que o diretor diz sobre isso é que embora não tenha a idéia de como será quando eles chegarem, é necessário preparar algo que permita que o espetáculo não seja só o resultado da presença deles. O espetáculo é alguma coisa e eles são alguma outra coisa. Este embate provocará uma coisa chamada teatro. Este cuidado todo é chave. A décima chave estratégica deste diretor é o “e se não fosse”. Na realidade é trabalhar com o contrário. É ir contra. Ir contra a cena neste sentido é ressaltar a cena, porque provoca nos atores e nos espectadores um estado de tensão e reflexão. Já tira, então, o espectador daquele sono ou daquele embalo e coloca o espectador e o ator ativos. Provoca esse estado de surpresa, mas não parte da provocação da surpresa como efeito, precisamente porque é assim na vida.

Segundo o diretor, ele precisa de um tempo de observação daquele animal-ator. A observação da pessoa-do-ator é uma chave do trabalho de Cacá, onde ele fique absolutamente estudando aquela pessoa enquanto ela está ali, enquanto está tomando café, enquanto comenta de tal coisa. Porque uma coisa aparentemente lógica pode levar a uma outra coisa que não tem a mínima lógica e de repente, aparece um sentido pra isso que estava escondido. É preciso ter uma articulação melhor, um pouco mais desenvolvida, para se chegar a capturar este tipo de material. De um material aparecer outro material. Uma educação, neste sentido de trabalho.


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Um espectador de profissão é o que o diretor deve ser. Esta chave é claramente explicada pela fala de Cacá. Esta também revela a filiação do diretor a outro pensador de teatro. Tem um outro atrás de mim, que é o espectador, que conversa comigo o tempo inteiro. Tem que ter. Eu tenho que assistir a eles e tenho que me assistir. Por isso que o Grotowski49 falava com absoluta precisão do espectador profissional, aquele que assiste aos atores, que profissionalmente assiste ao cara que está assistindo, se assiste assistindo. É a profissão, ser espectador do processo. É genial, estressante, mas nutritivo. (Cacá Carvalho)

3.3.2. O manual de cavalaria Todo o processo de criação de Hamlet – Um Extrato de Nós veio de um ponto de partida: um grupo de tarefas solicitadas aos atores. Uma espécie de MANUAL DE CAVALARIA. Nome dado por Cacá Carvalho a esta série de atividades solicitadas por ele, aos atores, no processo de criação do espetáculo. Os trabalhos foram apresentados, lentamente, no decorrer dos ensaios e numa ordem absolutamente aleatória, diferentemente desta, apresentada logo a seguir.

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Fazer observações de rua

Trazer histórias de vida (pessoais)

Escolher quatro pontos no espaço físico da cena – deslocamento espacial

Trazer um objeto pessoal que tenha relação com o trabalho

Compor uma música para o trabalho

Fazer desenhos sobre o personagem

Fazer desenhos sobre o trabalho como um todo

Escolher três linhas do texto que representem o seu personagem

Escolher três linhas do texto que representem o trabalho como um todo

Fazer observações sobre um outro ator do elenco

Grotowski – diretor e pesquisador de teatro, nascido na Polônia. Residente por mais de vinte anos na Itália, na região da Toscana. Parceiro de Roberto Bacci e do Centro Per La Sperimentazione e La Ricerca Teatrale de Pontedera.


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O manual de cavalaria é um conjunto de tarefas específicas. Elas foram acionadas, reformuladas, esquecidas, guardadas, dispensadas, exigidas de acordo com o andamento do processo. Do diretor, algumas palavras que esclarecem sobre o porquê deste manual: Eu preciso que eles me tragam material, não só para que eu use aquele material. Mas porque muitas vezes aquele material é como se eu tivesse um pedaço deles comigo. E aí aquele material me leva a fazer reflexões sobre a pessoa. Deste trabalho particularmente tem um material que não está aqui em cena. Mas eu pedi que cada um fizesse um desenho do que acham do que é isso, do que é aquilo outro, do que é o personagem... E eu convivo com esses desenhos sempre, todo dia. Eu olho pra eles, olho para eles. É um modo de eu estar com as pessoas. Desenhos que nem é para estarem em cena, é pra que estejam comigo de outro modo. (Cacá Carvalho)

Cada tarefa foi respondida pelos atores, de um modo muito particular. Este segundo capítulo - mais especificamente neste seu terceiro bloco, chamado de processo de construção da dramaturgia pessoal do ator - o objetivo será expor, a cada tarefa do manual, alguns depoimentos dos atores para melhor compreensão desta proposta de criação do trabalho atoral.

Procurei expor de uma determinada forma os dados coletados com os próprios atores sobre suas experimentações com este método, para melhor compreensão do possível leitor deste estudo. Mas devo ressaltar que no dia-a-dia do processo eles não tinham, necessariamente, esta ordem.

3.3.2.1. Fazer observações de rua: Esta tarefa consistia em capturar criaturas na rua. O ator saía pelas ruas, buscando alguém que, de alguma maneira, chamasse sua atenção, suficientemente, para desejar seguila, capturá-la. Ir às ruas, circular entre as matilhas, se contagiar, encontrar-se nas multiplicidades. E nas multiplicidades estabelecer alianças para o devir-animal, com um indivíduo excepcional, o anômalo. Deleuze apresenta-o assim:


74 [...] todo animal tem seu anômalo. Entendamos: todo animal tomado em sua matilha ou em sua multiplicidade tem o seu anômalo. Pôde-se observar que a palavra “anômalo”, adjetivo que caiu em desuso, tinha uma origem muito diferente de “anormal”: a-normal, adjetivo latino sem substantivo, qualifica o que não tem regra ou o que contradiz a regra, enquanto que “a- nomalia” , substantivo grego que perdeu seu adjetivo, designa o desigual, o rugoso, a aspereza, a ponta de desterritorialização. [...] O anômalo não é nem indivíduo nem espécie, ele abriga apenas afectos, não comporta nem sentimentos familiares ou subjetivados, nem características específicas ou significativas. [...] o que é o anômalo? É um fenômeno, mas um fenômeno de borda. (DELEUZE; GUATTARI; 1997/ vol. quatro p. 25-27)

Os atores estavam totalmente livres para escolher quem, em que lugar, como capturar, o que capturar e como apresentar a captura, nos mínimos detalhes. Da percepção deveriam tirar as sensações, que Deleuze chama de percepto e afecto, isto é, ter uma visão hiper-dimensionada sobre cada acontecimento-observação e dele tirar, arrancar, fazer surgir um afeto novo, um devir. Lembrando que são, o percepto e o afecto, as figuras da estética Deleuzeana.

As regras básicas de demonstração das observações, em sala de ensaio, eram: não falar e não fazer mímicas. O número de criaturas capturadas por cada ator estava diretamente relacionado com as necessidades de seu próprio trabalho, no processo.

Sinto necessidade de trazer para o corpo desta escritura, o depoimento dos atores, sobre cada uma das tarefas, objetivando construir a cada novo depoimento, um plano de consistência para toda esta proposta.

Para a tarefa de observação de rua, trabalho com os depoimentos do ator Alberto Silva, considerando-os como uma introdução à cartografia de UM DEVIR-LAERTES deste ator. O meu primeiro exercício de observação na rua era um cara que eu observei de costas e não fazia nada. Ele apenas fixava o teto, muito tempo. E isso me intrigou. E tinha também umas coisas muito sutis, como o farelinho que ele espanava do colo, que caía da comida, e que tinha uma sutileza... Se eu tivesse construído um personagem dentro de uma sala de ensaio eu jamais talvez acreditasse que aquele gesto com os dedos tão levinho, tão frágil, tão sutil, fosse tão concreto e tão cara de gente se mexendo, se movendo. Porque eu acho que sempre que a gente vai pra cena a gente pensa em fazer coisas fortes, teu


75 personagem tem que ser forte, presença forte. Muitas vezes a máxima delicadeza pode ter uma força vital, bruta, assim como o não-fazer é intrigante. (Alberto Silva Neto)

Há falas do próprio ator, comentando algumas observações feitas pela direção sobre o material demonstrado por ele, na experimentação desta tarefa: Uma coisa que o Cacá definiu depois com uma palavra: ele disse que foi comovente o meu trabalho. Não só pela criatura, que era muito rica, segundo ele, mas pela forma como foi apresentada, onde o ator colocou as pessoas no ponto de vista que ele tinha, no ponto de vista que eu tive, e que incomodou todo mundo. O Edyr Augusto foi lá com ele e disse assim: “Manda o Alberto fazer de frente, a gente não está vendo nada.”. E o Cacá respondeu: “Isso é o mais interessante do exercício, porque ele não está agora preocupado em representar, o que faria com que automaticamente ele ficasse de frente pra gente ver a expressão e tal. Como ele está sendo, não importa, agora, a maneira como está sendo vista. Eu posso na hora em que eu precisar dessa imagem na peça colocá-lo de frente. No entanto, o mais interessante é como foi mostrado, de costas mesmo”. Eu fiquei muito contente. (Alberto Silva Neto)

Este ator cria uma conexão entre a observação de rua e a busca de si, uma busca do corpo-da-essência, proposta pela direção. Logo, cria também, para mim, uma conexão entre este procedimento e o arrancar perceptos para a criação artística, segundo o sistema conceitual que elegi. Eu acho que é o seguinte: no momento em que você está observando alguém, e isso ele deixou bem claro pra gente, você também passa imediatamente a se sentir observado. Se eu estou na esquina da Presidente Vargas e, eu começo a observar alguém durante quarenta minutos, começo a me preocupar que alguém perceba aquilo e ache aquilo estranho. Alguém, no elenco, fazendo esse trabalho, dentro de um supermercado, numa loja, relatou o fato de ter sido seguido por alguns seguranças, preocupados com aquela pessoa que ficava circulando de maneira meio estranha. Ou seja, o ato de observar alguém, fazendo este trabalho, faz com que você, o tempo inteiro, esteja consciente de si. Você tem que estar consciente de tua presença; você fica preocupado se a sua presença está chamando a atenção e, aí, você tem que diluir a sua presença, pra observar a presença do outro. Acho que isso tem relação, lá, com essa busca de consciência. Se você como ator, desenvolve esse trabalho, a ponto de que na vida, você esteja sempre enxergando, você está consciente de si. (Alberto Silva Neto)

Na experimentação de observar as ruas - encontrar os seus animais - o ator Alberto Silva reflete sobre o que deve ser observado, o que é esta captura.


76 A movimentação, as ações, concretamente é isso que tu vês no teu quadro. Mas, na verdade, quando você penetra com uma determinada qualidade de atenção nos detalhes, nas minúcias, você começa a imaginar que aquela senhora, que se veste com aquela roupa, pegou o telefone e é meio-dia e ela saiu do banco, ela está ligando pro marido pra dizer que já pagou a conta, ou ela está ligando pra filha pra perguntar se o almoço já está pronto. Aí, tu começas, a partir da ação concreta que tu estás observando, que é uma mulher num orelhão, vestida com uma roupa tal e que se coça assim, e começas a penetrar na vida daquela pessoa, o que será que ela faz o dia inteiro E tu podes partir de um pequeno momento daquela pessoa e construir a vida dela toda; quem ela é, onde ela mora, se ela trabalha, se não trabalha, se ela tem marido, se o marido bate nela, se ela vê a novela ou se ela não vê. A partir da observação do ator, de quinze minutos da vida dessa pessoa, a gente começa a inventar uma infinidade de possibilidades para o que essa criatura é [...] O Cacá alertou de como a gente vê uma coisa e nem sempre a lógica é a mais óbvia. (Alberto Silva Neto)

Para construir melhor esta cartografia, o ator deve dizer-me como esta observação de rua virou cena: Uma cena que foi a observação que eu fiz de um “personagem”, um cara que entrou no Cinema Ópera, duas e meia da tarde, no CINEMA ÓPERA, na tarde de um sábado, e foi atrás de um garotinho, botou o pau pra fora e bateu uma punheta pro cara, lá. E eu era um espectador disso e é esse personagem que tá lá no velório do Rei Hamlet, no funeral. (Alberto Silva Neto)

Como o ator agencia, isto é, estabelece um acontecimento entre esta criatura e uma das cenas da dramaturgia de Shakespeare, na perspectiva, de UM DEVIR-LAERTES Esta é uma questão que se forma imediatamente. No início é um hospício, sei lá, como é que tu vais lidar com as duas realidades ao mesmo tempo? Que espaço, que lugar é aquele pra mim quando eu estou fazendo? É o Cinema Ópera? É aquela atmosfera com pessoas que estão ali por um motivo específico? E isso é colocado na cena, pela direção num outro contexto que não é só o da dramaturgia do Shakespeare é também muitas outras coisas pra cada um. Aí, tu tens a concretude da história e tu colocas aquilo dentro de uma outra situação e como é que tu vais fazer um jogo de saber como transformar aquilo na medida da lógica da situação? Sem perder originalmente o que teria de orgânico naquilo? De comportamento físico, de sensação física que a tua imaginação se ativa e começa a penetrar um pouco na vida daquele cara Quando eu observei o cara eu observei um ombro largado, um caminhar, um peso. E aí isso é concreto. (Alberto Silva Neto)

As sensações do observador são trazidas para a cena como afectos, pois como diria Deleuze, não são sentimentos pessoais, tampouco, umas características, eles são a efetuação


77 de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu. Afectos provocados no corpo. (DELEUZE; GUATTARI; 2000 p. 218).

Ao próprio capturador cabe falar da sua experimentação NUM DEVIR-LAERTESPUNHETEIRO-DO-ÓPERA, revelando claramente que ele compreendeu o que foi experienciado: um acontecimento entre corpos, UM DEVIR.

É curioso, porque nesse caso do cinema, as minhas sensações pessoais se misturaram, um pouco, com a do cara que eu tava observando e a construção, que eu levei pra lá, já foi misturada. Na verdade nunca vai ser eu ou outro, mas sim como aquilo é em mim. Como eu sou aquilo. Essas são as coisas que tu, aparentemente, tens de concreto. (Alberto Silva Neto)

3.3.2.2. Trazer histórias de vida (pessoais): A tarefa consistia em o ator apresentar acontecimentos pessoais e vividos. Sem falar e sob a indução de uma música mecânica proposta pelo diretor, o ator apresentava a situação procurando uma concretude, isto é, dando o máximo de informações: O que é? Onde é? Que lugar é esse? Como foi? Como tu estavas? Quem está na situação? As ações concretas da situação.A seleção dos acontecimentos e sua edição eram de livre escolha do ator. De qualquer período da vida. Liberdade na escolha, da natureza, das emoções vividas. Apresentar algo concreto O que seria esta ação concreta? Segundo Barba, ”o termo „concreto‟ é derivado de cum-crescere, crescer junto com a matéria, isto é, deixar-se mudar. Nunca agradável para o nosso modo de pensar, para a nossa identidade intelectual”. (BARBA; 1994 p. 129-130).


78 Para qualificar a descrição da tarefa, ou melhor, deste elemento constitutivo da dramaturgia pessoal do ator, transcrevo, tecendo junto, com os depoimentos da atriz Zê Charone50 NUM DEVIR-OFÉLIA:

Tem uma história minha, no IAP. Ele (REFERINDO-SE AO DIRETOR) não tinha pedido pra ninguém fazer nada e ele me pediu pra ir sozinha. Tava no final do ensaio e ele me pediu pra contar uma história. Aí eu fui e eu contei uma antiga, eu tinha uns dezessete anos quando aconteceu (...) É engraçado quando ele diz que tu podes alterar tua história. E ele fala que quanto mais antiga tua história, mais tu tens o poder de alterar (...) E essa história eu alterei mesmo, porque era uma relação com um homem que eu não queria, mas eu aceitei. E quando eu a contei, eu alterei não querendo. (...) E aí o cara vem e tenta me namorar, na minha história real eu deixei acontecer. Não me mexi e deixei a coisa acontecer. Quando eu contei, eu alterei não deixando. Eu usei muita força, dizendo: “não, sai”, com as pernas, “não quero, não quero”. Usei muito isso. (Zê Charone)

Os agenciamentos com as histórias de vida, lembrando, foram apresentados com música mecânica. Esta conexão entre história vivida e música-indutora externa à situação selecionada pelos atores, dá a experimentação uma natureza heterogênea:

Quando ele pede pra você criar a tua história tem um som. Mas depois quando ele vai editar tira o som. Como se fosse pra inspirar. Na história com o Cláudio, ninguém fez primeiro. Fez junto. Ele jogou o som, cada um ficou na sala fazendo a sua história. Depois ele pegou isso e juntou. (Zê Charone)

50

Zê Charone começou a carreira em 1981 através do Grupo Palha. Em 1987 juntou-se ao Grupo Cuíra e depois ao Grupo Experiência com o qual apresentou a montagem de Senhora dos Afogados de Nelson Rodrigues e direção de Cacá Carvalho. Voltou ao Grupo Cuíra produzindo Nunca houve uma mulher como Gilda, Palco Iluminado e como atriz, atuou com Cláudio Barros em Convite de Casamento. Em 97, com o Grupo Experiência, protagonizou Perdoa-me por me traíres, de Nelson Rodrigues. Em 2001, produziu Toda minha vida por ti. Em 2002, como atriz, atuou em A Voz Humana, livre adaptação de texto de Jean Cocteau, no projeto 2 em 1. Agora é Ofélia.


79

Figura 10: a atriz Zé Charone em momento de experimentação. Vale ressaltar que, como as experimentações com as histórias pessoais são apresentadas sem uso da palavra, muitas vezes um ator não sabe a história de vida do outro ator. A infância é um dos períodos da vida com o qual mais se estabeleceu um maior número de agenciamento, de troca.

É uma história que eu acho que eu tinha uns sete ou oito anos e meu pai foi em Macapá. E eu me escondia atrás do poço porque eu tinha medo do meu pai. E eu me lembro que a mamãe foi lá e me puxava pra eu ir falar com ele. Eu ia e ele me abraçava e deixou uma lata de biscoito, depois ele foi embora. Essa é a história da entrada do caixão, que é editada com a história do círculo. E quando sai, já sai com a história do doidinho51. (Zê Charone)

O cuidado com as “histórias”, no sentido de não fazer de qualquer jeito, está nesta fala da atriz. O entendimento desta questão abre espaço para que se leia que as regras do trabalho foram absorvidas pela atriz na própria vivência do processo.

51

A atriz Zê Charone encontrou o doidinho na esquina da Igreja de Santana e começou a observa-lo. Ele fazia um movimento com a mão e aquilo lhe pegou. Porque que é que ele faz esse movimento com a mão, preguntava-se a atriz. E ele não levantou do chão, o tempo que ela ficou lá, observando, ele não saiu do chão. Ela capturou o que tinha pra captar e fez o trabalho. Mas ele não saia da sua cabeça. Ela teve que voltar lá porque queria ver ele andando.


80 Numa dessas histórias de botar música pra aquecer eu comecei lá... Aí eu resolvi não botar nada concreto. Olha só, eu resolvi contar assim: na minha relação com o Roberto, que depois passou, e veio a Edyr, e aí poderia ser interessante; uma história super objetiva que não era concreta: eu fazia um quadrado como se estivesse puxando um fio, aí tinha horas que o fio tava esticado, tinha horas que o fio tava bambo e eu olhava e pisava no fio pra ver como tava. Repete, repete, repete. Quando terminou e cada um tem que contar a sua história, sem música. Eu terminei e o Cacá disse assim mesmo: “essa foi a pior história que a Zê já contou”. Eu vi, ri, porque eu sabia que a minha história não era concreta, era subjetiva. Depois eu deletei. (Zê Charone)

3.3.2.3. Escolher quatro pontos no espaço físico da cena – deslocamento espacial Esta tarefa consistia em fazer um deslocamento espacial marcado por quatro pontos. Simplesmente um deslocamento, sem mais porquês. Cada ator tinha a liberdade total de criação do trabalho, sem fala e obedecendo apenas ao deslocamento em quatro pontos Você cria uma linha pra você e vai andando. Aí não tem história pessoal, é espaço mesmo. Aí eu fui e criei a minha linha. Começa aqui e vai, tanto que o Alberto falou: “tu reparaste que tu fazes um Z”. Eu disse: “não”. Aí depois ele pegou o caminho do Alberto e cruzou com o meu e editou com a despedida de Laertes com a Ofélia. Aí ele colocou o agachamento: “Aqui tu agachas e aqui és tu que agachas”. Agacha, agacha, agacha... Aí ele foi com alguém e falou alguma coisa tão engraçada que eu e o Alberto rimos, demos uma gargalhada. Aí ele virou e disse assim mesmo: “Eu gosto disso. Vocês vão começar rindo agora.” E agora , a gente já ia rindo para a cena. (Zê Charone)

Os quatro pontos viraram os primeiros componentes deste rizoma-cena. Um rizoma que cresce, que vai espalhando-se; vai sendo transformado nos pequenos detalhes. Nós começamos somente com movimento no espaço. E aí entrou o sorriso, aí ele mandou botar a mão pra frente, que eu já vou pegar na mão do Alberto e, tira a mão e vai correndo. Porque na história dele, ele tinha aquela corrida. Tinha o sorriso e a corridinha. Aí ficou aquele negócio de “vou te pegar”. (Zê Charone)

3.3.2.4. Trazer um objeto pessoal que tenha relação com o trabalho:


81 Foi solicitado para o ator que encontre um objeto de seu pertencimento ou acesso e portador de significações pessoais relativas ao processo de criação vivido. As relações estavam totalmente aos critérios do ator, assim como a sua entrada (uso do objeto) no espetáculo. A história da caixa que tem a história da caixa, de eu usar a caixa: ele pediu pra eu não planejar o modo de usar a caixa. Ele falou: “vai pro objeto e deixa o objeto lá contigo”. Tanto que quando eu vejo o objeto, eu não vejo o corpo de Henrique, eu vejo as primeiras coisas que eu vi lá, os parafusos, eu sei quantos parafusos têm na caixa. (...) Ele mandou eu entrar com a minha história pessoal para o caixão e ele disse: “Parou. Agora eu quero que você trabalhe só com a caixa”, aí eu vi como abrir a caixa, o que se pode fazer com ela... É isso que ele fala, pra você não perder e não jogar pra coisa do Shakespeare, o que tu estás vendo. É trabalhar numa ação concreta. (Zê Charone).

A atriz trabalhou com caixinhas e caixões. O objeto pessoal foi uma caixinha que carregava sempre consigo. Mas neste depoimento fala sobre o seu trabalho com o objeto caixão, numa relação objeto-ator. O ator Henrique da Paz52 fez sua opção por este mesmo objeto: a caixa. Para melhor expor a variedade de objetos passíveis de adquirir sentido cênico, principalmente para o ator, eu vou trazer vários outros depoimentos: Tem o objeto que representa o teu personagem. Eu trouxe uma caixa, dessas de guardar fitas. Eu trouxe vários objetos e na hora escolhi a caixa. Acho que porque tem a ver com a caixa preta, sei lá! Isso a gente ainda não usou, ele tá até cobrando, mas não sei porque a produção guardou os objetos e eu não sei se ele determinou onde vai ficar. Eu tô pensando nisso. (Henrique da Paz)

52

Henrique da Paz é ator e diretor de teatro. Participou de vários espetáculos dos grupos Experiência e Cena Aberta. Atualmente é diretor do Gruta, onde encenou Caosconcadicáfica (adaptação do Processo de Franz Kafka), A Vida, que sempre morre, que se perde em que se perca (releitura de Antígona de Sófocles) Hamlet-Máquina de Heiner Muller, Tarturfo de Moliére e Mariano de Paulo Faria. Agora está em Hamlet.


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Figura 11: o ator Henrique da Paz e o ator André Mardock (com barba).

[...] Pensei numa coruja. O meu personagem é aquela figura meio sombria, olhos mais abertos que outra coisa, enxerga no escuro, uma representante da sabedoria. Então eu pensei que o meu personagem tem a sabedoria popular. Então eu trouxe uma corujinha. (Mendara Mariani53) O diretor quer que eu dê vida aos bonecos [...] Se eu pudesse escolher, escolheria mamulengos. Acho os de miriti muito grandes. [...] Essa noite levei os bonecos pra casa, pra dormir comigo. O Hamlet está enchendo minha bola pela aproximação com os bonecos, com a música. Isso me dá um gás, um combustível. (André Mardock54)

3.3.2.5. Compor uma música para o trabalho: 53

Mendara Mariani é uma das grandes figuras da história do teatro e do rádio no Pará. No teatro encenou em 1952, Luz de Gás de Patrick Hamilton, com o Grupo de Teatro Agostinho Condurú. Formou-se na 1ª Turma do Curso de Formação de Ator da Universidade Federal do Pará e a partir daí, encenou Quebranto, de Coelho Neto, Os Fuzis da Sra. Carrar, de Bertold Brecht, O Velho e a Horta, de Gil Vicente, e Toda minha vida por ti, com o Grupo Cuíra do Pará. Agora está em Hamlet. 54

André Mardock - Ingressou no ano 2000 no Curso de Formação de Ator da Escola de Teatro da Universidade Federal do Pará. Participou de O Homem que chora por um olho só da Dramática Companhia, com direção de Wlad Lima e em 2001, de Paixão Barata e Madalenas, com alunos da Escola de Teatro da Ufpa, dirigido por Wlad Lima e Karine Jansen. Atuou em Água Ar Dente, do Grupo Cuíra do Pará, no projeto 2 em 1. Agora está em Hamlet.


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Esta tarefa consistia na composição de uma música para usar no processo. O ator estava livre quanto ao ritmo, gênero, etc. A música poderia ser totalmente original ou uma espécie de colagem. O ator precisava dar significação à sua criação musical. O processo teve duas naturezas de trabalho musical. A primeira nascia com o ator, como cumprimento desta tarefa e, a segunda, era o resultado do trabalho do diretor musical, Walter Freitas, sobre a produção do ator. O trabalho com a música composta pelo ator, o desdobramento em música-tema do personagem, era o trabalho da direção musical. A música penetrando nas cenas. E neste sentido, Walter Freitas, observa: Neste processo de construção, a música surge no momento da montagem e às vezes vai se alterando conforme as coisas vão se alterando também. Então a música se encaixa bem nessa concepção que o Cacá tem da coisa. (Walter Freitas)

Mais adiante, tratarei estas duas naturezas do trabalho com música, que induziam o trabalho, mais que conduziam. É importante a fala de Walter Freitas, diretor musical, para a compreensão do seu trabalho sobre o material trazido pela atriz Zê Charone. Só assim, é possível ter idéia do crescimento, do desdobramento da proposta, neste sentido: O tema da Ofélia. Não é um tema independente. O tema de Zê, que a Zê compôs está sendo usado na hora em que ela enlouquece em cima do caixão. Mas aí eu fiz uma costura. Eu tô jogando uma outra coisa por cima que eu ainda preciso dirigir esta parte. Ela está “grosso modo”. No tema da morte da Ofélia tem três pedaços. Eu peguei um pedacinho, mudei o compasso, mudei todas as características. Você mal reconhece, mas é um trecho do trabalho musical dela, na hora em que ela enlouquece, depois ela morre e se completa. Eu compus o tema da morte da Ofélia com uma idéia de não fazer aquele jargão, por isso eu compus um tema ritmado, uma coisa pra dar um outro caráter, mas se você presta bem atenção, dá uma outra dimensão de lamento da morte. (Walter Freitas)

A atriz Nilza Maria55 vivenciou, nesta tarefa, o ato de compor a melodia e a letra da música:

55

Nilza Maria é a grande dama do teatro paraense. Formada pelo Curso de formação de Ator em Teatro pela Universidade Federal do Pará, foi radio atriz na Rádio Marajoara, e atua no Grupo Experiência e no cinema. No teatro, atuou em Hécuba, de Sófocles, Foi Bôto Sinhá, de Edyr Augusto, O Pássaro da Terra, de João de Jesus Paes


84 Eu tenho uma dificuldade muito grande com música. Até gravadas eu trago, pra depois, ficar tocando em casa. Como perto da minha casa tem uma casa que tem “passe”, eu ouvi uma melodia várias vezes e ficou na minha cabeça. Como eu acho que o coveiro não é uma pessoa de lamento nem sofrimento – me parece mais simples, mais povo – eu compus uma música assim, tem até uma letrinha: Abre os olhos gente Isso é viver Seja rico, seja pobre. Um dia vai morrer. Seja rei, seja rainha, Príncipe ou cortesão São todos filhos da puta Que um dia vão pro chão A morte é vida Pra quem soube ser O que agora é pó Um dia vai renascer. [...] Eu já coloquei essa última como uma filosofia.

Figura 12: a atriz Nilza Maria (mais alta) e a atriz Mendara Mariane.

3.3.2.6. Fazer desenhos sobre o personagem e sobre o trabalho como um todo: Esta tarefa foi construída em duas partes: desenho ou qualquer outra técnica de representação plástica bidimensional (como colagem, pintura, etc.) do personagem e uma representação plástica da peça, como um todo. Neste contexto, Antônia Leal, testemunha: Loureiro, Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues e Ver de Ver-o-Pêso, do Grupo Experiência. Em 2001, recebeu o troféu de Melhor Atriz em Toda minha vida por ti. Agora está em Hamlet.


85

Ele pediu um desenho, mas como eu não tenho habilidade com desenho perguntei pra ele se eu podia fazer colagem. Ele disse que sim e eu fiz mais de uma. Pra rainha eu fiz quatro, com frutas. A rainha pra mim é uma castanha-do-pará, um ouriço. Fiz uma com mulheres: a Madonna, freiras... Fiz uma árvore que contém as quatro estações, uma hora o povo, uma o rei. E a outra era um bicho, um leopardo partido no meio, metade uma mulher, metade um bicho. E o outro desenho, ele queria que representasse a Dinamarca, a nossa Dinamarca. Eu também fiz quatro. (Antônia Leal56)

3.3.2.7. Escolher três linhas do texto que representem o seu personagem e três linhas, que representem o todo da obra: Esta tarefa consistia em selecionar, do texto Hamlet de Shakespeare, três linhas que sintetizassem a idéia do personagem e três linhas que sintetizassem a idéia de toda a trama da obra literária. O ator estava livre para escolher suas linhas, de qualquer parte do texto, assim como editá-las livremente. O ator André Mardock, fala sobre a questão, nesses termos: Sobre o personagem, eu escrevi assim: “Diz por que isso? Com que fim? Pra quem você diz isso? Não vejo nada e vejo tudo o que há. Luzes, luzes pra uma fala apaixonada. Meu caro senhor, metamorfose é a palavra certa”. E o que resume o texto: “Nosso tempo está desnorteado. Abriu suas pesadas mandíbulas de mármore aos fulgores da lua, tornando sinistra a noite luminosa, enquanto nós, joguetes da natureza, sentimos o pavor penetrar nosso ser. Anjos e mensageiros de Deus defendei-nos”. Fiz uma colagem. (André Mardock)

3.3.2.8. Fazer observações sobre um outro ator do elenco:

56

Antônia Leal é atriz formada pela Escola de Teatro da Ufpa. Antonia Leal atuou em A Bicicleta do Condenado, Marat Sade e As Bacantes. Com a Companhia de Atores Contemporâneos, fez Breve Concerto do Tempo, Relicário, Instalação Cênica Ad Infinitum e participou de vários filmes. Agora é a rainha Gertrudes.


86 A tarefa solicitada ao ator foi que ele escolhesse um outro ator do elenco. Este ator deveria ser observado em todos os momentos do processo. Dele, deveria ser obtido o máximo de informações. Esta observação do outro deveria ser feita de forma que o observado, em hipótese alguma, percebesse a observação. Trabalhar sem tencionar relações. Zé Charone relata a essência da tarefa: Eu fiz muito o trabalho de observação com o Henrique. Logo no início do trabalho, tinha a história da sopa. O Cacá fez meio que um ritual. A gente trabalhava, trabalhava e parávamos pro recreio. Numa grande mesa, tudo arrumado. A gente sentou relaxado pra tomar sopa. Foi uma grande confraternização nesse início. Eu nunca trabalhei com o Henrique e passei a observá-lo. Ficar do lado. Como é que ele é? Tomava sopa sempre do lado dele, brincando com ele e observando muito ele. Qualquer gesto dele me interessa. Aí, de uns dias pra cá eu comecei a perguntar coisas pra ele. Eu perguntei um dia desses: “Tu não estás bem?” Ele disse: “é que eu tô muito cansado, o ônibus; a minha perna tá muito cansada”. Notei que ele ficou implicando com o André Mardock: “Olha, atrasou a música. Olha, atrasou de novo”. Ele ficava ranzinza. Só sei que depois veio o Walter Freitas e disse: “André tu estás atrasando na música”. Ele virou pra mim: “tás vendo?” Eu também observo outros; eu observo todos. (Zê Charone)

Este acontecimento, provocado no trabalho, pela atriz Zê Charone no seu DEVIROFÉLIA, estabeleceu uma conexão entre corpos, UM DEVIR-POLÔNIO no ator Henrique da Paz, explicitado no relato a seguir: O Cacá coloca a gente o tempo todo em estado de atenção. A minha escolha coincidiu de eu achar que tem a ver com a história que a gente vai contar. Não que tenha sido proposital, mas foi a Zê. Aí mistura um monte de coisa: um certo carinho por ela, e foi recíproca essa simpatia, a relação de trabalho.... Aí ela passou a ser a pessoa que eu observo. E engraçado que nos exercícios eu não me relacionava direto com ela, até que num exercício que a gente foi fazer, o Cacá disse pra gente o tema de vocês é confeito familiar. Aí, nós discutimos rapidinho: “Não vamos pensar, vamos jogar” Foi legal. Todo mundo foi dar o seu parecer e todo mundo achou que foi muito legal. E isso ficou numa cena. Aí foi passada uma vez, mais ou menos como cena. (Henrique da Paz)

Após essa descrição analítica do que seja a Dramaturgia Pessoal do Ator, seus princípios e processos, vivenciados na criação de Hamlet – Um Extrato de Nós e que objetivou responder ao primeiro problema desta pesquisa, sigo o meu caminho dissertativo aprofundando o objeto para responder ao segundo problema da pesquisa: qual o papel das


87 histórias de vida na construção desta dramaturgia pessoal do ator Mas nunca sem deixar de compartilhar a sensação de um dos atores deste processo, sobre o seu próprio personagem, construído a partir de toda esta proposta, a saber: Teu personagem é um Frankenstein. Parece que não combina. Aquele pedaço parece que não é da mesma pessoa; isso aqui é estranho. Quando tu vês, ele é isso, mas ele também é aquilo. Então, ele te mostra que tu tens que ter tranqüilidade para perceber que o processo de construção passa, uma hora, por a criatura ser meio monstruosa. Um braço é maior que o outro, entendeu? E não tens que ter ansiedade em querer transformar aquilo, nisso. Porque senão, tu simplesmente fazes com que ele seja uma coisa só. O que é um erro muito comum. (Alberto Silva Neto)

Gostaria de reafirmar o meu foco de interesse, científico-artístico, sobre as histórias de vida, porque são elas a base de construção do meu próprio fazer teatral, e sobre elas, repousa a minha hipótese neste estudo: as histórias de vida contaminam outros elementos constitutivos desta proposta cênica.

4 O PAPEL DA HISTÓRIA DE VIDA NA DRAMATURGIA PESSOAL DO ATOR Meu objetivo neste capítulo, consiste em trabalhar sobre as narrativas dos atores para compreender, especificamente, o papel das histórias vividas no processo de criação deste espetáculo e o processo de transformação dessas histórias em cenas - operando sobre elas, as figuras estéticas Deleuzo-Guattarianas, dos perceptos e afectos, para revelar-lhes a fabulação.


88 A fabulação, sendo a experimentação do artista de inventar realidades, multiplicidades - e nunca imitar outras realidades ou mesmo representá-las - é a criação de sensações. As sensações não são compostas por percepções do vivido e por seus afetos. Isto seria uma inversão. O artista, inventando os seus próprios procedimentos, precisa sim extrair, arrancar destas percepções e afetos um bloco de sensações, um puro ser de sensações, como diria Deleuze e Guattari (1992 p. 217). Um percepto pode ser um pequeno recorte, um fragmento hiper-dimensionado da percepção de algo vivido ou mesmo desejado, mas que carrega sensações suficientes para mobilizar o ator para que roube, inverte um afecto novo, um devir, a potência de tornar-se uma outra coisa que está entre ele e um outro corpo. Este outro corpo pode ser de qualquer natureza. Quanto mais o ator estabelece um ENTRE e um COM em relação a corpos diversificados, mais heterogênea ficará sua criação. A fabulação é heterogênese e precisa existir por si só, como obra. Neste contexto: O artista cria blocos de perceptos e de afectos, mas a única lei da criação é que o composto deve ficar de pé sozinho. O mais difícil é que o artista o faça manter-se de pé sozinho. Para isso, é preciso por vezes muita inverossimilhança geométrica, imperfeição física, anomalia orgânica, do ponto de vista de um modelo suposto, do ponto de vista das percepções e afecções vividas; mas estes erros sublimes acedem à necessidade da arte, se são os meios interiores de manter de pé (ou sentado, ou deitado). (DELEUZE; GUATTARI; 1992 p. 214)

4.1. A EXPERIMENTAÇÃO COM HISTÓRIAS DE VIDA COMO FABULAÇÃO NA ARTE DO ATOR: A experimentação cênica com as histórias de vida, neste processo, era toda ela conduzida com música. Segundo os depoimentos, havia apenas uma única música utilizada pelo diretor em todas as sessões de trabalho. Era uma música com batidas fortes e que não induzia a nenhuma situação específica: romântica, triste, saudosa, entusiasmada, etc. Esta música, depois de um determinado tempo, funcionava para os atores como um aquecimento rítmico e de prontidão para contar, em cena, a história de vida que desejasse, como fica explícito nos depoimentos: O exercício da música parte do seguinte: é música, mas não pode ser dançada, não pode ser coreografada. Você não pode, com o corpo, simplesmente executar


89 o ritmo. Você deve partir de uma movimentação que não deixe o corpo ir no ritmo, ou dançar ou coreografar, e a partir daí você começa a tentar construir uma história concreta, uma ação concreta, que a princípio, à primeira vista, abandona o ritmo, mas o ritmo está lá dentro. Aí ele fazia assim: um assaltante; a música era assim... e depois tu começas a pensar assim: vou assaltar o cara. Está dentro, no ritmo, mas não está dançando. Mas ter uma pulsação desse ritmo em qualquer ação que tu faças. Que não precisa ter relação com o estilo da música. (Alberto Silva Neto)

Houve oportunidades da direção preparar armadilhas no trabalho com música, para obter a atenção dos atores na realização das cenas e na compreensão deste indutor. Nestas circunstâncias, o trabalho foi proposto para o coletivo e houve variações de sons e no repertório musical. Depois da gente trabalhar com um bumbo, um negócio assim, ele colocou uma música que era só o violoncelo. O elenco inteiro entrou numa coisa absolutamente mental, deixou de fazer qualquer ação. E quando ele parou, nós estávamos todos próximos da parede como quem está fora do espaço pensando sobre aquilo lá e não sendo. Só, “eu penso, penso, penso e já não sou mais nada. Eu sou uma criatura que reflete sobre o teatro”. (Alberto Silva Neto)

Para identificar a constituição do ato de fabular, dos atores do Hamlet-Cuíra, é preciso organizar-lhes os perceptos, para assim, vislumbrar-lhes os afectos novos. Seus atos de criação dos blocos de sensações.

4.1.1 Os perceptos arrancados pelos atores: Para fabular, os atores de Hamlet – Um Extrato de Nós, precisaram inventar os seus próprios procedimentos, trabalhando assim sobre suas próprias sensações, fazendo-as vibrar, acoplando-as umas às outras, abrindo-se para esvaziá-la.s.

É possível ler uma infinita variedade de compostos de sensações em cada um dos depoimentos, aqui selecionados: A primeira é uma corrida, na adolescência, que é um espaço concreto de um clube, onde eu jogava bola, e naquele momento tinha uma liberdade muito grande na vida. Não tinha tantas ansiedades e frustrações talvez que tenham aparecido depois. Tinha um impulso, batia mão, tinha um pequeno salto e depois uma


90 corrida leve, e uma sensação concreta do vento no rosto. Quando o Cacá acabou o exercício, o que ele perguntou pra todos foi: “era concreto?” E pra mim, eu fui o primeiro, eu disse que era, era um lugar e tinha uma sensação do vento. (Alberto Silva Neto)

Durante a demonstração destes perceptos (impulso, batida de mãos, saltos, corridas leves, etc.) arrancados da história de vida pelo ator, foram solicitadas, pela direção, mudanças de densidade, tempo, espaços, etc. Surgiram variações no exercício de construção cênica, no exercício da fabulação. Cresce a fabricação de UM DEVIRLAERTES: Ele pediu uma variação disso que foi um ato de, violentamente, bater as mãos, e avançar, cortando o ar, que foi uma imagem que ele usou, na direção de uma pessoa (aqui identifico uma conexão entre diferentes histórias) que na minha história de vida foi um veterinário que me vendeu um animalzinho doente, com uma virose, que morreu com três meses. Eu passei uma semana visitando-o no hospital, que me colocou diante de uma coisa absolutamente triste, chocante, violenta com as pessoas... Com uma coisa de uma ordem social no sentido mais amplo de sensibilidade e eu juntei tudo isso e corri pra esse cara e, ele extraiu isso do meu trabalho de quarenta minutos, todo mundo fazendo e foi isso que ele disse: “Isso me interessa”. Então eu acho que tem alguma concretude, porque eu estou vendo aquele patife na minha frente [...] Então eu estabeleço todo esse sentido, porque agredir aquele cara é conseguir trazer aquilo pra lá, é tão concreto porque eu quase mato aquele cara. Eu descobri que esse movimento aqui, de bater a mão assim, que no início é isso, uma hora pode ser aquilo ali, outra hora pode ser outra coisa. Aí ele começa a falar de que tu tens um material, que tu deves buscar variações, e a procurar momentos em que isso serve aqui e isso serve ali. Começar a estabelecer combinações dessas coisas. (Alberto Silva Neto)

0s perceptos são como sensações partiturizadas para o ator manter de pé a cena. É uma partitura geográfica, uma cartografia, um mapa. Durante o processo de ensaios, é um mapa aberto a todo tipo de alterações e novas linhas de fuga. Dependendo da proposta, este mapa poderá permanecer inconcluso como proposta de vitalidade à obra, após a estréia do espetáculo, como posso perceber através do depoimento de Alberto Silva Neto: Outra ação que passa pelo cachorro – pra ver como isso não é brinquedo – eu levei uma ação que é brincar com o Iago, segurando aqueles bancos da cena. O Cacá me fez transformar isso num cara que está vendo uma espécie de fantasma na frente dele. Com esse material ele construiu a partitura, a célula fundamental da cena em que o rei e o Laertes tramam a morte do príncipe. Então é absolutamente concreta a forma e tinha que correr em volta da piscininha de plástico. Era concreto quando eu fiz lá, porque era o meu quintal, eu estava vendo


91 o cachorrinho na minha frente segurando o banquinho de plástico. (Alberto Silva Neto)

O tratamento dado pela direção numa cena pode ser o de conectar várias histórias de vida. Como este fazer teatral é rizomático, as conexões, sem uma lógica anterior, são preciosas na invenção dos afectos. Pelas sensações que provocam, criam novas lógicas muitas vezes inusitadas, como é do domínio da arte. Ele pega isso e me diz pra colocar uma outra qualidade de relação com essa outra coisa, e me dá um negócio na mão que de repente fica uma criatura fazendo essa ação, mas como se tivesse sendo perseguida ou assustada por um fantasma que não deixa. Na hora que ele me pediu isso, eu criei uma imagem concreta também da minha vida pra ver esse fantasma, que é o meu avô, pai do meu pai, Alberto da Cunha e Silva, de quem eu tenho o nome, que eu tenho uma nítida sensação de que, muito criança, num quarto que eu tinha lá na Presidente Vargas, num apartamento que a gente morava que tinha uma janela, eu não sei porque, eu fico todo arrepiado quando eu lembro, eu tenho uma sensação de ter visto o meu avô sentado numa cadeira ao meu lado, na cama. E eu lembro depois, de muito tempo eu ter medo de ficar sozinho num quarto escuro. Eu não sei, mas parece que algum momento teve uma criatura assim, isso está num lugar assim, que eu acredito que eu vi. Isso pro ator é importante. Eu acredito que aconteceu. E eu coloquei, nesse fantasma, o pai do meu pai. E tem uma hora na peça, na dramaturgia do Shakespeare, que o rei, logo que o Hamlet chega e diz: “o pai do teu pai morreu, e o pai do pai dele também morreu”. Aí eu fico pensando talvez seja uma imagem legal pra trazer.Não que eu tenha procurado esse sentido, porque quando tu procuras esse cruzamento ele diz que não serve, porque tu vais racionalizar e não vai servir. Então não é buscando relação, mas é depois encontrar algum sentido. Essas são as minhas formas. (Alberto Silva Neto)

O bloco de sensações, extraído das histórias de vida, necessita atingir em primeiro lugar, o próprio artista e em seguida, quem o assiste. Apesar de precisar, para manter-se em pé, ser independente deles, a total independência da obra. Para tanto, precisa ser, não representar ou imitar sensações. Tem uma interessantíssima. Eu criei, uma hora, ouvindo uma mímica, uma ação em que roubava o dinheiro da bolsa da minha mãe em casa pra comprar pó, descia, pegava um táxi. Fui comprar, fui preso na boca, fui pra delegacia, e a minha mãe foi de carro lá me buscar. É uma história forte, sem dúvida nenhuma. Poderia dizer que é uma história, inclusive, que tem um material dramático [...] Resultado: veio muita emoção. E eu fiz, e eu me emocionava muito, e aquilo era estar sendo de uma forma muito profunda. No final do exercício, o Cacá falou algumas coisas pra algumas pessoas – não me falou nada – depois ele passou por mim, uma hora que tinha outras pessoas trabalhando e disse assim: “Tu não vales nada”. E eu sei que é porque eu me deixei ser vítima da emoção que me causava o sentido que aquela ação tinha na minha vida. Porque no dia que eu fui preso,


92 que eu estava na cadeia, que a minha mãe foi me buscar, eu não chorava, eu era. Tinha vergonha, frustração, ódio, mas eu não chorava. Era o ator que se emocionava com a importância da sua história e o que isso traz. Eu não era, eu representava o sentido daquilo na minha vida. (Alberto Silva Neto)

O ator, ao agenciar suas histórias pessoais, tem o poder de alterar-lhe a multiplicidade, fragmentando-as, solvendo-lhes o que possa interessar. Os retalhos tornamse matérias para toda a espécie de combinações. Eu tenho uma historinha: eu tava entrando num quarto, e tem uma roupa lá na quina, eu pego a roupa e cheiro. Depois tem uma outra roupa ali no chão, eu vou, cheiro a roupa que tá no chão, jogo na rua, levando onde tá a roupa pendurada no “S” da rede. Cheiro a roupa, volto pro chão, cheiro o chão, volto pra cá. Quando eu estou cheirando o pescoço do Claudinho, eu tô tirando a rede e enrolando... Veio na minha cabeça essa história [...] O Cacá marcou comigo e com o Cláudio antes de começar o ensaio. Ele pediu pra gente criar a nossa história. O Cláudio a dele e eu a minha. Depois juntou as nossas histórias e virou aquilo [...] É essa coisa de cheirar a roupa pra ver se tá limpa, se tem a roupa no chão... e aí nesse dia a gente contou essa historinha, ele já editou. Tanto que editou na frente de todo mundo. Foi um dos primeiros trabalhos e ficou. (Zê Charone)

O ator Cláudio Barros é detentor da experiência, em outro processo de criação, de trabalhar com as histórias de vida: Para começar as experimentações com as histórias pessoais ele pegou dois atores que ele já trabalha há seis anos e o primeiro trabalho de história pessoal foi com a gente, eu e Zê. Foi uma tarde inteira. Ele marcou uma hora antes. O elenco chegou, nós já estávamos trabalhando com ele. Começou trabalhando com a gente e o elenco todo do lado de fora e depois mandou o elenco entrar pra ver a gente: “vejam isso!” Ele utilizou um método que já havia utilizado no convite de casamento, a gente buscando uma história pessoal, concreta, transformada no decorrer do processo, em sete partituras cada um, em catorze histórias pessoais, eu não conhecia nenhuma história dela e um determinado momento, ele fazia a edição da dramaturgia da relação e depois que tava tudo editado ele colocou o texto, foi o processo do convite. (Cláudio Barros)


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Figura 13: o ator Cláudio Barros e a atriz Zé Charone. Na primeira história pessoal do ator, neste processo, Cláudio Barros expõe os perceptos retirados de sua percepção deste momento de sua vida: A minha história foi o dia que eu percebi que ia ser chamado pra falar da minha homossexualidade pro meu pai e pra minha mãe. Foi o meu dia, como eu me comportei... Então, eu construí essa história. Foi extremamente difícil porque eu já sabia que a minha mãe já sabia e ela ia me chamar. Eu tinha treze, catorze anos. Eu sabia que ela já sabia, ela já tinha dito pra eu não me preocupar, nenhum problema, não era nenhuma doença. Eu sabia que ia chegar o dia, eu fui pra aula, eu tinha um suor na mão, um nervoso, eu traduzi de uma outra forma... Tem isso no espetáculo. Um suor impressionante. Eu não suo e foi... eu já fazia teatro no SESC, cheguei do ensaio seis da tarde e recebi o recado: “Sua mãe pediu pra assim que você chegar ir pro quarto dela, ela está lhe esperando”. Eu cheguei, ela tava lendo um livro espírita, eu fiquei na porta e aí andei, me sentei, girei, essas imagens foram vindo, traduzi... muito difícil porque eu estava muito na defensiva. E ela só queria me dizer: “Eh, menino, pára com isso. Isso não tem problema”. Eu ouvi coisas que pra mim são de suma importância, que vão ficar na minha vida. Ela disse: “eu não quero você pelas esquinas, pelas ruas se escondendo como se fosse um criminoso. Eu já conversei com o seu pai, seu irmão vai ficar num quarto e você no outro, pra você ter liberdade de trazer seus amigos”. Então nesse processo, a minha essência é o que tá lá. (Cláudio Barros)

As histórias pessoais, quando transportadas para a cena, são encontro com pessoas amadas. Há uma comunicação entre o ator e outro ser. É um acontecimento.


94 Tem a história da minha avó. Eu trabalho com um tremor no corpo inteiro, igual a quando ela voltou do coma (...) tem horas que tu não sabes o que é história pessoal e o que é da rua. Eu sei de uma que era assim... É coincidência do Cláudio Rêgo estar no espetáculo, mesmo lugar, quintal com quintal. A gente cresceu junto, descobriu que era homossexual junto, descobrimos ainda crianças. A gente descobriu essa veia, do artístico, da confecção de coisa, juntos. Somos da mesma idade. Nós construímos uma cidade com igreja, escola, casas, tudo. Telhados cheios de detalhes. Ele ficava responsável como engenheiro, arquiteto, e eu me preocupava mais com quem é que ia morar. A gente morou numa vila e nossos pais bebiam. E tinha um momento que eu odiava quando meu pai bebia. Sempre que tinha festa nessa vila, o primeiro momento era das crianças e o segundo momento, era quando os adultos começavam a beber e as crianças iam perdendo espaço. Nós tínhamos um refúgio: íamos pro quarto pra desenhos, pintar, bordar, coisas manuais... E aí quando eu percebia que meu pai vinha, eu ia e me escondia. Tinha uma parede assim, que era exatamente onde eu cabia. Entre a geladeira e a parede. Ficava na minha frente, o quente do motor e, atrás, o gelado do azulejo. E a minha avó, ela sabia que eu estava lá, escondido (Cláudio Barros).

Na produção do objeto artístico, a extração dos perceptos requer muitas vezes um processo doloroso. Requer uma concentração, não no remoer imagens ou lembranças – os perceptos não são lembranças – mas sim na retirada de uma sensação, na coleta de um gesto, na retomada de um som, como pude captar no seguinte depoimento: Essa é pessoalíssima. É um trauma que aconteceu, quando eu descobri que a minha mulher Rosa estava transando com uma outra figura. Eu sabia, mas estava esperando ela resolver e ela não resolvia. Uma noite ela saiu. Eu sabia que ela tinha ido se encontrar com a figura e fiquei em casa parece um bicho enjaulado sem saber o que fazer, andando de um lado pra outro. Aí eu resolvi sair enlouquecido na rua pra procurar. Dobrei a esquina e encontrei, ela, com a figura, aí aquelas coisas: “Galinha escrota, vai te foder...” E fomos pra casa. Depois achei que não dava mais e foi a partir daí que eu saí de casa. Ela ainda insistiu, mas eu finquei pé de... Não dava mais. Aí eu contei essa história, mas numa espécie de resumo. Seria o extrato dessa história. Aí na cena eu fazia um gesto assim. O Cacá pediu pra usar assim. Que tinha a ver com a observação do senhor do supermercado. E tinha um negócio com o pé que foi o Cacá que colocou. Muito marcante (...) Ou seja, mudou um pouquinho pra se encaixar na história. (Henrique da Paz)

A experimentação do ator, para a construção de sua dramaturgia pessoal, passa necessariamente, pelo seu poder de síntese no palco. Tem uma outra história pessoal, outra situação. Uma viagem que eu fiz pra Europa. Fui pra casa de uma amiga que a gente já tinha tido até um caso. Ela era uma paraense que se transformou em uma francesa. Nos modos era muito estranha, muito fria, falava até, de certa forma, mal, dos costumes. Aí aquilo me chocou, totalmente. Aí rolou uma história de sedução, ela era casada e tentou


95 alguma coisa comigo, mas eu achei que não. Aí eu não me criei, queria ir embora. Ela não queria, tava alimentando alguma coisa na cabeça dela. E aí eu fiquei até meio empolgado, fui fazer uma escola de línguas para imigrantes, mas acabei que fiquei dois meses e voltei. Aí me decepcionei e vim embora. Aí foi foda, eu vim sozinho. Foi muito escroto, um frio do cacete. Quando cheguei na estação não sabia onde era, com duas malas pesadas, uma cagada. Fazia sinal pra táxi, os táxis não paravam. Subi uma escadaria grande pra caramba, aí com pouca grana consegui pegar um táxi e ir pro aeroporto. Aí eu fiz um resumo disso: a minha chegada de viagem, me recebendo de braços abertos, a minha decepção, a minha volta, a cagada na estação, eu pedindo ajuda e não conseguindo, aquele certo desespero. Disso aí o Cacá já tirou uma parte que ele vai usar: é o momento no diálogo do Polônio com Hamlet, quando ele concorda que o Hamlet está doido, porque fala de umas nuvens. É isso que eu tenho que usar. São formas que as experiências pessoais são utilizadas. (Henrique da Paz)

O trabalho de composição com os perceptos exige que ele, o ator, produza o inconsciente, que nada tem a ver com lembranças reprimidas, tampouco com fantasias, como diria Deleuze. Exige que o ator maquine o inconsciente, formando o bloco de infância, o seu bloco que, necessariamente, é pessoal. Não se reproduz lembrança de infância, produz-se, com blocos de infância sempre atuais, o bloco de devir-criança. Cada um fabrica ou agencia, não com um ovo de onde saiu, nem com os genitores que o ligam a ele, nem com as imagens que ele daí tira, nem com a estrutura germinal, mas com o pedaço de placenta que ele furtou e que lhe é sempre contemporânea, como matéria de experimentação. (DELEUZE; 1998 p. 94).

Os depoimentos da atriz Antônia Leal, relatados a seguir, são importantes para que o exercício de abordagem do objeto (dramaturgia pessoal do ator no seu elemento história de vida) determinado pelo plano conceitual Deleuzo-Guattariano, se processe sobre pontos delicados. Eu não entendi logo de início o que era esse processo que você vai buscar coisas que eu chamei do teu “baú” e eu resolvi colocar coisas que estavam me incomodando há muito tempo no meu baú. Duas coisas, uma situação que aconteceu com a menina de sete anos e que aconteceu com a senhora de cinqüenta. Como ele disse pra mim: você colocou, você resolve aqui. Pra mim tem coisas que não podem ser mais resolvidas. Você bota pra fora, chora o que tem pra chorar, grita, berra, mas isso não pode ser resolvido. Mas tem lembranças, tem o vestido, como era o feitio do vestido, o azul, a fitinha do cabelo, como estava o cabelo. Todas as ações que eu repasso pro trabalho. O barulho da lata com o pote que eu usava pra tomar água. Tudo. O pau de arara que não era ônibus. O frio que eu sentia. Eu me lembro ainda criança, sentia o perigo, mas a minha mãe que eu confiava me dizendo: “Vamos fazer um passeio”. Eu convivia no interior do interior. Nós éramos muito pálidos. Minha


96 mãe me deixa na porta de um comércio, com uma mulher muito vermelha, muito corada. Aquela mulher saudável me assustou. Isto está na cena em que o Hamlet mata o Polônio. (Antônia Leal) .

Os blocos de infância são extremamente marcantes no trabalho desta atriz. Em seu depoimento há uma intensidade nos detalhes. Um outro momento é quando ela está conversando no quarto com o Hamlet. A história é a seguinte: depois que a minha mãe me deixou pra minha mãe adotiva, ela determinou que a minha mãe biológica ficasse um tempo sem me ver. E eu adoeci e fiquei muito triste. Me deu saudade do lugar, dos meus irmãos, da liberdade que eu tinha. Era uma coisa linda onde eu tinha uma vida. Lá, eu cheguei, me deram um monte de sapatos e eu nunca tinha visto sapatos na minha vida. Eu não fui adotada pra ser filha. Fui adotada pra ser a cria e fazer trabalhos domésticos. Eu era uma das três crias. Tinha uma que foi o cão, o inferno da minha vida e tinha outra que eu protegia. Eu só tinha o direito de comer o que sobrasse, dificilmente a gente tinha o direito de tomar leite. Eu era uma escrava branca. Então teve esse momento de tristeza, doente, eu queria mesmo era morrer. Aí ela manda chamar a minha mãe. Ela chegou e eu melhorei só de ver ela. Ela já me deu esperança de eu voltar. Eu pedi pra voltar e ela disse que ia me levar. Só que ela sumiu. E aquilo foi a grande decepção da minha vida. Isso eu uso na cena do Polônio. Pra mim a segunda traição da minha mãe. Ela deixou de ser minha mãe nesse momento. Tem um outro fato que eu carrego no meu dia-adia que foi quando meu avô tentou me roubar. A minha mãe adotiva tinha uma loja, ela era uma das mais ricas dessa cidade, e eu tava na porta dessa loja e vi meu avô. Ele me chamou, eu olhava pra ele, não sabia se ia, aí ela percebeu alguma coisa, foi pra porta e espantou ele. Meu avô era tipo um índio. E eu sempre me lembro dele como algo que me protege. (Antônia Leal).

Estes mesmos perceptos de histórias vividas foram utilizados pela atriz, recentemente, em outro trabalho cênico: O casamento da rainha é a repetição de um trabalho que eu apresentei pra uma pessoa que eu considerei... Eu chamo esse trabalho o início de um amor. O casamento é uma repetição dessa história. A cena na Escola de Teatro ela era uma freira que tinha um lado puta. Então o meu trabalho tá cheio de coisas tristes e alegres. Porque tem baú e tem as cenas que a gente tá por trás, quando a gente tá nos bancos. Aí tem muitos momentos que eu tô colocando coisas. Todo tempo, a gente está em cena. (Antônia Leal).


97

Figura 14: a atriz Antônia Leal e o ator José Carlos Gondin. O próximo depoimento alerta para o fato de que, no espetáculo, nunca se está “fora de cena”. Os perceptos são articulados em seqüências cênicas que, inclusive, não precisam estar visíveis ao olhar do espectador, mas que são fundamentais para o trabalho do ator. Vejamos:

Tem as cenas que a gente tá por trás, quando a gente tá nos bancos. Aí tem muitos momentos que eu tô colocando coisas. Todo tempo a gente tá em cena. Mas não é Hamlet. Porque a Zê passa por mim e mais na frente tem o Hamlet e o Horácio que estão conversando, então pra mim são pessoas que estão conversando, dando ou não permissão pra alguma coisa. O Shakespeare nunca está na minha cabeça. O que vai ter são os textos que ainda vão vir. (Antônia Leal)

O ator André Mardock apresentou muitas dúvidas, muitas dificuldades em trabalhar com histórias pessoais na construção de cenas. Na verdade, o exercício de criar alguma coisa que está além da percepção de um instante vivido – no caso o percepto – exige uma experimentação contínua. Assim, o é para André Mardock: Eu comecei a colocar, ontem, as minhas histórias pessoais no trabalho. Na primeira cena do Hamlet eu coloquei uma história pessoal. Naquela cena eu ficava sempre de fundo. E nesse espaço de tempo eu precisava colocar alguma coisa. É uma história batida. Eu sou muito ligado a família. Eu vejo ali meu pai... Eu trabalho com essa coisa meio abstrata, meio concreta. Eu imagino o meu pai chegando ali, em Belém. Eu vejo ali, que eu estou completamente contra a lógica da dramaturgia daquele momento. Eu não trabalho com um fato que já aconteceu. Eu apontei trabalhar, mas não quis, não consegui trabalhar ainda. Eu tentei


98 trabalhar com uma situação cotidiana da casa da Maridete57, mas não vingou [...] Ali, na cena da festa. Eu não sei se é errado, mas eu consigo trabalhar com a situação posta. Ali eu estou na festa tocando o meu tambor. Se o Cacá ouvir isso ele me mata. [...] Eu acho que eu estou completamente equivocado. (André Mardock)..

Este ator não encontra diferença entre os momentos de construção cênica que se faz uso de sua dramaturgia pessoal e os momentos que não faz uso de indutores pessoais. Ele reforça que o que importa é o acreditar no que inventa: Eu acho que é igual. O que eu acho que é determinante é o acreditar. Eu posso nessa cena do batuque, colocar minha história pessoal, mas mesmo não fazendo isso eu acredito naquilo, eu acredito no guardador de carros, na mulher do balcão, no garoto da pipa. Falando literalmente do olhar, o meu olhar não é diferente dos trabalhos, se eu acredito... Eu tô inteiro ali. Mas pra mim não tem coisa mais feliz do que tocar naquela festa [...] Eu acho que eu quero ser músico. Risos (André Mardock).

Em contra partida a fala de Nilza Maria, revelando a não utilização de histórias pessoais, não descreve apenas uma opção da atriz, uma escolha, mas sim um entendimento, uma concepção de história de vida, claramente colocada por ela, frente à natureza desta tarefa: Eu sou uma pessoa de natureza alegre e de repente eu não estou querendo colocar minhas histórias pessoais dentro disso. Porque a morte não tá chegando em mim. Está chegando de forma natural. Até agora eu ainda não consegui fazer uma ligação com o que eu faço [...] Só se em algum momento eu sentir que haja a necessidade de eu buscar algo pessoal, uma experiência minha. Até agora ainda não. Eu tenho muita coisa, mas acho que essas coisas não se adaptam pra essas coisas da peça. Homens ricos, pobres, conflitos de família que se destrói. Na minha vida pessoal não tem família que se destrói, pelo contrário. Eu junto pessoas, de dentro de fora, sete pessoas que eu criei, com harmonia, com amor. Enfim, a minha vida pessoal é diferente desse drama. O meu texto é diferente. O meu texto ama o outro, sustenta o outro pra não cair. Esse é o meu dia-a-dia. O amor já morreu, mas tá enterrado, aqui só existe uma lembrança querida, mas passou e acabou. (Nilza Maria).

Houve, entretanto, uma pequena tentativa, por parte da atriz, na experimentação desta tarefa e que no meu entender, caminhava em direção a construção de perceptos, de sensações.

57

Maridete Daibes – atriz paraense, formada pela Escola de Teatro e Dança da UFPA.


99

Um dia desses, ele fez um exercício com música, e eu representei o meu cotidiano que era a contabilidade, era uma máquina de escrever. Eu aproveitei o ritmo da dança pra ser a máquina pra lá e pra cá. Eu não sei se o Cacá vai aproveitar isso, mas só foi o que eu consegui fazer. A gente aproveitou pra dançar sendo a máquina. (Nilza Maria)

O ator Allyson Santos58 também não trabalhou com histórias pessoais. Na verdade a direção mudava, não só as suas estratégias com este ator, como a proposta de concepção de personagem adotada para todos os outros atores do processo. O diretor trabalhou acreditando em seus insights a respeito desse ator. Eu achei muito pesado, forte. Eu não tava preparado pra fazer esse tipo de trabalho. É muito rico o teatro, mas é muito forte. Eu saberia se eu pudesse lidar com isso (...) Eu pensei em colocar uma história minha, até eu conversei com o Cacá. Mas aí eu achei melhor não colocar, muito forte. (Allyson Santos).

Consciente da preciosidade das histórias de vida, vividas e testemunhadas, é que Cacá parte do meio, de qualquer ponto, nunca do ponto de partida convencional como o texto escrito, por exemplo. Faz linhas de fuga que se ampliam por todos os lados. Parte das histórias do baú para a construção de uma arquitetura cênica, visível ou invisível ao olhar do espectador, assim como parte de tantos outros elementos. Esta proposta de dramaturgia pessoal é, toda ela, fugas à escritura shakespeariana. Há a necessidade de trair porque trair é criar, diz Deleuze.Agenciar-se com histórias de vida que nada tem a ver com a escritura de Shakespeare foi trair não só o autor como trair uma certa maneira de fazer teatro. Foi criar linhas de fuga a um fazer que só pretendesse montar um texto. Foi, e é, um teatro que deseja algo mais, um Teatro em DEVIR.

4.1.2. Os afectos ou devires construídos pelos atores: cenas de Hamlet – Um Extrato de Nós.

58

Allyson Santos – Dançarino. Fez curso no Centro de Dança Jaime Arôxa, tornando-se professor de dança de salão, trabalhando com Marcelo Thiganá, desde 1998. Faz teatro pela primeira vez, participando da montagem de Hamlet, com o grupo Cuíra do Pará. Agora é Horácio.


100 Como os objetivos deste estudo se restringem ao processo de construção da dramaturgia pessoal do ator e não ao produto resultante, ao espetáculo propriamente dito, insiro neste último capítulo a descrição de duas cenas do espetáculo apenas como visualização do alcance do processo.

Na cena de abertura, o palco está em penumbras. Há apenas um foco no centro, em cima de uma rede, onde, aparentemente, há um corpo. No palco estão a Rainha Gertrudes, o Rei Cláudio (o irmão do Rei Hamlet, morto), Polônio, Ofélia, Laertes e Horácio. Há, também, os coveiros que estão velando o corpo do Rei, preparando o ritual de sepultamento. Quando a rede começa a subir, a Rainha Gertrudes canta seu lamento em cima do banco, olhando para rede. Aqui, neste momento da encenação, a atriz Antônia Leal, no seu Devir-Gertrudes, agencia não um canto composto especialmente para esta cena de sepultamento, mas sim um canto composto a partir de seu percepto de um período de sua infância. Um afecto novo, sensações para um Devir-Gertrudes-Criança-que-espera-o-trem. É nessa perspectiva que para a atriz:

Cada pedaço tem uma história. No lugar onde eu morava com a minha mãe adotiva, passava a Maria Fumaça, a estação era bem perto e a gente ouvia quando o trem chegava e quando ele partia. Minha grande vontade era passear nesse trem, mas eu nunca fiz, nunca pude passear no trem. O máximo que eu podia fazer era brincar no trem de vez em quando. Aí quando me pediram uma música, e eu não tinha nenhuma vocação pra cantar (...) Ele disse façam uma música e deu a entender que era algo que estivesse dentro de você. Logo quando começou o trabalho, ele disse que ninguém tinha personagem, só a Zê e o Claudinho, que seriam Hamlet e Ofélia. Dos demais, nenhum teria um personagem definido. Ele queria uma música que tivesse a ver com você, sua vida.Eu levei um gravador pro banheiro e comecei a pensar em alguma coisa e o que veio, veio. Mas eu não considero aquilo música. Mas aquilo é o momento do trem que veio na minha cabeça. Veio a imagem e de acordo com a imagem eu fui fazendo uma música. O trem passou e ela gritou com desespero. Ela não tem como entrar no trem porque aquela é a última vez que o trem vai passar. E depois acabou o trem mesmo, acabou estação. Quando eu já tinha condições de ir ao trem por vontade própria, não existia mais trem. A maioria das coisas do meu baú que eu coloco são coisas da menina. Cada vez que eu canto vem uma coisa diferente. Eu tento, mas não consigo. Tem uma música de fundo pro meu grito e ele quer que coincida o momento do grito com o da música. Mas o trem é um crescente, é uma coisa que é tão emocional, como eu posso prestar atenção numa coisa daqui? Eu tento e às vezes consigo, mas quando eu presto atenção nas coisas daqui, o grito não sai com a fortaleza que eu quero e eu prefiro esta. A fortaleza da minha emoção do trem passando. A música tem três bases: primeiro é uma espécie de chamada,


101 acorda que lá vem o trem. Depois é uma espécie de tristeza porque ela acha que o trem não vem. E por último, é a vinda do trem que ela fica desesperada pra pegar. Entre o vem e o não vem tem um espaço, a dúvida. (Antônia Leal).

Figura 15: cena de abertura do espetáculo no momento do velório.

Na cena de separação de Hamlet e Ofélia, quando este entra no palco, ela já está lá. O Rei e Polônio observam atrás das portas. Ofélia deseja restituir a Hamlet as lembranças que ele lhe deu. Estando ela no chão, mostra a caixa a Hamlet. Hamlet confuso se afasta dela, andando em diagonal. Fica de costas e não aceita, dizendo que nunca havia dado a ela aqueles objetos. Ela levanta, vai atrás dele e diz que ele a deu, sim. Ela devolve a caixa, decididamente. Ele olha para ela e discursa sobre sua beleza, voltando para o lugar onde estava. Ela vai atrás dele, abraça-o por trás e beija-o até os pés. Ele sai novamente, mas volta e fala a ela que já a amou um dia. Eles se abraçam, de joelhos. Hamlet percebe a presença dos dois, do Rei e de Polônio. Vai para porta do lado esquerdo, olhar, confirma as


102 suas suspeitas. Trata mal, novamente, Ofélia. Começa a destrata-la para que eles ouçam. Hamlet aconselha Ofélia a ir para um convento e depois pergunta por seu pai. Ofélia diz que ele está em casa. Hamlet então, ameaça o Rei. Ele ofende Ofélia e atira sua caixa no chão. Ofélia recolhe suas lembranças e vai para frente central do palco. Hamlet vai até ela e beija-a. Depois a empurra e sai de cena. Ela chora, desconsolada. Neste momento, a atriz Zê Charone, utiliza sua história pessoal – história esta que já incluí no corpo dests estudo59 - para um Devir-Ofélia-Moça-do-carro; Recaptu-lo-a em parte, entretanto: Não existe carro, é lógico, na cena. Eu tava no chão. E aí o cara vem e tenta me namorar, na minha história real eu deixei acontecer. Não me mexi e deixei a coisa acontecer. Quando eu contei, eu alterei não deixando. Eu usei muita força, dizendo: “não, sai” com as pernas “não quero, não quero”. Usei muito isso na cena em que o personagem do príncipe maltrata Ofélia. Foi engraçado isso porque, quando esta história apareceu, foi a última coisa que aconteceu no ensaio. Quando ele cortou a minha história, eu tava pra explodir numa emoção de choro. Já tava vindo. Eu acho que foi por isso que ele cortou. Porque vinha o choro da história passada. Na hora que ele parou, deu o corte, me levantei: “Ai nossa!”. Tudo isso está na cena de dor da Ofélia, a cena do abandono. (Zê Charone)

A fabulação do ator, neste processo de criação, não foi constituída apenas por perceptos e afectos nascidos das histórias de vida. Não. Com toda certeza, não. Mas considero que por trás das experimentações cênicas geradas pelos outros elementos do manual da cavalaria, por trás dos seus respectivos perceptos e afectos, há uma determinante influência do vivido, do já experenciado.

59

No capítulo: A Construção da Dramaturgia Pessoal do Ator, páginas 65\66.


103

Figura 16: a cena do abandono de Ofélia.

4.2.

A

INFLUÊNCIA

DIRETA

DO

VIVIDO

SOBRE

OUTROS

ELEMENTOS DA DRAMATURGIA PESSOAL DO ATOR. 4.2.1. Os quatro pontos no espaço: Neste elemento de construção da dramaturgia pessoal do ator que aparentemente deveria ser esvaziado de sentido pré-estabelecido; um elemento aparentemente neutro, acabou sendo um canal aberto a significações vividas pelo ator. Virou elemento-suporte para histórias de vida do ator-criador, conforme pude constatar no depoimento abaixo: A gente tinha um exercício de espaço, só deslocamento. Depois a gente cria uma história pra esse deslocamento. São quatro pontos. Nesses quatro pontos, coloquei quatro grandes obstáculos da minha vida teatral. Do que fazer ou não fazer. São quatro obstáculos e quatro pessoas. O primeiro foi o de deixar meus


104 filhos em casa. Aquela situação, deixar as crianças sozinhas, esse foi o primeiro. O segundo foi trabalhar com a Wlad Lima enquanto direção. Isso foi muito difícil. O terceiro foi trabalhar com o Miguel e trabalhar só com o corpo sem ter a fala. E o quarto tava sendo aquele momento, trabalhar com o Cacá. Eu já tinha dito que eu tinha muita vontade de trabalhar com o Cacá... Bem... São quatro obstáculos. (Antônia Leal)

4.2.2. O objeto pessoal: A própria denominação de objeto pessoal do ator, objeto tirado do cotidiano do ator, ou objeto significativo para o ator, já expõe que esta tarefa facilita a revelação de uma determinada história de vida, por trás dos objetos escolhidos. Assim para Cláudio Barros: Foi uma paranóia descobrir isso. Você fica tão concentrado nesse objetivo que você acaba revelando um “objeto” que estava na tua vida... Você acaba percebendo o que tem por trás daquele objeto. Por que você carrega essa merda? Por que não chegou uma hora que você jogou tudo fora? Você começa a perceber os objetos de uma outra maneira. São significativos. Coisas que significam, e que você acaba entendendo porque o objeto está com você. A música é a mesma coisa. Você fica tão concentrado em descobrir uma sonoridade, que ela surge em você de maneira especial, como se já estivesse, e que nessa busca você não compusesse, mas recebesse uma música que já tem, que já existe, que tá em você. Começa a buscar estes sons em você, imagem, lembrança, pensamentos da tua vida. (Cláudio Barros)

O ator Cláudio Barros, falando de suas experimentações com esta tarefa, vai revelando o seu DEVIR-HAMLET, sob a direção de Cacá Carvalho. Aos onze anos de idade, minha mãe passou oito meses nos EUA, fazendo tratamento. Foi a primeira vez que eu me afastei dela. Oito meses depois fui buscar minha mãe no aeroporto. Minha mãe chegando... Cadê minha mãe? Todo mundo desceu do avião e eu não reconheci minha mãe. Ela veio americana, cabelo cortado, chegou americanizada mesmo. Quando minha mãe me abraçou, ela disse: “Eu trouxe muitos presentes aqui pra você. Tem um que eu comprei no aeroporto”. Era um crânio de plástico que tinha corda. De dar corda. Ela botou uma moedinha naquelas máquinas e veio essa caveirinha que eu carrego até hoje. Mas a única coisa que permaneceu na minha vida foi essa caveirinha de plástico que existe no espetáculo. E me incomodava muito a coincidência. (Cláudio Barros)

Houve, por parte do ator, preocupações em relação às reações da direção sobre a escolha do objeto. Preocupações pertinentes, tais como:


105

Eu conhecendo o nível de exigência do Cacá de usar tua inteligência como critério... Aquela caveira ficou como representação do resgatar o sentimento de amor de minha mãe que tinha ido. Ele ia dizer que eu tinha sido óbvio, tinha certeza que ele ia ser duro, muito cruel. Cheguei até um ponto de ligar pra Zê. Mas dito e feito, quando eu apresentei o objeto, ele me acabou, me destruiu. Disse que eu não tinha usado de inteligência e eu disse: “Mas é esse objeto que me interessa”. Ele disse: “Mas não vai estar aparente”. Aí eu pensei: “Ok! Ele é o amuleto de Hamlet, debaixo do meu figurino”. Agora ele não precisa ficar aparente, nem que ele queira. (Cláudio Barros)

Figura 17: cena do cemitério. Momento da relação do ator Cláudio Barros com a caveira.

4.2.3. Composição musical: No trabalho de composição musical há encontro com histórias vividas. Como no caso relatado no depoimento a seguir, muitas “composições” na verdade são músicas remanescentes de um outro tempo, de um outro momento de vida do ator. Músicas


106 guardadas em algum lugar e prontas para serem acionadas. A música para um DevirCriança, está nesse depoimento:

Você se concentra. É um dever de casa, objetivamente é uma tarefa. E aí você começa a buscar um som, você fecha os olhos... Eu tô falando do meu processo. Você começa a pensar, quando fecha os olhos começa a vir lembranças e começa a se misturar... Até que vai surgindo um som que você vai definindo, isso que é legal. São todas muito curtas, o que surgiu do elenco; frases musicais muito curtas. Não é uma coisa que tem uma variação, é quase um mantra. Hoje em dia eu sei exatamente de onde veio, como surgiu. Depois do almoço da minha casa, obrigatoriamente você tinha que dormir. Eu estudava numa escola que era um internato e que os alunos ficavam até uma da tarde. Nós íamos para casa, almoçávamos e depois do almoço éramos obrigados a dormir até três horas da tarde. Segundo minha avó – uma pessoa que teve uma importância muito grande na minha vida, na minha formação – era necessário esse descanso de uma hora e meia, duas horas. Pro ritmo de uma criança – hoje em dia é muito difícil você colocar uma pessoa, com toda a energia, pra dormir – era terrível. Então a minha avó me socava, porque é essa a palavra, numa rede com ela. Era a hora que a minha avó tirava o tailleur, me socava na rede, botava o pé na parede, me embalava e cantava. Não essa música. Hoje em dia eu não tenho essa música. Acho que ela cantarolava coisas da cabeça dela. O balanço e o canto me davam uma tontura... E foi essa a imagem... Foi a partir dessa imagem que surgiu a minha música. Surgiu da imagem da minha avó. (Cláudio Barros).

Gostaria de lembrar o depoimento, já citado, da atriz Antônia Leal sobre a sua composição musical. Recuperar nesta argumentação que sua música foi toda construída sobre a influência de seu bloco de sensações da infância: estação, partida, velocidade, trem, desespero, lamento, um nunca mais e etc. Nesta caça a provas, neste levantamento de argumentos em favor de minha hipótese - qual foi: a história de vida, como elemento construtor da dramaturgia pessoal do ator, contamina todos os outros, influenciando todos eles - creio ter me aproximado da seguinte configuração: o papel das histórias de vida na construção da dramaturgia pessoal do ator foi de fato de contágio, visto ser o contagio, o estado necessário para dar-se a fabulação do ator, seu poder de inventar realidades, criar sensações. Os atores de Hamlet – Extrato de Nós inventaram os seus próprios procedimentos para contagiarem-se por histórias vividas por eles mesmos e assim criarem suas dramaturgias pessoais que nunca pretenderam ser imitações ou mesmo representações da realidade vivida, mas seres de sensações. Analisei que seus perceptos e afectos foram


107 suficientes para mobilizá-los para o DEVIR: esta potência de tornar-se uma outra coisa que, não estando ele ou em um outro corpo que ele vai imitar ou representar, está ENTRE ele e um outro corpo. Quanto mais corpos, mais heterogenia tornou-se, sua criação dramatúrgica pessoal. Seus seres ficaram de pé sozinhos como deve ficar toda obra de criação artística.

Figura 18: momento de experimentação entre atores e objetos.

5

ASPECTOS CONCLUSIVOS Para este espaço, reservado aos aspectos conclusivos, proponho iniciar com uma

questão que ajudará a revisitar os principais pontos deste estudo: como é substituir atores num espetáculo construído e sustentado sobre o alicerce da Dramaturgia Pessoal do Ator

Penso que, após o período vivido junto ao processo e a primeira temporada, surpreendeu-me a possibilidade de substituição de qualquer um dos atores deste espetáculo. A surpresa logo foi substituída também: havia no acontecimento algo a ser investigado.


108 Para o leitor, após acompanhar a dissertação deste processo de criação, pensar na possibilidade de substituição de atores talvez possa parecer, uma tarefa impossível.

Se a dramaturgia pessoal é uma escrita cênica construída por cada ator a partir de uma série de induções, algumas radicalmente pessoais, com detalhamentos de diferentes naturezas e origens, muitas vezes conhecidos somente pelo próprio ator-criador – e tudo isto já é uma afirmativa conclusiva minha – pergunto: como substituí-lo na apresentação desta obra espetacular Pergunto isto pela natureza efêmera da obra cênica que necessita, todos os dias de sua vida, do corpo presente do ator, ainda.

Concluo que este processo resultou num espetáculo, rigorosamente construído sobre uma trama de convenções teatrais criadas, exclusivamente, para Hamlet – Um Extrato de Nós. Eu testemunho que, estas convenções, são produtos da escritura das dramaturgias pessoais dos atores. No período da montagem, elas foram fabuladas e acordadas entre a direção, os componentes da equipe técnica e cada ator do elenco. Então me pergunto: como realizar, a cada nova apresentação, esta escrita, sem os seus autores

Sem a presença de Cacá Carvalho em Belém e, logicamente, sem estar a frente da direção do espetáculo, os atores, Cláudio Barros e Zé Charone, assumem também esta tarefa: manter o espetáculo vivo, em apresentação. Por uma série de motivos, houve a necessidade de substituir os atores André Mardock com o seu Devir-ator-mambembe e o ator Allyson Santos com o seu Devir-Horácio, pelos atores Adriano Barroso e Leonel Ferreira,

respectivamente.

Ambos,

sem

nenhum

depoimento

pessoal,

tratado

dramaturgicamente. Como foi resolvido este impasse Não pude prescindir da contribuição dos depoimentos de alguns atores, diretamente envolvidos nesta questão, para dar conta desta conclusão. E nem poderia ser diferente, pela minha própria escolha na abordagem metodológica. Sobre este impasse Cláudio Barros relata: No primeiro momento ficamos apavorados por que como fazer esse ator passar pelo mesmo processo que nós tínhamos passado? A primeira coisa que nós fizemos foi recorrer ao Cacá. Porque como é que nós íamos explicar para o Adriano que o movimento do personagem dele era de um menino que empinava papagaio no Jurunas e que determinado movimento ou uma seqüência era de uma


109 funcionária tirando xerox de uns documentos. Explicar para o Leonel que o movimento do outro ator eram movimentos da tia dele no supermercado. Como fazer isso não interferir na cena? Será que vai mudar tudo? Como é que ele vai viver o processo? E o Cacá, como é que vai dirigir isso? Como é que vamos fazer agora? Nos perguntamos isso. Perguntamos ao ator que estava abandonando o espetáculo como é que vai ser? Que tipo de relação, como as partituras foram se entrelaçando, como resolver isso? Falamos com o Cacá. Ele foi orientando que esses atores novos viveriam outro processo diferente do nosso. Eles iriam aprender o balé, iriam tentar reproduzir o que os outros atores tinham feito como se fosse uma coreografia. Temos hoje no espetáculo dois tipos de atores: os que viveram o processo e os que estão aprendendo o balé. Nós desenhamos para eles um mapa. Eles estão seguindo esse mapa. Acreditamos que tudo vai sair bem. Eles tinham o vídeo do espetáculo para ajudar. Nós demos a geografia. Estes atores tiveram que seguir a geografia, já concebida, do espetáculo. (Cláudio Barros)

No processo de criação, houve a invenção de um vocabulário verbal-gestual chamado Dinamarquês (entendendo este dinamarquês como a língua da Dinamarca-Pará). Vocabulário de domínio de todos os criadores envolvidos; composto de nomes próprios referentes às criaturas capturadas nas observações de rua, perceptos das histórias de vida e, todos os ingredientes criados nas dramaturgias pessoais dos atores. (Jorge, o homem-daSanta-Casa, o homem-do-Cine-Ópera, o sapateiro, a menina-do-ônibus, o louquinho-docomércio, o mendigo-da-Santa-Luzia, a mulher-da-xerox, a titia, os flanelinhas, o lavadorde-carros, a mulher-do-caixa, a menina-do-carro, o garoto-do-papagaio, o menino-do-cão, o homem-da-repartição, o apito-do-trem, a limpeza-da-casa, gesto de passar a mão por trás da nuca e tantos outros gestos-códigos da montagem).

As histórias vividas por cada um, neste processo, contaminaram absolutamente tudo. Todos os mínimos produtos resultantes do processo estava contaminado pelo que foi vivido, individual ou coletivamente. Creio que a minha hipótese do contágio das histórias de vida sobre os demais elementos estava no caminho certo.

Outro aspecto desta conclusão é: processo é diferente de produto. Todo o resultado cênico do processo, inclusive por ser uma proposta de experimentação, isto é, criação aberta a novos pontos de fuga; toda a escritura dramatúrgica do espetáculo pôde ser alterada, considerando que precisam continuar tentando manter o espetáculo vivo. E isto, com novos atores que não conhecem ou não conheciam, o vocabulário do processo.


110

Como eles têm tantas coisas para aprender, pode ser que isso os confunda. Venha atrapalhar o processo individual que eles estão vivendo. Nós não sabemos o processo interior e individual que eles estão vivendo. O processo de substituição é igual nos outros grupos. O cuidado é em não dar essas informações: falar da roda do carro, da mulher da vila, do mendigo da Santa Casa. É engraçado. Em um momento eu peguei a Nilza fazendo um comentário com o Leonel. O que ele falou: “Que horas que eu levanto desse banco para entregar a carta para Ofélia?” Eu sei que a marcação dele é quando a Nilza tá lavando a segunda roda do carro. A Nilza explicou: “Eu venho aqui, sacudo o pano, dentro do balde, quando eu vou pra segunda roda do meu carro...”. Aí ela disse: “Não, esquece. Quando eu for para esse lado é que você levanta”. Eu percebi que as pessoas estão com medo de falar, como falavam no processo. Usar o nosso vocabulário (Zê Charone)

Segundo Cláudio Barros, “O público vai continuar vendo o que sempre viu. Nós é que estamos vivendo um outro processo”. Eu poderia concordar com este ator, se considerasse a Dramaturgia Pessoal do Ator, de fato, oculta aos olhos do espectador. Mas não considero e ouso afirmar que ela é apenas aparentemente oculta. Falo aparentemente, porque acredito em tudo que foi exposto neste estudo: as dramaturgias pessoais dos atores determinaram, substancialmente, este fazer teatral e, isto tudo chega no espectador. Não diria que chega ao espectador como uma estética revolucionária, um objeto de entretenimento ou uma exposição psico-analítica das pessoas-atores. Não pretende nada disso. Pretende ser um fazer teatral que incomoda de alguma maneira, que causa estranhamento, que transforma, que acorda tanto quem faz quanto quem vê. Um fazer que, talvez, não interessa a muitos, mas que é o resultado dos princípios artísticos de poucos, como é de Cacá Carvalho. Gostaria de transcrever um trecho do depoimento do ator André Mardock, afirmandoo como prova de mais um dos aspectos conclusivos, de meu estudo: há dentro de um mesmo processo de criação, a gestação eou o fortalecimento de diferentes concepções de teatro. Examino mais de perto:

Eu saí porque encontrei uma outra linha de trabalho que me dá maior prazer. Mas ficou comigo todo esse material da busca. Eu percebi que consegui buscar, alcançar, todas as indicações que a gente pesquisou, em si e nos outros. As indicações que o Cacá nos deu nos trabalhos de rua, e trazer esse trabalho para o meu corpo. Agora eu acho que tem que ter prazer em fazer um texto de


111 Shakespeare. É lindo, é maravilhoso. Ele deu as indicações, tudo bem, tudo legal. E começamos o processo. Agora da metade pra o final do meu tempo de vida útil, eu percebi que não era esse discurso que eu queria assumir, percebi que não era mais essa idéia. Eu não tinha mais prazer em falar aquelas palavras. Diziam-me muito, mas não era mais o meu momento. E isso foi uma erosão, me fez perder a alegria de estar naquela fala. Agora o espetáculo vai ter uma outra cara, mas acho que ele não é uma coisa preparada, pronta pra exportação. Sempre se tem uma coisa amarrada, onde não varia, posso até dizer que para o grupo é saudável sofrer essa dificuldade. As pessoas sempre me questionam muito por que que eu saí, colocam como se fosse um ato irresponsável. Da minha parte não, eu acho que até é uma oportunidade, visto que a gente tem “n” exemplos de espetáculos que sofreram substituições. Agora se isso é característico desse trabalho, do trabalho que o Cacá desenvolveu, de aproveitar o máximo desse relacionamento do primeiro elenco do Cuíra, e levar isso adiante, ter sempre um elenco fechado...Bom, eu lamento. Poderíamos explorar vários baús, enriquecer muito mais a história. Inclusive eu até empresto o meu baú pra quem estiver entrando. Querendo trocar figurinhas, eu estou aí. Eu acho que não é substituição do trabalho, é uma pessoa que vai entrar com uma contribuição diferente. Eu acredito que ele tenha um bauzinho que é dele, com coisas dele, e aí vai se ter um outro espetáculo, mas que não vai deixar de ser saudável para o grupo tratar com essas “dificuldades”. (André Mardock)

Não acredito ser necessário no âmbito desta pesquisa, analizar as razões com as quais André Mardock argumenta a sua saída. Mas devo considerar que o baú que o ator tão generosamente disponibiliza para o seu substituto só poderá ser recebido pelo novo ator como marcações anteriormente determinadas, ou como chama Cacá Carvalho, como o balé da cena.


112

Figura 19: o ator André Mardock trabalhando a cena do teatro com bonecos. Após transcrever este depoimento eu me permito dizer, respeitando as diferenças, o que diz atualmente, Zê Charone, frente a estas situações de substituição: “Simples, vamos chamar um outro ator”. Concordo com a intenção: não precisa ter sofrimento, se for necessário abandonar o que se buscou simplesmente como construção de mais um espetáculo. Mas não seria um estar sempre acordado, o que se buscou Nos tirar, atores e espectadores, da condição de adormentados

Concluo este meu estudo com uma singela frase do meu ator-guia, Alberto Silva Neto, sobre todo este processo de criação, como uma espécie de homenagem a toda a comunidade Cuíra: “Quando o ator diz, mente”.


113

Figura 20: Ăşltima imagem do espetĂĄculo visto pelo espectador.


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REFERÊNCIAS

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Dissertações e Teses:

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ANEXOS ANEXO 1: Imagem da entrevista de Cacรก Carvalho e Roberto Bacci publicada em 10 de janeiro de 2004 no O Estado de S. Paulo.

ANEXO 2: Entrevista com Cacรก Carvalho em 22 de julho de 2002


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Wlad – Cacá, vamos conversar. Tu disseste uma frase para mim, um dia desses, que eu achei ótima e que foi assim: “É a primeira vez que eu faço alguma coisa de fora vestida de uma coisa minha. Um trabalho de fora, vestido meu lugar”. Cacá – A experiência do Senhora dos Afogados foi uma tentativa que tinha um pouco essa natureza, porém ali eu estava num lugar onde colocar qualquer outra referencia além do próprio lugar ( se passar no Vêr-o-peso, dentro daquele prédio) seria reforçar uma coisa que já estava em letra maiúscula. Todo o trabalho que eu faço, eu me pergunto como é isso em mim em Belém? Porém, quando estou fazendo este (REFERINDO-SE AO ESPETÁCULO HAMLET – UM EXTRATO DE NÓS) eu queria que ele tivesse uma opinião onde o material que ele é feito, as pessoas que o fazem, a qualidade sonora, tivessem a cara de tudo isso, de onde eu sou. Não é autobiográfico, mas tem uma coisa ligada à minha origem em particular. Então, coisas que a mim são fortes eu gostaria que estivessem no trabalho, sem dizer muito pra eles (REFERINDO-SE AO ELENCO). Porém, eu sei o que eles estão fazendo pra mim e o que significa aquilo que fazem. Não é só porque tem o Marambiré ou porque tem a rede ou porque tem outro objeto... regional. Não, não é isso que o caracteriza. Revestido de um texto tão universal, mas é o modo de olhar, como trans-codificar para uma coisa do nosso modo de olhar. É como, antes de mais nada, quando eu encontrei o material da rede. O que é uma rede? O que uma rede faz? Ela nos embala; quando ela nos embala, ela nos tira do ritmo normal; quando ela nos embala, ela nos faz adormecer. Essa sensação de viver neste verdadeiro mormaço, neste viver todo adormentado, o teatro deve acordar. Uma das funções do teatro é acordar quem assiste adormentado, e a outra é fazer refletir as pessoas que o fazem, o quanto elas são adormentadas dentro do teatro e na vida de quem faz teatro. Wlad – Tu falas adormentado? De dormir? Cacá – Adormentado. Uma pessoa adormentada, de dormir.

Wlad – Como uma criança adormecida? Cacá – O ser humano vive dormindo com a idéia de que está acordado. E acordar é um trabalho. É um trabalho manter-se acordado. É um trabalho ver acordado as coisas. É basicamente isso: acordar-me! Por isso, eu ainda digo que posso fazer teatro. É só por essa palavra. Wlad – Mas isso vai contigo em qualquer lugar que tu estejas? Cacá – Sim. Em qualquer lugar. É por isso que o teatro hoje, pra mim, é para que eu me acorde e para que talvez alguém venha a ser acordado, por um momento talvez. Dura talvez um minuto, quando ele se dá conta... Depois a própria magia do teatro o embala novamente. Foi muito importante pra mim, na minha vida, um texto ( que não era dito por mim ) de um espetáculo que eu fiz muito tempo atrás e que dizia mais ou menos assim: “Eu, ator desse espetáculo, sou na minha essência um verdadeiro nada. E estou aqui na frente de vocês usando de palavras, gestos, ações, manipulando essas vossas emoções e


120 vocês continuam adormentados. Talvez por um ou outro momento vocês acordem e seguirão depois adormentados num outro momento, e eu volto a me adormentar neste momento dentro desta caixa de fazer dormir.” Isso mexeu muito comigo e é determinante no meu comportamento de vida e, conseqüentemente, em tudo que vivo. Nasce aí, talvez, uma espécie de crueldade, antes de mais nada para comigo , porque somente sendo cruel comigo é que eu posso acordar um outro eu que está adormentado. Nasce uma espécie (e toda vez essa palavra é entre aspas) de crueldade para com o trabalho, para com a vida, para com todas as pessoas que fazem parte desse grande sono. Tudo. É como se o mundo fosse repleto de sonâmbulos. Onde nem eu estou acordado. Porém, um momento você se dá conta de que pode haver um estado de acordado, uma posição de acordado. Em relação a tudo. Dificílimo. Nunca será conseguido. Porém, essa pode ser a gasolina que faça com que a máquina caminhe. Então, a rede é um material que é a nossa cara. Porém, a rede fala de outra coisa também: o mosquiteiro que cobre tudo. É material nosso, então é revestido do nosso material. Mas ele pode apontar também pra uma outra coisa. È aquela coisa que nos protege contra os carapanãs que nos acordam do sono. É uma outra coisa. Ninguém perceberá, mas não precisa. Ninguém saberá, mas não precisa. Porém, quando eu trabalho também com esta lógica, talvez o trabalho fique mais rico. Talvez. Se eu conseguir botar uma certa inteligência, uma lógica pra isso, talvez. Mas os atores não precisam saber disso, sob o risco de se colocar num momento em que eles precisam ficar atentos e acordados para tanta coisa operacional, e paralisá-los. Então, os atores precisam saber em parte. Talvez um dia, num futuro, alguma reflexão já com o passado, atuando no caso tempo, eles possam ter alguma percepção da coisa, num outro plano que não é plano simplesmente da máquina espetáculo funcionando, da máquina processo funcionando, dessa estruturinha que é criada e das ciladas criadas para capturar algum tipo de animal que possa servir para a construção do sentido, que é o que interessa no teatro. A construção do sentido. Wlad – Tu falas isso. Eu entendo todas as coisas que tu falas. Mas tem uma coisa, tem um momento que tu paras e vês. Mas essa matéria, esse material que está no palco, tem todo esse sentido, carrega todo esse sentido, tu paras e diz: “Mas, puxa, tá tão perto das pessoas e elas não vêem”.Porque tem essa coisa do visível. Tem o invisível e tem o visível. O visível que está aqui é uma matéria que está encostada. A gente deita sobre ela, trabalhando-a desse jeito aqui se cria um universo, um espaço que é fantástico. Então, tem esse olhar também, não é? Esse olhar que é trabalhar com o material daqui, com uma visibilidade que é daqui, mas sem ficar com aquela cara de regional. Cacá – Ah, sim! Mas o regional não me interessa, o regional vira folclore, vira retrato. Não me interessa o retrato, me interessa a radiografia. A radiografia é mais interessante do que o retrato para o teatro. Radiografia você captura bem. Fotografia captura a alma talvez num momento ou outro, mas... o retrato... Você chega talvez ao retrato, mas entendendo primeiro a radiografia. Nesse sentido, os atores ainda não enxergam, nesse momento não enxergam. Mas não me interessa agora que eles percebam isso, e acredito que nunca direi isso para eles, porque isso... se explicar-se demais... Isso que estou falando contigo agora não é uma coisa nem de jornal, nem de conversa com ator, nem de nada; é uma coisa minha, é comigo. E como é que eu estou percebendo isso , como é que eu consigo articular isso, como é que eu posso fazer isso falar, como é mais ou menos o processo na cabeça? Eu ainda não sei te dizer, hoje, quinze dias antes dessa coisa estrear, o sentido do trabalho.


121 Porque eu tenho que fazer o trabalho. O sentido do trabalho é como o sentido da vida, só aparece no fim, quando se conclui. A pessoa vive, vive, vive oitenta anos. Pode ser que nos setenta e oito ela cometa uma ação x que mude todo o sentido da sua vida. Você fala: “Fulano, foi isso”.Mas de repente já não era mais, já virou outra coisa, pronto. Eu não sei, claro. Algumas opções eu faço, algumas coisas de material eu sei, entendeu? A coisa da beleza... Eu, por exemplo, trabalho com o Cláudio Rego. Por um lado ele precisa da referência do Marambiré, que me interessa; por outro lado eu preciso que ele trabalhe com a rede, porque me interessa enquanto sentido, porém eu não me meto muito, eu só quero que ele tenha espaço para desenvolver o seu talento, que é imenso. Pronto! O Nando Lima, eu dou o material e digo: “Vai”. Se eu consigo usar bem ou não aí, já é um desafio; mas eu preciso que ele me traga material. Sabe, cada coisa que é colocada ali eu trato como material. Como é que eu depuro e como me serve? E todas as vezes que entra alguma coisa eu digo: O que é isto? Por que isto está aí? Como é que eu vou fazer isso falar? Porque tudo tem que falar. Wlad - Quando tu colocaste a imagem do Teatro da Paz no Toda a Minha Vida por Ti, eu me perguntei: o que diabos é isso? E as primeiras sensações que eu tive no palco quando as pessoas vinham assistir devagar. Eu ficava sem entender, eu nunca conseguia compreender porque que quando juntava as coisas, as pessoas tinham aquele momento, aquele ataque. Eu dizia: meu Deus! E procurava trabalhar com isso. Mas me chamou muita atenção a escolha de um símbolo, a imagem de um símbolo muito forte em Belém. Nesse eu vejo esse brasão, e é engraçado, porque eu digo: olha, louco, isso tá aí de novo. Algumas coisas assim. E a primeira vez que subiu, eu estava distraída.Eu te falei de uma sensação de raiva, eu disse: que merda! Está mesmo sobre mim, eu não consigo me livrar, tem um urubu mesmo, eu senti um negócio muito doido, por ser uma mulher de teatro. Eu não sei como é que tu fazes para tirar essas coisas que estão aí, tu estás passando por elas, joga-as aqui e elas dilatam para um sentido que vale por milhões de coisas, entende? Cacá – Vou te falar uma coisa que me serviu muito, quando eu li um texto de Ludwik Flaszen sobre o trabalho que na Polônia era feito pelo grupo do Grotowski. O trabalho chamava-se Estudo para Hamlet e a colocação dele naquele texto dizia assim: “Eu tentei trabalhar como se aquele fantasma fosse aquele grande símbolo do soldado desconhecido. O soldado desconhecido que vem para acordar o Hamlet que somos todos nós.” Quando eu vi esta frase escrita, eu pensei: “Eu preciso encontrar o equivalente meu.” E aí eu poderia, por uma questão de analogia barata, num primeiro momento... (CACÁ É INTERROMPIDO POR UM AMIGO E DEPOIS RETOMA A ENTREVISTA) Wlad – Sim, tu falaste que estavas lendo... Cacá -...procurando este equivalente que, a princípio poderia ser, como foi logo de cara, o equivalente ao análogo literal. Quem seria nosso soldado desconhecido? Aí me veio tudo na cabeça: o Magalhães Barata,... Não, mas por que o Magalhães Barata? Aí se começa a estudar o Magalhães Barata, quem era Magalhães Barata, um interventor? Como abarcar, né? Depois eu fui estudando mais e vi que, na realidade, o herói desconhecido que o Grotowski trabalhava seria talvez o Fortimbrás, que chegaria e assumiria. Porque o personagem Fortimbrás no espetáculo (se eu pegasse outra estrada, que não fosse a estrada


122 do acordar, não fosse da rede, fosse de um outro tipo de material) talvez eu pudesse trabalhar sobre essa coisa do inimigo que ronda, que ronda, que ronda e que no final, como não temos poder, assume o poder, visto que a casa está sem chefe. Que seria o equivalente de, sei lá, talvez do americano que fica rondando e no final toma conta disso daqui. Sabe... eu vou.. eu vou...Mas a figura do americano não seria algo óbvio demais? E começou uma série de coisas assim. Aí eu falei: “Bom, tem que ser uma coisa que nos represente. O que nos representa? Se nós juntássemos todos, o que nos retrataria? Nos retrataria a bandeira, porém a bandeira não é desconhecida. A bandeira é conhecida. O que desconhecido? É o brasão. Porque o brasão é antigo. Quando a gente se dá conta, a gente diz:” Meu Deus, o brasão é diferente da bandeira!”. Tá entendendo? Então o brasão é uma coisa que existe, mas que você não se dá conta dele, do que ele significa, quão dourado ele é, quão luxuoso, quão... Então eu decidi uma coisa: vai ser ele. Agora, como ele entra? Aí soma tudo: a rede, o mosquiteiro, a imagem dele; ele é presente, mas ele não é presente. Eu vejo, mas eu não enxergo. Ele está sobre tudo, mas ele não está e, de repente, ele é uma bandeira de novo Além de brasão, ele é a bandeira que cobre os nossos mortos. Quer dizer, segue uma lógica, mas não é uma coisa que eu posso dizer: “ok, isso me leva”. Não, leva um período que... Eu sei lá! Então, precisa ter sempre uma coisa que é além do espetáculo, que toca uma espécie de inconsciente coletivo e que no final te acorda. Wlad – É impressionante o que causou e ainda vai causar em algumas pessoas que vão sentar aqui (REFERINDO-SE À PLATÉIA). Cacá – Eu preciso fazer com que ele esteja de cara e que tome um susto ; depois você o esconde... E depois, quando você o revelar, ele ganha um outro valor. Você diz: “gente, agora ele é, além do brasão, a bandeira”.Eles são heróis, mas heróis de quê ? Sabe, então tem essa série de questões. Por outro lado, se você for analisar a dramaturgia do Shakespeare, enquanto estranhamente uma tragédia, onde você não tem herói no fim, você tem quase uma espécie de... Quando eu te falo do herói, não tem aquela coisa da catarse no final da tragédia, porque morrem todos e aparece um Fortimbrás, que nem apareceu nunca, e diz assim: “Tudo é meu.” Ok, carrega tudo que é corpo, e agora a vida é outra. Você fica meio que frustrado com a catarse desta tragédia. Como eu não tenho Fortimbrás, eu preciso de uma coisa que te seja... Como? Perdemos todos? É essa sensação do perdemos todos. O que ficou? Ficou um jovem olhando o resultado da carnificina. Quer dizer, acho que será isso hoje em dia, mas eu ainda não sei quando a coisa realmente se materializar, ta entendendo? Tá nesse momento, eu gostaria que fosse nessa direção, mas eu não posso estuprar para que seja uma coisa que está na minha cabeça. Não sei com que material aparece tudo isso.

Wlad – E tu também deves dar tempo para que as coisas apareçam... Cacá – Sim. E é o tipo de coisa que quanto menos se toca melhor é. Então, eu deixo esse negócio lá. Penso como se... Não está aí. Tá entendendo? .E tem alguns momentos em que ele tem que entrar como uma coisa que fala escondido, depois ele ganha um primeiro plano. Como eu faço para ele ser fundo e frente? Como eu faço ele ser frente? Não agressiva, frente delicada, sabe? Como trabalhar as várias formas desse material? Porque eu não posso deixar de ver que ele é um material como outro qualquer do espetáculo. Não é um material


123 surpresa, diferente do Toda a Minha Vida por Ti, como aquela carta reservada para que eles tomem um... Como um golpe! Ao inverso, eu já começo com ele. Agora, como eu vou ter inteligência de manipulá-lo, fazê-lo falar de diversos modos e, no final, ele diga uma grande frase. Objeto de reflexão ou de indignação, ou sei lá de que. Quer dizer, é como se eu tivesse na minha frente uma seqüência de... espalhada, uma quantidade de material que eu pudesse coordenar e dizer coisas, sabe? Usando palavras soltas que juntas dizem tal coisa, separadas não dizem muito, mas só uma com outra podem dizer também. Neste sentido, produção de material é fundamental, de qualquer natureza. Se o único material de trabalho é ator e o texto escrito num papel, sobra muito pouco pra você estimular-se, a não ser que você tenha uma idéia genial em casa, onde essa idéia todo mundo fale só aquela idéia, na encenação, digamos assim, no grande encenador. E funciona, o teatro tá cheio de gente de gente assim. Mas eu não tenho a competência de dizer desse modo. Eu me sinto, mas eu não queria, talvez por essa coisa de gostar de juntar pedaços e... Talvez seja isso, não sei se seja isso, mas eu gosto assim. É... o onde sentar que eu não achava... Quando eu encontrei os bancos, eu fiquei enlouquecido... É um terreiro, uma igreja?... Wlad – Sobre os bancos, tu falaste assim: “Aqui nós não precisamos de diretor de arte”. O tempo foi o diretor de arte. Tu puxas muito pra cena, o valor que os objetos tem. Tanto que tu pedes pra cada ator um objeto, que ele traga um objeto, sei lá porque motivo, mas que ele traga com esse valor. Cacá – Tem que ter um valor. O valor do objeto pessoal, o valor do objeto pela pesquisa que teve o camarada para encontrar aquilo ali. Ao manipular aquilo já tem uma história, atrás já tem alguma coisa, não é alguma coisa que alguém fez simplesmente e colocou aqui. É difícil, por exemplo, a coroa que está substituindo aquela coroa, é o que precisa passar por aquilo. Mas ele já tem a coroa na cabeça, tá entendendo? Eles já estão com a coroa. Só que aquela era muito frágil, passa pra essa aqui pra ser um pouco melhor. Agora eles precisam de um tempo pra isso. Como pegar aquilo eles ainda não sabem... Como viver com aquilo, como aquilo ser da parte, do corpo... Como um óculos, que a princípio é estranho, pouco a pouco ele já é. Quando você muda o óculos você fala: “Ai, meu Deus do céu!” Como um anel novo no teu dedo, você diz: “Gente, e agora, como é? Parece que tá pesando dez quilos, estranho”. Pouco a pouco ele vai virando, vira parte integrante. Tudo tem que ser dessa natureza. Não pode chegar horas antes , nem dois dias antes, não tem tempo hábil pra nada, vira...não vira da casa, vira... sei lá, um bem. Quer dizer pro modo como eu vejo, não quer dizer que não funcione de outro modo, pelo amor de Deus! Este modo de fazer não anula nem um outro. Wlad - Tá pendurado umas ratoeiras, não é? E não é qualquer objeto, é um objeto ali que tem um negócio, tem um sentido aí. Cacá – Não é nem pra ser diferente nem pra ser nada... Tem uma coisa que corrói. E aí essa palavra ela serve de motor também. Serve de gasolina, serve de gasolina pro motor caminhar. Dentro desse palácio se movem pessoas às escondidas, como ratos que vão roendo a estrutura do fundo. E então eu preciso desse objeto, aparece. Wlad – Essa estrutura é tipo assim, quando a gente se dá conta de uma caixa que tava ali no canto, levanta é ta tudo...


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Cacá – Sim. Apodrecido, devorado. Então, uma grande ratoeira. O cenário é uma grande ratoeira. Mas o meu trabalho com eles é de armar ratoeiras para capturar esses animais dentro do processo de trabalho. Então a ratoeira ela precisa estar sobre. Ela. não está funcionando, entendeu? Porque se ela estivesse funcionando os atores iriam escapar das ratoeiras. Uma outra coisa: quando eu pensei na história da ratoeira, que eu propus à Lúcia (Lúcia Chedieck) a ratoeira, eu pensei que o cenário poderia ser cheio de ratoeiras prontas. E os atores só se moverem, sem... Mas ratoeiras de verdade. Como escapar delas? Vamos fazer tudo sem ser pego. Porque é um estado, te provoca um estado de atenção, te provoca um comportamento físico. Não é mental, está ali, é perigosa sim. Wlad – Dói. Cacá - Dói. Você tem que escapar. Está ai armada. Não está teatralmente. Depois eu poderia recolher. Tiro. O que fica? Se elas não estão, elas continuam estando, você já colheu material com elas. Que não vem de uma reflexão e blablablá e, então, daí... Nós vamos imaginar... Fazer de conta que... Não. Se colocaram em situação de fato. Wlad – É...Tu és incansável pra fazer com que o ator sinta no corpo dele todas essas coisas, não é? Cacá – Sim. Porque é vivo. Só assim é vivo. Só assim é. Não é que é real; Só assim é matéria, é concreto, é aquilo. Você pode depois manipular de forma que isso torne-se artístico. Ou seja, como você, tendo essa experiência ou esse conhecimento, dominando isso, você consegue fazer com que isso tudo pareça que é... (fita interrompida) . (continuação com início cortado)... daquela coisa que você conhece, que a natureza te fez conhecer. Então, eu estudo para ser o artifício, que pra mim é a arte. É a arte pra mim.

Wlad – Que é a imagem das flores? Cacá – Que é a imagem das flores... da coisa... da margarida. Observa. Vê quanto tempo dura se for verdadeira. Em quanto tempo ela se esvazia de verdade. Agora, como a partir da verdade eu crio uma estrutura artificial tão perfeita, que ela é quase a verdade, E aí ela passa a ser duradoura, porque ela é artificial baseada..., tendo como referência... detalhadíssima. E eu acredito. Claro que nem tudo que é de plástico eu acredito que parece que é verdade E aí, entra uma questão critério, uma questão bom gosto.. e isso também se tem ou não se tem. Ou se aprende ou se tem, se depura. Falando assim, pode parecer complicado, muita coisa. Mas é muito prazeroso. Antes de mais nada é muito estimulante. Wlad – Porque é uma prática que tem um pensamento por trás, não é Cacá? Tem um pensamento quando tu dizes: “Eu quero... eu poderia fazer de outro jeito... mas quando eu posso fazer desse jeito...”.


125 Cacá – Mas mais do que pensamento, entendeu? A princípio podem ser pensamentos, mas pouco a pouco tornam-se leis. Que é diferente de um pensamento. São leis. São regras para que o jogo aconteça. Se você não as cumpre, você não tá jogando este jogo, você está jogando um outro jogo. Wlad – Deixa eu ver se entendi. Por exemplo, falar contigo mesmo, Cacá, onde tu estiveres nesse planeta, falar contigo mesmo, com essa coisa que ta dentro de ti, é uma lei pra ti? Cacá – Sim, é Lei. É regra de comportamento. Mas não é simplesmente para comportar-me socialmente. Aí entra na questão da ética. Existem estes critérios que sempre devem ser respeitados para que você possa ... Wlad – Mas é uma coisa de ti contigo mesmo? Cacá – Sim, mas isso é básico. É como uma moral. Não que eu seja moralista. É uma regra. São leis e você tem que respeitar. Sob o risco de você pagar um preço muito caro por não respeitá-las, por tê-las violado. E o preço muito caro não é o fracasso. O preço muito caro é o remorso. Não tem como pagar. Fica uma coisa que você diz assim: “Agora...”. E o remorso não é uma coisa que você... Não, não... uma sensação. Não. É muito concreto. Atua fisicamente, emocionalmente, altera toda a tua estrutura. Wlad – Te adoece, não é? Cacá – O teu corpo inteiro fica alterado. E você fala sim... bom... É como uma falha trágica, entendeu? Provoca efeitos terríveis. Evidentemente que outros teatros existem, outros comportamentos em outros teatros, nós estamos falando deste especificamente, deste modo. Que são leis e regras, e outros também têm suas leis e regras e talvez essas leis não se adequem a outra natureza de se fazer teatro, pelo amor de Deus! O importante é que aconteça alguma coisa com essas regras, que aconteça o fenômeno entre quem faz e quem assiste, que ali aconteça alguma coisa. Nessa relação de um com o outro. Do que está sendo visto e do que vê. E ali, homem diante do homem, acontece alguma coisa. Ou uma canção de ninar pra que eles saiam pra casa mais adormentados ainda por um discurso adormentador ou..., Enfim, não interessa a natureza do que é feito, mas que aconteça alguma coisa. Eu talvez, as vezes opte por um remédio um pouco mais amarguinho, tomo uma água depois e passa e tirei o gosto, pronto. É assim. É, tem que bastante ser cruel, percebes da crueldade? Não é uma crueldade no sentido da crueldadezinha. É cruel porque tem que ser assim. Impiedoso. É isto. Bom, mas não isso quando da minha relação para com os outros, antes de mais nada para comigo, porque... se não, não dá. E isso não quer dizer que seja sempre. Eu preciso todo dia me acordar e dizer assim: “Eu preciso estar acordado”. Porque a vida te embala. Por isso que eu prefiro muitas vezes o sol à lua. A lua te adormece, é um horror. Ela te devora. O sol te queima. Do sol você tem que se proteger, você está acordado. Se você come muito o sol também te adormece com aquele calor: “Ai, gente me arrasou, cai, pronto. Dormi”. Mas a maioria das vezes você tem que tá ( ) se eu não me proteger. Te provoca uma reação. Te alerta. A lua você admira, ela te embala, ela te encanta, é dos poetas, e... Ai, eu não!


126 Wlad – Essa imagem tem duas palavras que eu estou ouvindo os atores falarem. Da tentativa deles de estar, de ouvir isso, de ficar de prontidão, que é atenção e sensibilidade, alguns falam no lugar de sensibilidade, inteligência. E tudo o que tu tens feito esses dias parece que caminha pra isso. Atenção que é diferente de tensão. E eu tenho visto isso. Se o ator não tiver...e recuperar tudo que ele vem fazendo nesses dias, não esquecer de, absolutamente, colocar no jogo, ele corre o risco aí. Cacá – Corre o risco, antes de mais nada, de provocar acidente com o outro, com o trabalho e pior de tudo, consigo. Porque o trabalho vai. O trabalho segue. Se você não está atento, ele passa e você diz, no final o ator pode até dizer: “Mas eu não fiz nada, não me aproveitou...” Não. Só é feito com o que vem. Se você não traz, ninguém te dá nada. É um paradoxo. Mas eu não posso ser paternal. Em alguns momentos, com determinadas pessoas, em algumas situações você faz uma espécie de um idiotismo enquanto comportamento, você trabalha, mas é porque você está armando na realidade uma outra armadilha para capturar alguma outra coisa, entendeu? Então são estratégias do caçador. Porque, na realidade, ele vai ter que fazer aquilo. Caçar. Wlad – Eu tenho construído esses dias pra ti, de pescador, por causa dessas histórias de rei. Porque é impressionante te assistir trabalhando. Pescar, sabe? Eu vejo quando... E tu me falas muita coisa, olha: eu to vendo aqui, não tenho que me afobar, não tenho que... devagar, sabe? Aquele pescador paciente, mas que ta pensando em tudo. Cacá – Calma e muita tranqüilidade. Aparentar sempre que está tudo sob controle. Regra número um. A pior coisa é você entrar num barco onde o comandante diz: “Não tenho idéia, mas vamos tentar”. Senão você pula imediatamente. E chegar sempre como se... está tudo pronto. Depois que eles acreditam você arma uma pra eles. Aí você: “Ah isto junto com aquilo, você guarda pra mim?” Você tem que deixar que eles guardem e arquivar porque se eles esquecerem, você sabe. Então eu estava... Ontem eu rasguei o meu caderno de anotação. Ontem eu rasguei porque aquele ali já havia e passei tudo o que interessava ainda para o outro. Isso é uma loucura. Se eu tivesse te mostrado... é uma...coisa muito insana. Me esqueci de te mostrar. Wlad – Mas tens que guardar essas coisas. Cacá – Henrique, aquilo conta para não esquecer que a girada feita na Ana Unger no dia tatatatá... De Zê, me lembra que ela não pode ter a parte superior da cabeça achatada porque senão ela diminui, tem que ter um volume que cobre o corte de cabelo. Um, um tipo de coisa que você se diz: “Ah isso é bom para o resultado”. Como se fosse, pra que no final você... Tem coisas que serão capturadas para o detalhe final, tem coisas que são da estrutura, tem que coisas que são... É um inferno. Apaixonante. Apaixonante. Totalmente diferente de quando eu sou um ator. Como ator é muito menos divertido, está entendendo? É muito menos divertido, porque muitas das vezes alguns trabalhos que eu faço dependendo da situação, eu tenho que passar muito tempo do trabalho dizendo assim: “Não, mas aqui não é assim, eu não posso. Só tenho isso e isto. O que eu posso fazer só com isso e isto?” Aí eu começo a achar tudo pobre, porque eu gostaria de um pouco mais bábábá... então eu posso... sabe? Me decepciona... não com quem eu estou... nem...não. Eu


127 me decepciono porque o trabalho, pra mim... eu poderia até talvez o ator posso mas... sabe? É horrível falar isso mas não é uma coisa que eu me sinta melhor do que a, b ou c, não é isso, não tem essa... não é por aí que parte. Wlad – Peraí, deixa eu te perguntar: tu sofres? Cacá – Muito. Muito, muito como ator. Muito como ator eu sofro. Muito, porque eu sempre me pergunto: “Será que a pessoa que está na minha frente está enxergando o que realmente eu estou fazendo? O que será que ela está vendo, daquilo que eu estou fazendo?” E eu não posso falar nada porque eu ali estou a serviço de uma outra coisa, onde eu preciso entender, antes de mais nada, quais são as regras desse jogo. Então eu tenho que jogar deste modo. Então, é uma maluquice, porque às vezes...Uma vez eu fiz um trabalho com um determinado diretor e eu me vi, uma vez, numa noite de absoluto desespero. Absoluto desespero. Que eu dizia: “Gente..., mas poderia ser assim, poderia assim poderia ser assim, Eu tô fazendo um trabalho assim dentro dessa estrutura x”. E eu me dei conta que eu havia feito dentro da minha cabeça, quatro possibilidades de dirigir aquele trabalho. E eu precisava me ater, tão somente a um modo de fazer parte da direção de alguém. Aí eu percebi que eu estava sofrendo muito. E essa não era a boa estratégia. Porque a boa estratégia era ver quanto, de quantos modos pode ser feito o mesmo trabalho. Ou um trabalho sobre... uma cadeira. Como um fulano faria uma cadeira e como eu faria uma cadeira? Mas aí não vai um julgamento de quem faria melhor, ou eu faço melhor ou ele faz melhor, não! É o quanto, sabe, é o quanto muitas vezes os diretores que trabalham conosco, (e eu me coloco agora nesse momento)...Como ator não... Não dão espaço para que realmente as pessoas se falem além dessa coisa considerada papel, personagem. Entendeu? O quanto muitas vezes os diretores que nos dirigem não trabalham com a coisa produtiva que um ator possa dar. Além do fato de ter uma bela presença, uma bela voz, ter um certo talento, e funcionar com um certo nome ou... Sabe? Que esses critérios vêm muito na frente de... uma coisa que é assim, a disponibilidade abertura da imaginação criativa de uma determinada pessoa. Entendeu? Porque antes de chegar nisso, que é quase muitas vezes o último plano, eu tenho que atender o biótipo, o nome, o talento que eu acredito que tenha, a bela voz a presença e aí vai uma série de outras coisas que... Então, nesse sentido, muitas vezes eu fico na posição de ator decepcionado, tá entendendo? E ai eu falo: “Bom ficar lá fora é melhor pra mim”. Mas é melhor, porque eu me divirto em parte, por outro lado, é uma exaustão. É uma exaustão onde...Agora eu preciso dar uma relaxada e não pensar em nada. Eu me via a quatro dias atrás, da quinta pra sexta feira, um dia antes da virada até duas horas da manhã... Tu não ficaste na virada, não? Wlad – Não. No sábado, saí dez horas. Cacá – Na virada de quinta pra sexta, eu me vi (e eu durmo muito pouco nesse período de direção, eu durmo pouquíssimo), eu me vi cinco e meia da manhã, com cinzeiro cheio, dizendo: “Vai amanhecer e eu não dormi. Eu precisaria dar uma dormida. Mas como é que eu dormir agora?” Eu ainda precisaria pensar de novo se aquela frase é a certa, porque tinha uma frase lá que tava me encanando no texto, eu precisaria resolver aquela frase. Ai, eu me vi tomando um calmante. Então agora eu vou dormir. Tomei um banho e me vi dormindo. Tomei um susto quando acordei. Eu disse: “Gente, perdi o horário!” Eram dez pras sete.


128 Wlad – Não dormiste nada. Cacá – Eu disse: “Dez pras sete... Peraí, deixa eu fazer as contas...” (risos) Aí comecei a fazer as contas, “Égua mas eu não dormi nada... Não mas até que valeu, estou bem melhor agora”, entendeu? Sentei e fiquei. Entendeu? Aí tem essa estafa mas ela nem se manifesta tanto, porque ela não tem espaço porque ela não tem muita coisa pra fazer (risadas). Eu acho que ela não tem espaço. Porque não sobra espaço pra ela. “Ah, minha senhora, agora a senhora me desculpa, mas a senhora não vai aparecer”. Wlad – “Saia”. Cacá – Foi muito engraçado. E nessa outra noite fiquei até duas e meia da manhã. Porque, na realidade, eu não queria adormecer, porque se eu adormecesse eu iria demorar muito tempo pra acordar de novo pra virada, que eu ia ter. Eu precisaria estar muito ligado pra virada, que seria uma noite importante pra mim, precisava produzir um material difícil. E eu teria um trabalho com o Alisson, onde eu precisaria um tipo de chave que fosse usada com ele, não contaminasse o Claudinho, mas que servisse pro Claudinho. Então, o que falar, como dizer... Será que trabalhar com os dois, mas em separado, sabe? Ou seja, como criar armadilha? A cena não seria difícil de fazê-la porque ela já estava toda indicada, tá entendendo? Mas como fazer a armadilha para a condução dessa coisa que é a manifestação da interpretação? Porque enquanto desenho, essa coisa do trânsito, mas pra aqui, vai pra li, ta com a cabeça em baixo.Eu perdi a cabeça em baixo, mas ela não quer me dizer nada a essa altura do campeonato. Porque eu tenho uma outra coisa a conseguir. Wlad – Dessas coisas tu podes abrir mão a vontade, é isso? Cacá – Absolutamente, porque eu tenho outro tipo de material. Aquilo me levou pra um outro tipo de material. É mais importante a origem ou o que a origem provocou. O que a origem provocou porque a origem continua. Wlad - Tem uns momentos em que eu me pergunto aqui. Às vezes tu pára e eu sei que a tua cabeça ta a mil, e as vezes eu não sei se tu estais esperando o tempo do outro, de alguém que ta trabalhando, de alguém deles (se referindo aos atores), se tu estais adiando a tua ida, se tu ainda queres, sabe como é? Às vezes eu sinto que parece que tem... Eu digo assim mesmo: ele ainda não está lá, mas ele já está, e parece que ele só está freando aqui. É isso? Cacá – Sim. Porque tem... Tentar descobrir, tentar perceber uma parte de tudo que está atrás do que a pessoa... Que cada um está fazendo. Tentar manter um diálogo com tudo que você tem da estrutura. Tentar manter um diálogo com a dramaturgia do Sheakespeare. E tentar manter um diálogo com a platéia inexistente. Wlad – E agora tu és o único que está no lugar dela? Cacá – E isso tudo antes de você tomar a decisão de dizer: “Mais pra lá!” E se isso fosse?... Por outro lado, ter a serenidade de perceber que a pessoa está em processo. Em outros, você diz assim: “Ele não está em processo não, ele está perdido neste momento, ele precisa que


129 alguém dê um copo d´água pra ele”. Um copo d´água no sentido da indicação. Eu não sei se a indicação será essa, pelo menos vamos tentar com essa, pelo menos serve pra ver o que pode acontecer com ele e com os outros. Não posso dar nada pra ele agora porque eu dei ontem e ele vai se acostumar. Então eu prefiro perder hoje pra que ele pense e amanhã... Wlad – Ele corra atrás. Cacá – Ele corra atrás. Wlad – Segundo aquela frase que tu diz: “Não sou eu que vou fazer, você vai estar lá sozinho fazendo”. Cacá – Sim. Porque senão, se eu crio aquele que resolve, eu tô fudido. Eu tô fudido.

Wlad – Funciona só agora, não é? Cacá – Ontem... Você não estava aqui domingo na minha colocação com o Alberto? O Alberto me vira... Eu precisava ser duro. O trabalho com o Alberto... Você ainda não viu o trabalho do Alberto com a Zê? Wlad – Não. Cacá – Na cena? É belíssimo o trabalho deles. Belíssimo. Nenhum problema. Fazia dois dias que ficou de fora. E já apareceu uma coisinha, umas bobagens... Apareceu. Porém, com isso tudo que ele está ameaçando, que é muito lindo, eu não posso lhe dar a segurança de que é isso. Eu tenho que tirar essa segurança ou essa idéia de que ele achou uma chave. Pra provocar nele especificamente (que é uma pessoa altamente inteligente, altamente esperto), um outro tipo de preocupação, para que ele permaneça direto. Wlad – Que não tire daqui, não é? E coloque em outro lugar. Cacá – E a tranqüilidade. Eu não posso dar tranqüilidade pra ele agora. Ou seja, pro Allisson eu preciso dar tranqüilidade diariamente. Quando ele relaxa eu tenho que cercá-lo de entendimentos, de sentimentos... Como a história daquele pai judeu com a criança: “Olha, é assim que sobe uma árvore, vai, eu te seguro aqui... viu?...” Depois de cinqüenta vezes, o garotinho sobe tranqüilo a árvore, eu viro de costas e ele cai. Eu digo: “Tá vendo, você deveria ter aprendido cinqüenta vezes a cair, se eu não estivesse”. Ou seja, com o Allisson é diferente. Perto da estréia eu abandono e eles se esborracham. Agora tudo aquilo com essa pessoa. Porque cada um é um. Eu não posso trabalhar com um grupo. Com o Cláudio Rêgo, vai o motorista buscar. Trago, levo, ele chega a ser aplaudido. Mas não porque ele é uma estrela. Aquele personagem me interessa e ele estava tão distante deste lugar. E ele se afastou porque ele já sofreu tanto neste lugar que, para tornar a ser chamado ele precisa ser... Depois ele se sente bem. Aí, pronto. Wlad – Ele já vem pelas pernas dele.


130 Cacá – Ele já vem pelas pernas dele. E assim é. Esse é um. A Lúcia Chedieck, não dá pra fazer assim com a Lúcia Chedieck. A Lúcia Chedieck é uma pessoa que se você dá um estímulo, ela vai. Ela vai. Depois que ela trouxer tudo eu tenho a certeza que ela tem a paciência suficiente pra eu dizer assim: “Isso com aquilo, isso tem que ser revisto, não pode ser visto nananana...” Porque eu sei que ela tem interesse em direção, ta estendendo? Tem interesse na resolução. E eu dou espaço para isso, tá entendendo? E aí vai cada um. Que eu erro? Menina..., Apanho todo dia. Todo dia. Wlad – Senão não teria graça. Cacá – Não teria graça. Wlad – “Gente, que isso aí que apareceu, não é? Eu não estava vendo”. Cacá – Isto tudo eu não tenho idéia de como será quando eles sentarem aqui. Porém eu estou me preparando pra, aconteça o que acontecer com a presença deles aqui, aquilo ser alguma coisa. Porque eu não posso permitir que o espetáculo seja o resultado da presença deles. O espetáculo é alguma coisa e eles são alguma outra coisa. Este embate provocará uma coisa chamada teatro. Wlad – Mas tu também não sabes o que é isso, não é? Cacá – Não não sei como será esse embate. O dia a dia vai fazer com que alguma coisa entre lá, porém eu tenho que saber até quanto entra de coisa lá. Então, aí precisa cuidar. Aí aquilo passa a ser a criança: “Sobe aqui, aqui...” É um barato esse negócio de ficar de fora. Mas eu não posso fazer tanto. A grande loucura desse negócio de fazer essas experiências com direção...Porque eu não dirijo, eu não sei dirigir. Eu gosto de ficar experimentando essa sensação de ficar de fora. Porém, eu acredito que se eu ficar muito tempo fazendo isso eu corro o risco de não mais fazer isso, essas experiências. Porque eu posso começar a achar que aparece uma chave. E é péssimo. E aí vira a carreira, a chave da carreira disso. Wlad – Por causa dessa maneira de fazer? Cacá -É. Essa maneira de fazer,... o hábito de fazer sempre, tá entendendo? Eu faço pouquíssimo seminário, porque quando você faz seminário, workshop com ator, de uma semana, você já cria uma espécie de padrão de fazer, entendeu? Então, só quando realmente tem alguma coisa onde eu preciso falar determinadas coisas através de uma assim chamada encenação... Eu digo: “Ok dá pra fazer...” De alguma inquietação. Inquietação no Hamlet você sabe a quanto ela existe. A primeira manifestação do Hamlet você sabe, você estava junto. Um braço desse Hamlet você já... Com ele, não é? E... (distraído com a porta cenográfica que estava sendo experimentada no momento junto com a lâmpada também cenográfica) Ai que linda parada....Égua Nando! Humm. Égua, esse Nando tá ficando de um exibimento. (Retornando) Tu estais entendendo? É perigoso se começa a virar profissão.


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Wlad – Mas tu não tens medo, como ator? Cacá – Como ator? Não. Porque como ator eu preciso ainda escolher o que eu vou fazer agora. Por exemplo, agora eu tô nesse momento querendo voltar a encontrar o Pirandello. Porque O homem com a flor na boca é um trabalho onde, eu acredito, o Pirandello me deu muita coisa. Mas eu acredito, lendo outra coisa do Pirandello eu vou debater tanta coisa que... Como durante um período eu tava com o Calvino, agora menos. Eu queria fazer outras coisas do Calvino. Wlad – Cidades invisíveis, Seis propostas para o próximo milênio...lindo! Cacá – Você percebe? São essas coisas que tocam uma coisa ligada a questão da existência, a questão do homem, a questão do... Não é uma questão do local. Cont.(f 2) ...Passa por isso. Não é só isso. Passa para chegar, isso é do percurso, para chegar no cara, no homem, objeto de tudo porque estamos aqui, nessa coisa inquietante, afinal. Quem somos? Pra onde vamos? Por que estamos aqui? Wlad - Pra passar por ti, não é? Cacá – Eu me pergunto hoje em dia: “O que fui eu? O espermatozóide que passou. E aí, será que com toda aquela briga infernal onde eu ganhei, eu vou fazer isso comigo? Eu vou fazer isso comigo? Afinal o que eu vim fazer?” Isso não é um tipo de reflexão que me deixa estagnado, nem que me deixa perplexo. Ao contrário, me deixa motivado. Me estimula. Será possível que eu não seja capaz de alguma outra coisa que não seja fazer, fazer, fazer...? Mas talvez sentir um pouco o que é o fazer. O que é o dever? Afinal, por que isso? Quanto tempo dura de fato o que é estar aqui? Será que eu estou mesmo fazendo isso? Quando eu estou fazendo isso será que era isso o que eu deveria estar fazendo? Eu não sei... quer dizer... Eu não sei se esse é o caminho certo do viver, mas... eu sou esse negócio hoje em dia. Sei lá. E se eu sou isso, é isso. Eu tenho que me mover e eu tenho que respeitar isso em tudo. Nas relações, no trabalho, nas relações de trabalho, nas relações de relações , nas relações de.. de...Quando acorda, quando dorme... É um... Tem um livro que eu estava lendo sobre essa coisa da parábola... Sobre essa coisa quando você lê o Velho Testamento...Você se diz assim: “Mas gente, se isso esta querendo dizer isso, por que será que essas pessoas quando escreveram isso, estão escrevendo isso para dizer outra coisa? Então, num texto escrito, o que está escrito é só o que está escrito? Quando eu vejo esse Velho Testamento aqui, um espetáculo, o que ele está querendo dizer além do que ele tá dizendo? O que será que um ator, se ele é...digamos que seja a Zê Charone, o que é que ela está querendo dizer quando ela está dizendo isso, quando ela está fazendo isso? Ou seja, é como se você se colocasse o tempo inteiro, é como se você fosse espião, investigador querendo descobrir o que está atrás, e em algum outro momento o que já está tão evidente. Por que eu não vi logo de cara, por que eu não percebi logo? Sabe? E isto te provoca um estado de estar. E ai você passa a ser este estado de absoluta atenção cênica. (Para alguém) Vê um café pra nós? (Voltando-se à Wlad) Sabe? Mas isso é muito bom.


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Wlad – Muito. Mas tu passas isso pra gente, sabes? Como alguém que sente muito, muito prazer, muito vivo. Acho que é por isso que tu sentes a necessidade de dormir tão pouco. Neste momento. Porque o sono é um alimento, não é? Mas tu estais sendo alimentado por outros canais. Não tem aquela louca que diz que se alimenta só com raio de sol, de luz, né? Sabe, talvez seja isso. Cacá - Não sei, mas dá uma aflição que eu não sei explicar. “Nossa, eu dormi tanto oito horas, credo” (Risos) Hoje eu falei a mesma coisa pra menina, pra Martha. Wlad – E se tu te sentes desabando de cansaço, tu fazes alguma coisa que o corpo diga outra coisa. Cacá – Pelo amor de Deus! Eu não posso. Eu tenho que chegar cedo. Hoje é... (Chamando Sueli, a contra-regra do grupo) vem cá um pouquinho colega, é... “Seu Antônio, qual foi o texto que hoje você me disse que a dona Mendara disse, quando ela veio entrando nesse teatro? Sueli - (alguma coisa)... Meu Deus esse homem não dorme. (risos). Wlad – Ele não saiu daqui, não é? Sueli – É. Pra ela, ela chega ele tá, ela sai ele continua aqui. Ele não dorme. Wlad – Ela não sabe que ele não dorme mesmo. Sueli – Muito engraçado. Cacá – Hilário, não é? Eu morri de rir quando ela me contou isso. Sueli – Esqueci do detalhe: (Eles falam um pouco sobre o assunto, pontuando um hábito que Cacá tem por leite com pelotas (bolinhas) e que ele leva para os ensaios.) Cacá – Olha, você pára de bocejar na minha frente. Como é que ficou? Tu gostaste da ceninha que começou ontem? Wlad – É a cena que tem um movimento, tem a cara? (Pausa) Wlad - Uma coisa que eu tava observando hoje: tu falas todas as sacações ultimamente, é como seu tu tivesses uma chave. Tu sempre procuras a contra-cena daquela situação, não é? Por exemplo, ontem foi fantástico o que hoje colocaram, não é? Que na cena da rainha onde tu tem violência, violência, tu: “vamos remar contra essa maré, vamos... com afago, com afeto”. E aqui tu estás trabalhando a mesma coisa. Isso ta na tua cabeça sempre?É olhar a cena e dizer: “Não, uma hora eu conduzo em direção ao que pede, a uma lógica... uma hora não, uma hora eu tenho que fazer com que vire”. Não é? Pegando essa chave da contra-cena?


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Cacá – Porque... (se referindo a alguém sobre um elemento cenográfico.) Pode. Não tem o menor problema meu amor. Ela é escura porque ela não é clara. (retornando) È... hunnnnnn... Essa pergunta, na realidade, esta condicional que sempre tem que perseguir qualquer trabalho, da direção, do cenário, do figurino, do ator, de tudo. E aí eu posso explicar só uma coisa, te exemplificar de um modo que possa ser mais concreto: se nós analisarmos uma pessoa quando está entediada, e eu digo para um ator: Olha, a situação é de tédio”. Ele esta entediado. O tédio, se você analisa e trabalha como ator, pelo que um dicionário pode explicar ou uma situação qualquer de um livro, de uma descrição científica do tédio, este estado vazio da alma que te leva para a inatividade, te leva para a perplexidade, te leva pra... Isto é realmente o clichê da situação. Porém, se você for analisar concretamente, quando você está entediado em casa, sozinho, por exemplo, durante um período você fica parado, olhando perdido para uma tomada elétrica como se o mundo inteiro tivesse naquela tomada, ou perdido num objeto. Sim. Depois de um tempo você levanta e vai a geladeira, abre a geladeira, porém nada na geladeira te interessa, talvez uma coisa ou outra você belisque, come até, mas não te satisfaz, você volta sempre. Abre a agenda pra ligar pra alguém, abre a janela, olha a rua, é uma porcaria..., Nada. Talvez então fazer uma comida. Não, sentar ou tentar dormir. Dorme, deita, tenta a televisão, não tem um programa que te agrade. Tudo é uma porcaria. Ai você fala: “Se eu tomar um banho talvez eu melhore”. Você vai toma um banho. Ai você fala: “Talvez eu vá ao shopping, faça um pouco de compras... não, não é melhor ficar em casa, eu já tomei banho”. Então você deita e vira, e vira, e vira, e vira... Então na realidade é o contrário. É contra. Então, uma das condições de trabalho que eu me ponho sempre, a partir de um determinado momento do trabalho para os atores: e se não fosse? Então por um momento eu sou até o que normalmente é tido como se fosse uma cena daquela natureza. Porém, ir contra a cena, neste sentido, é ressaltar a cena. Porque ela provoca nos atores e nos espectadores um estado de atenção e reflexão. Mas é possível. Mas, como pode? Mas, meu Deus que mundo! Já tira, então, o espectador daquele sono ou daquele embalo e coloca o expectador e o ator ativo. Como eu encontro. Wlad – É! Ele tira daqui do expectador e: “Ah, já sei onde vai parar!” Surpreende? Cacá – Sim. Provoca esse estado de surpresa, mas não parte de provocar a surpresa como efeito, mas precisamente porque é assim. Na vida a gente é assim. A vida é assim. O clichê da vida não é assim O clichê da situação não é assim. Então trabalhar contra. E não é estratégia. Wlad – Tu falas que desse raciocínio precisaria sair todos os elementos, não é? Cacá – Todos os elementos. Todos. Todos. Se você raciocinar esse caneco é feito pra isso. E se ele não fosse só feito pra isso? Ele pode ser também... e se para com o objeto para com o figurino, para com o cenário, para com a palavra, para o comportamento esperado na definição de um personagem. Para a assim chamada dinâmica. Quer dizer, o espetáculo, eu ainda não sei qual a dinâmica dele, mas não é que eu vou querer depois de um tempo criar um ritmo para o espetáculo. Eu vou querer depois de um tempo, perceber o material que eu tenho e criar um gráfico, onde eu começo a dizer: “Ok, aqui eu subo dramaticamente, aqui eu vou contra! Aqui eu começo uma curva de tensão dramática, aqui eu tenho que abrir o


134 espetáculo.”. Ou seja, este gráfico é um gráfico do movimento interno das ações, do movimento da luz, do movimento dramático e do movimento do espectador, entende? Mas isso é mais pra frente, não é uma coisa que me preocupe agora. Eu preciso ver as peças depois. As peças, no caso, os blocos, os nós. E ver que espaço entre um nó e outro, como é dado esse espaço, tem espaço? A música entra mesmo? O personagem da música fala onde? Com? Wlad – Tu falaste ainda agora... Tu usaste algum termo, não foi contra-cena. Tipo assim, a desmontagem ela ganha sentido... Não sei se a palavra certa, mas tem um sentido em tudo? Cacá – Como é que eu faço pra isso sair sem que seja uma operação de funcionabilidade? Quem operaria isso? E aí, no Toda a minha vida por ti é a mesma coisa. Quem? Com que caráter? Que função cumpre? Entendeu? É ação, não pode ser operação. É operação, porém, tem que ter uma ação que justifique. Eu ainda não sei a situação de montar. Eu preciso montar.

Wlad – Ah, o que vem antes, não é? Cacá – Montar a armadilha e depois desfazer a armadilha. Wlad – É, e me parece uma armadilha. É uma armadilha Cacá – A armadilha da morte do fulano. A armadilha do encontro da mãe com fulano, da partida do Hamlet. E aqui, se você for olhar, nós temos em uma situação de cena, sei lá quanto tempo vai durar essa cena, eu tenho o encontro, a morte, o inicio dos coveiros, o inicio da loucura da Ofélia e a partida do Hamlet. Eu tenho cinco informações que na literatura eu não sei quanto tempo isso demora, quantas páginas. Wlad – Mas já tá tudo aí, né? Impressionante. Muito lindo. Cacá – Eu gosto de brincar disso. Wlad – Quando terminou, que tá no palco vazio, não é? Cacá – Voltou ao lugar. Wlad – Gente! Muito lindo. Parece uma dança. Cacá – Mas eu coloquei isso no roteiro: Balé das Portas. Wlad – É, tu pedes a música das portas nesse momento. É um balé mesmo. Cacá - Eu sei que as portas quando saem elas tem o caráter do fogo, eu não sei que caráter de chegada elas tem. Quem traz as portas? , Porque traz? Quem monta isso?


135 Wlad – Quem tranca a rainha, não é? Ou quem prepara essa armadilha? Talvez prepare pro Hamlet? Cacá – Talvez seja o próprio Polônio que crias a situação e ele é a vítima. Mas tem tudo isso. Com quem é? Como seria? Wlad – Na minha cabeça o rei fecha a rainha aí dentro, não é? Com medo dessa relação louca da mãe e filho. Tanta coisa, não é? Cacá – E pode ser que essa cena venha a ser preparada durante o espetáculo. Como um objeto que fica no meio.... Wlad – É uma coisa que tu falaste pros atores que serve pra ti agora pra direção, que é quantificar. Enche de coisas, prepara mil possibilidades, depois tu vais decidindo. Cacá – Pra mim é assim. Wlad – Que aí tu tem uma quantidade e tem mais opções até tu selecionar. Cacá – É aquela coisa dos ingredientes que eu preciso ter na despensa pra descobrir que bolo que é possível de ser feito. Usar quais? Todos? Uma parte? Não, tem ingrediente que não pode entrar, senão estraga o bolo. Talvez eu venha precisar de um outro que eu não tenho. Wlad – É. Igual quando a gente vai fazer uma comida, não é? Se usar todos os temperos fica um caos. Cacá – Nós não estamos fazendo outra coisa senão um alimento. Que tem que ficar no ponto que a gente possa se alimentar dele um tempão. Wlad – Obrigada, meu amor. Cacá – Show!

ANEXO 3: Entrevista com Alberto Silva em 13 de julho de 2002 Wlad – Primeiro, fala sobre o que foi solicitado. Alberto –Como é que eu cheguei no processo? Eu trabalhei duas vezes com o Cacá e tinha muita vontade de trabalhar outra, e eu falei isso um dia pro Claudinho. Eu disse pra ele, uma hora que a gente estava conversando sobre outra coisa, eu falei: “Pôxa, eu queria participar desse processo.” Eu não sei se isso chegou ao ouvido do Cacá, ou não, mas o Cacá um dia desse me deu a entender que sim, porque ele disse pra mim : “Foi você que


136 pediu pra participar disso.”E eu fui talvez a última pessoa do elenco, antes do Alison, que entrou agora, a ser chamada, porque eu recebi um telefonema cinco horas da tarde e a primeira reunião era seis e meia, no IAP. E o Cláudio me contou uma história, que eu estava numa outra lista de pessoas possíveis, mas ainda não tinha sido chamado, como outras pessoas que já tinham o texto há um tempo, inclusive. Aí, fui para aquele encontro. A primeira sensação foi a descoberta de quem seriam meus parceiros. E aí eu tive surpresas incríveis, como a presença do Henrique, por exemplo. Uma pessoa que eu tenho uma admiração desde criança. E que eu já tinha, uma vez até muito timidamente convidado pra trabalhar comigo, ou eu com ele, e aí de repente apareceu. A Nilza, outra vez. O Cláudio Barros e todos os outros. Aí, o primeiro ponto que eu anotei aqui: o Cacá, o que ele fez no primeiro dia, além de apresentar as pessoas e a equipe técnica estava completa, até o operador de luz estava lá. Ele colocou alguns pontos, alguns pilares que ele já tinha definido no estudo anterior. O centro, no meu entendimento, desse pilar que ele colocou, foi que Hamlet, do Shakespeare, que era nosso pré-texto para estar ali, partia de uma rede de intrigas. Aí depois ele fez uma decupagem desse termo e perguntou pra nós: “O que é material, em rede de intrigas?” Aí nós descobrimos que era a rede. E rede começou a ser uma palavra que se desmembrava em outros materiais como trançado, como tela, como punho, corda, amarra, essas coisas... Mosquiteiro foi surgindo depois... O “s” da rede que podia ser anzol, que podia não sei quê... e a rede como elemento da região, né? E as várias coisas que compõem a rede, que podem ser relacionadas de várias formas: as partes da rede, que depois ele vai juntar com outra coisa lá na frente, que é a parte de tecido, depois tem as costuras, depois tem as cordas, aqui tem a franja, e que essas redes em determinados momentos criam também tramas, trançados, teias. Aí essa idéia foi colocada, depois ele falou na idéia da guerra, de uma situação de guerra, colocando que a Dinamarca do Shakespeare, pra nós, tinha um sentido claro pra esse trabalho, de ser aqui. A Dinamarca é aqui. E o que a gente pode desdobrar de entendimento dessa idéia de que a Dinamarca é aqui, quando a gente fala, por exemplo, naquela situação de guerra. De um reino, de uma determinada organização, que é familiar, que é social, mas que está ameaçada de fora, e isso gera um conflito armado, mas a gente não tem uma guerra recente. Aí ele chegou em Eldorado dos Carajás e colocou que Eldorado era, numa determinada proporção, numa determinada analogia, a nossa guerra daqui. E depois até fui eu mesmo que fiz um comentário colocando já uma questão mais ampla, que quando aquilo saísse dali, que tipo de repercussão ia ter, entendeu, nas esferas do poder, e ele já chamou a atenção de que aquilo nunca devia sair do ambiente interno do trabalho sob risco de se banalizar, e que ele nem sabia se isso ia estar explícito no trabalho. Mas Eldorado de Carajás é muito forte como emblema da Dinamarca-Pará. E aí tu já viste os elementos lá no cenário, o branco e o vermelho, o brasão, enfim... Mas aí ele colocou, junto com essa idéia da guerra, de morte, a imagem de um cemitério, e que portanto, esse material de rede, cordas, e punhos e trançados, não serviria pra resolver todos problemas de cenografia, de espaço. Então ele ia criar um contraponto desse material com os caixotes, que são concretos, que têm uma outra qualidade de material, e queria trabalhar a encenação a partir desses elementos. Ele colocou isso no primeiro dia, praticamente. Colocada essa questão de como ia ser a logística de administrar a parte técnica, que ia andar com um determinado linguajar, e a parte de criação no palco, ele começou a se direcionar mais para o elenco. Aí ele colocou o seguinte: basicamente a partir da fala do Hamlet, o que é o emblema do Hamlet, no senso comum, que é a história


137 do “ser ou não ser”, o monólogo, ele começou a levantar uma questão pro grupo do que é o ser e o não ser na vida da gente. Aí ele colocou uma cartolina na parede e mostrou pra gente uma evolução do ser humano ao longo da vida, desde o nascimento até a velhice. E ele mostrava no desenho que, à medida que a gente cresce e recebe educação, e recebe uma tentativa de condução, que ele sempre diz que é feita com maior das boas intenções, com o maior amor, essa ação sobre o ser vai tirando dele uma característica que ele tem no nascimento, que é de ser, o seu corpo, a dimensão exata de seu corpo, a sua essência, a um achatamento, a um aprisionamento dessa coisa essencial que é o teu ser, aquilo que tu és, em relação ao corpo. Nessa trajetória, que passa por exemplo pela flor da juventude, tu começas a bombardear, com essa necessidade de conquistar espaço, de se descobrir, tu começas a bombardear um pouco toda essa crosta que é criada em torno de ti, do que tu não és, mas que ensinam pra ti, começam a te mostrar que tu vais precisar ser, pra poder conviver, se relacionar com as outras pessoas, com as regras sociais. Wlad – É como se ele dissesse que a gente sofre uma ação externa muito forte? Alberto.- Muito forte, que transforma uma coisa que era o corpo todo uma essência, num corpo que vai se desenvolvendo, que se torna cada vez maior, que cresce, mas essa essência, esse ser, vai ocupando uma parte cada vez menor desse ser todo. Tu começas a ser um monte de não-ser, nas tuas atitudes. Eu vou dar um exemplo do cotidiano. Vamos dizer que eu tenho uma família que é muito católica, que me batizou, e que quer que eu vá à missa. Todo domingo, quando eu vou à missa, cumprir essa obrigação com meu pai, falando a grosso modo, eu estou não sendo, porque por mim eu não estaria indo àquela missa. Porém eu vou, porque trata-se de uma situação que na vida eu tenho um compromisso, por uma teia de relações, de dependência, de tudo, de cumprir. E que ao longo do crescimento do ser humano, essa capacidade de ser, ou aquilo que ele é na essência vai ficando cada vez mais fechado, porque quando passa pra fase adulta, que adquire a dita responsabilidade sobre a estrutura da tua vida, te manter vivo, poder fazer as coisas, ter as coisas, tu aniquilas, tu aprisionas mais essa essência porque tu começas a nem ter mais aquele ímpeto da juventude de confrontar, de agredir, dizendo “Não, eu não quero isso!”. O adulto já assimila essa necessidade de não-ser, que eu relaciono com um monte de coisa que a gente chama de máscara social, aquele determinado comportamento que tu precisas ter no teu ambiente de trabalho, que tu precisas ter em tantas situações na vida, e que na verdade ali está uma pessoa, uma criatura que tu és muito maior do que aquilo, aprisionada por circunstâncias externas, que não pode revelar, talvez com toda a força, o seu ser. ... Eram umas bolas, que vão ficando cada vez maiores, como um morro que vai se alongando, e embaixo tem uma bolinha cada vez menor que é a essência. Então quando chega no fim tu és um todo enorme, com uma bolinha menor do que todas. Aí, ele disse assim: “A partir dessa discussão do que é o ser e o não-ser na vida, vamos falar no teatro e vamos discutir o que é, no caso da interpretação, da arte do ator, o que é ser e o que é não-ser. Foi essa a primeira questão, no meu entendimento, que foi colocada para os atores dessa montagem. Ele fez essa explanação de como é na vida, aí tu ficas “Onde é que eu não sou na vida?” Quando eu sou jornalista, trabalhando no Diário do Pará, eu não sou e quando eu faço Hamlet eu sou? Sabe, provoca em ti esse tipo de reflexão. Aí colocou isso pro ambiente, pro espaço da representação, da arte. Aí ele começou a falar o que seria representar, e disse


138 que na verdade existe uma série de camada de verniz que a gente recebe ao longo da nossa trajetória, da nossa carreira artística... Vem uma pessoa e diz que é isso, e passa uma camada. Vem outra e diz que é isso. Chega uma hora que tu estás tão brilhoso que tu não és mais nada, tu és só uma mistura de um monte de formas de fazer, que têm efeito, que dão certo, que tu dominas, que tu conheces, que tu usas, que tu tiras da manga...e ele acha que na verdade tem que bombardear tudo isso; que isso não é mais ser. E aí ele diz que o Grotowski, que ele nunca diz o nome, ele sempre diz “o homem que virou cinza”, que o Grotowski diz que ele não acredita mais no ator, porque ele diz que o ator é aquele que finge que é outro, e que hoje ele acredita que tu tens que ter uma capacidade de organicamente ser, e não fingir que é, e ele, o Cacá, fala do perfomer, como essa criatura que já não mais representa, que por algum outro canal, é, naquele momento, aquilo. Aí ele diz que isso passa, no plano do racional, que eu sou o preferido dele, nesse ponto do racionalismo, ele sempre me usa como exemplo, passa pela questão de que a gente, quando vai representar, no estado de representação, a gente atribui sentido antes, e representa o sentido que a coisa vai ter lá, pra quem vê. E que a gente precisa quebrar todas essas barreiras, pra conseguir, em condições ideais, racionalizando pra caralho aqui, simplesmente agir sem se preocupar com o sentido, mas com três coisas. Primeiro: o que é isso aqui, que eu vou fazer? Pegar esse banco, por exemplo: o que é isso, por que é, e como é que eu vou fazer. A partir do momento que eu me pergunto: o que é que eu tenho que fazer, é apenas carregar o banco. Então eu não tenho que atribuir a essa ação de carregar o banco, eu como ator, no momento de fazer, nenhum sentido que eu ache que isso possa ter, porque senão eu represento o sentido. E na verdade o sentido tem que ser uma consequência do que o espectador vê da minha ação real. Que eu apenas seja alguém que carrega o banco, e só. Aí ele fez um primeiro exercício pra nós de primeira armadilha. Depois que ele tinha colocado isso, ele criou um exercício onde três atores ficavam deitados no chão. A indicação era: deite no chão. Três atores limpavam com um pano esses corpos deitados no chão, e três atores carregavam esses corpos deitados no chão. Nós fizemos o exercício, e no final ele nos sentou e perguntou pra cada um assim, eu fui o primeiro a receber a pergunta: “agora me diga onde será que você era e onde você representou.” E o elenco inteiro descobriu que tinha representado o tempo inteiro, porque o que deitou achou que estava morto, porque ele tinha falado há dois dias atrás num cemitério. O que limpava achou que tal, tal...E eu que carregava –eu carreguei o Claudinhocompus um sofrimento, uma dor da perda daquela criatura que na verdade era só uma casca, uma forma oca, que eu achava que podia ter sentido aquela ação que era apenas, simplesmente carregar uma pessoa. Eu devia me ocupar somente com o modo como eu deveria erguer, da força que era preciso usar. E se eu me ocupasse só desse ato, da necessidade de erguer alguém, eu estaria sendo, e no entanto eu representei um personagem que pode ser de uma tragédia onde todo mundo morre, e corpos são carregados para um cemitério. E aí todos caíram na armadilha. Porque a que limpava não limpava o corpo, por exemplo, o Gondim deitado, podia ter um sujo aqui. Mas o ator não estava ocupado com essa ação concreta de tirar o sujo possível do pé do ator, que estava ensaiando descalço. Ninguém limpou o pé que estava todo preto. Ficou limpando qualquer parte porque estava representado: “Estou limpando um morto; será que eu estou num cemitério? Será que eu serei o coveiro na peça? E ele queria só que limpasse. Te ocupa de nesse momento concretamente limpar. Limpar é o quê? É molhar na água e tirar o preto e ver se ficou branco. Olha a sequência de raciocínio. Ser é agir concretamente.


139 Ele fala duas coisas que têm a ver com aquele negócio do corpo da essência da evolução do homem. Ele fala da consciência do corpo, que é diferente de um corpo da consciência. Ele diz que as pessoas buscam quase sempre, e ele usa o exemplo da academia, que a gente está fazendo lá, que é buscar uma consciência do corpo – porque meu corpo tem isso, porque tem músculo, porque mexe assim, articulação...quando na verdade é muito mais profundo e é o caminho que o ator deve buscar, no meu entendimento, que é buscar descobrir um corpo que é teu da tua consciência, que eu acho que é não separar, como a gente ocidentalmente faz, mente e corpo. Ou seja, é ter um corpo que é inteiro durante a vida, consciente de si, do seu lugar, da sua relação. Aí essa história do corpo e consciência me remete à questão de vida e arte, que inclusive, talvez, será que não é aí que tem um paralelo com o Artaud? Não é a maneira de como o Artaud aniquilou a sua vida, o seu corpo, e que transformou isso numa coisa bela, mas talvez que, pra conseguir essa coisa da consciência, é preciso estar trabalhando na vida inteira. É preciso que o Alberto, durante todo o seu dia, com todas as suas atividades, com o seu deslocamento na rua, tenha sempre uma outra forma ou busque sempre uma nova forma de consciência de si, do momento presente. E ele estimula isso, pedindo pra gente observar coisas, um dia contar os carros amarelos, no outro dia os azuis, mudar o trajeto, enfim, procurar quebrar com essa rotina que faz com que a gente veja o tempo inteiro o que precisa ver, mas muito pouco enxergue as coisas. Ele diz que o ator tem que ser um ser consciente o tempo inteiro de que ele está sempre procurando enxergar alguma coisa nas pessoas, no comportamento das pessoas, que é uma coisa difícil pra caramba. Como é que ele começa a trabalhar isso no Alberto? Ele começa a chamar a tenção do Alberto pro seu andar, em primeiro lugar. Que é completamente, digamos assim, dentro de um determinado padrão de equilíbrio, de comportamento, o meu andar é muito fora disso. Que é sentado na bacia, o braço fica solto, quebrado e tem um ponto de tensão que ele me fez descobrir que eu levo ou levava o meu corpo por aqui, que isso aqui quebra e o meu pé arrasta, e o braço fica solto, sem direção, e fica a mercê de uma coisa dura aqui que leva. Ele me fez ter consciência disso num exercício com a Zê, aonde ele ensinou a gente a descobrir como era o nosso andar pelo som que nosso pé faz no chão, na madeira, e disse que era coisa do homem lá que virou cinza. E a gente não escutava; quando ele chamou a atenção eu passei a escutar. E nós descobrimos que o meu pé faz tum com o calcanhar naquele andar errado. Tum..chi...tum....chi....Um calcanhar forte, que eu já sentia machucar numa oficina com o Edgar castro feriu, abriu uma bolha com trinta minutos de caminhada do Yoshi Ioda, e um arrastar do pé, que faz com que meus sapatos fiquem desgastados de um lado e que desorienta completamente a minha estrutura de equilíbrio e que se eu sou isso há trinta anos, eu preciso corrigir isso pra ter uma neutralidade mínima pra poder deformar em qualquer direção. Não vou nunca poder partir dessa deformidade. Aí ele mostrou a mesma coisa pra Zê, que é uma outra história dela que ela vai te contar, eu acho, e fez com que a partir desse dia, eu, Alberto, tivesse que passar vinte e quatro horas observando e cuidando da correção desse andar. Coisa que eu comecei a fazer, que eu tenho feito, e que durante uma semana era insuportável a dor que eu senti em determinados músculos da perna, que nunca tinham sido usados, e que eu hoje eu faço esse trabalho diariamente. Sempre que eu lembro, sempre estou ativando, se me pego despreocupado volto, e hoje eu estou trabalhando isso aqui, que é um pé que sai do chão, que é um pé que não arrasta, um quadril que ao invés de ser projetado aqui, encaixa aqui e com isso dá uma segurança, um conforto pra perna, e um braço que vai pra frente e pra trás. O braço, ele também falou lá no exercício do homem que virou cinza, ele fez com a Zê, caminharmos um atrás do outro, na sala, e tentar dizer do outro tudo que pra nós parecia demasiadamente


140 estranho. E dessa forma, um dizendo pro outro, todo mundo vai encontrando uma forma cada vez mais comum de fazer, que na verdade é a próxima da correção. Claro que respeitando as naturezas individuais de cada corpo. O fato de como ator ter que passar o dia inteiro preocupado em estar atento ao meu caminhar é uma coisa que não só vai ter o resultado de corrigir pelo menos um pouco isso, que deve ser uma coisa que eu vou trabalhar muito tempo pra corrigir, porque há trinta anos eu faço errado, mas ao mesmo tempo me deixa o tempo inteiro atento e consciente do processo que eu estou vivendo. É como se fosse uma coisa que ao me trabalhar, ao buscar meu equilíbrio, conhecimento de si, me liga o tempo inteiro com o trabalho lá, talvez num determinado nível de relação que não seja um raciocínio, o intelecto, mas alguma coisa em mim está ligada com aquilo lá. Enquanto nós estamos espalhados nas nossas vidas. Parece que tem uma luzinha que vai com a gente. Tem um negócio que eu acho que do andar que ele estimula, eu faço uma relação com a interpretação de novo, com estar na cena. É o seguinte: ele tem dito pra gente que o processo de criação do ator passa por duas palavras que são fundamentais, constantemente: atenção e sensibilidade. Ele fala muito na necessidade de um estado de atenção maior para as coisas. E essa história da sensibilidade que eu relaciono com uma coisa que pra mim é importante, que passa por aquela coisa que tu falavas do “ator carcará”, da coisa de tentar ganhar no grito, na força e tal. Está ficando cada vez mais claro pra mim que, mesmo que você construa um personagem que é um bruto, o caminho é o da delicadeza. Porque é só com a delicadeza que tu vais ter sensibilidade suficiente pra perceber talvez a sutileza da forma da estrutura muscular de uma pessoa bruta. Se tu chegas e faz PÁ! Tu já destruiste qualquer possibilidade de perceber alguma coisa. É preciso estar fazendo, ele chama de bordado, ele diz que todo desenho é um bordado, mas que o trabalho de cada ator tem que ser um bordado. Eu associo o bordado com essa coisa da delicadeza, de ir sentindo onde você deve colocar intensidade nas coisas. Tem um papo que é muito bacana também: Aquela idéia de subtrair de si o personagem que é uma imagem que eu não sei se eu já falei pra ti uma vez que eu li ou foi tu que falaste pra mim do elefante de mármore. É uma história do escultor que fez um elefante lindíssimo de mármore negro e uma pessoa chegou admirada e disse: “Nossa, que perfeição! Como você conseguiu criar essa forma com os mínimos detalhes?” Ele falou: “Foi simples. Eu me concentrei só em tirar aquilo que não era o elefante. Wlad – Leonardo da Vinci falava isso. Todos os escultores falam. Alberto – Eu falo dessa coisa da arte do ator como escultor e o Cacá, quando eu falei isso, ele achou que era muito interessante essa forma de ver, pra esse trabalho. Que ao invés de você colocar sobre si uma armadura, que é uma outra coisa que vai artificializar a tua gestualidade, porque vai se sobrepor como uma casca, é preciso, nessa tua organicidade, tirar do Alberto, do comportamento do Alberto, do andar do Alberto, aquilo que não interessa para aquilo que tu vais chamar de Laertes, como ele diz que a gente tem que se relacionar, o que vai atender por esse nome. A idéia da subtração te leva pra uma coisa que é buscar um não-fazer. Porque toda vez que eu tento fazer alguma coisa, eu caio na armadilha da representação. Então a busca do não-fazer. Aí eu me pergunto: será que isso não é uma negação da metamorfose na forma que a gente conhece, mais tradicional? Na verdade talvez a busca de uma nova qualidade de metamorfose, que é aquela em que ele diz


141 que o ator o tempo inteiro absolutamente presente, visível, que na sua frente tem uma criatura que é como marionete, que é manipulado por essa criatura aqui, mas que o espectador vê isso e vê isso. E o “Homem com a flor na boca”, pra mim, é um espetáculo onde isso está evidente. Que é o que eu te falei “cai a ficha”, tu voltas na memória o espetáculo e diz: “Então por isso que me incomodava tanto ver o tempo inteiro o Cacá, embora houvesse uma construção gestual e dizem que isso é ruim. Wlad – Aí eu te lembro aquele texto do Ortega que a gente estudou.. que ele fala que a gente vê a Ofélia, mas vê a Mariazinha por trás da Ofélia. O sentido da metamorfose também é esse. Alberto – Mas o que eu digo do “Homem...”é que o personagem também é uma criatura, uma marionete, que na forma de se movimentar, de falar, se aproxima muito do Cacá Carvalho. Não é a eliminação das duas coisas, não é a questão da presença do ator, mas é que é sutil, talvez seja uma outra qualidade de metamorfose, que busca uma sutileza, porque trata de criaturas muito próximas. Os pontos de partida pra tu então começares a construir alguma coisa, que são: Dito isto – aí tu vais lá pro meio, ele põe uma música e diz : “E agora, eaí, como é que é?” Os pontos de partida desse processo. Primeiro: o deslocamento no espaço, apenas; a dramaturgia do espaço. Cada ator, no primeiro exercício de espaço, escolhia quatro pontos e fazia um deslocamento contínuo e concluia. Aleatoriamente, no mesmo espaço, cada ator construiu o seu trajeto de quatro pontos. A partir da combinação de trajetos, e dos encontros e desencontros desses trajetos, ele começou a construir algumas partituras, algumas células de cena, que até então, não tinham nada de história pessoal. É apenas um deslocamento no espaço. Cláudio Barros, ande até aqui, faça uma diagonal até o meio... Cada ator criou a sua, ele nunca interfere em nada do que tu fazes. Ele só transforma, mas ele nunca te diz “Faz assim.” A outra referência: a história pessoal. Que é tu trazeres na memória, pra executar uma ação, aquele momento, e buscar a concretude máxima daquilo. Aonde é, que lugar é esse, quando foi, como é que tu estavas? Quem é, se tua falas com uma pessoa. Se tu fazes uma ação, o que é, concretamente. Se é pegar um papel de uma pessoa que está na janela, por favor, tenta trazer pra cá, pra esse momento, o máximo de concretude que tu tenhas. Aí tu me perguntas quais são as histórias da minha vida que eu levei pra lá, concretas. A primeira é uma corrida, na adolescência, que é um espaço concreto de um clube, onde eu jogava bola, e naquele momento tinha uma liberdade muito grande na vida. Não tinha tantas ansiedades e frustrações talvez que tenham aparecido depois. Tinha um impulso, batia a mão, tinha um pequeno salto e depois uma corrida leve, e uma sensação concreta do vento no rosto. Quando o Cacá acabou o exercício, o que ele perguntou pra todos foi: “era concreto?” E pra mim, eu fui o primeiro, eu disse que era, era um lugar e tinha uma sensação do vento. Depois, no dia seguinte, quando algumas pessoas falaram um espaço mais concreto que o meu, eu levantei a questão se no meu caso não era concreto porque era subjetivo demais. E ele explicou então que a concretude não está, necessariamente, no fato de que você saiba que é o banheiro do cinema Nazaré. A concretude pode estar numa sensação, numa subjetividade, mas que é tão concreta quanto. Isso é bacana. Concretude não é uma parede na tua frente, é você ter segurança daquilo, daquela sensação, daquele momento. É você ter isso na memória, e saber ativar ali. Aí depois ele pediu uma variação disso que foi um ato de violentamente bater as mãos, e avançar, cortando o ar, que foi uma


142 imagem que ele usou, na direção de uma pessoa, que na minha história foi um veterinário que me vendeu um animalzinho doente, com uma virose, que morreu com três meses, que eu passei uma semana visitando no hospital, que me colocou diante de uma coisa absolutamente triste, chocante, violenta com as pessoas... com uma coisa de uma ordem social no sentido mais amplo de sensibilidade e eu juntei tudo isso e corri pra esse cara e ele extraiu isso do meu trabalho de quarenta minutos, todo mundo fazendo e foi isso que ele disse “isso me interessa”. Então eu acho que tem alguma concretude, porque eu estou vendo aquele patife na minha frente porque no dia eu peguei um táxi suando, me tremendo todinho, levantei o cara pelo pescoço, tirei do chão e ameacei quebrar ele todinho, e fiz ele assinar um cheque de trezentos reais na hora pra pagar a conta da outra clínica. E depois pensando, talvez isso, que tenha sido um momento de muita intensidade emocional, não tem talvez uma relação com a minha vida, não passa por relações de pessoas que tenham sido importantes na minha vida, mas ao mesmo tempo tem, porque naquele momento, o Alberto pessoa estava tomando aquela atitude de perder um animal que talvez muita gente não tomasse, pela importância que tem na referência da minha vida inteira as relações que eu tive com os meus cães. E aí eu tive na infância, na adolescência cachorros, os mais lindos, os mais bem cuidados e amados e talvez pela timidez que eu tinha, menino, eu talvez estabelecesse uma relação muito forte com eles de amigo; daquela coisa da criança que torna o seu animalzinho amigo. E depois a minha vida se transformou, entrou numa certa penumbra, saiu dessa claridade toda da juventude, eu não tinha cães perto de mim. Então de certa forma eu passei cinco anos sonhando ter um outro animalzinho e isso, ter ele, significa estar morando num lugar onde eu piso na terra, onde eu vejo árvore, onde eu tomo banho no quintal, que é um retorno talvez à minha infância, a um outro contato com outras coisas, que passa pela companhia de uma criatura assim. Então eu estabeleço todo esse sentido pra descobrir porque agredir aquele cara, e conseguir trazer aquilo pra lá, é tão concreto, porque eu quase mato aquele cara. Outra ação que passa pelo cachorro – pra tu veres como não é brincadeira esse negócio – eu levei uma ação que é brincar com o Iago, segurando aqueles bancos ali, (brinca). O Cacá me fez transformar isso num cara que está vendo uma espécie de fantasma na frente dele. E construiu a partitura, a célula fundamental da cena em que o rei e o Laertes tramam a morte do príncipe. Então é absolutamente concreta a forma, e tinha um correr em volta da piscininha de plástico. Era concreto quando eu fiz lá, era o meu quintal, eu estava vendo o cachorrinho na minha frente segurando o banquinho de plástico. Aí ele pega isso e me diz pra colocar uma outra qualidade de relação com essa outra coisa, e me dá um negócio na mão que de repente fica uma criatura fazendo essa ação, mas como se tivesse sendo perseguida ou assustada por um fantasma que não deixa. Que na hora que ele me pediu isso, eu criei uma imagem concreta também da minha vida pra ver esse fantasma, que é o meu avô, pai do meu pai, Alberto da Cunha e Silva, de quem eu tenho o nome, que eu tenho uma nítida sensação de que muito criança, num quarto que eu tinha lá na Presidente Vargas, num apartamento que a gente morava que tinha uma janela. Eu não sei por que, eu fico todo arrepiado quando eu lembro, eu tenho uma sensação de ter visto o meu avô sentado numa cadeira do lado de mim, da cama. E eu lembro depois, de muito tempo eu ter medo de ficar sozinho num quarto escuro. Eu não sei, mas parece que algum momento teve uma criatura assim, isso está num lugar assim, que eu acredito que eu vi. Isso pro ator é importante. Eu acredito que aconteceu. E eu coloquei, nesse fantasma, o pai do meu pai. E tem uma hora na peça, na dramaturgia do Shakespeare, que o rei, logo que o Hamlet chega e diz: “O pai do teu pai morreu, e o pai do pai dele também morreu.” Aí eu fico pensando:


143 talvez seja uma imagem legal pra trazer. Não que eu tenha procurado esse sentido, porque quando tu procuras esse cruzamento ele diz que não serve, porque tu vais racionalizar e não vai servir. Então não é buscando relação, mas é depois encontrar algum sentido. Aí essas são as minhas formas. Eu descobri que esse movimento aqui, de bater a mão assim, que no início é isso, uma hora pode ser isso aqui: “Não!” Outra hora pode ser isso...Aí ele começa a falar de que tu tens um material, que tu deves buscar variações, e a procurar momentos em que isso serve aqui e isso serve ali. E começar a estabelecer combinações dessas coisas. Aí o que acontece? Numa cena, numa determinada célula de cena que tem lá na frente, a criatura que eu vou ser ali, corre e ri. E é apenas corre e ri, ali. Aquela cena que tu viste surgiu do Alberto desenhando um quadrado, andando no chão, assim, depois assim, e a Zê, eram quatro pontos que faziam um “z”. Era assim, assim...Disso nasceu aquilo lá que tu viste. Wlad – Mas esse quadrado é o quê? O que era essa ação de fazer o quadrado? Alberto – Era só escolher quatro pontos e cumprir o percurso. É a referência espacial, que ele chama de dramaturgia do espaço. E a partir disso surgiu aquilo que tu viste, entrando uma dinâmica, mão... Wlad – Como é que ele faz esse encontro, com o teu exercício com o da Zê? Alberto – Primeiro, a gente faz um de cada vez. Depois fazemos juntos, mas ele não permite que tu busques relação. Se a Zê pára na minha frente e supostamente, logicamente é o momento em que eles vão se olhar, mas na hora que a gente está fazendo a gente não se olha. A gente simplesmente executa o encontro de dois corpos, que ainda não buscam nenhuma relação, estabelecer nenhuma relação ali. E depois, ele vai te fazendo ver que aquilo tem um determinado corpo, um determinado estado que ele quer que tu percebas. Qual é pra mim a referência que a direção está me dando ali? De que é um momento de muita claridade pro Laertes, aquela cena é muito luminosa. É a flor da juventude, porque pra mim o Laertes é uma curva que começa com uma claridade e vai escurecer, porque ele fala dessa coisa de que a peça é escura. E eu falei uma vez pra ele, e ele me disse que eu estava certo em acreditar que talvez, de todos os personagens, o Laertes é o que começa numa claridade maior. Então pra mim, ele está me dando uma referência quase sensorial, que não tem nada a ver ainda com forma, com ação, com gesto. É como se, como ator, eu tivesse que perceber, ter sensibilidade pra perceber qual é o universo, o espírito daquele negócio, espírito sem o caráter religioso, qual é o extrato. Aí lá na frente, o Laertes, com o rei, é uma coisa de uma criatura assustada com o fantasma, angustiada, que ele me fez ouvir a minha respiração, eu comecei a respirar ofegante, ele vinha pra minha frente e dizia assim, como quem diz “presta atenção no som que tem aí, talvez eu queira isso”. Que é outra coisa, e depois tem essa célula do cara que rasga o vento, que parte pra alguém, uma violência absurda...Então o que é o resultado disso? Teu personagem é um Frankestein, parece que não combina. Aquele pedaço parece que não é a mesma pessoa daqui, e isso aqui é estranho, quando tu vês que ele também é isso, mas ele também é aquilo. Então ele te mostra que tu tens que ter tranqüilidade de perceber que o processo de construção passa por uma hora em que a criatura é meio monstruosa, um braço é maior que o outro, entendeu? E não tem que ter ansiedade em querer transformar aquilo nisso, porque senão tu, simplesmente faz, com que ele seja uma coisa só, o que é um erro muito comum.


144 Aí eu perguntei uma vez pra ele assim: “Mas Cacá, se eu tenho essa cena com o Gondim, eu tenho uma história concreta, que partiu da ação com o meu cachorro no meu quintal e eu transformo num fantasma, que eu vejo, que é uma pessoa tal. Mas na minha cena com a Zê, eu não tenho história. E aí, como é que eu faço?” Ele falou: “É normal, que você chegue lá na frente do processo, quando vai pegar o material que elaborou, que ficou ali, você percebe que aquele é mais pobre do que você já tem agora. Mas não significa que aquilo não serve; significa que tu deves tentar encontrar uma história que possa encher aquele momento ali, que partiu de uma dramaturgia do espaço, ao mesmo tempo em tu tens que começar a perceber o espaço da tua dramaturgia que partiu da história. Começar a levar, de onde partiu de uma coisa, tem que levar daquilo pra essa e daqui pra lá. Tem um outro ponto de partida, que é, além do espaço e da história pessoal, que é a música, e que é muito interessante. O exercício da música parte do seguinte: é música, mas não pode ser dançada, não pode ser coreografada, você não pode, com o corpo, simplesmente executar o ritmo. Você deve partir de uma movimentação que não deixe o corpo ir no ritmo, ou dançar ou coreografar, e a partir daí você começa a tentar construir uma história concreta, uma ação concreta, que a princípio, à primeira vista abandona o ritmo, mas o ritmo está lá dentro. Aí ele fazia assim: um assaltante ; a música era assim...e depois tu começas a pensar assim: “Vou assaltar o cara.” Está dentro, no ritmo, mas não está dançado, mas tem uma pulsação desse ritmo em qualquer ação que tu faças. Que não precisa ter uma relação com o estilo da música, que um tum chi cu tum me leva pra um pagode de domingo e o Mozart para um velório. Não é. Eu posso ouvir o Mozart e trabalhar com essa referência pra construir uma cena de piquenique, porque não é buscar aquilo pra que o ritmo te leva, buscando sentido. Aí ele fez a segunda armadilha: depois da gente trabalhar com um bumbo, um negócio assim, ele colocou uma música que era só o violoncelo. O elenco inteiro entrou numa coisa absolutamente mental, deixou de fazer qualquer ação. E quando ele parou, nós estávamos todos próximos da parede como quem está fora do espaço pensando sobre aquilo lá, e não sendo. Eu penso, penso, penso e já não sou mais nada. Eu sou uma criatura que reflete sobre o teatro. Wlad – Me explica como era o exercício. Alberto – Ele colocou nesse momento uma música absolutamente radical, diferente das músicas que tinham uma certa unidade, no sentido do ritmo. Wlad – Tinha alguma coisa pra ser feita, ou você elaborava isso? Alberto – Não, começa movimentando, começa com o aquecimento e aos poucos vai tentando colocar a tua história. E da música, sem necessariamente dançar ou executar o ritmo, parte a tua história que é alimentada por aquela sonoridade. Wlad – E qual é a tua história? Alberto – Aí tem uma coisa muito interessante. Eu fiz várias, a gente fez vários dias isso. Eu te relatei as minhas histórias que foram extraídas por ele para o trabalho, porque a gente cria muito mais. Wlad – Me fala mais dessas que foram usadas como exercício.


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Alberto – Tem uma interessantíssima. Eu criei, uma hora, ouvindo uma música, uma ação em que roubava o dinheiro da bolsa da minha mãe em casa pra comprar pó, descia, pegava um táxi, fui comprar, fui preso na boca, fui pra delegacia, e a minha mãe foi de carro lá me buscar. Aí olha só: é uma história forte, sem dúvida nenhuma. Tu poderias dizer que é uma história inclusive que tem um material dramático aí. E curiosamente, essa banalidade de brincar com o meu cachorro em volta da piscininha de plástico no quintal, talvez tenha uma concretude maior na hora em que eu executo, embora seja uma banalidade do cotidiano, que serve mais lá do que uma história que eu conte que em si seja...tenha uma estrutura e tal. Que que eu fiz? Eu me emocionei, de lembrar que isso é uma coisa tão forte na minha vida, essa relação com a droga, que me fez sofrer tanto, e que hoje eu procuro trabalhar muito. Mas que é um monstro que está adormecido, e que eu preciso estar atento. E enfim, a relação com a minha família, tanta coisa que tu deves imaginar que vem. Resultado: veio muita emoção. E eu fiz, e eu me emocionava muito, e aquilo era estar sendo de uma forma muito profunda. No fim do exercício, o Cacá falou algumas coisas pra algumas pessoas – não me falou nada – mas depois ele passou por mim uma hora que tinha outras pessoas trabalhando e disse assim: “Tu não vales nada.” E eu sei que é porque eu me deixei ser vítima da emoção que me causava o sentido que aquela ação tinha na minha vida. Porque no dia que eu fui preso, que eu estava na cadeia, que a minha mãe foi me buscar, eu não chorava, eu era. Tinha vergonha, frustração, ódio, mas eu não chorava. Não era o ator que se emociona com a importância da sua história e o que isso traz. Eu não era, eu representava o sentido daquilo na minha vida. As três dramaturgias. Essa toda é a dramaturgia pessoal. Chega uma hora em que tu vais ter que combinar isso entre as relações dos atores, que é o cruzamento da minha história com a vida da Zê, com a vida do Cláudio, com a vida do Gondim, com a vida da Nilza, que aí vai ser a hora que vai cruzar a minha experiência de vida com a experiência da Nilza, que vai cruzar o vigor do corpo do André com o corpo da Mendara. Wlad – Tem algum nome específico pra isso? Alberto – É a dramaturgia das relações. E a dramaturgia do infeliz de 1600... como ele diz, que é outra dramaturgia que vai ser usada. Ele diz assim: nós vamos usar o Shakespeare por quê? Primeiro porque nos interessa contar essa história, nos serve, e depois porque a gente vai usar as palavras do Shakespeare para dar sentido pra quem vê, e que precisa de uma história que seja contada, de um entendimento de alguns acontecimentos pra que isso sirva como uma ponte para alguém que nos vê possa acompanhar a narrativa da nossa vida, das coisas que estão por trás disso que vai ser mostrado. Wlad – Então conta de novo. Alberto – A dramaturgia pessoal, não necessariamente nessa ordem, com ela a dramaturgia das relações entre os atores, onde as história de cada um vão se cruzar, as experiências de vida diferentes vão se cruzar, e a dramaturgia do Shakespeare, da obra literária que vai ser montada, que é uma dramaturgia que tem toda a sua lógica, assim como a maneira como eu me comporto é diferente da maneira da Nilza e da Mendara, e tem a sua lógica, e que vais ser as palavras que a gente vai usar pra que o espectador que nos veja possa ter uma história


146 pra ele acompanhar, um encadeamento de acontecimentos que ele acompanha e que sirva de instrumento, talvez como um pano, uma tapeçaria que é o que o espectador vê, mas que na verdade é a nossa história, as nossas história concretas, a nossa vida que está ali sob as palavras do Shakespeare, sob uma dramaturgia de cenário, espacial, sob... Aí vem uma outra imagem que eu ia te falar, que é importante. Eu vou falar agora das imagens que ele usa no processo. A primeira imagem é a da tapeçaria, que é essa: ou seja, os desenhos e as cores diferentes, a padronagem da tapeçaria que o espectador vê têm que estar amarrados com nó muito firme, e esses nós são as nossas história pessoais, que é o nosso gesto, o nosso código. A gente tem um alfabeto dinamarquês falado e gestual. O dinamarquês aqui é a história pessoal. Wlad – Esse gesto de passar a mão por trás da nuca. Alberto – Isso aqui pra todos nós no processo é a tua história. Isso aqui é a tapeçaria de um nó. Se esse nó não tiver muito bem amarrado, se não for muito concreto pro Alberto pra quem ele parte quando ele faz isso aqui (faz) na hora que for o Laertes duelando com o Hamlet não será necessariamente concreto; esse fio aqui pode se soltar, e vai ficar meio frouxo, vai deformar o desenho da tapeçaria. Wlad – Só pra eu não esquecer, esse gesto que tu fazes dos nós, e a tua mão espalmada aberta na tua frente e a outra mão apertando o nó no meio da mão. Alberto– Todas essas imagens têm uma gestualidade que as acompanha e que é rigorosamente realizada como se quisesse imprimir na cabeça da gente comumente, a todos, uma imagem, um gesto que representa aquilo. Outra imagem: tu sabes a história das flores, das margaridas de plástico, das margaridas verdadeiras? Wlad – Não, me fala. Alberto – Um dia ele nos perguntou assim: “Se a gente fosse colocar ali no vaso, no nosso espaço de ensaio um vaso com doze margaridas, sendo seis verdadeiras e seis falsas, e a gente todo dia que chegasse aqui durante um mês fosse lá e ficasse cinco minutos olhando o vaso, que que ia acontecer?” Claro, em trinta dias umas iam estar podres e as margaridas de plástico iam estar iguaizinhas. Nesse caso, fazendo uma analogia com o teatro, o que seria a arte do teatro? As verdadeiras ou as falsas? E na verdade são as falsas porque o que serve ao ator não é aquilo que vem fruto de uma emoção, de um momento, mas que pode morrer amanhã, daqui a uma semana, daqui a dois meses. O que serve à arte do ator é aquilo que ele é capaz, concretamente executar durante muito tempo, sempre que ele quiser. E aí ele diz que é a idéia de arte como artifício, que não é real, mas que é tão próximo do real, no caso a flor de plástico, que parece verdade. Se for a tua verdade que estiver ali, vai morrer mais cedo ou mais tarde, você não vai conseguir sustentar. A arte está justamente nisso. Aí ele diz assim: “Se não fosse assim, a minha mãe fazia teatro, a dona Etelvina era atriz.” A arte está justamente na capacidade de ter um rigor tal, de ser capaz de gerar aquilo, sempre tão próximo da verdade, e que no entanto não é verdade, e por isso nunca morre, porque é sempre falso, sempre artificial, mas não no sentido pejorativo. Não no sentido do mal executado, mas artificial no sentido de ser construído no consciente. Será que o ator é consciente?


147 Outra imagem bacana: teatro é uma praça onde você chega por várias ruas. E aí ele aproveita essa imagem pra dizer pra gente que essa forma de pensar o teatro, de pensar a construção do personagem não é absolutamente a única nem a certa. Isso ele repete sempre; existem muitas maneiras de fazer, essa é só mais uma, e ele acha que é muito bacana quando você usa essa imagem da praça, chegar na Praça da República saindo da Batista Campos, mas ir por São Braz. Não precisa subir a Serzedelo direto. O que te proporciona de experiência no teu processo de enriquecimento da tua criação, quando tu pegas a Mundurucus, vai até São Braz, vai lá no aeroporto, volta, desce a Senador Lemos e chega na Praça da República lá pelo Ver-o-Peso? E o que tu perdes quando tu vais pela Serzedelo, como ator? E a gente sai correndo na Serzedelo Corrêa pra ver quem chega primeiro, como ator, ou pelo menos normalmente acontece isso, e comigo acontece muito. Ou seja, eu entendo assim: esse processo do Hamlet eu acho que vai ser pra mim pra vida toda; aquelas coisas que a gente inventa pra gente. Vai ser pra vida toda. O espetáculo pode ter cinco anos em cartaz, ou dois, ou dois meses, mas eu acho que uma coisa fica. Um olhar pra trás do que eu sempre fiz, quando eu digo que eu represento? Eu acho que eu sempre estabeleci um entendimento, uma construção racional, um sentido final para as coisas e tentei formar aquilo na minha frente o mais rápido possível. Tem um ponto, que eu parto, eu como ator, eu não li a peça, vamos dizer que a gente vai montar uma peça chamada “Hoje” que tu vais trazer e eu ainda nem li. Eu estou aqui só o meu corpo, eu estou no zero, não tem nenhuma referência. Aí vai ter um ponto bem ali que eu vou chegar que é o trabalho construído. Eu acho que como ator a gente quer sempre fazer PUM! E cair no pronto. Cada vez que tu entras pra fazer, tu queres fazer pronto. Esse processo está me ensinando que uma hora eu tenho que só correr e rir, falsamente, porque se eu buscar encontrar ali uma coisa que me estimule a rir eu já não sou mais correr e rir. Eu tenho que esperar o momento em que aquele riso vai ser preenchido com alguma coisa que hoje não vai adiantar inventar e fazer lá, pra não ficar um riso falso. É conviver com o riso falso, com a sensação de que tu tens uma coisa, mas está faltando outra, com essa sensação de que falta completar os pedaços. Tu tens aqui um negócio, mas tem um negócio em pé, mas falta esse desse lado daqui, pra esse de cima não cair. Conviver com esse bicho que vai se formando e que tem umas partes apagadas, que tu não enxergas, e tem outra que tu já vês. É como um quebra-cabeça, é como construir uma casa. Se tu não fizeres uma base forte, tu botares um segundo andar, vai desabar. Então solidifica, faz um pilar profundo, sente que ele está lá no fundo, que tem cinco metros na terra, depois tu fazes a parede de tijolo. Wlad – Tu achas que essa base, ela serve pra qualquer arquitetura que construires? Alberto – Não sei se eu entendo a tua pergunta. Eu acho que toda arquitetura tem que ter uma boa base, seja qual for a forma que ela vai ter. Ah, tem muita coisa...Olha só: essa coisa do artifício; uma vez eu olhei um exercício que a gente traz da rua, da observação, outro material, pra não perder, a referência é o espaço, a minha história pessoal, a música como estímulo, e um quarto: a observação da vida, do comportamento das pessoas na rua. Essa foi fantástica, porque quando eu vi as pessoas fazendo e tu olhas e a pessoa é, eu virei pro Cacá e disse : “Nossa, como é natural!” Ele falou: “Não, não tem nada de natural. Não é natural, é artificial. Mas foi observado nos mínimos detalhes, de uma maneira tal que quando é feito aqui, parece verdadeiro. Você olha e diz: Isso parece gente.” No entanto se ele me der a peça e disser: “Olha decora tu e a Ofélia, Laertes e Ofélia, decora esse texto e me representa, certamente a criatura que eu vou trazer não vai se parecer gente. Vai parecer


148 personagem de teatro, que estava guardado no armário. E quando tu observas da rua e traz, alguma coisa acontece, que faz com que tu olhes e diga: “Nossa, como a Antônia está parecida com esse velho que ela viu! Olha como o olho dela, olha como ela está vendo uma vitrine da loja, e ela está comendo uma pipoca, e vai telefonar e balança o saquinho de pipoca, mas balança num ritmo que não foi inventado pela Antônia, do que ela conhece de teatro, de como se constrói personagem....Foi observado pela Antônia e é concreto porque tem um ritmo que é de quem balança o saquinho de remédio atrás quando está no telefone esperando pra ver se atende. É tão sutil, é tão minucioso, é tão delicado que parece verdade. Eu fiz um exercício, por exemplo, o meu exercício primeiro desse, foi muito forte pro grupo quando cada um trouxe o seu primeiro personagem da rua. Foi muito forte, parece que caiu uma ficha em todo mundo aquela hora. O meu, era uma criatura sentada no balcão de costas para o público, lá na hora que eu fiz, e eu estava atrás dele, observei ele de costas e ele não fazia nada. Ele era assim.....estava esperando um sanduíche.

Fita II O meu primeiro exercício de observação na rua era um cara que eu observei de costas e não fazia nada. Ele apenas fixava o teto, muito tempo. E isso me intrigou. E tinha também umas coisas muito sutis, como o farelinho que ele espantava do colo, que caía da comida, e que tinha uma sutileza...Se eu tivesse construindo um personagem dentro de uma sala de ensaio, eu jamais talvez acreditasse que aquele gesto com os dedos tão levinho, tão frágil, tão sutil, fosse tão concreto e tão cara de gente se mexendo, se movendo. Porque eu acho que sempre que a gente vai pra cena a gente pensa em fazer coisas fortes; teu personagem tem que ser forte, presença forte. Muitas vezes a máxima delicadeza pode ter uma força brutal, assim como o não-fazer é intrigante. E isso foi uma coisa que o Cacá definiu depois com uma palavra que eu fiquei muito contente, ele disse que foi comovente o meu trabalho. Não só pela criatura, que era muito rica, segundo ele, mas pela forma como foi apresentada, onde o ator colocou as pessoas no ponto de vista que ele tinha, no ponto de vista que eu tive que incomodou todo mundo. O Edyr Augusto foi lá com ele e disse assim: “Manda o Alberto fazer de frente, a gente não está vendo nada.” Isso é o mais interessante do exercício, porque ele não está agora preocupado em representar, o que faria com que automaticamente ele ficasse de frente pra gente ver a expressão e tal. Como ele está sendo, não importa, agora, a maneira como está sendo vista. Eu posso na hora em que eu precisar dessa imagem na peça colocá-lo de frente. No entanto, o mais interessante é como foi mostrado. Isso também vai para um outro discurso; o que essa observação na rua tem a ver com essa busca de si, ou uma busca do corpo da consciência? Eu acho que é o seguinte: no momento em que você está observando alguém, e isso ele deixou claro pra gente, você também passa imediatamente a se sentir observado. Se eu estou numa esquina da Presidente Vargas e eu começo a observar alguém durante quarenta minutos, começo a me preocupar que alguém perceba aquilo e ache aquilo estranho. Alguém, no elenco, fazendo esse trabalho dentro do supermercado, numa loja, relatou o fato de ter sido seguido por alguns seguranças preocupados com aquela pessoa que ficava circulando de maneira meio estranha. Ou seja, o ato de observar alguém, fazendo esse trabalho, faz com que você o tempo inteiro esteja consciente de si. Você tem que estar consciente da tua presença, você fica preocupado se a sua presença está chamando a atenção e você tem que diluir a sua


149 presença pra observar a presença do outro. Acho que isso tem relação lá com essa busca de uma consciência. Se você, como ator, desenvolve esse trabalho a ponto de que na vida você esteja sempre enxergando, você está sempre consciente de si. No entanto, muitas vezes, quase o tempo inteiro, eu acho que a maioria de nós não está enxergando e não está consciente de si. Vou falar das relações com outros processos, tá? “O Homem com a flor na boca”, já te falei. O ator que manipula o personagem que é uma marionete. A observação de seis meses na estação, de pessoas... e tu sabes que o figurino daquele espetáculo foi feito com roupas dadas pelas pessoas pra ele nesses seis meses de observação? E aquele casaco do figurino do personagem, e por isso que é roupa de gente, foi dado por um senhor que se eu não me engano tinha câncer, filho de uma moça chamada Stephane, que é amiga de Pontedera, e hoje ele sabe onde o cara mora, conhece a história da família toda, e esse cara parece que morreu de câncer, e a roupa que ele usa até hoje é a roupa do cara. Como você se apropria de determinadas coisas no processo muito concretas, que levam ali alguma coisa. “A vida é sonho”, claro...Na Vida é Sonho tinha um negócio assim: eu construí uma partitura naquela primeira cena do Basílio, que eu tive muita dificuldade de transformar aquilo em outros momentos do personagem. Eu não consegui nunca, por exemplo, me aproximar do resultado que eu tinha na primeira cena na cena da batalha com o Astolfo, lembra? Tinha que rir, era um cara que estava todo dono do negócio, e tal, e não aconteceu. Ele sempre te chama a atenção pra isso. Isso que tu fazes, como é que isso corre? Como é que isso anda mais lento. Se isso está sentado, como é isso em pé. Ele sempre te estimula a procurar o máximo de variações possíveis daquilo que tu tens como uma coisa que parece uma só. Tá me entendendo? E na Vida é Sonho, eu tive esse problema; eu não conseguia transportar algumas referências gestuais, de alma daquela criatura que eu criei naquele momento da revelação, pra um outro momento da vida daquela mesma criatura. “Senhora dos Afogados”. A ansiedade absurda que eu tinha naquela época com vinte e um anos, e hoje eu consigo – sabe quando tu sais assim – o que me fazia sentir ansiedade no processo do Senhora dos Afogados? Como eu te disse que eu sempre quero pular e cair pronto lá na frente, cada dia eu fazia um personagem diferente. Cada dia, como ele dizia, eu fazia uma peça. Porque eu queria sempre entrar e fazer pronto. Eu não conseguia colocar um tijolo de cada vez. Não é que agora eu consigo, mas agora eu entendo isso. O que acontecia lá? Eu não sabia manter o que eu já tinha e acrescentar pequenos elementos. É uma parede e eu percebo isso agora. Tá claro isso? Aguardente. Te falei aquele dia. O Cláudio Barros, com uma presença, uma criatura humana ali, e o Ronaldo Fayal, com uma construção, talvez. Claro que aqui, Wlad, eu estou sendo... Wlad – Sim, usaste a palavra composição. Alberto – Composição. Você entende que o ator acha que aquele garçom é meio jogado, é meio underground, tem o peito meio aberto...Mas aquele andar, eu olho, aquilo não é orgânico. Aquilo é o Ronaldo Fayal achando que aquele garçom poderia andar daquele


150 jeito. No entanto eu vejo o Ronaldo Fayal tentando andar daquele jeito. E isso me remete à questão da observação, porque quando observa, observa o quê? A movimentação, as ações, concretamente é isso que tu vês no teu quadro. Mas na verdade, quando você penetra com uma determinada qualidade de atenção nos detalhes, nas minúcias, você começa a imaginar que aquela senhora, que se veste com aquela roupa, pegou o telefone e é meio-dia e ela saiu do banco, ela está ligando pro marido pra dizer que já pagou a conta, ou ela está ligando pra filha pra perguntar se o almoço já está pronto...Aí tu começas, a partir da ação concreta que tu estás observando, que é uma mulher num orelhão, vestida com uma roupa tal, e que se coça assim, e começa a penetrar na vida daquela pessoa, o que será que ela faz o dia inteiro...E tu podes partir de um pequeno momento daquela pessoa e construir a vida dela toda; quem ela é, onde ela mora, se ela trabalha, se não trabalha, se ela tem marido, se o marido bate nela, se ela vê a novela, se ela não vê...E isso aconteceu num exercício do Henrique da Paz, que era um velho que saiu do banco – todos os exemplos que eu estou te dando todos são concretos, o saquinho, o telefone, tudo isso é verdade, feito por várias pessoas. O Henrique fez um que observava uma coisa, e tinha uma coisa interessantíssima, que o personagem tinha uma pressa dentro do banco, uma irritação com a fila, que parecia que ele ia sair dali e ia sair correndo pra fazer outra coisa, no entanto ele saiu, dobrou e ficou olhando umas liguinhas, umas coisas... Então era uma contradição o comportamento da pessoa lá dentro com o comportamento fora. E o Cacá falou dessa coisa, de como a gente vê uma coisa e nem sempre a lógica é a mais óbvia. Então aquela pessoa não estava com pressa porque ela ia sair dali e ia buscar o pai no hospital. Ela estava com pressa porque ele estava tão ansiosa com a falta do que fazer, que ele tinha que se ocupar de se aborrecer com a fila do banco que não andava. Mas não por um compromisso concreto de tempo. Simplesmente porque o vazio daquela mulher talvez fosse tão grande naquele momento, que ela começa a ser um personagem que se aborrece como se tivesse um compromisso urgente. E sai dali, e continua desocupada, e agora, a ocupação lá dentro que era a irritação com a fila do banco, e comentar com o outro do lado, passa a ser olhar as coisas que ela nunca compra. A partir da observação do ator de quinze minutos da vida dessa pessoa, a gente começou a inventar uma infinidade de possibilidades para o que essa criatura é. Cacá fala muito disso também, por exemplo: o tédio. Aí você chega para um ator e diz assim: “Por favor, vá ali e faça um personagem que neste momento está entediado.” Aí ele faz a imitação da pessoa....Isso é o óbvio, não fazer nada, abaixar a cabeça com o olhar sofrido, um dedinho...Isso é o clichezão do entediado, porque quem está entediado faz milhões de coisas. O que tu fazes na tua casa quando tu estás entediada? Wlad – Olho todos os meus livros. Alberto – Depois que tu olhas todos? Wlad – Depois vou tomar banho, vou estar cheia de poeira. Albertoerto – Vai tomar banho, aí tu sais do banheiro e faz um ovo, aí tu acabas do ovo liga a televisão, desliga, vai na janela, fuma um cigarro...Quando tu estás entediado tu fazes coisa pra caralho...e isso é concreto. Porque ele passou um exercício pra mim e pro Cláudio Barros que era: “Vocês estão nessa situação aqui, vocês estão entediados e querem sair.”


151 Laertes e Hamlet querem sair dali, e no entanto não é buscar o nada, mas é buscar preencher com alguma coisa que nunca preenche. Wlad – Foi uma armadilha pra vocês? Alberto – Não foi colocado assim, mas eu acabei lendo. Mas ele sempre te faz deparar com a maneira que tu tens sempre de procurar resolver bem, tirar dez e cair no óbvio, cair no clichezão. Eu e Claudinho, vou logo falar de outro ponto, massacrados pela mesma via, a vaidade. Por isso que ele só chama a gente pelo nome completo, artístico: Cláudio Barros e Alberto Silva Neto. Ele no entanto diz: Nilza, Antônia, Henrique. Porque pra nós isso tem uma coisa que a gente carrega, que a gente inventa, e que precisa ser quebrada, destruída, aniquilada, e não serve pra nada. Aí tu começas a perguntar: “E agora, que chega a dramaturgia do Shakespeare?” Wlad – Me fala mais um pouquinho sobre a dramaturgia das relações. Alberto – Essa talvez seja a mais obscura pra mim. Mas passa talvez por uma questão de você ser capaz de ver o outro ao seu lado. Se você vai pro espaço pra um determinado exercício, se você não passa pela percepção das outras presenças, você se fecha num eu, eu, eu, eu, que acaba não sendo útil nem criativo. É preciso ser capaz de perceber a intenção do outro, a atitude do outro. Eu acho que isso fora e dentro de cena. O Alberto, que vai fazer um personagem que vai atender pelo nome de Laertes, que vai ser filho de um personagem chamado Polônio, representado pelo Henrique da Paz, precisa observar o Henrique, como o Henrique é, como o Henrique anda, ao mesmo tempo, por exemplo, que precisa criar uma intimidade com o ator Henrique, que faça com que o espectador que vá assistir olhe e diga: “Mas eles têm uma intimidade.” Então é uma questão de você estar atento às relações com todos do grupo, fora da cena e dentro da cena, que cria uma intimidade. Por isso que a gente no processo toma uma sopa. Agora a gente toma a sopa no fim porque já está em outra história, mas a gente sentava numa mesa e vinha uma sopa. E sentar à mesa é, no meu entendimento, primeiro um ato concreto, uma ação concreta, porque quando tu comes, tá com fome, tu comes mesmo. Tu és estar comendo. Outra coisa: cria intimidade sentar na mesa, entre as pessoas. Esse elenco não tem tanta intimidade. A Antônia vem de longe, o Henrique vem, eu, Cláudio, Zê, eu com o Mardock....É um elenco que não está trabalhando há muitos anos; é um elenco que se juntou de muito longe. Então ele precisa criar uma intimidade que precisa estar na cena, invisível, por trás de alguma coisa. Eu acho que passa por aí, tá claro? Wlad – Tá. Só uma perguntinha, não querendo interferir na tua fala mas, tu achas que nesse momento da dramaturgia das relações é a hora que o Cacá vira um pescador, assim de... Alberto – Sim, vou te dar um exemplo. A relação por exemplo entre a Nilza e a Mendara, que é muito profunda na vida, elas são amigas há muitos anos, mas isso não interessa, por exemplo, para os dois coveiros, porque são dois amigos, mas talvez num outro nível de relação profissional...Ao mesmo tempo ele pega a trajetória, a experiência da Nilza pra colocar o coveiro em cena olhando os outros personagens, e que tem ali o Cacá que extrai


152 por exemplo a experiência da vida da Nilza. Que olha, por exemplo, um Alberto, um Cláudio, com trinta e poucos anos, uma Zê, olha e diz: “Pôxa, tem tanta coisa mais.” Sabe? O caminho que ele vai dando na lógica da peça, pra esse material que ele extrai de cada um é muito bonito. É mais ou menos o que tu querias? Wlad – Era, era saber o que tu pensavas sobre isso. Alberto – Nesse sentido a experiência da vida toda da Nilza Maria é uma matéria muito forte no trabalho, assim como eu acho que hoje, o olhar que eu consigo ter sobre a vitalidade dos meus vinte anos, entendeu? Que até vinte anos o meu corpo tinha uma vitalidade que depois ele perdeu, bruscamente; um vigor de juventude que o Alberto com trinta e dois pode olhar pra trás e enxergar, e ter isso como matéria, e talvez isso seja uma matéria de um Laertes; um vigor da juventude, um ímpeto que faz com que uma hora ele diga: “Porra, caralho, agora eu vou matar um.” Será que isso não é da idade? Se ele tivesse trinta e cinco ia dizer :”Que faço? Renuncio?” Matéria da vida....dei dois exemplos assim... Wlad – Fala da dramaturgia agora. Alberto – Aí entra o infeliz de 1635, 1601, 1635 é “A Vida é Sonho.” Como estudar o personagem? Primeira coisa. Nós começamos segunda-feira a ler a peça. Nunca tinha se falado uma frase de Shakespeare. Wlad – Segunda-feira vocês foram pro Waldemar Henrique também? Alberto – Foi. Nunca tinha se lido uma frase do Shakespeare no ensaio. Nunca. No entanto os atores desde o primeiro dia já tinham uma peça de cem páginas pra ler muito, mas lá nunca. Aí nós fizemos um primeiro exercício, que era: tarefas pra fazer em casa. Um desenho que traduza a obra, um desenho que traduza o meu personagem, um objeto que traduz o meu personagem, como anda o personagem do Shakespeare na minha Dinamarca, uma música composta que traduza o personagem, que está sendo uma matéria agora...A matéria fundamental do Walter Freitas são essas composições de cada ator. Wlad – Fizeste a tua? Alberto – Fiz. (Cantarola). O som pra ele é uma loucura. Essa é a minha, cada um tem a sua, e o ponto de partida do Walter, da musicalidade toda do espetáculo, da direção musical são essas composições todas de cada um. E...onde que eu estava? Ah! E três linhas que traduzam a peça, a obra Hamlet, três linhas que traduzam o personagem. Quais são as três linhas que traduzem o Laertes pra mim? Eu vou te dizer o Laertes quase certo e a peça aproximada. A peça, a minha tradução em três linhas é assim: “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a tua filosofia. Escuta, o resto ainda dorme. Palavras, palavras, palavras...” Extração de fragmentos da obra . Tinha um “escuta, o resto é silêncio”, uma coisa assim. Uma coisa que traduz o Laertes: aí eu peguei os acontecimentos. Eu lembrei daquele nosso trabalho que tu passaste pra gente, importância dos pontos-chaves que modificam o trajeto da criatura e tal. Então o do Laertes é assim: são falas extraídas não do próprio personagem, mas pode ser de um outro. Eu extraí, por exemplo, do Polônio pra fazer meu exercício da Laertes. É assim:


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Wlad – Ele deu indicação de extrair (....)? Alberto – Não. Wlad – Deixou livre? Alberto – Não, extrair do texto, das palavras que estão ali, três linhas que traduzam a obra e o personagem; extrair do Shakespeare. Não é escrever três linhas do que eu acho que é; das palavras que estão ali. Ou nem sei se eu entendi assim, podia nem ser, eu fiz assim. Aí o Laertes era o seguinte: “Juventude em liberdade. Sangue efervescente. Perdi meu pai. Minha irmã em desespero. Quero vingança. Não faltam intrigas para subverter, para encher os seus ouvidos. Um unguento mortal. Preso em minha armadilha. Estou perdido.” Aí o Cacá disse assim: “Eu gosto muito.” Me chamou a atenção de que eu devia usar aquilo como uma referência, que era uma coisa que estava bem articulado, eu me lembro dele ter falado isso. Então a gente fez essas tarefas. Aí eu ia te falar, já estou falando né, eu ia entrar nesse negócio de como entra a dramaturgia do Shakespeare nessa história toda. Como estudar o personagem? A primeira coisa que muito clara foi a forma banal e primária com que eu abordei, no seguinte sentido. Eu me virei um dia pro Cacá e disse assim: “Cacá, tu achas que o Laertes é um personagem que tem um certo vigor físico?” “Isso me interessa, mas eu quero saber como tu chegaste a essa conclusão.” Aí alguns dias depois nós voltamos a esse assunto. E como eu cheguei à conclusão é engraçado, no sentido de frágil, ingênuo. Como eu cheguei à conclusão? O Rei Cláudio diz uma hora que o Laertes tem uma grande habilidade no uso do florete, da espada, e que por essa razão Hamlet tinha ouvido falar da fama dele, e queria duelar com ele, tal, tal, tal. Ele virou e disse: “Mas como você acreditou no que o personagem disse? Se ele diz isso para provocar no Laertes um estado que ele queira, tal, tal. Enfim, o que ele queria mostrar pra gente sempre, que a gente tem que olhar o personagem daqui, daqui, daqui...Outra coisa também, armadilha do Laertes. Eu virei e falei assim: “O Laertes ele entra decidido quando ele volta, quando ele sabe da morte do pai, ele entra pra dizer...ele entra e enfrenta o rei. E ele entra decidido. Ele falou: “Como você chegou a essa conclusão?” Ah, porque isso e isso... “Mas ele entra decidido ou ele entra cego, pelo desejo de vingança? É diferente; uma pessoa decidida e uma pessoa cega. Então a primeira coisa com relação a essa entrada do estudo da dramaturgia alertou pra isso: pontos de vistas sempre diferentes. Quanto mais você conseguir ver de ângulos diferentes, mais essa coisa no final vai ser consistente, profunda, porque não vista só de uma maneira., pela minha lógica. Aí eu até escrevi aqui: e se, e se, e se. Outra coisa é entender a lógica do personagem do Shakespeare, e que tem uma lógica clara, que precisa ser entendida, porém não é uma lógica que eu devo também banalizar ou entender pelo óbvio. O exemplo de que a gente partiu: o rei Cláudio é um canalha, um patife? Parte do elenco : “É.” Mas dizer que o rei Cláudio é um patife na abordagem do personagem, eu como ator, significa imprimir um ponto de vista já de um determinado padrão de comportamento moral, e um monte de coisa assim, que faz com que eu empobreça logo à primeira vista o que o personagem pode ser. Ele não é um filho da puta. Ele é um cara que tem determinados interesses, determinados objetivos, toma pra isso determinadas atitudes, que eu posso olhar, ler e dizer: “Porra, esse cara é um filho da puta!” Isso é de novo a história do sentido, que é o espectador que tem que dar. Se o ator que faz o Cláudio representar o sentido que ele vai ter de filha da puta, já não é mais ser. Já é representar o


154 filho da puta que deve ser talvez entendido ou lido pelo espectador. Ou não, porque pode ter o espectador que diga: “Esse cara é escroto, do caralho.” Quem vai dar sentido é o espectador. O ator não pode partir do sentido; ele tem que partir da lógica; por que ele mata o rei, o que ele quer, depois como é que ele lida com essa situação, como é que ele tenta se livrar das situações incômodas que isso... (Cláudio Barros chega e participa da entrevista) Cláudio – Porque senão o ator vai representar o filho da puta. Alberto – Que é o sentido que pode ter. Cláudio – Exatamente. E o ator não tem que interpretar nada, ele tem que entender a lógica do personagem. Pra lógica do rei Cláudio, ele não é um filha da puta. Então o ator(.....)porque é lógico. Ele mata o cara e no universo daquele personagem não é filhada-putice, é a lógica dele, de matar para casar, para tomar o poder é lógico. Então se o ator lê o texto e der a sua interpretação, ele está empobrecendo o personagem, ele está fechando o personagem.... Alberto – Um outro ponto, pegando o que está escrito aqui. O Cacá tem falado muito pra gente do seguinte: de que nós todos, seres humanos, muitas vezes ele tem a impressão de que nós estamos adormecidos. É tão bonito quando tu lembras da “Vida é Sonho”, dessa relação. Até conversei com a Dina sobre isso um dia, mas que é o enfeitiçamento geral do Artaud. Eu falei pro Cacá; eu disse: “Cacá, quando tu falas nisso, eu lembro disso.” E falei o texto do Artaud pra ele. Enfeitiçamento do qual todos participam, tal, tal, tal. E uma vez eu coloquei uma coisa que ele também disse que podia ter algum sentido, que é assim: o ator é um ser que tem que acordar, pra que veja que os outros estão dormindo. E ele também falou sobre o Hamlet personagem, dizendo que o Hamlet é um cara que acordou. Cláudio – É o único acordado. Alberto – É um homem que acorda e que diz: ser ou não ser? Aí vem toda aquela história do deseninho da evolução do homem, do que a gente é e do que a gente não é, e que ele acha que o Hamlet, quando pergunta isso, está se referindo àquilo; ser o que eu mesmo sou ou ser o que esperam que eu seja, uma coisa desse tipo. Banalizando, simplificando bastante, mas enfim... Tu sabes qual é a primeira frase daquele meu diário do Artaud? Artaud é um acordado. Wlad – Lindo. Alberto – Aí uma vez eu perguntei pra ele: “Cacá, então será que como ator eu tenho que estar acordado, mas para que eu construa um personagem que dorme, para que o espectador que dorme, que vai ao teatro dormindo, depois sai para comer uma pizza dormindo, se veja nesse aqui que dorme”? Ele falou: “É exatamente isso”. Então eu tenho que estar acordado para construir um personagem que dorme como as outras pessoas que estão dormindo; que dorme como a velha da Antônia, que anda pela calçada comendo uma pipoca, que dorme como a mulher que está no banco estressada na fila, mas que não tem um objetivo, um


155 compromisso, mas ela está tão oca, tão entediada que ela precisa criar um...Tá entendendo? Dorme. O caixa do banco dorme porque espera o ponto bater seis horas. Dorme, dorme, dorme....e agente precisa acordar, e que a gente é espião, que o ator é espião, é detetive mesmo, e que tem que saber roubar as coisas, mas não roubar no sentido bíblico e cristão. Roubar no bom sentido; se apropriar de; como é que aquilo é em mim. É muito forte pra mim quando o Cacá diz isso. Como é que aquilo é em mim. Outra coisa: administrar duas palavras: calma e desespero. É tão importante quanto administrar o desespero, de não se deixar tomar pelo desespero, pela ansiedade, tão importante quanto isso é administrar uma calma excessiva e não se deixar cair numa de OK, não é para estar desesperado com a situação, mas eu também não posso me acalmar, me acomodar, esperar que alguma coisa aconteça. É preciso um confronto permanente. Cláudio- Que ele chama de estado de atenção. Quando você é um ator extremamente ansioso, como é o caso da maioria dos atores, têm uma ansiedade exacerbada, isso é um elemento que freia, é um elemento que impede a fluição, certo? E aí o ator sai desse estado, aprende que ele precisa ficar calmo, para que ele possa enxergar. Aí ele passa para outro estado, que era o estado em que eu estava (.....), que é o estado de letargia, de extrema calma. O cara está tão calmo que ele passa a dormir, em relação ao processo de criação. Wlad – Cláudio, volta a falar um pouquinho. Falaste desse estado de letargia. Cláudio – É, foi uma coisa que eu experimentei, já estou saindo dele, que é assim: como o Alberto falou, você tem que ficar administrando a calma e o desespero. Não adianta você entender que não pode injetar ansiedade no seu trabalho, e aí você começa a ir contra isso. E a partir do momento que você vai contra isso, você encontra um outro estado, que é o estado da calma. Aí você acredita que aquele estado é o estado interessante pra você perceber, enxergar...E foi uma coisa que eu experimentei mesmo. Eu entrei num estado que parece que eu tinha fumado maconha antes de ir pro ensaio. Calma...Se não você entra na coisa que não é interessante, que é o dormir. E essa administração entre a calma e o desespero, é que te leva para um estado de atenção, que é um estado permanente de atenção. Então buscar esse estado de atenção , que às vezes é confundido com tensão; estado de atenção não é tensão muscular. E esse estado de atenção, que é o equilíbrio entre o desespero e a calma, é exatamente o estado que tu tens que permanecer durante o teu dia, não durante as seis, oito horas de ensaio, mas durante o teu dia, tua vida, pra continuar acordado, permanecer acordado. Wlad – Alberto, tu tens material aqui ainda? Alberto – Pois é, eu acho que eu terminei. Só faltou uma coisinha....Vou te falar uma coisa sobre o Marambiré, que é uma referência no trabalho, eu queria só dizer uma coisa que ele coloca para os atores quando se trata assim, de como o ator vai abordar essa manifestação como matéria. Ele diz o seguinte: que o artista popular é essa coisa que a gente procura, no teatro, que é tirar essa camada de preguiça, esse papo todo do ser e representar que eu te falei, ele diz que o artista popular é. Ele está lá, naquele lugar, ele é aquilo, e quando você tenta ir lá e ser aquilo, alguém olha e diz: “Hum, esse cara não é daqui”. E que portanto a nossa atitude deveria ser, em relação ao marambiré e essas referências que o Walter está


156 trazendo, de não tentar ser, porque a gente nunca vai ser, mas de tentar extrair dali um extrato. Mas também ter muito cuidado pra não banalizar e fazer uma caricatura grotesca da manifestação, porque ele diz que é uma palavra perigosa de usar, mas que aquilo é sagrado pra ele, tanto a ponto que se ele perceber qualquer tipo de caminho que se dirija a essa coisa de uma caricatura grotesca, ele retiraria imediatamente essa referência. É uma coisa bacana também; de como abordar uma referência de uma coisa que você nunca vai ser, mas que você quer se servir daquilo, mas precisa ter consciência disso, não vai mergulhar naquilo. Cláudio – Uma coisa legal de como ele encaminhou a história do marambiré no processo. Porque depois de ele ter falado isso, que o Alberto citou agora, ... Alberto – Ah, ainda não falei do eixo. Cláudio - ...Mas como é que ele vai tocar isso, porque todo mundo ficou com essa pergunta na cabeça: como é que ele vai usar o marambiré, que é o ser, e vai trazer isso para dentro de um trabalho pra que a gente possa utilizar isso sendo. E é legal falar de como o marambiré chegou até nós. Primeiro foi montado, vamos dizer assim, editado, vários momentos de histórias pessoais dos atores. Isso virou um movimento, não está chamando de cena; um movimento dentro de um espaço de várias pessoas que têm as suas histórias ali, que se entrelaçam, que vira uma relação física. E a gente começou a ensaiar uma música, que a gente nem sabia o que era, começou a ensaiar uma música dentro do camarim com o diretor musical. “Hoje é noite de festa...” E a gente não sabia como essa música ia entrar, o que ia acontecer. Sem avisar a ninguém ele ensaiava esse movimento de corpos que se cruzam, que se relacionam com princípio, meio e fim. De repente ele pegou aquela música que a gente estava ensaiando e não sabia o que era, e pediu pra gente cantar naquele momento. Quando a música entrou, tudo se transformou; a qualidade que existia – não a qualidade no sentido de símbolo de qualidade, carimbo de qualidade – mas o que já existia fisicamente ali, começou a se transformar. A música foi um elemento que começou a transformar aquilo, começou a dar uma outra cara, um outro ritmo, uma outra pulsação para aquele movimento que já tinha o seu desenvolvimento ali; começou a ganhar uma outra coisa. O que se percebe de fora, que eu estou de fora dessa cena, que não vai ficar nem o que era, quando era apenas as histórias que se entrelaçavam e que formavam o movimento de uma cena, nem vai ficar o marambiré, porque a gente não está imitando o marambiré, vai ficar uma outra coisa que é resultado da junção dessas outras coisas, e cria uma terceira coisa que é o ser, que ele chama de extrato. Wlad – Extrato da junção do conjunto disso tudo. Alberto – Uma outra coisa importante, Wlad, nesse processo é a questão do tempo dilatado pra criação disso. Tudo surge num tempo muito mais dilatado que se pretende que seja o tempo da cena. E ele fala muito disso, que a gente não deve se preocupar com isso. E de que condensar o tempo, que é a tua teoria do leite condensado, é pra ele o extrato. E todos os trabalhos são feitos assim. Tempo dilatado, onde você vai editando. Wlad – O que tu ias falar do eixo?


157 Alberto – É uma coisa que eu até acho que com certeza vai estar no depoimento do Cláudio. Wlad – Mas fala. Alberto – Queres o meu ponto de vista? Wlad – Claro. Alberto – Um dia, o Cláudio estava fazendo um exercício com a Zê, que era a construção de uma cena Ofélia e Hamlet, que pode ser Ofélia e Hamlet. E o Cláudio, uma hora fazendo o exercício – o Cacá estava nesse dia visivelmante rigoroso na forma de lhe dar com o ator. E o Cláudio uma hora fez um movimento, ele usava o pé excessivamente pra virar daqui pra cá. E aí o Cacá pediu pra resolver de uma forma mais simples, e aí quando ele descobriu, ele fez assim...Ele estava aqui e achava que tinha que estar na mesma linha. Então ele fazia assim, assim e assim. Até que ele descobriu que o que o Cacá queria era apenas isso. Aí ele disse assim: “Ah, Cacá, então eu saio do eixo, né?” Aí o Cacá disse: “Porra, eu não sei, caralho, eu não faço teatro no eixo, fora do eixo, eu quero é que você faça”. O que está por trás disso? Depois a gente conversou sobre isso. Está por trás que um ator como o Cláudio, que é muito rigoroso, que tem um domínio técnico muito grande, que tem uma capacidade de precisão muito grande, e que usa isso como uma arma inconsciente que pode estar bloqueando algumas coisas importantes, que precisam se manifestar. Então ele vai diretamente... Cláudio – Que deviam se manifestar e não se manifestam por causa desse rigor técnico, que é necessário, mas quando coloca isso à frente, como o que puxa, o que determina o meu processo criativo, ele é completamente dispensável. Alberto – O que está por trás disso pra mim é o seguinte: quando o ator Cláudio Barros está ali, faz isso pensando no eixo, não está sendo. Então quando você vem me falar em técnica... Outras coisinhas do processo pra encerrar. O Cacá tem também deixado muito claro a importância que tem a gente se apropriar de tudo que é material, de tudo que entra na cena. Nesse sentido, a música que é a base pra composição do Walter Freitas parte de uma composição dos atores, do som que sai de dentro de mim, os figurinos do ensaio saem das nossas mãos aprendendo a costurar, ensinando um aqui outro ali a cortar...A Zê, que sabe fazer macramê, que a gente diz que é macrazê, ela fez pro figurino de todos...Então é tu que dás os nós naquele momento do trabalho, da tua roupa...Uma coisa muito bonita que me lembra o teatro quando eu comecei a fazer, aquela coisa de arrumar os teus breguecinhos na mochila, que tu sabes o lugar daquilo...Tem uma magia nisso, que o espetáculo já resgatou. Então tem o chocalinho, a flauta...Cada coisa tem o seu lugar... Me remete, Albertoerto, a um momento que eu comecei a fazer teatro, e que por uma via que era de não ter estrutura, acabava que a gente era responsável por todas essas coisas. E o Cacá te mostra que o fato de você ter uma estrutura melhor, uma produção mais estruturada, uma coisa logística, não muda a importância da relação que o ator tem que ter com cada coisa, que ele vai segurar, que ele vai vestir, que ele vai falar...Ele faz com que o processo passe muito por essa coisa da tua (....) Tu colocas a tua mão em tudo que vai para ali. Isso é muito interessante.Eu vou encerrar o meu discurso. Sabe aquele um


158 minuto que o político tem...O que eu acho bacana, Wlad, é o seguinte: eu sei que Hamlet é pra vida toda, se eu quiser que seja. Eu acho que eu nunca mais vou poder me descuidar da forma como eu ando, de entender como as forças da física atuam no meu corpo, que é meu instrumento. Eu preciso estar muito mais atento à necessidade de enxergar a vida, que é uma coisa que o Alberto Silva não faz...Quantas vezes eu ando trinta minutos na janela de um ônibus absorvido em pensamentos, em lógicas, sabe, elocubrações, e deixo de ver a vida que está ali do lado. Eu acho que esse processo chama a atenção pra isso. Se eu sou ator, eu tenho que ter a capacidade de enxergar a vida, o tempo inteiro, porque aí eu começo a me tornar consciente de mim, aí eu posso ir em busca desse processo que um dia pode acontecer que é de conseguir, pelo menos trabalhar em ti essa questão de buscar que a tua essência, ou alguma coisa que a gente chame disso possa estar mais presente, possa se manifestar. Talvez nós possamos ser pessoas mais francas e abertas com os outros...te interessa que eu diga essas coisas, também? Wlad – Claro. Alberto – Que não é do processo, mas pra que eu acho que isso pode servir na minha vida? É pra eu ficar na frente de cento e vinte pessoas, nove horas da noite, debaixo de vinte refletores, toda noite, durante três meses, é pra isso? Isso tem uma importância pra mim na vida dessas pessoas? Pode ter. Mas sabe quando o processo te abre para procurar um sentido maior, que foi aquele papo do dia em que tu estavas lá, que ele falou disso. Mas pra mim, pelo menos, isso já é presente porque eu já trabalhei com o Cacá e porque tem uma reflexão sobre isso, mas nesse processo isso é uma coisa cuidada, é uma coisa que ele faz questão que a gente trate com carinho, que você sempre procure o sentido que isso pode ter pra tua vida, e que o teatro seja um veículo, um meio, que ser ator seja um meio pra esse conhecimento de si, para o conhecimento do outro...Enfim, pra vida. Wlad – Alberto, as quatro imagens que eu vou voltar a falar contigo são as seguintes: as flores de plástico, a rede, a praça e aquele mapa da evolução, da essência do ser humano. Desses exemplos que tu falaste, tu não falaste do Senhora dos Afogados. Alberto – Falei sim. ( e repete o que falou) Wlad – Porque tu falaste sobre isso também em relação à “Vida é Sonho‟. Alberto – Tem uma coisa que eu lembrei.... Wlad – Então fala, porque eu vejo se eu lembro Alberto – O Basílio, tu sabes a importância que tem aquele personagem pra mim. Foi a primeira vez que eu tentei estabelecer pra mim pontos de partida, referências para um processo de construção, toda aquela coisa que a gente viveu que tu sabes bem. E tem uma coisa que era interessante no Basílio, que nesse processo caiu a ficha de lá. Talvez fosse bastante crível aquilo porque era concreto, porque eu criei um universo imaginário muito forte, que passava por umas colunas escuras, altíssimas, por uns túneis escuros, que foram referências que eu falei no processo, e tal. E quando eu estava em cena, e quando eu fazia a cena, eu tinha concretamente essas imagens. Wlad, não é uma parede aqui, concreto nesse


159 sentido, mas é uma idéia da parede, é uma idéia de cor, é uma idéia de cheiro, e eu tinha, naquela primeira cena da Clorinda, a imagem da rainha como um fantasma. Sabe aquela coisa que se esfumaça no ar? Tudo isso estava imaginado naquele processo. Então, eu acredito que isso era uma tal de concretude que a gente fala aqui agora, que eu acho que funcionava lá. Wlad – Deixa eu te jogar uma frase do Cacá. Ele diz assim: “Esse trabalho tem a ver com „Senhora dos Afogados”, e tudo que ele fez aqui, e que o Hamlet conversa com “Senhora dos Afogados”. O que tu compreendes disso? Alberto – Eu acho que por exemplo: o olhar sobre sua história pessoal em “Senhora dos Afogados”, na cena, estava na imagem de cada um na sua janela. Por exemplo... mas eu absolutamente não trabalhei com essa referência da história pessoal, eu não entendia muita coisa daquele negócio ali, porque eu era tão RAM....RAM...que eu não conseguia....por isso que ele: (grita)....caralho! pra eu escutar. Então hoje eu entendo muito mais claramente porque o Cacá fazia TUM...e eu chorava, me descabelava. Eu acho que eu não tinha consciência dessa possibilidade que tu tens de olhar e lidar com as coisas com essa tranquilidade que eu te falei do quebra-cabeça do monstro, sabe? Que uma hora parece uma coisa, esse lado é diferente desse, parece que isso não é a mesma coisa que isso, mas na verdade é uma outra coisa...E no “Senhora dos Afogados”, pra mim, era tudo muito, eu estava muito perdido naquele negócio, na verdade, e eu acho que eu não consegui fazer, eu acho que eu executava uma idéia, na melhor das hipóteses, não enfrentava essa coisa, que o Cacá fala e é muito forte também, que é de se dizer, sabe? Eu acho que por exemplo, naquela cena que eu fiz com a Teka Sallé, da mãe, eu não consegui, na verdade, ali, me dizer. Talvez eu não tivesse ali uma segurança na relação com a minha mãe, com um pavor dessa coisa da relação pessoal, da profundeza, dessa coisa, de um elo que te une a uma pessoa com essa força toda, e isso tinha que ser matéria pra mim ali, e eu acho que na vida eu não tinha a menor maturidade pra lidar com isso como matéria. Wlad – Engraçado, no nosso trabalho de autobiografia, o momento de trabalho foi essa cena que você descreve, essa relação com o Cacá e essa cena, e você fala no texto, feliz da vida, “achei, tá pronto”... Alberto – Eu vou usar uma metáfora, só pra te homenagear....Naquele dia eu fui uma margarida de verdade, que no outro dia não tinha água e murchou. Eu não era uma margarida de plástico, não era desenhado, construído, concreto, com uma referência real, mas artificial no sentido do domínio do que eu estou fazendo, da arte. O que nós vivemos, nós quatro trancados, foi um momento talvez forte na vida do Albertoerto, mas pro teatro ali não tinha nada. Tanto não tinha que não existiu; existiu como aquele momento. Talvez uma importância absurda na minha vida como ator, porque ali eu pude vislumbrar aonde pode chegar a partir dessa coisa que é a atenção e a sensibilidade na vida sempre. É a ponte que eu faço com o Artaud, que me interessa muito. Eu acho que a ponte do Grotowski, o homem que virou cinza, com o Artaud é essa coisa de que não há como que a tua arte, o teatro que tu fazes seja uma coisa profunda e verdadeira se não houver uma reeducação da pessoa para a vida ou uma...Tá claro? Que o Artaud disse: “Eu não acredito numa obra de arte, eu represento totalmente a minha vida.” Ele levou isso a um extremo que tem toda uma particularidade do Artaud, da história da vida que ele teve e daquilo tudo. Mas a ponte


160 com o que o Cacá tem generosamente revelado pra gente nesse processo inteiro, que vem de uma base muito forte lá de Pontedera, dessas pesquisas, da arte de interpretação desse senhor lá, passa por essa questão, de que você precisa se trabalhar para a vida, que a tua qualidade como ser humano vai determinar a tua qualidade como artista. Wlad – Se tu lembrares de mais coisa vai falando... Alberto – Tu é perigosa... Uma coisa que eu estava pensando enquanto estava te esperando. Que tu foste, tu e Olinda, foram as únicas pessoas as quais o Cacá se referiu, nesse processo, como pessoas que deveriam participar dele, mas não podiam. E aí eu te vi aquele dia no teatro, fiquei pensando nisso, pegar um processo desse como uma referência, aí eu entendo como é essa tua maneira de estar fazendo Hamlet, mesmo que isso pareça uma coisa meio babaca, mas eu acredito que é uma maneira que tu tens de se relacionar com a coisa, que mostra como tu és isso, também. Uma coisa que eu penso muito é o seguinte: qual é a autonomia que como ator eu tenho no trabalho? Já está claro que tudo parte de mim, o Cacá trabalha realmente com a matéria que nós oferecemos, ou da nossa história pessoal, ou da nossa observação, que já é uma interpretação. Quando eu estou olhando lá, eu estou interpretando. Wlad – Ele até fala de editar... Alberto – É, tu observas quarenta minutos, e tem que mostrar três, isso já é uma representação, interpretar a coisa, porque já condensa com outro tempo. Mas o que eu queria dizer era o seguinte: você fica a mercê de uma pessoa que controla aquilo, no sentido da hora em que cada um vai experimentar alguma coisa que conduz...agora Albertoerto e Zê...Aí eu fico pensando: isso me parece uma estrutura que às vezes pode aprisionar o ator, mas se eu quiser...Se alguma coisa me chamar a atenção, e eu quiser parar tudo e dizer: “Olha, eu queria mostrar isso aqui”. Será que isso é um aprisionamento do ator? Essa coisa de ser conduzido, comandado com muito rigor por uma pessoa que está fora; ele é que te diz, invariavelmente, a cena que tu vais trabalhar hoje, se aquela cena tu vais passar dez dias sem fazer. Isso o Cacá decide e eu não discuto isso com ele. Ele conduz uma coisa que ele quer que eu descubra e que ele quer que fique ali guardada durante um tempo, que adormeça, que ele diz que quando acorda, isso acorda de outra maneira. Aí eu comecei a viajar nesse questionamento de saber se isso não cerceava a minha autonomia natural que eu teria que ter sobre o processo. Aí hoje eu começo a entender que não, como é isso, que é uma capacidade de estar atento e de administrar a ansiedade para num momento preciso ativar aquilo ali. Faz parte da tua arte, também. E eu acho que você ter muita flexibilidade com isso, ou seja, um ensaio onde todo mundo diz como é que vai fazer, entendeu? Eu acho que pode criar uma barreira, ao invés de ajudar, você a passa a racionalizar demasiadamente certas coisas. O Cacá é preciso quando ele te faz repetir duas vezes um negócio e passa pra outro. Porque talvez na terceira tu já colocasses um ingrediente que para ele não interessa que tu coloques ali naquele momento. Ele passa até dias sem passar uma cena, porque talvez se ele passar aquela cena todo dia, pode chegar em dez dias, tu já não vais ser nada do que tu eras antes. Então eu acho que como ator, eu estou aprendendo a administrar essa ansiedade também, do momento em que eu sou solicitado a contribuir com ele no processo de criação, e que é preciso e eu tenho que estar sempre pronto pra fazer. Às vezes tu não fazes nada três dias. Chega uma hora em que tu dizes: “Égua, caralho, eu


161 quero ensaiar uma cena, quero mexer, quero descobrir alguma coisa, sei lá”. Faz parte do processo de buscar a delicadeza. Talvez três dias olhando o outro seja muito mais rico do que tu pensas quando a tua ansiedade só te põe na tua frente a porra da cena que tu tens que resolver. Ele te mostra que tu tens que olhar muito o outro fazendo, que tens que escutar o outro falar sobre o seu trabalho, o outro ponto de vista (....) por isso muitas vezes conversamos durante uma hora e meia, quinze dias. Como foi ontem para você? É sempre a pergunta do início. Tu olhas e diz assim: tem vinte dias pra montar essa porra, não vai estrear. Nós temos quatro horas de ensaio,; hoje nós passamos duas horas e meia conversando.


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