O TEATRO AO ALCANCE DO TATO
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS TESE DE DOUTORADO
O TEATRO AO ALCANCE DO TATO: UMA POÉTICA ENCRAVADA NOS PORÕES DA CIDADE DE BELÉM DO PARÁ
WLADILENE DE SOUSA LIMA
BAHIA 2008
WLADILENE DE SOUSA LIMA
O TEATRO AO ALCANCE DO TATO: UMA POÉTICA ENCRAVADA NOS PORÕES DA CIDADE DE BELÉM DO PARÁ
Tese apresentada como exigência parcial para a defesa pública ao Título de Doutora em Artes Cênicas, à Banca Examinadora da Universidade Federal da Bahia, organizada sob a orientação da Profa. Dra. Sônia Rangel.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
BAHIA 2008
É preciso aceitar ser finito: Estar aqui e em nenhum outro lugar, Fazer isto e não outra coisa, agora e não sempre ou nunca [...]; Ter apenas esta vida. André Gorz. .
Dedico esta tese a minha mĂŁe Dolores de Souza Lima Que para me salvar, me presenteou com uma grande potĂŞncia de vida: o Teatro Wlad Lima.
AGRADECIMENTOS Às Universidades Federais do Pará e da Bahia. À direção do Instituto de Ciências da Arte da UFPA. À coordenação do Programa de Pós-Graduação da UFBA. À Escola de Teatro e Dança da UFPA. À Escola de Teatro da UFBA. À CAPES. Aos funcionários do ICA. Aos funcionários do PPGAC da UFBA. Aos funcionários da ETDUFPA. Alex Fiúza de Melo, Antônia Pereira, Afonso Medeiros, Lia Braga, Valzely Sampaio, Vânia Contente, Lúcia Uchôa, Sérgio Farias, Angela Reis, Marcos Palacios, Edvaldo Couto, Lia Rodrigues, Fernando Passos, João de Jesus Paes Loureiro, Mariza Morkazel, Josebel Fares, Alex Beigui. A minha orientadora Sônia Rangel. Aos colegas de SPI – Seminário de Pesquisa Intensivo.
Às amigas da saudade que trouxe comigo: Sandra Bugarabu, Cristina, Chanda, Suzane, Lourdes, Ana São José, Jaqueline e Rose Vermelho. À minha amiga-cabeção Ana Ribeiro. Aos amigos Fábio Araújo, Fábio Vidal, Macários e Márcio Meireles. Ao Bando de Teatro Olodum Às ―figuras‖ do dia-a-dia: Iara, Vera, Fafa, Elaine e todas as meninas do Point do Acarajé. Às minhas visitantes-salvadoras: Anne Dias, Michele Campos e Nani Tavares. Às amigas de Belém, que sustentaram a cabeça da gente: Flávia Mendes, Gisele Moreira e Viana À ―baianíssima‖ Karla Amorin, À minha queridíssima afilhada Fernanda Jansen. À minha eterna amiga e professora Maria Sylvia Nunes Às parceiras de transcrições Telma Monteiro e Janilce Silva Praseres. Aos companheiros e companheiras da Fundação Curro Velho,
Aos meus companheiros encenadores de porão: Nando Lima, Marton Maués, Marluce Oliveira, Iara Regina, Aníbal Pacha, David Matos e Luís Otávio Barata (in memória). Ao grande e amoroso amigo, Elói Correa, À minha grande parceira, de vida e arte, Olinda Charone. Ao meu coração amado Karine Jansen. À minha mãe e irmãos pela força, carinho e orações.
Agradecimentos especialíssimos aos fazedores do espetáculo Em Carne e Osso: Cláudio Barros, Olinda Charone, Oriana Bitar, Patrícia Gondim e aos do fora da cena: Zê Charone, Marcela Condurú, Manoel Pacheco, Ronaldo Rosa e Janjo Proença. Ao meu consultor de coração Edyr Augusto Proença.
A todos os 60 espectadores-de-mentirinha dos ensaios abertos do espetáculo. E aos 111 espectadores-oficiais que estiveram lá.
RESUMO
O Teatro ao alcance do tato: Uma Poética Encravada nos Porões da Cidade de Belém do Para é uma tese de doutorado em Artes Cênicas, que investiga o fazer teatral através dos processos criativos de onze espetáculos, realizados pela pesquisadora, em porões de casas na cidade de Belém do Pará entre os anos de 1990-2002, para assim, gerar um novo espetáculo teatral - o Em Carne e Osso. Esse experimento cênico articulou a tese de reconhecimento dos princípios e recorrências dessa prática, como uma estética teatral específica, particular e local. As perguntas, Que pensamentos governam esta minha prática? Como se caracteriza esta prática de fazer teatro em porões na minha cidade? são os motes centrais deste estudo na medida em que processos de criação em espaços de porão não possuem nenhum documento de registro e/ou de investigação científica. Para compor as bases das proposições sobre esta minha prática, sirvo-me do referencial teórico e metodológico de Deleuze e Guattari, fazendo uma análise cartográfica do conjunto selecionado de 11 espetáculos utilizando-se em dominância o pensamento estético filosófico desses dois autores, especificamente a fabulação como bloco de sensações, perceptos e afectos. Para concepção e realização do novo espetáculo, o processo de criação foi potencializado pela utilização dos princípios geradores reconhecidos nas práticas estudadas, pelos escritos reflexivos de Jerzy Grotowski no que concerne à fórmula espacial unitária e pelo diálogo com os estudos dos padrões proxêmicos de Edward Hall quanto às ―distâncias‖ vivenciadas por atores e espectadores nos espaços de porão. Os aspectos conclusivos advindos deste estudo estão inteiramente comprometidos pelo grau de implicação da pesquisadora na história recente do teatro em Belém do Pará. . Palavras-chaves: Teatro de Porão – Teatro-porão – Processo de Criação – Teatro do Devir - Fórmula Espacial Unitária – Cena.
ABSTRACT
The Theater at touch range: A Poetical Stuck in the Basements of the City of Belém of Pará, it is a doctorate thesis in Scenic Arts, which investigates the theatrical making, through the creative process of eleven spectacles, carried by the researcher, in the basements of houses in the city of Belém of Pará, between the years of 1990-2002, for therefore generating a new theatrical spectacle – In Flash and Blood. This scenic experiment articulated the thesis of recognition of principles and recurrence from this practice, like a specific, particular and local theatrical esthetic. Questions like Which thoughts do reign this practice? How does characterizes this practice of making theater in the basements of my city? Are the central mottos of this study, at the range where creative processes in basements spaces, doesn‘t possess any registration document, neither a scientific investigation. To compose the basis of proposals about this practice, I serve myself from theoretical and methodological referential, from Deleuze and Guattari, making a cartographic analysis of the selected set of 11 spectacles, using in dominance the philosophical aesthetic thought of these two authors, specifically the fantastic report as block of sensations, perceptions and affections. For conception and accomplishment of the new spectacle, the creative process was enriched by the use of recognized generating principles, in the studied practices, by the reflective writings of Jerzy Grotowski, in which concerns the unitary space formula, and by the dialogue with studies from the proxemics patterns of Edward Hall about the "distances" lived by actors and spectators in the basements spaces. The happened conclusive aspects of this study are entirely compromised by the degree of implication from the researcher in the theatrics recent history of Belém of Pará.
Keywords: Theater from the Basement - Basement Theater – Creative Process – Devir-Theater – Unitary Space Formula – Scene.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Porão Cultural da UNIPOP............................................................................................32 Figura 2: O Teatro Cláudio Barradas da UFPA.............................................................................33 Figura 3: O Espaço Mariano da UFPA..........................................................................................34 Figura 4: O Teatro Bufo................................................................................................................35 Figura 5: Teatro U.Porão...............................................................................................................41 Figura 6: Cenas de Leão Azul ......................................................................................................46 Figura 7: Cena de The Hall ..........................................................................................................47 Figura 8: Cena de Zumbi..............................................................................................................48 Figura 9: Cena de São Nelson Nosso Rodrigues ........................................................................48 Figura 10: Cena de O Lixo a Cidade e a Morte..........................................................................49 Figura 11: Cena de Cuí de Biscoito .............................................................................................49 Figura 12: Cenas de Querubim Bleck..........................................................................................51 Figura 13: Cena de Morte e Vida Severina.................................................................................52 Figura 14: Espectadores coroados nos papéis de Rei e Rainha em Milkshakespeare.................55 Figura 15: A imagem cenográfica do espetáculo As Academias de Sião....................................56 Figura 16: Imagem cenográfica de Cadeira de Balanço .............................................................58 Figura 17: Página do diário de trabalho do Grupo Alfabumba 59 Figura 18: O espectador como integrante deste universo ficcional...............................................60 Figura 19: Projeções em multimídias fazem da imagem cenográfica um caleidoscópio..............61 Figura 20: A encenadora e os três atores de ÀGUA AR DENTE................................................73 Figura 21: O banheiro como imagem cenográfica para Dama da Noite......................................80 Figura 22: Relação ator / espectador em Dama da Noite.............................................................81 Figura 23: Em cada zona inscrições que orientavam o espectador................................................82 Figura 24: As zonas de atuação / encenação em Hamlet..............................................................83 Figura 25: O Reino farsesco de Mariano......................................................................................84 Figura 26: Imagens espelhadas para o espectador.........................................................................85 Figura 27: A Ciranda do movimento das imagens cenográficas...................................................86 Figura 28: Cenas de Maravilhosa Orlando.................................................................................87 Figura 29: Poesia no picadeiro de vidro do Circo Vitória...........................................................89 Figura 30: Elenco circense em risco no picadeiro de vidro...........................................................89 Figura 31: Uma caixa de areia na zona do teatro naturalista.........................................................90 Figura 32: Atores e técnicos juntos em cena.................................................................................91 Figura 33: A estrutura cenográfica partindo o teatro ao meio.......................................................93 Figura 34: Série de cenas mostrando as relações espaciais entre as personagens.........................94 Figura 35: A imagem revelar as aproximações radicais entre ator e espectador...........................96 Figura 36: Uma atmosfera envelhecida atingia personagens e objetos.........................................97 Figura 37: O elenco de Devagarinho... ........................................................................................98 Figura 38: O sarcasmo entre as personagens em ÀGUA AR DENTE.........................................99 Figura 39: Imagens cenográficas psicodélicas.............................................................................102 Figura 40: Série de Imagens com as Propostas de Iluminação....................................................103 Figura 41: Atores caracterizados como os ciganos de muitas Macondos...................................104 Figura 42: A CASA na esquina da TV. Campos Sales com Rua Riachuelo...............................123 Figura 43: A Biblioteca preparada para receber pesquisadores...................................................124
Figura 44: Série de Imagens dos dois ateliês...............................................................................125 Figura 45: O Camarim aberto na área de circulação...................................................................127 Figura 46: Jardim interno como espaço de convivência..............................................................127 Figura 47: Imagem dos primeiros momentos do Teatro Brinquedo 128 Figura 48: Imagem do Teatro Brinquedo em momento posterior com a vestimenta do palco formando a caixa preta.................................................................................................................129 Figura 49: Série ângulos diversos da sala-laboratório Puta Merda.............................................130 Figura 50: Cartaz do espetáculo Império de São Benedito.......................................................131 Figura 51: Boneco-lúcia-menina-surda-muda.............................................................................136 Figura 52: Conjunto de imagens do elemento cenográfico construído para determinar palco e platéia...........................................................................................................................................138 Figura 53: Série de imagens do Exercício de construção da relação Corpo / Espaço.................140 Figura 54: Série de imagens da pesquisa do fator postura...........................................................142 Figura 55: Série de imagens da pesquisa do fator eixo sociofugo / eixo sociopeto....................143 Figura 56: Série de imagens da pesquisa do fator sinestésico.....................................................143 Figura 57: Série de imagens da pesquisa do fator comportamento de contato............................144 Figura 58: Série de imagens da pesquisa do fator código visual.................................................144 Figura 59: Série Imagens da apropriação espacial e fabulação cenográfica................................156 Figura 60: Série Imagens da apropriação de objetos para a cena................................................157 Figura 61: Série Imagens das trocas de pesquisa e experimentações entre os atores..................158 Figura 62: Série Imagens da pesquisa e das experimentações de animações e sombras.............159 Figura 63: Série Imagens das adequações cenográficas..............................................................159 Figura 64: Série Imagens das experimentações de visualidade...................................................160 Figura 65: Jovens atores do Grupo Infanto-juvenil da ETDUFPA.............................................162 Figura 66: Série Imagens da Área de acolhimento......................................................................165 Figura 67: Série Imagens detalhes da cena I...............................................................................167 Figura 68: Série Imagens detalhes da cena II..............................................................................169 Figura 69: Série Imagens detalhes da cena III.............................................................................170 Figura 70: Série Imagens detalhes da cena IV.............................................................................171 Figura 71: Série Imagens detalhes da cena V..............................................................................173 Figura 72: Série Imagens detalhes da cena VI.............................................................................174 Figura 73: Série Imagens detalhes da cena VII...........................................................................175 Figura 74: Série Imagens detalhes da cena VIII..........................................................................176 Figura 75: Série Imagens detalhes da cena IX.............................................................................177 Figura 76: Série Imagens detalhes da cena X..............................................................................178 Figura 77: Série Imagens detalhes da cena XI.............................................................................179 Figura 78: Detalhe do chão..........................................................................................................180 Figura 79: Detalhe da escada.......................................................................................................181 Figura 80: Detalhes da cena de sombras......................................................................................182 Figura 81: Série de Imagens da morte de Sereno/velho..............................................................183 Figura 82: Imagem noturna da casa na saída do público.............................................................186 Figura 83: Detalhes da Imagem cenográfica da jaula..................................................................187 Figura 84: Detalhes da Estrutura cenográfica..............................................................................188 Figura 85: Prof. Dr. Paes Loureiro ao lado da Profa. Dra. Sônia Rangel, orientadora desta pesquisa........................................................................................................................................197 Figura 86: Kil Abreu sentado a esquerda da pesquisadora..........................................................198
SUMÁRIO DA TESE 1 APRESENTAÇÃO.....................................................................................................................01 1.1 A COMPOSIÇÃO DESSE ESTUDO.....................................................................................02 1.2 REVELAR QUEM FALA E DE ONDE FALA.....................................................................03
2 INTRODUÇÃO: IMAGENS E DIÁLOGOS TEÓRICOS...................................................06 2.1 A IMAGEM DO RIZOMA DE GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI NA COMPREENSÃO DE UMA POÉTICA CÊNICA.......................................................................07 2.2 FLEXIBILIZAÇÃO DA RELAÇÃO PALCO/PLATÉIA EM BUSCA DA ―FÓRMULA ESPACIAL UNITÁRIA‖ DE JERZY GROTOWSKI..................................................................12 2.3 COMPREENDER O JOGO ENTRE ATORES E ESPECTADORES EM UM ESPAÇO MÍNIMO: DIÁLOGO COM O CONCEITO DE ―DISTÂNCIAS‖ DE EDWARD HALL.........21
UMA RATAZANA DE PORÃO: IMAGENS E MEMÓRIA.................................................26 3. UMA CARTOGRAFIA DO TEATRO EM PORÕES.........................................................29 3. 1 OS OBJETOS DESSA CARTOGRAFIA........................................................................31
3.2 OUTROS CRIADORES DO SUBTERRÂNEO: CONTEXTOS DA PESQUISA...............40 4 O RECONHECIMENTO DE UMA POÉTICA...............................................................63 4. 1 O PLANO DE COMPOSIÇÃO..............................................................................................66 4. 2. MAPA DA FABULAÇÃO POÉTICA..................................................................................70 4. 3 UMA LEITURA DO MAPA POÉTICO................................................................................71 4.4
IMAGEM-SÍNTESE,
PRINCÍPIOS,
PROCEDIMENTOS,
RECORRÊNCIAS
E
CONEXÕES DESTA POÉTICA................................................................................................115
A CASA DE MINHA CENA.....................................................................................................120 5 O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO EXPERIMENTO CÊNICO.......................................121 5. 1 O PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA CASA................................................................123 5. 2 PARA ENTENDER QUE CASA É CORPO É COSMO NO MEU FAZER TEATRAL...132 5. 3. O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO EM CARNE E OSSO......................134
6 O ESPETÁCULO EM CARNE E OSSO LEVADO A PÚBLICO.....................................163 6. 1 O ITINERÁRIO DA ATENÇÃO DO ESPECTADOR EM CARNE E OSSO................165 6. 2 O MAPA DA FABULAÇÃO POÉTICA DO EM CARNE E OSSO................................186 6. 3 ANÁLISE DO MAPA DA FABULAÇÃO POÉTICA DO EM CARNE E OSSO...........187 6. 4 O ESPECTADOR.................................................................................................................190 6. 5 O SENTIDO DO DEBATE..................................................................................................194
7 ASPECTOS CONCLUSIVOS...............................................................................................195 7. 1 PRIMEIRO PLATÔ: A ESTÉTICA DA PROXIMIDADE.................................................196 7.2 SEGUNDO PLATÔ: UM TEATRO MENOR......................................................................199 7.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................201
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................204
9 ANEXOS..................................................................................................................................208
1 APRESENTAÇÃO
O Teatro ao alcance do tato: Uma Poética Encravada nos Porões da Cidade de Belém do Para é uma tese de doutorado em Artes Cênicas, articulada com um experimento cênico: o espetáculo teatral Em Carne e Osso. O objetivo central desta pesquisa foi investigar o fazer teatral através dos processos criativos de onze espetáculos, realizados pela pesquisadora, em porões de casas na cidade de Belém do Pará entre os anos de 1990-2002, para assim, gerar um novo espetáculo onde estão presentes princípios e recorrências dessa prática, como uma estética teatral específica, particular e local. Este estudo requereu várias ações objetivadas não isoladas, pois se apresentaram envoltas de uma permanente confluência. Os objetivos que marcaram essas ações foram: fazer uma análise cartográfica do conjunto selecionado de 11 espetáculos utilizando-se em dominância o pensamento estético filosófico de Deleuze-Guattari, especificamente a fabulação como bloco de sensações, perceptos e afectos; gerar um novo espetáculo, cujo processo de criação foi potencializado pela utilização dos princípios geradores reconhecidos nas práticas estudadas, pelos escritos reflexivos de Jerzy Grotowski no que concerne à fórmula espacial unitária e finalmente, pela imagem da casa – encontrada nos escritos de Sônia Rangel - como idéia-força na construção desta pesquisa; levar o espetáculo a público, em temporada, como requisito parcial - num diálogo com a teoria dos padrões proxêmicos de Edward Hall, fundante nesse estudo – articulando assim, o registro prático-teórico do experimento à uma tese de doutoramento; e por fim, contextualizar as motivações na recorrência desta prática também exercida por outros encenadores, através da escuta sensível de suas reflexões teórico-práticas, seus planos de
composição - no mesmo período, na mesma cidade - contribuindo para o registro da história recente do teatro em Belém do Pará.
1.1 A COMPOSIÇÃO DESSE ESTUDO
O corpo da tese é composto por quatro partes: apresentação / introdução, o bloco das escavações (dois capítulos), o bloco da encarnação (dois capítulos) e os aspectos conclusivos da tese, referências e anexos. A primeira parte compõe-se, além dessa apresentação, de uma introdução que revela, em parte, os diálogos teóricos, filosóficos e estéticos, que geraram a tese. A segunda parte, denominada de bloco das escavações, compõe-se de um prefácio intitulado Uma Ratazana de Porão: Imagens e Memória e mais dois capítulos. O primeiro é uma cartografia que expõe a produção cênica da pesquisadora e de outros criadores, em espaços de porão, iniciando os argumentos sobre a existência, na cidade de Belém, de uma prática teatral específica, particular e local - passível de ser reconhecida ou não, como uma categoria teatral. O segundo, que completa este bloco das escavações, é uma cartografia poética dobre o trabalho da pesquisadora, como encenadora, de um conjunto de onze espetáculos montados nesses espaços da cidade. Esta análise tem como base teórica, conceitos Deleuze-Guattarianos. A terceira parte, denominada de bloco das extrações, compõe-se de um prefácio intitulado A Casa de Minha Cena e dos terceiro e quarto capítulos da tese. O terceiro capítulo descreve e analisa o processo de criação do espetáculo Em Carne e Osso - com seus princípios e processo – e o quarto capítulo, apresenta o itinerário da atenção do espectador construído pela encenadora – neste itinerário, tanto atores quanto espectadores, são considerados seus intercessores humanos.
A quarta e última parte, compõe-se de algumas considerações finais, referências e anexos, encerrando o corpo desta tese.
1.2 REVELAR QUEM FALA E DE ONDE FALA
Em 1979, dois acontecimentos foram marcantes para a categoria teatral paraense: em janeiro é fundada a FESAT – Federação de Atores, Autores e Técnicos de Teatro e em setembro, inaugura na cidade o Teatro Experimental do Pará Waldemar Henrique. Por coincidência ou destino, em março deste mesmo ano – inscrita como aluna do Curso de Formação de Ator da Escola de Teatro da Ufpa – eu começo a fazer teatro. A FESAT, o Teatro Experimental do Pará e o Serviço de Teatro da UFPA, hoje Escola de Teatro e Dança da UFPA - ETDUFPA, todos instalados no mesmo bairro da Campina. Um pertinho do outro, o que possibilitava um tráfego intenso de informações e experiências entre os artistas da cena e os jovens alunos-atores. Quem já estava na cena teve, com a concepção e a abertura do Teatro Waldemar Henrique, o coroamento de suas lutas e reinvidicações, todas elas organizadas pela Federação Estadual de Teatro Amador do Pará / FETAPA, precedida imediatamente pela FESAT - esta constituída exatamente para representar estes artistas junto ao poder público, mais especificamente à Secretaria Estadual de Cultura, Desportos e Turismo – SECDET1, na pessoa do Sr. Olavo Lira Maia, após uma década de manifestações, protestos e ocupações de logradouros públicos para as apresentações teatrais. O Grupo Cena Aberta foi o maior exemplo desta organização. Ocupando durante alguns anos o Anfiteatro da Praça da República - liderado pelo então diretor do grupo, o encenador, cenógrafo e jornalista Luis Otávio Castelo Branco Barata –, este grupo manteve a pressão 1
Atualmente, SECULT – Secretaria do Estado da Cultura.
política sobre o Estado, garantindo a presença da produção teatral no cenário artístico da cidade de Belém, na época. Neste clima de pleitos, manifestações e negociações, nascem não só o Teatro Waldemar Henrique e a FESAT, mas o caráter experimental de nosso fazer teatral. Digo nosso, porque todos nós que nascemos para o teatro naquele período, demos a nossa primeira respirada cênica experimentando as multiplicidades do palco, os múltiplos formatos de cena, as variadas relações entre palco-platéia, que o ―Waldeco‖ – apelido carinhoso dado por nós, a este teatro – podia nos oferecer. Nós, desta geração que nasceu para os anos 80, crescemos acreditando no teatro como eterna experimentação - mais que isso, na experimentação como forma de questionamento tanto da linguagem cênica quanto das políticas culturais para o teatro – desejando romper, ingenuamente, as fronteiras das convenções estabelecidas. Para isso, acreditávamos que os elementos da linguagem precisavam, constantemente, ser experimentados: a disposição do espaço cênico para flexibilização da relação atores/espectadores, a escolha dos materiais de cena, o processo de construção das obras, a exposição dos elementos cenográficos, à vista dos espectadores, os processos de criação dos atores, o reconhecimento dos espectadores como construtores de sentido, a atualização constante das temáticas dos espetáculos, a quebra da dramaturgia rigorosa, a construção de novas dramaturgias para a cena, independentes dos textos pré-escritos etc. Por cerca de uma década, toda esta experimentação fervilhava em nossas veias e atitudes. Mas instalaram-se estados de conflitos por causa de novas políticas e dos novos homens da cultura, todos de costas para o teatro feito aqui no Pará. O Teatro Waldemar Henrique, como o grande agregador das categorias artísticas e estimulador do ―novo teatro‖, pereceu frente à burocracia, ao descaso e às políticas nada democráticas dos primeiros tempos.
Nós, os criadores de cena, fomos alijados daquele espaço de vida e de arte. Expulsos do paraíso, saímos todos nós, outra vez a mambembar. Porém, já contaminados por uma ética e uma estética derivadas do caráter experimental daquele útero-teatro. Uma força estava em nossas mãos e isso nos dava coragem para ouvir a voz que vinha do subterrâneo da alma. Ou seria da cidade? A voz: ―Se fora possível experimentar inusitadas propostas de cena, dentro de um único espaço, porque não experimentar, cenicamente, espaços outros, para descobrí-lhes o inusitado!?‖ Afinal, somos filhos do Teatro Experimental do Pará.
2 INTRODUÇÃO: IMAGENS E DIÁLOGOS TEÓRICOS
Retorno nesta tese com autores que me são caros. Os teóricos, ou melhor, filósofos e seus pensamentos estéticos – Gilles Deleuze e Félix Guattari - que escolho como uns dos referenciais dominantes dessa tese, não são desconhecidos para mim. Eles me acompanharam em minha dissertação de mestrado intitulada DRAMATURGIA PESSOAL DO ATOR: A História de Vida no Processo de Criação de HAMLET – Um Extrato de Nós, com o Grupo Cuíra, em Belém do Pará2. Por isso, penso nesta tese como uma continuidade dos estudos das Poéticas e Processos de Criação e como a possibilidade de meu aprofundamento nesta linha teórica; a oportunidade de dizer de novo, mas de outro jeito, quem sabe. Quero tentar digerir melhor um pensamento que tanto me mobilizou, ou melhor, que tanto me mobiliza para pensar o teatro. O segundo diálogo aqui apresentado é com o pensamento-ação de Jerzy Grotowski3, mais especificamente com o seu conceito de ―fórmula espacial unitária‖, que para mim é relativamente novo na esfera da reflexão, mas não o é na prática. Creio que as realidades físicas dos porões, onde desenvolvo minha produção cênica, bem como minhas próprias propostas de encenação, poucos condizem com a utilização das dualidades da cena de forma convencional, isto é, palco e platéia / ator e espectador / ver e fazer para ser visto. Hoje os escritos de ontem de Grotowski (de 1959 a 1969) ajudam-me a compreender certas coordenadas empreendidas em meu trabalho, para assim poder revelá-las no corpo deste estudo. Esclareço que mesmo nos momentos de suas realizações não fossem assim pensadas, foram sim, profundamente intuídas.
2
Esta dissertação teve uma edição publicada pela autora com o título Dramaturgia Pessoal do Ator. Jerzy Grotowski, diretor polonês, que durante as décadas de 60 e 70 transformou-se num dos mais importantes reformadores das artes do teatro. Durante os anos 80 e 90, radicou-se na Itália, desenvolvendo um trabalho colaborativo com Richard Thomas. 3
Outro diálogo, ou melhor, aproximação teórico-prática, foi com os estudos proxêmicos de Edward Hall, mais especificamente, com o conceito de ―distâncias‖ e a sua classificação dessas distâncias nas relações humanas. Foram conhecimentos adquiridos pela necessidade de realização deste estudo, principalmente por serem operadores, isto é, passíveis de serem adotados como condutores de procedimentos para a construção do experimento cênico aqui apresentado com o título de Em Carne e Osso.
2.1 A IMAGEM DO RIZOMA DE GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI NA COMPREENSÃO DE UMA POÉTICA CÊNICA
Para construir uma cartografia, que revele qual a dimensão estética existente em um conjunto de obras cênicas, faz-se necessário compreender qual o modo do pensamento criador desta poética.. O pensamento que está por trás de uma prática artística se quer, em princípio, como pensamento fabulador, isto é, pensamento que cria, inventa, destrói, reconstrói, conecta etc. Pensamento que não se quer plantado apenas em um único lugar, e nem tão pouco, deseja ter seu potencial amarrado em uma única raiz. O pensamento fabulador é rizomático, vive como rizoma. Um rizoma aparece como imagem-força de leitura quando olho para o conjunto dos onze espetáculos, encenados por mim, em porões da cidade de Belém. Por que um rizoma? Porque consigo identificar neste conjunto de obras cênicas, alguns de seus princípios. Penso rizomático também - assim me parece hoje - cada um dos processos de criação dessas obras. No Em Carne e Osso - experimento que acompanha esta tese - segui com esta imagem de pensamento-ação para a construção desta cena, como está exposto no terceiro capítulo.
Segundo Deleuze e Guattari, o pensamento rizomático segue seis princípios: de conexão, de heterogeneidade, de multiplicidade, de ruptura a-significante, de cartografia e de decalcomania. O detalhamento de cada um dos princípios do rizoma pode substanciar respostas às minhas primeiras questões desta tese: em que dimensões estes espetáculos formam um conjunto, uma série, uma imagem de pensamento? Como rizomáticos, podem ser lidos os seus processos de criação? Esta prática pode ser vista como Teatro do DEVIR? O princípio de conexão é o primeiro. Este princípio revela que qualquer ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. Posso fazer conexões entre os vários aspectos da construção de uma obra, bem como, entre aspectos das diferentes montagens aqui analisadas. Posso fazer conexões entre a condução dos atores da montagem de Hamlet construído no Porão Cultural da UNIPOP, em 1992, com a condução dos atores da montagem de A-MOR-TE-MOR construída no Teatro Cláudio Barradas, em 2002. São obras distintas pelas questões de tempo, de espaço e dos criadores, mas outros caminhos de leitura podem ser construídos. Leituras motivadas por diferentes conexões, estabelecidas como rede O princípio da heterogeneidade rege que cada um dos traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; um traço lingüístico não remete somente a outro traço lingüístico, como no exemplo acima citado, em relação à condução dos atores. Posso estabelecer uma relação no ―entre‖ a apropriação das histórias de vida dos atores de Duas Tábuas e uma Paixão realizada pela Dramática Companhia, em 2001 e a maneira de distribuição dos espectadores de A Dama da Noite realizado pelo Grupo Cuíra, em 1990. Esses elementos, apropriação de si no trabalho atoral e organização da relação palco/platéia, são de naturezas distintas. O rizoma opera com um terceiro princípio: o da multiplicidade. Deleuze e Guattari concebem a realidade como substantiva; ela não é apenas múltipla, ela é multiplicidade. Para eles, ―uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações,
grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de combinações crescem então com a multiplicação)‖ (2000, p.16). O rizoma, sendo multiplicidade, é como os fios que desenham a trama, que é a realidade. O teatro tem na trama, no que é tecido, uma de suas grandes metáforas. O fazer teatral apresenta uma maior performance quanto maior for sua possibilidade de combinações. Como a realidade, o teatro precisa ser multiplicidade e qualquer fazer teatral, inclusive o feito em espaços de porão, através de sua configuração de tantas combinações, busca esta multiplicidade.
As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades, as suas relações, que são devires, a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres, a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização.(DELEUZE; GUATTARI,1995, P.8).
Chego ao conceito de DEVIR. O pensamento Deleuzo-Guattariano propõe um quarto princípio para o rizoma: o princípio de ruptura a-significante. Este pensamento propõe que um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer. Que ele pode retomar em qualquer uma de suas linhas e até mesmo seguir outras linhas:
Todo rizoma compreende linhas de segmentariedade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. (...) Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas corre-se sempre o risco de retornar nela organizações que reestratificam o conjunto, formações que dão novamente o poder a um significante, que reconstituem um sujeito – tudo o que se quiser,
desde as ressurgências edipianas até as concreções fascistas. (DELEUZE; GUATTARI, 1995 p.18).
Este quarto princípio, do qual estamos tratando é também chamado de princípio do DEVIR. Acredito ser ele o mais importante neste diálogo com o fazer teatral. O trabalho do ator é esse jogo de desterritorializar-se. Ele quer encontrar uma linha de fuga à sua figura territorializada e apresentada como identificatória: a da pessoa social do ator que é uma, de suas possíveis configurações territoriais. Ele tem a pretensão de, ao sair, se reterritorializar com outra configuração, como tratei na minha dissertação. Como encenadora, e aqui estudando esta minha função, vejo também o meu trabalho como um jogo do Devir. Através de inúmeros espetáculos me enxergo em núpcias com diferentes reinos, tanto quanto o ator. Na verdade, penso ser todo trabalho de criação artística, DEVIRES como bem explicam Deleuze e Guattari:
Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem se ajustar a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A questão ―o que você está se tornando?‖ é, particularmente, estúpida, pois à medida que alguém se torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, núpcias entre dois reinos.(DELEUZE; PARNET; 1998, p. 10).
Para Deleuze, ―fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa; fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano‖. Ao aplicar o ―ponto de fuga‖ sobre o ator do trabalho, poderia dizer que o seu trabalho é o de encontrar linhas de fuga a uma concepção de ator como simples intérprete. Há nessa concepção a posição que o criador primeiro na cena é o ator, e este, sempre estará operando com o seu texto pessoal, havendo ou não um texto pré-escrito. É uma fuga à representação, à criação de outro que não o ator.
Nesta pesquisa sobre os espetáculos feitos em porão, encontrar as linhas de fuga no meu trabalho foi determinante para cartografar este tipo de prática que estou investigando, e assim reconhecê-la como poética. Acredito que linhas de fuga foram geradas para romper em primeiro lugar - principalmente, dentro de mim - uma possível concepção que o teatro feito em porão fosse a alternativa para criadores desprovidos de recursos financeiros, humanos e, quem sabe, criativos. Portanto, contra esta possível interpretação foi preciso fazer vazar o cano, colocando cada um desses porões – lugares de dimensões mínimas - como espaços passíveis de múltiplas combinações cênicas, tanto quanto o são quaisquer outros espaços, inclusive os espaços destinados funcionalmente, a cena. Além dessa ruptura na apropriação espacial, atingir os atores, negando a eles o papel daquele que representa, daquele que finge, com uma linha de fuga a toda e qualquer proteção advinda desse ―papel‖. Simplesmente dizer a ele: não escreva em cena a trajetória de alguém ficcional, mas a sua própria trajetória de vida. Ao espectador, que poderia se pensar apenas com as linhas de segmentação ―daquele que só está ali para ver‖, propor a seguinte linha de fuga: não veja apenas, contracene. O quinto e o sexto princípios do rizoma são o de cartografia e de decalcomania. Não há nenhum modelo estrutural ou gerativo que justifique o rizoma. Ele não precisa de nada assim para justificá-lo. O rizoma não apresenta uma unidade pivotante objetiva sobre a qual se organizam estados sucessivos e, muito menos, uma lógica do decalque e da reprodução. Para Deleuze e Guattari, o rizoma é diferente: ele é mapa e não decalque.
O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revestido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas.(...) Um mapa é uma questão de
performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida ‗competência‖. (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 22).
O pensamento-ação que rege todo o meu trabalho como encenadora quer a cena como um mapa e não como um decalque, uma reprodução. Quer sua obra conectável, desmontável, possuindo entradas múltiplas e prontas para todas as naturezas de modificações. Obedece a diferentes naturezas de indutores - e não apenas à dramaturgia rigorosa - como operadores de toda a sua concepção cênica. Constrói uma poética como um plano de consistência; um campo de gramado, ampliando-se na horizontalidade, e não só nela – a transversalidade é bem própria a um sistema que se quer rizomático - para deste horizonte imanar algo vivo, totalmente aberto para os devires de devires de devires. Por tudo isso, acionarei meus diálogos Deleuze-Guattarianos nas entranhas do corpo da tese, imbricando-os mais com o objeto, e desta feita, pela ótica da encenação, diferentemente da apresentada em Dramaturgia Pessoal do Ator4.
2.2 FLEXIBILIZAÇÃO DA RELAÇÃO PALCO/PLATÉIA EM BUSCA DA ―FÓRMULA ESPACIAL UNITÁRIA‖ DE JERZY GROTOWSKI
Segundo Grotowski ―o espetáculo é a centelha que passa entre os dois ensembles: o ensemble dos atores e o ensemble dos espectadores‖ (FLASZEN; POLLASTRELLI, 2007, p. 60). Para este encenador, o trabalho de uma direção consciente é de colocar em cena esses dois ensembles. O diferencial nesta proposta é considerar que, enquanto criador, você não concebe só ―a cena‖ do grupo dos atores, mas trabalha com a aproximação entre os dois grupos
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LIMA, Wladilene de Sousa. Dramaturgia Pessoal do Ator. Belém/PA: Grupo Cuíra do Pará (publicação independente do grupo), 2005.
reciprocamente, ―os coloca em conjunção, corpo a corpo, em contato, em co-atuação de modo que a centelha passe - o espetáculo‖. Para tanto, Grotowski propõe que é necessário estabelecer uma fórmula espacial comum, unitária para os dois grupos. Encontrar uma chave espacial para que uma conjunção entre atores e espectadores de fato aconteça. Preciso me adiantar, observando ao leitor – no frescor deste raciocínio - que na cartografia apresentada no capítulo seguinte, onde está traçado o plano de composição dos meus espetáculos encenados em espaços de porões, e realizados antes deste estudo, é possível encontrar a chave espacial da conjunção entre atores e espectadores através da análise de dois de meus intercessores de criação: a imagem cenográfica e os elementos cenográficos. Vale destacar que na escrita cartográfica de referido capítulo não será adotado o termo cenografia. Este esforço é resultante da leitura do comentário abaixo, feito por Ludowki Flaszen - colaborador de Grotowski durante esses primeiros anos como diretor teatral na Polônia - sobre o exercício para o alcance da fórmula espacial unitária:
Nas encenações de Grotowski não só foi eliminada a moldura cênica, não só os atores se dirigem diretamente aos espectadores, passeando em meio a eles e sentando junto a eles. Mas foi eliminada totalmente a divisão entre palco e platéia, divisão que — ainda que notavelmente suprimida em comparação com o palco italiano — existe ainda até mesmo no palco em arena. No Teatro das 13 Filas o dualismo palco-platéia foi substituído por um espaço teatral unitário, O campo de ação é toda a sala que ao mesmo tempo é também a platéia. O ―espetáculo ― sucumbe. De fato chega a faltar a concentração unitária da ação, cujo campo se desloca incessantemente, enquanto os espectadores olham não só os atores, mas também a si mesmos reciprocamente. Desaparece o elemento mais espetacular que no teatro é a cenografia. A arquitetura da sala a substitui: um sistema engenhoso de praticáveis, o singular deslocamento das cadeiras e das passagens, mutáveis, segundo as exigências de um dado espetáculo. Portanto um teatro assim pensado não é tanto ―espetáculo ―, isso é, algo que se olha, mas é mais algo de que se participa. É uma espécie de rito ou de cerimonial. É como se o ator fosse o representante da comunidade dos espectadores, aquele que a provoca e a convida a participar do rito teatral comum. Ao mesmo tempo, aos espectadores — segundo o andamento da ação — são atribuídos papéis concretos. (FLASZEN; POLLASTRELLI, 2007, pág. 60).
A solução espacial para um espetáculo, segundo o princípio da fórmula unitária, consiste na eliminação do palco – sua variante mais radical, como veremos a seguir - porque compreende e plasma os dois ensembles, gerando uma fórmula espacial única. Esta variante ―pura‖ não deve ser confundida com o palco em arena. Ela foi o resultado de uma longa evolução no percurso deste encenador. Sua variante do teatro sem palco exige a co-atuação dos espectadores, segundo o próprio colaborador de Grotowski: ―...é preciso induzir os espectadores a participar do rito. Para esse objetivo, toda a sala (não a metade, como se vê às vezes nos teatros que fazem tentativas semelhantes) constitui o terreno da ação‖ (FLASZEN; POLLASTRELLI, 2007, pág. 61). Segundo Grotowski, alguns procedimentos precisam ser acionados para que a fórmula espacial unitária seja caracterizada: ocupar pontos diferentes da sala, fazer os espectadores virarem-se em diversas direções, confiar papéis a alguns, com o cuidado de não organizar a comunidade enquanto grupos distintos, isto é, espectadores e atores separadamente, mas sim, como participantes de primeiro e de segundo plano. Grotowski acentua com estas características que a fórmula espacial unitária parece-lhe inseparável da fórmula geral da encenação. Concordo plenamente com esta perspectiva e tomo-a como princípio de criação para todas as concepções e construções de encenações realizadas em porão como uma das argumentações de sua especificidade como prática teatral. Para tornar mais compreencível a tese aqui defendida, apresento a escrita visual proposta por Grotowski sobre o desenvolvimento de suas pesquisas sobre a fórmula espacial unitária realizada através de desenhos para melhor expor os funcionamentos do palco e da platéia. Concordando com Grotowski que estes desenhos das diversas disposições espaciais poderiam substituir uma eventual teoria, reapresento-os aqui, como operadores de uma abordagem teórica, plausível para esta tese.
A Escrita Visual de Grotowski5
Este primeiro desenho representa um espaço à italiana em sua disposição convencional, onde a convenção está marcadamente grafada pela presença ovalada do palco. Nesta disposição, é este o lugar para ação do diretor.
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Publicada no Brasil em FLASZEN, Ludwik e POLLASTRELLI, Carla. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo: Perspectiva: SESC: Pontedera, IT: Fondazione Pontedera Teatro, 2007.
No desenho acima, Grotowski acentua as prospostas de reformadores da cena, como Meierhold, Piscator e outros, nas suas tentativas de flexibilizar a relação palco/platéia, colocando os atores cientes da presença dos espectadores; trabalhando em direção a eles. Mas Grotowski analisa que os diretores ainda mantiveram apenas o palco, como o lugar da ação. No próximo desenho, Grotowski apresenta a disposição espacial do palco em arena. Mesmo organizando os espectadores de um lado e outro do palco, ou mesmo por todos os lados, o palco no centro do espaço físico, era alvo da ação desses encenadores.
A próxima imagem, representa a proposta de Grotowski para a encenação de Os Antepassados, espetáculo construído e apresentado no Teatro das 13 Filas6, realizado em 1961. Nesta disposição, o diretor polonês eliminou o palco para que a ação acontecesse em toda a sala de espetáculo.
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O Teatro das 13 Filas foi um centro para jovens, estável e profissional, com princípios radicalmente experimentais e de vanguarda. Foi um fenômeno único na Polônia situado na cidade de Opole. Grotowski foi seu diretor artístico, no período de 1959 a 1969.
Por ter trabalhado em um país como a Polônia, que ao mesmo tempo subsidiava suas produções e exercía sobre elas um estrondoso controle, Grotowski afirmava que ―nem sempre se dispõe — quando o teatro tenha necessidade — de uma sala vazia que se possa adaptar em conformidade com as intenções e de maneira diversa para cada estréia (ou de maneira um pouco diversa)‖. Por sua vivência, o diretor propôs considerar a disposição apresentada a seguir, em desenhos, como uma variante ―apura‖, mas possível, para o desenvolvimento do modelo da fórmula espacial dos dois grupos:
No desenho anterior está a disposição ideal a ser alcançada. Mas para este pensador ―seria preciso saber transferir para outras condições arquitetônicas as conclusões tiradas dessa disposição‖, se o diretor só tem como alternativa a utilização de espaços com uma disposição convencional, como por exemplo, o que se lê no desenho abaixo:
Sua sugestão é que o diretor deva trabalhar com o princípio da fórmula espacial unitária, por passos. Para ele, o primeiro passo é o seguinte: o diretor deve se dar conta do fato que deve colocar em cena dois ensembles, e não só o grupo dos atores, como está representado no próximo desenho:
Com isso esclarecido, é possível ao encenador aspirar inscrever estas duas disposições separadas em uma só fórmula. Sua tarefa será a de “utilizar, do ponto de vista da encenação, o fato de que existem duas comunidades que devem entrar em contato ou em conflito entre elas‖. É preciso cercar os dois ensembles atuando sobre eles como um único e mesmo grupo.
Uma coisa interessante confirmada por Grotowski, principalmente quando tentava em turnês carregar consigo os espetáculos – perguntando-se: como levar consigo a sala? Com as paredes? – é que o número de variantes da fórmula espacial comum aos dois ensembles, até mesmo nas condições de um teatro com arquitetura ―normal‖, convencional, é praticamente ilimitado. Para tanto, torna a recorrer aos desenhos, afirmando: ―o palco em arena abre ulteriores possibilidades. Com a finalidade de criar a fórmula teatral comum, seria necessário utilizar as tensões espaciais inatas de tal sala‖ (grifo meu), (FLASZEN; POLLASTRELLI, 2007, pág. 69). O desenho a seguir, elucida bem os esforços de seus exercícios de desdobramento sobre os espaços cênicos.
Segundo ele, seria necessário utilizar as passagens entre os espectadores – creio, após tantas montagens em porões, que não apenas os lugares às costas dos espectadores, mas em qualquer posição que os envolva - e plasmar o espetáculo segundo uma certa ritmicidade consciente; centrífuga — centrípeta, como grafadas no desenho. Com encenações desta ordem, Grotowski entendeu que encontrar a fórmula espacial comum aos dois ensembles não é tanto uma questão de dispor os espectadores-atores no espaço, a questão não é o sistema da sua deslocação mas antes, o correspondente princípio de encenação, a criação de uma ―ação‖ comum para os espectadores e os atores e somente a partir desta; de uma chave, é possível deduzir as conseqüências de caráter arquitetônico, trazendo-as eu diria, em seu total benefício. Este pensador da cena resume sua proposta conceitual e prática, afirmando as seguintes questões para a conclusão de seu texto argumental:
O diretor deveria saber que deve colocar em cena dois ensembles. O ator deveria saber que tem um contra-ensemble (ou um co-ensemble). O espectador deveria saber que é co-ator, que participa, que é pelo menos um figurante no espetáculo, que observa, mas é observado, que vive uma certa aventura, que participa concretamente e praticamente. Não no sentido de seu estado de alma interior (este depende também da predisposição do espectador), mas no sentido da situação do espectador. É esse o âmago da questão. A eliminação do palco, ou as outras variantes citadas da fórmula espacial comum aos dois ensembles são exemplos, protótipos iniciais. Avistamos apenas algo como uma margem, uma linha costeira. Permanece para ser explorado todo o continente. (GROTOWSKI in FLASZEN; POLLASTRELLI, 2007, p. 71).
O fato de construir espetáculos em porões não pode ser resumido como a simples utilização de um espaço alternativo para o fazer teatral. Esta prática deve ser compreendida, já na introdução deste estudo, como uma pesquisa constante para os aprofundamentos de variadas disposições espaciais na relação palco-platéia; com a verdade, da intenção de eliminar o palco como o único lugar da ação ficcional, numa eterna busca de um teatro ao alcance do tato para um espectador que se quer atuante.
2.3 COMPREENDER O JOGO ENTRE ATORES E ESPECTADORES EM UM ESPAÇO MÍNIMO: DIÁLOGO COM O CONCEITO DE ―DISTÂNCIAS‖ DE EDWARD HALL7
A proxêmica estuda o espaço, ou melhor, estuda as relações humanas com e dentro dos espaços. Observa e analisa de que modo o homem utiliza o espaço pessoal e/ou social – o espaço que ele mantém entre si mesmo e seus companheiros, aquele que constrói em torno de si, em casa e no trabalho, bem como nos espaços públicos; nos mais variados espaços da moderna vida urbana, como é o caso dos teatros. Para HALL (2005) a utilização do espaço é uma questão cultural, cada povo desenvolve o seu próprio sentido espacial. Em diferentes culturas, os canais 7
O antropólogo norte-americano Eduard T. Hall foi um dos pioneiros em análises referentes às necessidades espaciais do homem.
sensoriais adquirem mais importância do que outros e a percepção da distância e da proximidade que são resultados dos sistemas sensoriais - da visão, da audição, do olfato, do tato - diferem. Portanto, este estudo das distâncias e das proximidades é de interesse do teatro. Esta disciplina aborda o espaço em três aspectos: o espaço de características fixas, isto é, a arquitetura; o espaço de características semi-fixas, isto é, aquele espaço organizado pela disposição dos mobiliários, obstáculos e adornos; o espaço informal ou o chamado território pessoal, aquele que está ao redor do corpo do indivíduo. Esses aspectos são bem apropriados ao universo teatral, porque também este fazer opera nestas três dimensões: dimensão arquitetônica, dimensão cenográfica e a dimensão interpessoal. A cooperação dos estudos de Edward Hall para este meu estudo está diretamente relacionada à dimensão interpessoal. Como norte-americano, Hall identificou em sua cultura quatro distâncias interpessoais. Ele as classificou de: distância íntima, distância pessoal, distância social e distância pública,. cada uma delas com gradações de mais próxima a mais distante. Estas quatro distâncias, que constituem o nível cultural da dimensão proxêmica de cada sociedade, variam de acordo com as modalidades culturais da região em estudo. A prática teatral em questão, mesmo sendo gerada em um país como o Brasil, culturalmente diferente dos Estados Unidos, pode ser abordada com esta classificação das distâncias. Se a proxêmica estuda ―a concepção, estruturação e uso humano do espaço, abrangendo desde o ambiente natural ou construído até distâncias consciente ou inconscientemente mantidas na interação pessoal‖ (HALL, 2005), ela interessa a um estudo como este, que constrói obras ficcionais articulando, para tanto, as relações humanas entre atores e espectadores, entre atores e atores e entre espectadores e espectadores, todas também nada ficcionais. Esses espaços construídos exprimem significados compartilhados, frutos da socialização entre estes atuantes, predispondo formas de sensibilização adequadas aos objetivos artísticos e
relacionais pretendidos. Mas como esta sensibilização acontece? Segundo este autor, por meio de órgãos sensoriais humanos, subdivididos em duas categorias: dos receptores à distância e dos receptores imediatos. Adaptando-os ao contexto cênico, podemos dizer que, tanto os que fazem parte da categoria dos receptores à distância – que são os olhos, ouvidos e nariz e que estão relacionados com o exame de objetos (distantes ou próximos) – quanto os receptores imediatos – que agem pelo tato, são utilizados para examinar o mundo de perto, com a mão – se intensificam na realização do teatro em porões. Na proxêmica de Hall - retornando à questão das distâncias - a distância pública (entre 4 e 8 m) caracteriza relações entre pessoas que, na maioria das vezes, não se conhecem. Pensando em termos de teatro, este é o caso das disposições espaciais onde o ator está separado do espectador, inclusive não podendo aquele, visualizar individualmente este. A distância social é aquela que separa pessoas que não se conhecem intimamente, mas que se relacionam em uma determinada situação. As possibilidades cênicas de um teatro de rua, que se coloca como uma brincadeira aberta entre atores e espectadores, que pode surpreender o espectador por um jogo sensorial que quebra a sua rotina. Na vida cotidiana, é a distância entre dois interlocutores separados por uma mesa ou outros móveis e objetos. Na cena, o jogo entre atores. Segundo Hall, nesse distanciamento, em torno de 1,20 a 3,50 m, predomina ainda, o contato visual. A distância pessoal corresponde em geral à distância do braço (50 cm a 80 cm na fase próxima e de 80 cm a 1,20 m na fase afastada); contudo, é necessário lembrar que essa ―demarcação espacial‖ muda de acordo com o contexto cultural, inclusive dentro de um mesmo país como é o caso do Brasil, por suas diversidades regionais. Nesta distância, há ainda uma ―separação‖ entre os indivíduos, mas é possível ocorrer toques à curta distância, como os apertos
de mão ou a troca de olhares e sorrisos. Neste contexto, a visão do outro é nítida e detalhada, porém o calor corporal não é perceptível. A distância íntima constitui-se em um espaço inferior a 45 cm, em que a proximidade e o contato físico estão em primeiro plano. O calor do corpo, o odor e a respiração são perceptíveis, a exemplo do que ocorre numa relação natural entre os amantes, pais e filhos ou amigos íntimos. ―É a distância do ato do amor e da luta, da proteção e do acolhimento‖ (HALL,2005). Esta foi a distância buscada em algumas cenas do espetáculo Em Carne e Osso, porque implica em provocar relações limites entre atores e espectadores. O exercício cênico nesta zona de intimidade já justificaria o experimento desta tese. Segundo os estudos efetuados por Hall, o ser humano não só tem uma nítida percepção quanto ao espaço, mas também uma necessidade biológica e real de amplitude. ―Em simples conversas ou em negociações profissionais, na arrumação dos móveis ou na distribuição dos utensílios pela casa [...], os espaços que nos rodeiam afetam, enormemente, o desempenho e os sentidos humanos‖ (HALL, 2007). Quanto a estas questões no âmbito teatral, há uma exposição da força potente - apresentada no capítulo referente ao processo de criação deste espetáculo quanto ao emprego dos estudos proxêmicos nesta área. Vale ressaltar, que apresento sua potência, usando-a como procedimento de construção, tanto de imagens corporais para os atores quanto para definir as relações entre palco e platéia, que determinam a encenação; ou, como diria Grotowski, para definir as disposições do espaço em direção à fórmula espacial unitária. Encerro meus diálogos teóricos, nesta introdução, para reencontrá-los, já em operação na prática da escrita desta tese.
ESCAVAÇÕES
UMA RATAZANA DE PORÃO: IMAGENS E MEMÓRIA
Minha história com porão começa no ano de 1988. Este foi o primeiro ano das relações artísticas entre o ator e diretor paraense Cacá Carvalho e os criadores do Centro per la Sperimentazione e la Ricerca Teatrale de Pontedera, região da Toscana, Itália. Em função disso, dessas relações, os ―italianos‖ começaram, não apenas a vir conhecer a região norte do Brasil mais especificamente Belém, a cidade natal de Cacá – mas a trazer suas produções teatrais, resultados de suas experimentações e pesquisas de cena. Do Centro de Pontedera - hoje Fondazione de Pontedera de Teatro, dirigida por Roberto Bacci, o grande intercessor8 de Cacá Carvalho9 - o primeiro trabalho a chegar a Belém foi o espetáculo “K. l’ultima ora di Franz Kafka” com direção e interpretação do artista francês François Kahn10, que eu assisti na sala de ensaio do Teatro Experimental do Pará Waldemar Henrique11, no ano de 1989. Algum tempo depois – confesso que não sei dizer ao certo, se dias ou meses - além do espetáculo citado, François fez uma única apresentação de um segundo espetáculo baseado também em Kafka, precisamente sobre o texto Josefina, a cantora. O lugar escolhido por ele 8
Conceito Deleuziano desenvolvido no corpo do capítulo.
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Esta e outras questões estão em discussão no livro Dramaturgia Pessoal do Ator que disserta sobre o processo de criação do espetáculo Hamlet: um Extrato de Nós, dirigido por Cacá Carvalho e montado pelo Grupo Cuíra do Pará, com atores paraenses e suas dramaturgias pessoais. 10
François Kahn (França/Itália) - francês radicado na Itália (Cremona). Fez parte do Grupo Théâtre de l`Expêrience, em Paris, de 1971 a 1975. Trabalhou com Jerzy Grotowski em vários projetos parateatrais do Teatr Laboratorium (Polônia). Fez parte do Gruppo Internazionale l’Aventura, de Volterra (Itália), de 1982 a 1985, e participou da direção e criação de vários ateliês organizados pelo grupo: Viae - Actions dans la ville - L’atelier. De 1986 a 1996, participou como ator e dramaturgo dos espetáculos de Roberto Bacci (em particular La trilogia), diretor do Centro per la Sperimentazione e la Ricerca Teatrale, de Pontedera. Durante o mesmo período dirigiu vários espetáculos (Quentin – Rahel - Primo amore - Alice). A partir de 1995, criou o projeto Teatro da Camera, no qual atua como ator em espetáculos baseados em textos literários (Marcel Proust – Gérard de Nerval – Franz Kafka). Fonte: http://www.ufmg.br/festival/37/artescenicas.htm. 11
O Teatro Experimental do Pará Waldemar Henrique é o único teatro da cidade com a tipologia de palco de natureza experimental. Fundado em 1979, este teatro revolucionou a cena paraense, comprometendo todos os artistas-usuários com o seu caráter experimental. O autor de seu projeto cenotécnico foi Luiz Carlos Ripper.
para a ―vivência‖ do trabalho, tão singular e inusitado para mim até aquele momento, foi o porão do Teatro da Paz, um dos grandes palcos ―à italiana‖ da região norte. Um porão mínimo, independente do fosso deste teatro, e nunca usado antes por ninguém para este fim, ou seja, a cena. Assisti ao espetáculo extremamente fascinada pela idéia de utilização daquele espaço. Era um novo lugar para a cena; um espaço tão pequeno, onde cabiam mil lugares; um lugar-estado de ser e de ver; uma toca de bicho, de mistérios e encantamentos. Eu estava completamente afetada, não só pelo ator, pela personagem, pela história de Kafka que me colocava entre os camundongos, os ratos, mas principalmente, me sentia enfeitiçada - definitivamente enfeitiçada, agora eu sei disso - pela idéia físico-sensorial do porão. Posso brincar que foi amor à primeira vista. Que foi a minha primeira experiência de sufocamento na e pela cena. A primeira penetração no subterrâneo de um lugar, de uma arquitetura, da cidade. Nasceu em mim a sensação que o teatro feito em porão poderia ser o território de minha poética.
OUTRAS MEMÓRIAS INSCRITAS NO CORPO
No decorrer desta pesquisa foram chegando à minha mente imagens de outras experiências vivenciadas por mim em porões, inclusive anteriores ao espetáculo de François Kahn. Sei que estas não foram tão incisivas sobre minha imaginação, a ponto de detonar ações de criação, mas acredito que vale aqui, ficarem registradas. A primeira delas foi assistir aos espetáculos do Grupo AGIR – grupo de teatro com atuação na década de 80, em Belém do Pará – no porão de uma casa, alugada por eles, na Travessa Rui Barbosa, bairro de Nazaré. O Grupo AGIR fez daquele espaço sua Escola de Artes e seu Teatro. Outras vivências-lembranças estão relacionadas ao trabalho do diretor Paulo Sant‘Ana. Foram três momentos distintos: no primeiro
momento, eu assistia regularmente, a ensaios de Paulo Sant‘Ana12 - ele com pouco mais de 14 anos, Paulo dirigia um grupo imenso de atores - nos porões do Grupo Escolar Paulo Maranhão, onde minha mãe fora diretora e eu aluna do primário. Como morávamos no mesmo bairro, foram freqüentes os meus passeios por aquela instituição educacional, por muitos anos. Outro momento foi o dos nossos ensaios com o Grupo de Teatro Israelita de Belém, no porão de uma das casas da Campina de propriedade daquela instituição. Lá, estávamos envolvidos na montagem do espetáculo O Diário de Anne Frank que se não estou enganada, não estreou. Por último, lembro no meu próprio corpo, o fato de passar um ano inteiro dentro do porão de uma casa na Avenida Nazaré – porão que media de altura menos de 1,50 – de propriedade da família Serruya, pais de Charles Serruya13, na construção dos cenários e adereços do espetáculo Jurupari, a Guerra dos Sexos, montagem do Grupo Palha14. Enfim, expondo que a cidade de Belém oferece, para todos os que fazem teatro nesta terra, um imenso imaginário sobre possíveis casas que teriam abrigado grandes montagens da década de 30 – estas denominadas de ―Teatro Nazareno‖ por acontecerem no período das Festas do Círio. ―Reza a lenda‖ que no Largo de Nazaré existiam muitos casarões, entre eles alguns que até a década de 80 reservavam surpresas, escondendo ―Teatrinhos‖ em seus interiores. Estes casarões foram palcos de Operetas, Teatro de Revista e do Teatro Junino. Representavam o lado profano das festas à Virgem de Nazaré. Se ainda existem não sei, mas existem e existiram sempre, em nosso imaginário como potência, com certeza
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Paulo Sant‘Ana é ator e diretor teatral. Fundador do Grupo de Teatro Palha, fundado em 1980. Atualmente, é o coordenador do Núcleo de Artes Cênicas da UNAMA – Universidade da Amazônia. 13 Charles Serruya é arquiteto e cenógrafo de teatro. É um dos membros fundadores do Grupo de Teatro Palha. 14 Grupo de Teatro Palha foi fundado em 1980, na cidade de Belém do Pará. O grupo foi formado por integrantes do Grupo de Teatro do Sesc-Pa extinto no final da década de 70.
3. UMA CARTOGRAFIA DO TEATRO EM PORÕES.
Poderíamos dizer que a arte pode na duração finita, até mesmo efêmera de seus suportes materiais, inventar o tempo sem tempo de se conservar eternamente. Tudo o mais se desmancha no ar... Ludmila Brandão15
Esta prática, de conceber e apresentar espetáculos de teatro em espaços de porão, eu realizo desde 1990, isto é, um ano após a visita de François Kahn. Nestes dezoito anos, já que escrevo este texto em 2007, foram onze espetáculos montados em quatro espaços diferentes. Os espetáculos foram: no Porão Cultural da UNIPOP, A Dama da Noite, montagem do Grupo de Teatro Cuíra e Hamlet, do Grupo de Teatro da UNIPOP; no Espaço Mariano da ETDUFPA, Mariano montagem do Curso de Formação de Ator; no Teatro Cláudio Barradas, também da ETDUFPA, foram montados Do Que Brincam os Meninos Que Serão Poetas, Maravilhosa Orlando, Circo Vitória e A-MOR-TE-MOR, todos realizados pelo Curso de Formação de Ator da ETDUFPA; no Teatro Bufo, Duas Tábuas e Uma Paixão e Um Beija-flor a Dois Metros do Chão, montagens da Dramática Companhia; Água Ar Dente, do Grupo de Teatro Cuíra e Devagarinho Eu Deixo, montagem da Escola de Bufões. Em todos esses processos, eu estive presente na função de encenadora - num trabalho colaborativo com outros diretores e criadores de cena. A investigação e análise de minhas próprias obras com o objetivo de revelar a poética inscrita nesses corpos cênicos, isto é, seus princípios, recorrências e conexões – como diriam Deleuze e Guattari, o bloco de sensações desses corpos - foi algo que me exigiu uma espécie de
15
Ludmila Brandão é arquiteta e historiadora, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, professora do Programa de Pós-Graduação em História e do Departamento de Artes, ambos da UFMT Universidade Federal do Mato Grosso.
sobrevôo na criação, não com o intuito de ver de cima, de fora, mas sim, com a autonomia de poder reinventar a mim mesma, sempre. Reinvenção de minha imanência (vida) e de minha obra. Na realidade, é fazer com cada um dos espetáculos, um agenciamento novo - já que o que é conhecido de antemão não pode ser experimentado como acontecimento. Para dar-me a estes acontecimentos novos foi necessário criar uma geografia, uma zona espacial para este fazer, que por si só, já estava determinada por outra espacialidade: o porão. Por isso, considero este capítulo uma cartografia, um mapa aberto em direção a todas estas obras, que serão o ponto de partida da minha décima segunda criação em porão, o espetáculo Em Carne e Osso, um fazer teatral articulado com esta tese como experimento cênico. Um mapa onde estão desenhados os seus fluxos, as suas intensidades e suas linhas de criação.
3. 1 OS OBJETOS DESSA CARTOGRAFIA
Neste estudo, considero, em princípio, que na criação artística nada está separado de nada, ou melhor, que nada pode ser separado de nada, mesmo nas obras-dobras, aparentemente fragmentadas em sua concepção, porque reconheço a existência de um entre; entre os ―pedaços‖ da obra; entre obras. Se assim não fosse, não haveria espaços para o DEVIR 16. Espaços da respiração, da vida das obras. E sendo esta pesquisa, um exercício para o reconhecimento dos princípios e recorrências dessa prática como uma estética teatral específica, particular e local – é a minha hipótese nesta tese - ela precisa conter esta premissa, em todos os aspectos de sua existência formal.
16
Opto em manter o conceito DEVIR escrito em caixa-alta, como efeito de continuidade ao estudo anterior, apresentado tanto na dissertação de mestrado como na publicação independente desse estudo com o título Dramaturgia Pessoal do Ator. Este conceito será desenvolvido a seguir.
Gilles Deleuze, em sua obra Conversações17, escreve que um mapa é um conjunto de linhas diversas funcionando ao mesmo tempo como as linhas das mãos. Ele acredita que as linhas são os elementos constitutivos das coisas e dos acontecimentos. Cada coisa tem sua geografia, sua cartografia. Pensa o autor que o que há de interessante, inclusive numa pessoa, são as linhas que a compõem, as linhas que ela mesma compõe ou toma emprestado ou cria. Posso dialogar com a mesma imagem de linhas, fluxos, geografias, tanto em relação à personagem quanto a um espetáculo, um lugar, uma poética como um grande rizoma, poético. Portanto, uma poética - como esse conjunto de espetáculos e seus porões - é um mapa, uma cartografia, constituída por outros mapas que são os espetáculos, cada um deles com suas múltiplas cenas – estas como mapas da condição humana - cada vez mais dentro de outros dentros, de outros foras e de foras cada vez maiores.
3. 1. 1 Os Porões
O Porão Cultural da UNIPOP
A UNIPOP18, com o seu público-alvo composto de militantes da esquerda diversificada de Belém (movimentos de bairro, igrejas e suas lideranças ecumênicas, quadros partidários de base etc.), previa em suas áreas de atuação, a Cultura e as Artes. Como exerci junto a UNIPOP, no período de 1997 a 2003, a função de coordenadora de atividades e educadora popular na formação de lideranças destas áreas, coube a mim encontrar na futura sede própria, isto é, de caráter permanente, uma opção espacial que favorecesse a natureza cênica das atividades. 17
Deleuze, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. UNIPOP – Instituto Universidade Popular, uma organização não-governamental, destinada a formação de lideranças dos movimentos políticos de cidadania. 18
Encontramos a casa e em seu porão foi instalado o que viria a ser conhecido como Porão Cultural da Unipop (1989). Este espaço teve e tem uma importância enorme, não apenas para as atividades artísticas e culturais da UNIPOP, como para toda a categoria teatral paraense. Este espaço está identificado em publicação brasileira19 como um ―teatro de tipologia múltipla‖, com a capacidade de 80 lugares, dependendo da sua proposta de utilização.
Figura 1: Porão Cultural da UNIPOP situado na AV. Senador Lemos № 557, bairro do Telégrafo.
19
SERONI, J.C. - Teatros: Uma Memória do Espaço Cênico no Brasil. São Paulo; Editora SENAC/São Paulo, 2002, pág. 280.
O Teatro Cláudio Barradas da UFPA
Inaugurado em 27 de março de 1997, este teatro foi uma homenagem ao ator e diretor paraense Cláudio Barradas20 que durante muitos anos foi professor da ETDUFPA. Concebido com o caráter de Teatro Experimental, esse espaço está também citado na referida publicação 21, mas com a tipologia de ―teatro à italiana‖. Este teatro tem o recurso de platéia móvel, podendo ser construída com cadeiras e praticáveis de acordo com a proposta de encenação do espetáculo. Uma escada permanente pode ser usada tanto para palco como para platéia. Seu objetivo maior era ser um laboratório de experimentação cênica para os cursos de formação de ator e bailarino da ETDUFPA. O primeiro espetáculo em temporada neste espaço foi Do que brincam os meninos que serão poetas, que teve sua estréia no dia 04 de abril do mesmo ano.
Figura 2: O Teatro Cláudio Barradas da UFPA / situado a Av. Magalhães Barata 611, bairro de São Brás./ Lado direito do Casarão da Etdufpa. 20
Cláudio Barradas é ator e diretor de teatro. Atualmente é padre, atuando também como formador de novos diretores de teatro ligados as paróquias da Arquidiocese de Belém. 21 Idem, obra citada anteriormente.
O Espaço Mariano da UFPA.
Inaugurado em março de 1996, como laboratório de experimentação, o espaço Mariano seria mais um, dentre os espaços cênicos existentes na ETDUFPA, em apoio às atividades de formação. O mais radical em sua arquitetura e o menor nas dimensões físicas, o Espaço Mariano poderia atingir um público médio de 40 espectadores. Pela existência de uma escada em concreto onde foram fixadas cadeiras, o Teatro foi considerado da tipologia ―teatro à italiana‖.
Figura 3: O Espaço Mariano da UFPA / Situado a Av. Magalhães Barata 611, bairro de São Brás .Lado esquerdo do Casarão da Etdufpa
O Teatro Bufo.
Inaugurado no dia 10 de agosto de 2001, como uma ação política da Dramática Companhia, um grupo de teatro da cidade de Belém, contra a total falta de espaços disponíveis aos grupos locais, o Bufo foi considerado um Teatro de Bolso, inclusive, o primeiro da cidade a receber esta denominação. Com platéia e palco móveis, o Bufo poderia atingir um público máximo de 40 pessoas.
Figura 4: O Teatro Bufo /Situado na AV. Nazaré № 435, no bairro de Nazaré.
3.1.2 Os Espetáculos Construídos pela Pesquisadora nos Porões da Cidade de Belém
1990
Dama da Noite, montagem do Grupo de Teatro Cuíra do Pará, numa livre adaptação do conto de Caio Fernando Abreu, com o mesmo título. Sua estréia data de 08 de dezembro de 1990. Foi o primeiro espetáculo teatral apresentado no Porão Cultural da UNIPOP e o primeiro dessa natureza assinado por mim. Seu ambiente cênico é de um banheiro público. Toda a cena é conduzida pelo ator Cláudio Barros, em solo. Os espectadores, sentados em vasos sanitários, bidês, bancos de banheiro, tem a função da contracena, assumindo no jogo o papel do ―rapaz‖ com quem ―ela‖ quer conversar e, talvez, fazer um programa. O texto trata da solidão, amor, sexo, AIDS, medo, perdas etc. - temas recorrentes ao início da década de 90, em todo o país.
1992
Hamlet estreou em 08 de dezembro de 1992 no Porão Cultural da UNIPOP, desta feita propondo como ambiente palaciano o próprio estado daquele porão, com suas salas, cubículos, corredores, escadas, janelas, grades, passagens estreitas e nem uma porta fechada ao público que trafegava livremente e nunca sentava, compondo sua própria história. A concepção traz o mote do Príncipe encenador do seu próprio destino. Nessa montagem o texto de Shakespeare ganha uma leitura política que enfatizava a proposta metalingüística da diretora-encenadora.
1996
Mariano estreou no dia 08 de março de 1996 e inaugura um novo espaço cênico, nos porões da Etdufpa. A ação do coletivo de alunos e da encenadora teve repercussão tão grande que o espaço acabou ganhando o nome de Mariano. O espetáculo é uma farsa e uma metáfora dos bastidores da cena. Coloca os espectadores sentados dentro do camarim onde assistem o ensaio de toda a trama do texto e da encenação, poucas horas antes da primeira batida de Moliére.
1997
Do Que Brincam os Meninos Que Serão Poetas? O espetáculo respondeu a esta pergunta contando a vida e obra do poeta Garcia Lorca. Espetáculo tramado com os fatos e ficções deste autor que fizeram dele um mártir de seu povo. A encenação é a própria andança do La Barraca, seu grupo de teatro e sua ação política O espetáculo estreou em 04 de abril de 1997 no Teatro Cláudio Barradas da Etdufpa. 1999
Maravilhosa Orlando estreou em 04 de março de 1999. Uma sátira aos comportamentos sexuais e familiares da sociedade brasileira. Conta a história de Hermes Afrodite, um hermafrodita, que convivendo em diferentes grupos sociais vai aprendendo a vencer discriminações, obstáculos profissionais e conquistas amorosas. A encenação dividiu a platéia em homens e mulheres criando um estado de disputa bem humorada. A sonoplastia, executada ao vivo por uma banda, embalava a todos com as canções românticas de Roberto Carlos, numa só voz.
2001 Circo Vitória montagem da Oficina Básica de Teatro da Etdufpa. Os personagens de um drama mambembe são coringados entre os atores. A proposta circense é cercada por um picadeiro de garrafas. Dentro delas histórias contadas através de desenhos. Atores livres para a criação/improvisação; personagens presos nos seus destinos. Circo Vitória fez sua estréia na cidade no Teatro Cláudio Barradas no dia 20 de junho de 2001 em uma única apresentação, antes que a luz do desejo de ser artista, dos jovens atores, se apagasse.
Duas Tábuas e Uma Paixão foi uma declaração de amor ao teatro. Sua encenação desenvolve um diálogo entre três diferentes concepções de cena: o teatro naturalista, o teatro brechtiano e o teatro pósmoderno. Atores expressam suas histórias de vida, opiniões, sensações, pensamentos. Os espectadores e os atores estão na cena, virtual e presencialmente. Este espetáculo teve a sua estréia no dia 10 de agosto de 2001 inaugurando o Teatro Bufo da Dramática Cia.
Como Um beija-flor a Dois Metros do Chão trouxe para a cena a história e a produção de Artur Bispo do Rosário. A encenação dilata o palco cortando o espaço, na horizontal, em dois planos. Para entrar no espaço e chegar à platéia, o espectador tinha que se abaixar. Sua travessia era feita dentro do carrodispensa dos artistas, lugar onde estavam em exposição objetos-reproduções das obras de Bispo e livres criações dos atores sobre seus próprios tormentos. O espetáculo estreou no dia 19 de outubro de 2001 no projeto de implantação/divulgação do novo Teatro Bufo.
Devagarinho...Eu Deixo estreou em 13 de dezembro de 2001, inaugurando a Escola de Bufões, projeto de formação de jovens atores da Dramática Cia, dentro da proposta do Teatro Bufo. O espetáculo foi um exercício sobre caracterização do ator, mais especificamente no uso dos recursos cênicos na construção de personagens ―tipos‖ (maquiagens, apliques, postiços, figurinos, objetos etc.) A encenação privilegiou uma cena em arena, usando somente praticáveis.
2002
A-MOR-TE-MOR fragmentos amorosos de Cem anos de solidão. Baseado no romance de Gabriel Garcia Marques sobre a cidade ficcional de Macondo. O realismo fantástico do romance atravessou o palco colocando o espectador nos diferentes tempos da obra. O ambiente cenográfico abria-se ao espectador. Era ele o construtor de sentidos. Essa ambiência transformava-se em muitos lugares. Mais uma vez se corta o porão em dois, multiplicando assim suas dimensões. Some-se a isso, ações de escalada dos atores-criadores na estrutura cenográfica. O espetáculo teve sua estréia no dia 31 de janeiro de 2002, no Teatro Cláudio Barradas
Água Ar Dente estreou no Teatro Bufo no dia 21 de fevereiro de 2002. Com este trabalho, o Grupo Cuíra se juntou a Dramática Cia., numa ação política para a preservação do Teatro Bufo. Levou à cena o Projeto 2 em 1, como estimulo à formação de platéias para este teatro. Água Ar Dente propunha um jogo ardente, ácido e sensual num triângulo amoroso, rigorosamente masculino, muito próximo ao espectador.
3. 2. OUTROS CRIADORES DO SUBTERRÂNEO: CONTEXTOS DA PESQUISA Cada variação, por minúscula que seja, ao propagar-se e ser imitada torna-se quantidade social, e assim pode ensejar outras invenções e novas imitações, novas associações e novas formas de cooperação. Peter Pal Pelbar.
Eu, como encenadora, não sou a única que cria sua poética nos porões da cidade de Belém. Outros encenadores criam muito nesse subterrâneo22. Portanto, este estudo não poderia ser desenvolvido a contento se não revelasse, mesmo que brevemente, a existência de um rizoma de criadores que trabalham na construção desta prática que considero tão específica, particular e local. São criadores com suas próprias heterogêneses poéticas, mas claramente conectadas entre si. Conexões que se realizam menos pela presença de colaborações constantes entre nós criadores e realizadores em diversas e diferentes funções na cena - e mais, pela consciência de que somos fabuladores de princípios e procedimentos presentes em nossas atividades, sejam estas, espetáculos, experimentos ou metodologias formadoras. No decorrer da década de 90, já assistíamos na cena teatral realizada em porões, o trabalho de Nando Lima, Aníbal Pacha, Olinda Charone, Luís Otávio Castelo Branco Barata, Karine Jansen, David Matos e Marton Maués. Com a virada do milênio entram em cena Marluce Oliveira e Iara Regina. Estes são na verdade, os encenadores; mas ao lado de cada um deles, encontraríamos um grupo considerável de outros criadores - dramaturgos, cenógrafos, iluminadores, sonoplastas, figurinistas, maquiadores, produtores e atores.
22
A palavra ―subterrâneo‖ é aqui empregada com pelo menos dois sentidos: referindo-se aos porões como espaços subterrâneos, isto é, um pouco abaixo do nível das ruas de Belém e como referência a uma prática teatral que corre por baixo do sistema político-artístico da cidade.
Além disso, outros porões foram usados - e outros o são, no presente - como espaços para o fazer teatral; espaços estes, não citados como objetos estudados nesta investigação. São eles: o Espaço Alfabumba23, na Rua Presidente Pernambuco, bairro da Campina, da Companhia Alfabumba Meu Brecht (espaço desaparecido e companhia inativa) e o Espaço U. Porão, Rua Campos Sales nº. 628, também no bairro da Campina, de propriedade do ator e sonoplasta Léo Bitar.
Figura 5: Teatro U. Porão /situado na Campos Sales, bairro da Campina
23
O espetáculo O Singelo Auto do Jesus Cristinho, uma realização dos Palhaços Trovadores com direção de Marton Maués e dramaturgia de Wlad Lima, inaugurou este teatro.
Ao fazer um levantamento de dados, passo a reconhecer que, neste período de tempo que vai de 1990 a 2007, houve o surgimento de seis espaços de porão que abrigaram atividades teatrais. Nestes espaços, nove encenadores construíram suas obras. Alguns deles com uma única experiência, como se fosse para saber-lhe o gosto, e outros, alcançando uma série de espetáculos, que ultrapassaram a medida de uma dúzia, material suficiente para a constituição de poéticas próprias24. Para a construção de um quadro desse contexto, foram escolhidas as seguintes categorias: espaço, ano, espetáculo, encenador. Com o cruzamento destas categorias foi possível apresentar resultados quantitativos de espetáculos, tanto por ano quanto por espaços, compondo assim, uma cartografia rizomática dos espetáculos produzidos nos porões da cidade de Belém, no período abordado. Antes de apresentar esta cartografia, acredito ser importante registrar a colaboração valiosíssima de muitos dos encenadores abordados neste capítulo – preenchendo questionários, cedendo material fotográfico, respondendo as entrevistas, atendendo a telefonemas etc. – bem como, reconhecer minhas falhas, quando esta escrita não pode ser substanciada com as informações de alguns companheiros de teatro – impossibilitados de colaborar por razões de trabalho. Agradeço carinhosamente a todos eles.
24
Há nesta referência o reconhecimento de que esta prática teatral em espaços de porão apresenta possibilidade de desdobramento futuro, como a gestação de novas investigações não objetivadas para este estudo.
3. 2. 1 Os Teatros-Porão, Encenadores e Obras: Mapa da década de 90 (1990 a 1999)
1998
1999
1997
1996
1995
1994
1993
1992
1991
ESPAÇO
1990
ANO
Cuí de Biscoito
A Terra é Azul
Os Gnomos de Gnu The Hall Zumbi UNIPOP
Dama da Noite Leão Azul
São Nelson Nosso Rodrigue s
Hamlet
A Árvore dos Mamulen gos O Lixo, a Cidade e a Morte
O Mambembe Morte e Vida Severina Educação: Insista, Persista e Nunca Desista
Brecht‖ – rua da Vida nº 100 No Reino do Rei Reinante
Milkshake speare TEATRO CLÁUDIO BARRAD AS
DO QUE BRINCAM OS MENINOS QUE SERÃO POETAS
MARAV ILHOSA ORLAN DO
ACADEMI AS DE SIÃO ESPAÇO MARIANO
CADEIR A DE BALAN ÇO
MARIANO
ACADE MIAS DE SIÃO).Desloca mento
TEATRO ALFA BUMBA
Total de Espetáculos por ano
ENCENADORES
01
01
02
Wlad Lima
Nando Lima
Nando Lima Wlad Lima
N T
02
02
Olinda Charone (2)
Olinda Charone (2)
05
04
02
Olinda Charone (2)
Olinda Charone
Olinda Charone
Luis Otávio Barata (2)
Karine Jansen
Wlad Lima
Wlad Lima
David Matos (2)
Olinda Charone (2)
02 + 01 deslocam ento
Karine Jansen
Wlad Lima (2)
Marton Maués
Marton Maués.
David Matos
Martim Cereré
UNIPOP
O Frágil, Feio e Aflito Flict.
Querubim Bleck Loucura Pouca É Bobagem.
Pororoca A Lenda.
Ensaio Aberto.
A Greve do Amor TEATRO CLÁUDIO BARRAD AS
CIRCO VITÓRIA
Tem Boto na Barriga.Ma s Quando.
Pra Tudo se Acabar na Quarta Feira.
A Farsa do Panelada.
Não É Proibido Sonhar.
Pareserum ano. O Reino Encantado Não Contado.
O Verdadeiro Coração do Cavaleiro de Aço.
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
ANO ESPAÇO
3.2.2 Os Teatros-Porão, Encenadores e Obras: Mapa do novo milênio (2000 a 2007)
A Casa das Quatro Estações
Total de espetá culos de 1990 a 2007.
33
Teia dos 20 anos
Salão Brasil.
A-MORTE-MOR
06
ESPAÇO MARIAN O
02
TEATRO ALFA BUMBA
01 = desloca mento
DUAS TÁBUAS E UMA PAIXÃO
TEATRO BUFO
COMO UM BEIJAFLOR A DOIS METROS DO CHÃO DEVAGA RINHO EU DEIXO.
ÁGUA AR DENTE 06 TE AMO TE AMO TE AMO
UMBIGO DE DEUS
FROZEN U. PORÃO
01
Total de Espetáculo s por ano
03
05
07
02
02
02
03
02
(Total geral)
49 Olinda Charone (2) Olind a Charo ne
Marluce Oliveira
Marlu ce Olivei ra
Karine Jansen (2)
ENCENA DORES
Wlad Lima (4)
Marluce Oliveira (2)
Marluce Oliveira (2)
Marluce Oliveira (2) Marluce Oliveira (2)
Marluce Oliveira (2)
Marluce Oliveira (02)
Nando Lima
Wlad Lima (2)
Karine Jansen Iara Regina
3.2. 3 Uma Leitura dos Mapas do Teatro de Porão da Cidade de Belém
O teatro contemporâneo paraense passa a produzir uma prática cênica nos porões da cidade de Belém, a partir de 1990. Para esta análise, minha experiência como encenadora, especificamente como praticante desta modalidade de teatro na cidade de Belém, me ajudará a tramar os fios de condução desta leitura. Nos mapas apresentados, a UNIPOP é o primeiro espaço de porão que se transforma em teatro. Este teatro-porão - nos três primeiros anos aqui abordados – foi palco da construção dos quatro primeiros espetáculos desta natureza, apresentados na cidade: Dama da Noite, Leão Azul, The Hall e Hamlet. Dos quatro, apenas Hamlet foi realização da própria UNIPOP. Com este espetáculo a cidade ganharia o seu mais novo grupo de teatro, o Grupo de Teatro da UNIPOP.
Figura 6: Cenas de Leão Azul. Sua imagem cenográfica é de um curral, onde espectadores assistem de pé o espetáculo.
O espetáculo Leão Azul foi dirigido por Aníbal Pacha25 e escrito, interpretado e cenografado por Nando Lima26. Já o espetáculo The Hall foi escrito, dirigido e cenografado pelo próprio Nando Lima. Os dois trabalhos foram realizações do Usina Contemporânea de Teatro. O primeiro, Dama da Noite, será melhor abordado no próximo capítulo deste estudo. Mas é importante, novamente registrar que sua realização foi gestação do Grupo Cuíra do Pará.
25
Aníbal Pacha é um dos fundadores da IN BUST TEATRO COM BONECOS. Este grupo atua na cidade desde 1996, mantendo, além de um repertório de espetáculos teatrais com bonecos 25, os projetos, ―Sábado Sim Sábado Não‖ no Casarão de Bonecos25, ―Semana de Bonecos‖ e ―Bonecos na estrada‖, realizados anualmente. Leão Azul foi o único espetáculo dirigido por Aníbal em espaços de porão. 26
Nando Lima é performer, diretor, cenógrafo, dramaturgo e atualmente, é o gerente de artes cênicas do Instituto de Artes do Pará – IAP. Sua relação com teatro feito em porão começa em 1990, juntamente comigo, assinando a cenografia de A Dama da Noite apresentado no Porão Cultural da UNIPOP. Além disso, durante certo período de tempo, Nando é um colaborador, em diferentes funções, em muitas outras montagens em porões, como: Gnomos de Gnu da UNIPOP, Duas Tábuas e uma Paixão da Dramática Companhia e Água Ar Dente do Grupo Cuíra do Pará. Em 2005, Nando Lima não só concebe um novo espetáculo – assinando dramaturgia, encenação e cenografia – mas como com ele, inaugura um novo Teatro-porão na cidade. Seu espetáculo Frozen abre as portas do Teatro U. Porão.
Figura 7: Cena de The Hall / O tabuleiro de Xadrez foi o elemento cenográfico que determinou o jogo cênico de The Hall
No ano seguinte, 1993, nada foi produzido naquele espaço. O grupo da UNIPOP foi para as ruas com a intervenção urbana Assalto a mão amada, mantendo-se nas ruas da cidade, por um grande período daquele ano. Talvez, a questão tenha sido de fato outra. Aquele ano de 1993 se caracterizou como um período de reformulações para a instituição em questão, principalmente, no que tange a sua coordenação de cultura e artes. Eu, Wlad Lima, fui contratada pela ETDUFPA, solicitando à UNIPOP minha substituição. A partir de 1994 até 2002, Olinda Charone27 será a nova coordenadora da área cultural. São visíveis os resultados cênicos desta mudança. Em 1994, a UNIPOP produzia dois novos espetáculos: Zumbi e São Nelson Nosso Rodrigues. A partir da contratação de Olinda Charone, dois coletivos de atores produziriam,
27
Olinda Charone é atriz, diretora, pesquisadora e professora de teatro da ETDUFPA. A partir de 1997, paralelo as atividades na UNIPOP, assume a coordenação do Programa de Teatro Infanto-juvenil da Escola de Teatro, função esta que dará como resultado, muitos outros espetáculos construídos em espaço de porão, neste caso, no Teatro Cláudio Barradas.Atualmente, é doutoranda do Programa de Pós-graduação da UFBA, sob a orientação da Profa. Dra. Antônia Pereira, com a tese intitulada PÁSSARO MELODRAMA FANTASIA..
anualmente, espetáculos de teatro. São eles: o Grupo de Teatro da UNIPOP e os alunos do Curso de Iniciação Teatral da UNIPOP, implantado naquele ano. Nesta dinâmica, Olinda dirigiu os seguintes espetáculos, no teatro-porão da UNIPOP:
1994 Zumbi, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri
Figura 8: Cena de Zumbi
São Nelson Nosso Rodrigues, Coletânea de Textos de Nelson Rodrigues
Figura 9: Cena de São Nelson Nosso Rodrigues
1995 O Lixo a Cidade e a Morte, de Rainer Fassbinder
Figura 10: Cena de O Lixo a Cidade e a Morte
1996 Os Gnomos de Gnu, de Umberto Eco e João Lenine O Mambembe, de Arthur Azevedo 1997 Brecht – rua da Vida nº. 100, colagem de fragmentos textos de Bertold Brecht No Reino do Rei Reinante 1998 Cuí de Biscoito, de Miguel Girão
Figura 11: Cena de Cuí de Biscoito
1999 A Terra é Azul, de Zeno Wilde 2000 Martim Cereré, adaptação de Adriano Barroso 2002 Querubim Bleck, adaptação da obra o Anjo Negro de Nelson Rodrigues
Figura 12: Cenas de Querubim Bleck
Neste mesmo período e no mesmo espaço cênico, outro encenador realiza duas obras: Luis Otávio Castelo Branco Barata, falecido em 2006. Um homem de teatro. Neste campo artístico, exercia diversas funções: dramaturgo, diretor, cenógrafo, figurinista e estrategista artístico e político do Grupo Cena Aberta, um dos mais importantes grupos da cidade. Foi colaborador constante de Olinda Charone em muitas dessas obras citadas acima, principalmente nas funções de cenógrafo e figurinista. Como encenador em espaço de porão, Luis Otávio cria a sua versão cênica de Morte e Vida Severina, baseada no poema de João Cabral de Melo Neto, e Educação: Insista, Persista e Nunca Desista, atendendo às demandas críticas da UNIPOP.
Figura 13: Cena de Morte e Vida Severina
A partir de 1999, Olinda Charone começou a preparar a sua substituição na UNIPOP. Após assumir as funções de professora de teatro e coordenadora do programa de teatro infantojuvenil da ETDUFPA em 1997, Olinda convida Marluce Oliveira para, com ela, formar uma
parceria que irá durar até 2002, ano em que ocorre o seu desligamento definitivo da UNIPOP, Nestes anos de parceria, Marluce dirigiu os seguintes espetáculos:
2000 O Frágil, Feio e Aflito Flict, de Ziraldo A Greve do Amor, de Nazareno Tourinho 2001 Loucura Pouca É Bobagem 2002. Pororoca A Lenda Ensaio Aberto A partir de 2003, com a saída de Olinda Charone, Marluce Oliveira assume, além da direção dos espetáculos teatrais da UNIPOP, a coordenação das atividades de cultura e arte desta instituição. Seus próximos espetáculos no Porão Cultural serão os seguintes: 2003 Tem Boto Na Barriga... Mas Quando?, de Miguel Girão. A Farsa do Panelada, de José Maporunga. 2004 Pra Tudo Se Acabar Na Quarta Feira, de Edielsom Goiano. Não é Proibido Sonhar, criação Coletiva. 2005 O Mistério do Reino Encantado Não Contado, adaptação do Fantástico Mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira. Pareserumano, criação Coletiva
2006 O Verdadeiro Coração do Cavaleiro de Aço adaptação de O Homem Preso Na Armadura, de Robert Fisher. Salão Brasil.de Miguel Girão. 2007 A Casa das Quatro Estações, criação coletiva A Teia de 20 anos, colagem de fragmentos e cenas de todos os espetáculos realizados pelo Grupo de Teatro da UNIPOP em comemoração dos 20 anos dessa instituição. Vale destacar que Marluce Oliveira, além de assinar a encenação de todos os espetáculos acima citados, foi atriz de Mariano e Duas Tábuas e Uma Paixão - espetáculos cartografados no capítulo seguinte. O Teatro Cláudio Barradas é o segundo espaço de porão que aparece nos mapas. Neste teatro-porão, Karine Jansen28 deu seus primeiros passos teatrais como encenadora dessa prática. Em dezembro de 1997, estréia o espetáculo Milkshakespeare, em parceria com David Matos29. Este espetáculo foi uma colagem de fragmentos da dramaturgia shakespeariana, mas é a escrita com o espaço que determina o espetáculo, segundo as palavras de Karine:
Essa foi a minha primeira experiência com teatro de porão e a idéia que eu tenho dessa história é de algo muito, muito, muito trabalhoso. Não que eu tivesse uma grande experiência com teatro em espaços convencionais, mas o porão tem uma estrutura que é determinante. Ou você integra ele ao seu trabalho, ou não tem trabalho. O porão Cláudio Barradas, naquele momento pra mim era um túnel enorme, preto. Conforme eu ia trabalhando, descobri que as paredes não eram totalmente lisas, tinham várias ondulações, é... Eu não sei se 28
Karine Jansen trabalha com teatro desde 1988. Começou com o grupo Usina Contemporânea de Teatro em um projeto artístico-político juntamente com o DCE. Hoje é performer e diretora de teatro e trabalha como professora de técnicas corporais e prática de montagem na Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará. 29
David Matos é diretor, roteirista e iluminador de teatro. Como roteirista de televisão desenvolve o programa infantil Catalendas pela TV Cultura – Pará, em parceria com IN BUST TEATRO COM BONECOS.
foi a adaptação, porque era um teatro cavado. Nós tínhamos fissuras nas paredes, era como se fossem pequenos degraus, ou seja, a parede vinha numa grossura até uma determinada altura, depois ela afinava e isso dava em certos batentes. E eu lembro que isso nós usávamos, porque como o espetáculo não tinha cenário, ele tinha adereços que insinuavam um determinado ambiente. Eram objetos que nós usávamos pra determinar os ambientes. (depoimento coletado em entrevista gravada)
Para Karine Jansen, o espetáculo começava com a platéia participando diretamente. Um ator convidava um espectador e todos os outros atores faziam a coroação daquele espectador que viraria o rei, sentaria em um trono para que espetáculo pudesse começar. Não havia uma imagem cenográfica, mas muitas imagens. Essas imagens eram construídas e desconstruídas a cada momento. Segundo a encenadora, se tivesse que extrair uma imagem cenográfica do trabalho, teria que ser a imagem do próprio teatro.
Figura 14: Espectadores coroados nos papéis de Rei e Rainha em Milkshakespeare
Karine Jansen já dirigiu mais quatro espetáculos em espaços de porão, entre os anos de 1997 e 2006. Quatro deles em colaboração comigo, na direção dos seguintes trabalhos que serão tratados no capítulo seguinte: Maravilhosa Orlando (1999), Duas Tábuas e Uma Paixão (2001), Como Um Beija-Flor a Dois Metros do Chão (2001) e A-mor-Te-mor (2002). David Matos, depois de dividir a direção de Milkshakespeare com Karine Jansen, construiu um novo espetáculo no Teatro Cláudio Barradas, desta feita, em parceria com Marton Maués30. Intitulado As Academias de Sião, o espetáculo foi uma livre adaptação do conto, com mesmo título, de Machado de Assis, realizado com os alunos da turma Alfabumba Meu Brecht, do curso de formação de ator da ETDUFPA.
Figura 15: A imagem cenográfica do espetáculo As Academias de Sião tinha inspiração nas tendas orientais do Mediterrâneo. 30
Marton Maués é palhaço e diretor de teatro. É o diretor artístico do grupo Palhaços Trovadores, especializado na linguagem do clown. Sobre este grupo construiu sua dissertação de mestrado intitulada Palhaços Trovadores: Uma História cheia de Graça, junto ao PPGAC da UFBA. Atualmente é professor de técnica vocal, clown e prática de montagem da ETDUPA.
Gostaria de registrar que todos os espetáculos montados pelo programa de teatro infantojuvenil da ETDUFPA e apresentados no Teatro Cláudio Barradas foram omitidos desta tese. Assumo a total responsabilidade por esta omissão por acreditar que a amplitude da produção deste programa, com mais de 20 espetáculos construídos neste espaço, tornaria a extensão deste capítulo exorbitante, mas principalmente, por acreditar que esta produção de natureza tão específica, mereceria uma investigação própria. Finalizado o tratamento deste teatro, inicio as considerações sobre o Espaço Mariano, o outro teatro-porão da ETDUFPA. O Espaço Mariano não foi pensado como espaço cênico no projeto de reforma do casarão adquirido pela UFPA para abrigar a Escola de Teatro e Dança. A utilização provável para este espaço, após a inauguração do prédio, seria de depósito de cenografia. No decorrer do funcionamento das atividades, a grande demanda do Teatro Cláudio Barradas acabou gerando a necessidade de outro espaço alternativo para a produção de pequenos projetos de montagens com os alunos dos cursos de formação. Como havia este espaço, ainda não ocupado de fato com a guarda de material, um processo de criação começou a ser ali desenvolvido. Nesse processo surge Mariano31, o espetáculo que deu origem ao nome do novo espaço e a certeza que ali, naquele espaço, havia as possibilidades cênicas de um teatro. A montagem de Mariano foi seguida pela montagem de Cadeira de Balanço, com direção de Marton Maués. Encenação baseada no conto, com mesmo título, de Osman Lins. Esta obra foi o resultado cênico de uma das oficinas de iniciação teatral ofertadas naquele ano.
31
Este espetáculo será abordado no próximo capítulo desta tese, na cartografia poética das obras da pesquisadoraencenadora.
Figura 16: Concebida em dois planos, a imagem cenográfica de Cadeira de Balanço é de uma sala-oratório.
Acredito que outros experimentos cênicos foram realizados neste teatro-porão, porém nenhum outro registro apareceu desses trabalhos, limitando a construção de nosso rizoma, quanto a este espaço. Por isso, passemos para o outro espaço que aparece nos mapas deste rizoma: o Espaço Alfabumba. O Teatro-porão Alfabumba aparece no cenário teatral paraense no final da década de 90. O registro deste espaço nesta investigação deve-se menos por ser um espaço aonde espetáculos foram concebidos e mais como espaço de apresentação de espetáculos montados em outros lugares, inclusive porões, como é o caso de As Academias de Sião, espetáculo deslocado do Teatro Cláudio Barradas e apresentado neste novo espaço. Vale registrar que a atitude de abrir e manter este teatro-porão deveu-se à experiência de seus componentes – ex-alunos da ETDUFPA – na prática de teatro nesta natureza de espaço cênico. Os atores-criadores do Alfabumba
apresentaram uma grande capacidade de planejamento e organização de ações artísticas, como é possível observar na imagem, a seguir:
Figura 17: Página do diário de trabalho do Grupo Alfabumba referente ao projeto cênico do espetáculo citado.
Na virada do milênio a cidade ganha o seu primeiro teatro-porão, não-institucional: o Teatro Bufo, concebido e mantido pela Dramática Companhia. Nesse espaço - com quase a totalidade de sua produção abordada no próximo capítulo deste estudo 32 – aparecem outras duas montagens: Te Amo Te Amo Te Amo, encenado por Olinda Charone e Umbigo de Deus, marcando a estréia, como encenadora, de Iara Regina Souza33.
32
No Teatro Bufo, a pesquisadora encenou Duas Tábuas e uma Paixão, Como um Beija-flor a dois metros do chão, Devagarinho...Eu deixo e Água Ar Dente. 33 Iara Regina Souza é iluminadora, roteirista e diretora de teatro. É professora de iluminação no curso técnico de formação em Cenografia da ETDUFPA e atualmente é coordenadora deste mesmo curso e do projeto de Rádioatores.
O espetáculo Te Amo Te Amo Te Amo compôs com Água Ar Dente - de minha direção - o projeto 2 EM 1, organizado pelo Grupo Cuíra do Pará em parceria com a Dramática Companhia, como forma de colaborar na manutenção do Teatro Bufo. Olinda Charone e eu somos artistas-fundadoras destes dois grupos de teatro, atualmente, com outras administrações. Encerrando a vida curta, porém produtivíssima deste Teatro-porão, Iara Regina Souza concebe Umbigo de Deus, um espetáculo montado com fragmentos da obra e da vida de Caio Fernando Abreu. Inspirada em um dos contos de Caio – Uma História de Borboletas – a imagem cenográfica do espetáculo revelava, através de um tabuleiro de jogo, os personagens entre os riscos e a sorte. Atores e espectadores como habitantes de um casulo; seres em estado de metamorfose.
Figura 18: O espectador como integrante deste universo ficcional, poderia intervir no espaço, escrevendo em suas paredes.
Em 2006, após a perda do Teatro Bufo, a cidade de Belém ganha outro espaço: o U. Porão. Para a inauguração deste espaço, Nando Lima concebe Frozen, uma nova produção do Usina Contemporânea de Teatro.
Figura 19: Projeções em multimídias fazem da imagem cenográfica um caleidoscópio
Considero esta cartografia de teatros-porão, encenadores e obras, inconclusa. Primeiro, porque tanto o acesso aos arquivos de documentos das produções realizadas não foi possível, quanto colher o depoimento de seus realizadores a contento – a disponibilidade dos encenadores ficou comprometida devido a seus compromissos profissionais. Segundo, quero crer que outros desdobramentos – pesquisas, experimentos, acontecimentos etc. - virão após a defesa desta tese. Terceiro, como está registrado antes, os espetáculos realizados em porões e interpretados por crianças e adolescentes, sob a coordenação de Olinda Charone, no Programa de Ensino Básico de Teatro, da ETDUFPA não foram aqui abordados. E por fim, os próximos capítulos, referentes ao Bloco da Encarnação, tratarão do experimento cênico que acompanha essa tese dando origem a um novo Teatro-Porão na cidade de Belém do Pará, ainda não abordado nessa cartografia.
4 O RECONHECIMENTO DE UMA POÉTICA
Em minha pesquisa de mestrado, já citada na introdução, inicio a exposição teórica do trabalho, dizendo sobre o meu modo de pensar teatro. Acredito que este pensamento muito se fortaleceu nesses últimos anos. A continuação e o exercício de estudo e pesquisa para escrever esta tese me deram a certeza de que aquelas palavras são válidas também para esta escrita. Por isso, repito-as novamente, agora como citação; repetição com diferença:
Percebo que a minha maneira de pensar teatro tem certa configuração. Como se configura este meu pensar? Não penso o teatro como uma forma enraizada no texto e só nele. Gosto de pensá-lo independente de qualquer ponto; não dependente de uma única raiz. O meu pensar teatro não quer que apenas um dos elementos da linguagem cênica – como a luz, o som, a cenografia, o texto, ou qualquer outro – seja o tronco da obra e para este tronco tudo converja. Ele quer ser, diversificar-se. (LIMA, 2005, p. 43).
Para o corpo daquela dissertação, desejei que a abordagem conceitual acompanhasse aquele pensar artístico, aquele objeto de pesquisa. Para tanto, encontrei-me com o pensamento de Deleuze e Guattari e seu sistema conceitual rizomático. Para esta tese, vejo que minhas escolhas podem vibrar novamente, através dessas palavras:
Estes filósofos propõem que o pensamento, além da forma arborescente – que implica uma hierarquização - pode também configurar-se de outra maneira: o pensamento como rizoma, um pensamento que se faz múltiplo, que se quer com diferentes formas, que quer subtrair o uno da multiplicidade a ser construída. Segundo os autores, ―o rizoma tem muitas formas diversificadas que vão desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos‖. (2000; 15). Acreditam eles que o pensamento humano está mais para um perfil rizomático, do que para um perfil arborescente. (...) O conceito de rizoma é pertinente a um pensar teatro específico deste estudo. Este teatro-pensamento se quer radículas em muitas partes (pequenas raízes espalhadas pela superfície, ampliando-se em todas as direções e não apenas na vertical). Ele quer espalhar-se, fazer conexões, rupturas, comunicar-se, abrir
pontos de fuga, vir a ser algo ou alguma coisa que não sabe de antemão, que desconhece. (LIMA, 2004, p. 43-44).
Para analisar o corpo de 11 (onze) espetáculos realizados por mim e já fora de cena 34 para construir a cartografia de reconhecimento dos meus princípios de criação e procedimentos, pensei ter em mãos apenas rascunhos, anotações, gráficos de cena, fotos, matérias de jornais, material de divulgação como folderes, cartazes, programas, uma e outra matéria de TV, entrevistas etc. Mas tudo isso não era os espetáculos, disso eu tinha certeza. Perguntei-me: haveria sobrevivido algo, um produto dessa intensa fabulação? Com o que fazer esta cartografia, esta encruzilhada de espetáculos? Com o objetivo de realizar este intento e de aprofundar meu horizonte teórico, trabalhei a construção desta cartografia poética buscando, tanto as figuras estéticas dos afectos e perceptos quanto os planos de composição e seus agenciamentos da criação e intercessores – todos conceitos de Deleuze e Guattari. Estes autores sempre me oferecem algo novo, que me ajuda a pensar, sem pensar; tomar a cena, os espetáculos, agora no plano das sensações. Mobilizada nesta direção – de encontrar as diferenças e repetições de princípios, processos e produtos no conjunto de espetáculos desta minha prática teatral - criei um mapa do plano de composição de toda esta fabulação. Quando digo que criei, quero assumir de novo, que inventei, a partir desses dois autores e com eles, uma maneira de olhar, analisar, estabelecer um entre espetáculos. Trabalhei por caminhos que já conhecia: dos elementos da linguagem cênica (a encenação, o trabalho de ator, a dramaturgia, a cenografia, a iluminação, o figurino, a 34
Repetindo, os espetáculos foram: no Porão Cultural da UNIPOP, A Dama da Noite, montagem do Grupo de Teatro Cuíra e Hamlet, do Grupo de Teatro da UNIPOP; no Espaço Mariano da ETDUFPA, Mariano montagem do Curso de Formação de Ator; no Teatro Cláudio Barradas, também da ETDUFPA, foram montados Do Que Brincam os Meninos Que Serão Poetas, Maravilhosa Orlando, Circo Vitória e A-MOR-TE-MOR, todos realizados pelo Curso de Formação de Ator da ETDUFPA; no Teatro Bufo, Duas Tábuas e Uma Paixão e Um Beija-flor a Dois Metros do Chão, montagens da Dramática Companhia; Água Ar Dente, do Grupo de Teatro Cuíra e Devagarinho Eu Deixo, montagem da Escola de Bufões.
sonoplastia etc.). Mas desejei descobrir algo a mais, no desenvolvimento dos meus estudos sobre as artes do teatro, mais especificamente, do teatro feito em porões. Desejei revelar os caminhos das sensações que segundo Deleuze e Guattari são o que as artes produzem. Porém, confesso que no momento de realização dos espetáculos elas, as sensações, se mantiveram aparentemente ocultas aos meus olhos. Meu mapa da fabulação poética apresenta cada espetáculo como um acontecimento dentro deste conjunto, identificado por mim pelo critério inicial de ter sido realizado em porão. Cartografar acontecimentos como estes é construir um ―mapa aberto, conectável em todas suas dimensões, desmontável, suscetível de receber constantemente modificações. Ele pode ser rasgado, adaptar-se a montagens de toda natureza, ser colocado ‗em obras‘ por um indivíduo, um grupo, uma formação social‖. (DELEUZE e GUATTARI, 1989, p. 20). Neste mapa, os acontecimentos/espetáculos são perceptíveis, detectáveis e reconhecíveis na sua transitoriedade espaço/temporal. Quero que entre eles haja entrelaces, enxertos, influências, conexões. Que deslizem uns sobre os outros, se desviem, se componham. Fazer aquilo que não sabemos de antemão o que é e o que será. Exatamente o estado que vivemos quando estamos criando, porque somos movidos por algo que, no primeiro momento, é incompreensível, porque é acontecimento. Segundo este referencial, a obra é um corpo, sim, mas um corpo constituído por fluxos e linhas de fuga. Cada acontecimento tem um plano de composição. Os elementos que compõem este plano são determinados, escolhidos por você. É preciso pensá-los e torná-los agenciadores de criação. Porque agenciar é estar no meio, sobre a linha de encontro de um mundo interior e de um mundo exterior. Agenciar é estabelecer acontecimentos, encontros. É principiar-se no caminho de um DEVIR. E que a única unidade do agenciamento é de co-funcionamento, é a ―simpatia―, a simbiose. Para Deleuze, simpatia ―não é um sentimento vago de estima ou de participação espiritual, ao contrário, é o esforço ou a penetração dos corpos; ódio ou amor (...).
Os corpos podem ser físicos, biológicos, psíquicos, sócios, verbais, são sempre corpos ou corpus‖ (1998, p. 66). Agenciar é estar entre corpos, entre obras de diferentes naturezas. O que eu tenho à minha disposição é a memória, o registro da vida dessas obras, desse conjunto de espetáculos que montei em porões e é com eles que eu preciso estabelecer esta simbiose. A realidade deste conjunto eu considero como multiplicidade, que é bem diferente de entendê-la como múltipla. É necessário substanciá-la: multiplicidade. O teatro sendo realidade inventada precisa inventar as suas multiplicidades. Eu preciso reconhecer os meus agenciamentos de criação para esta cartografia, para assim, me conectar novamente com estes princípios que só aparentemente têm igual natureza - para vir a ser, se tornar, estar em devir, em movimento. Que agenciamentos serão esses?
4. 1 O PLANO DE COMPOSIÇÃO
Criar uma obra teatral é trabalhar na zona do artifício, do construído, composto. Todo espetáculo tem um plano de composição. Ele só é concretizado de fato na obra, no ato, na ação. Nunca antes. Muitas vezes só podemos percebê-lo totalmente no momento que a obra se faz, que estréia. Para Deleuze e Guattari, ao se tratar de obra artística, estamos tratando de composição:
Composição, composição, eis a única definição da arte. A composição é estética, e o que não é composto não é uma obra de arte. Não confundiremos todavia a composição técnica, trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciência (matemática, física, química, anatomia) e a composição estética que é o trabalho da sensação. Só este último merece plenamente o nome de composição, e nunca uma obra de arte é feita por técnica ou pela técnica. (...) O plano técnico, com efeito, é necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composição estética. É sob condição que a matéria se torna expressiva: o composto de sensações se realiza no material, ou o material entra no composto, mas sempre de modo a se situar sobre um plano de composição propriamente estético. (1992, p. 247, 251-252).
Com este raciocínio proponho uma leitura do plano de composição desta cartografia com dois blocos: bloco de intercessores e bloco de sensações. Os intercessores ativados com os agenciadores da criação serão absorvidos para revelar o bloco de sensações. Um tanto antropofágico! Os traços da linguagem são recobertos para expressarem pura sensação, da memória em cena.
4.1.1 Intercessores
Para não abandonar o que de sorte já me é sabido – o meu métier com os elementos da linguagem teatral na construção dos espetáculos – apresento-os aqui nesta cartografia como meus intercessores, organizados em três categorias: textuais, espaciais e humanos. Os intercessores textuais subdividiram-se em três: tipo de texto, autor e ação sobre o texto. Os intercessores espaciais foram assim distribuídos: local, arquitetura, imagem cenográfica, palco/platéia (relação) e elementos cenográficos. Os intercessores humanos são: os atores, os criadores (o cenógrafo, o iluminador, o sonoplasta, o figurinista etc.) e o público. Esta atitude de inseri-los – os elementos da linguagem cênica e seus tratamentos - nesta composição como da ordem de intercessores, foi possível quando me apropriei da seguinte definição para este conceito Deleuze-guattariano: O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim; sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. E mais ainda quando é visível: Félix Guattari e eu somos intercessores um do outro. (DELEUZE apud GALLO; 2003, p. 21).
4.1.2 Bloco de Sensações
Guattari e Deleuze iniciam o capítulo Perceptos, Afectos e Conceitos, da obra O que é filosofia, falando de arte, atravessam-me – porque digo que aí cabe pensar o teatro - quando afirmam que ―a arte conserva, e é a única no mundo que se conserva. Conserva e se conserva em si (quid júris?), embora, de fato, não dure mais que seu suporte e seus materiais (quid facti?), pedra, tela, cor química, etc.‖. (1992, p. 213). Mesmo exemplificando com imagens não pertinentes à cena teatral como quando dizem que só é necessário rever o quadro, virar a página novamente ou voltar o tal momento do filme, que tudo começará de novo, que a obra lá estará. Esses autores me comoveram, eu fui movida por eles e suas idéias. Por este contágio, cheguei a pensar que talvez o teatro se conservasse no gesto, na palavra falada, no movimento e em tudo que é gerado pelo ator, mesmo de maneira tão efêmera. Segundo o raciocínio estético desses filósofos, a obra deve ser independente do criador pela auto-posição do criado, que se conserva em si – logo, independente do ator, assim como do espectador, que vejo como um intercessor na construção da obra. Os autores sintetizam sua tese quando escrevem ―o que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos‖. (1992, p. 213). Então porque analisar o trabalho do ator, a intercessão do espectador ou mesmo a encenação e seus elementos? O fato é que para esses pensadores os espetáculos estão conservados em blocos que eles chamam de blocos de sensações. Assim sendo, o que eu precisava revelar principalmente a mim, eram os blocos de sensações que ficaram de meus espetáculos. Esses blocos são formados por perceptos e afectos. Mas o que seriam perceptos e afectos? Nesta mesma obra encontrei algumas pistas:
Os perceptos não são percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si. (1992, pág. 213).
O teatro deve ser mantido tanto em sua extinção quanto em sua produção e seu desenvolvimento. Os espetáculos, fora de cena, existem como seres de sensação quando possuem a força da verticalidade, que é diferente de ficar em pé, em apresentação. É ser um ―monumento‖ porque lança ao criador o desafio de roubá-lo a suas combinações efêmeras, para torná-lo sólido, porque ato. O ato de fazer tantos espetáculos em porões está em mim, como bloco de sensação, perceptos e afectos. Quero agora encontrá-los aqui. Para tanto, apresento um mapa que me foi possível construir num esforço de descobrir o que não sabia, para só assim, dar visualidade aos meus encontros. Este mapa será seguido de uma análise.
4. 2. MAPA DA FABULAÇÃO POÉTICA35
35
O mapa se encontra dentro do envelope fixado na próxima página
MAPA DA FABULAÇÃO POÉTICA
4. 3 UMA LEITURA DO MAPA POÉTICO
A leitura do teatro feito em porão, para gerar blocos de sensação, parte sempre de um intercessor, seja este textual, espacial ou humano. Se não encontra o intercessor para disparar seu processo de criação, inventa-o.
4.3.1. Os Intercessores da Poética 4.3.1.1 Os Intercessores Textuais
Este intercessor, que muitas vezes tem gerado a cena, tem o seu ―porquê‖ como agenciador, ora em função da natureza do texto, ora do autor, ou da ação sobre o texto. Na realidade, nada tão separado assim. Nesta série de onze espetáculos, seis nasceram de um texto dramático, pré-escrito à encenação, como foi o caso de Hamlet, Mariano, Maravilhosa Orlando, Devagarinho... Eu Deixo, Circo Vitória e Água Ar Dente. Dos seis, dois textos foram montados integramente e, nesses casos, a natureza do texto - ser texto dramático - foi determinante. Foram os textos Mariano e Circo Vitória, de autoria de Paulo Faria36, montados como uma experimentação de sua escrita dramatúrgica. Mesmo assim, duas intervenções significativas foram feitas sobre eles. No texto Circo Vitória primeiro optou-se pela construção de uma personagem como intervenção dramatúrgica sendo coringada entre diversos atores e segundo, pela adoção de outro título para o espetáculo, diferente do original que era A Mulher Macaco. Este texto tem características cômicas e trágicas, mostrando personagens de circo em situações de incestos e traição, num clima misterioso. Foi vencedor do prêmio Plínio Marcos da
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Paulo Faria é diretor e dramaturgo paraense. Radicalizado em São Paulo, dirige a Companhia teatral Pessoal do Faroeste.
Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo no ano de sua estréia. O texto Mariano foi concebido como tragédia, mas montado por nós como farsa. Mariano não é nem trágico e nem cômico. É tragicômico. A peça conta a história de um rei amedrontado (Mariano), que para evitar seu próprio assassinato precisa sacrificar uma de suas três mulheres – Astréia, Urânia ou Adara - até o fim do dia. Alguns dos textos sofreram apropriações. Neste estudo, onde textos de quaisquer naturezas cedem o lugar de indutores majoritários à imaginação material dos porões, o ato de apropriação é precioso e preciso, em detrimento de ―adaptação‖, porque tem a potência para agir nessa fronteira de criação, de mudanças do olhar, de negociações. Apropriação aqui é o agir sobre algo ou alguma coisa a ponto de modificá-lo, se o achamos impróprio, inadequado ou inabitável. Um texto, assim como um porão, precisa ser habitável para os criadores que atuarão neles e com eles. Não deve ser pensada como uma habitação para o cotidiano da vida diária, mas sim como um acampamento de escavações para extrações desconhecidas. Em Água Ar Dente que é originalmente um texto dramático, curto, ligeiro, e apresenta uma relação estranha e agressiva entre três homens, as apropriações realizadas mantiveram esses traços no espetáculo, produzindo uma encenação curta, ligeira, estranha e agressiva. Porém, não reuniu personagens, mas sim o corpo-vida dos atores, que em suas relações revelam alguns aspectos dos seus universos masculinos, que são múltiplos. A montagem colocou frente a frente três homens despedaçados pela vida, com contas a acertar, e mais uma encenadora-mulherhomem-bicho. Havia violência, cinismo, traição e amor nas relações desse encontro.
Figura 20: A encenadora e os três atores de ÀGUA AR DENTE
Devagarinho...Eu Deixo, apropriação do texto Doce Deleite de Alcione Araújo apresenta cortes de personagens, enxertos com histórias de vida dos atores e jogos teatrais. É um metalinguístico. Os personagens são figuras presentes no universo teatral, como o ator, o contraregra, a bilheteira e o iluminador. Todos falam de suas dificuldades e do amor pelo teatro. Fala bem do teatro embora falando mal. No espetáculo Maravilhosa Orlando, baseado no texto de Antar Rohit, a apropriação incluiu ―enxugamento‖ dos textos, isto é, a eliminação de palavras desnecessárias e repetitivas ou informações já colocadas, e o ―enxerto‖ de cenas novas, construídas no processo de montagem. Usando linguagem coloquial, prima por uma ironia-brincante para contar as passagens mais delicadas da vida do protagonista, quando este vive ―o acordar de cada dia‖, ora como homem, outro como mulher, travestir, lésbica, veado, quem sabe tudo isso junto. Um jogo, sem gêneros ou com gêneros outros, cheio de poeticidade.
Deste grupo de textos dramáticos, o de Shakespeare foi exemplar na apropriação. O grande agenciamento aqui foi na ação sobre o texto: fragmentá-lo, rasgá-lo. Radicalmente, foram ―extirpadas‖ muitas cenas. Outras foram deslocadas no tempo e espaço da narrativa e e de algumas sobraram somente pequenas frases ―desconexas‖. A ação sobre o texto é o ponto mais importante entre os intercessores textuais desta prática. Porque tão importante? Porque dos textos originalmente escritos para teatro, isto é, os dramáticos, Hamlet de Shakespeare é uma obra vista como clássica, portanto, intocável. Para o espetáculo Hamlet, o texto de Shakespeare tornou-se um pretexto. Foi discutindo o indivíduo, sua postura particular, mergulhando cada vez mais na alma humana, que se fez do espetáculo Hamlet uma ação artística, dentro do contexto político da UNIPOP. É impossível pensar o social, o coletivo sem discutir o homem, o elemento primeiro dessa congregação. Alguns exemplos da ação de fragmentar o texto, por zonas e extratos de interesses, revelam o processo de construção do espetáculo para alcançar essa dimensão política. Na zona do Mambembe – a primeira em que o espectador penetrava - montei a cena ―O Assassinato de Gonzaga‖, momento capital da primeira metade do texto de William Shakespeare. No espetáculo, esta cena foi deslocada para o início do espetáculo, de forma a resumir o andamento da história que o espectador assistiria a seguir. A partir daí, os passos característicos dessa encenação eram colocados: iniciava-se o vaivém do público ao longo do porão, onde diversas cenas aconteciam simultaneamente. O espectador escolhia qual acompanhar, roçando, esbarrando nos atores, que pulam por outras quatro zonas. Desta feita, a história do infeliz príncipe, recebe de cada espectador a sua própria leitura, sua costura de cenas. Na encenação se realizava, simplesmente, a reconstrução contemporânea de um drama que é misto de loucura, vingança, obsessão e erotismo. De maneira concreta, foi possibilitado construir formas particularizadas para essa narrativa teatral, usando para isso os elementos da montagem como
signos, como símbolos. Em cada objeto de cena, procurei remeter a um entendimento, a uma compreensão da dor, do desejo, da degradação, da morte que enovela e mascara/massacra o peito dos habitantes de um reino em frangalhos. O texto Dama da Noite de Caio Fernando Abreu foi adaptado para teatro por Kil Abreu, pois era originalmente, um conto literário. A apropriação ocorreu minimamente, porque a adaptação realizada já respondia as necessidades de ―habitação‖ da encenação a história. Uma mulher fala a um garoto sobre as utopias que fizeram parte da vida de quem não perdeu o trem da história e embarcou nos sonhos gerados durante os últimos 40 anos. Estes conflitos gritam a todo o momento, até mesmo quando nada é dito. Com o romance de Gabriel Garcia Marques Cem Anos de Solidão geramos o espetáculo A-MOR-TE-MOR Fragmentos Amorosos de Cem Anos de Solidão. A construção dramatúrgica do espetáculo nasceu com os atores escolhendo os seus personagens, separando no livro as situações em que estes estavam inseridos. Com estes pedaços do romance compunham um texto solo para cena. O trabalho da direção – parceria entre mim e Karine Jansen - foi o de ―costurar‖ um solo ao outro, proporcionando um encadeamento ―lógico‖, um enredo. O texto de A-MOR-TE-MOR ficou repleto de imagens e memórias. O roteiro é uma colcha de retalhos sobre o universo da família Buendia, protagonistas de Cem Anos de solidão. No palco, o ponto chave foram os fragmentos amorosos dessa estirpe, o medo da morte dos sentimentos. Cem Anos de solidão conta a saga da família dos Buendia, que durante 100 anos presenciou uma série de amores entre parentes. Há a presença constante do medo, que o último filho destas uniões, venha ao mundo com um rabo de porco. É uma premonição escrita em pergaminhos, decifrados pelo penúltimo dos Buendia, que com este ato de deciframento, acaba conhecedor do desfecho desse clã. Cem Anos de Solidão também inscreve no palco as nossas histórias de vidas e memórias – nós, membros da estirpe dos artistas da cena.
Jornalístico é o livro Senhor dos Labirintos de Luciana Hidalgo que deu origem ao roteiro de Um Beija-flor a Dois Metros do Chão. No corpo desse texto há uma série de diálogos narrados pelo próprio Bispo com três interlocutores: Altamiro, Rosângela e Rosalinda. Estes diálogos foram destacados da obra e a eles foram colados, tanto textos com informações biográficas de Arthur Bispo do Rosário quanto textos críticos sobre sua produção como artista. Múltiplos eram os textos do espetáculo Duas Tábuas e Uma Paixão, porque possuía diferentes naturezas de discurso. Construído como uma colagem de textos e depoimentos que tratam da paixão do artista pelo seu trabalho, o texto deste espetáculo é de caráter metalingüístico. A colagem reuniu textos dos reformadores do teatro do século XX como Constantin Stanislavski, Bertold Brecht, Eugênio Barba e Jerzy Grotowski, além de depoimentos de atores coletados por mim, encenadora, em diferentes trabalhos com grupos de teatro da cidade. Apesar da multiplicidade de concepções cênicas de diferentes reformadores do teatro do século XX, confesso que o roteiro teve como base o livro A arte do ator de Richard Boleslavski, um dos estudiosos do método desenvolvido por Stanislavski, o primeiro a sistematizar um método de trabalho para o ator. Por último, Do Que Brincam os Meninos Que Serão Poetas também teve o seu texto composto por fragmentos. O resultado foi uma colagem de textos dramáticos intercalados com fatos da vida e morte do poeta espanhol Federico Garcia Lorca. Esses fragmentos, na sua maioria, são textos pequenos, feitos para o teatro de estudantes, organizado por Lorca. São três fragmentos de farsas, dois fragmentos de O Público, dois fragmentos de Bodas de Sangue, um fragmento do texto fantástico E Assim Que se Passaram Cinco Anos e trechos de uma conferência de Lorca com o título O jogo e o Espírito do Duende. Há também pequenos textos com dados biográficos do autor. São textos extremamente poéticos, mas muito abertos na forma, que possibilitaram uma encenação, sem espaço nem tempo determinados.
Em resumo: os textos - fossem eles dramáticos, literários, jornalísticos, autobiográficos, filosóficos ou mesmo pensamentos sobre as artes do teatro – foram intercessores nestes fazeres. Porém―obrigados‖ a sofrer um ponto de fuga em sua própria estrutura, se reterritorializando ao se conectar com o que é fundante nesta prática teatral: o espaço físico dos porões.
4.3.1.2 Os Intercessores Espaciais
Uma das grandes características da multiplicidade desta prática teatral é que cada porão é um espaço singular com suas características arquitetônicas próprias. São heicidades, isto é, corpos particulares, porque possuem uma localização geográfica, acesso de público, estrutura física etc. bem específicos. O conjunto dessas heicidades é um rizoma, que se ramifica em todas as partes. E o que mais determina suas singularidades é o fato de cada um ser o equipamento cênico, cultural, de instituições distintas, com ações e finalidades diferentes.
a) Os locais e suas arquiteturas
A UNIPOP é uma instituição de natureza política, para formação de lideranças políticas. Suas atividades abrangem o social, o religioso, o artístico, etc. Talvez por isso seu teatro tenha a denominação de Porão Cultural, pela necessidade de se fazer abrangente. Nos dois espetáculos aqui estudados e montados neste local, houve aproveitamento espacial diferenciado. O Dama da Noite foi apresentado em uma única sala, não ocupando o espaço total do porão. Já o espetáculo Hamlet usou todo o espaço físico do porão, cerca de 180 metros², extensão total da planta do piso da casa, uma arquitetura portuguesa retalhada em salas, cubículos e corredores.
A Escola de Teatro e Dança da UFPA possui, ou melhor, possuía os teatros Cláudio Barradas e Mariano37. A função desta instituição é formar atores, bailarinos e cenógrafos, em nível técnico. O teatro Cláudio Barradas foi projetado como um espaço experimental, isto é, palco e platéia móveis, uma sala vazia de aproximadamente 90 metros², ampla e sem colunas. O Teatro Mariano nasceu de uma iniciativa de aproveitamento de espaço para a experimentação cênica de pequeno porte. Os dois teatros eram salas de aula vivas. Proporcionaram experimentos de luz, cenografia, relação palco e platéia, utilização sonora do espaço, etc. Sua dimensão era de aproximadamente 90 metros². Um espaço recortado por colunas. Havia nos dois espaços, escadas em concreto, portanto fixas, usadas tanto como palco quanto como platéia. O Teatro Bufo da Dramática Companhia - um grupo de teatro da cidade – tinha como objetivo suprir a falta de acesso dos grupos da cidade no uso dos teatros do Estado. Durante um ano abrigou diferentes ações artísticas, deste e de outros grupos, como: ensaios, apresentações públicas, atividades de formação, mas sucumbiu frente à falta de subsídios. Sua dimensão era de aproximadamente 60 metros². Uma sala com pequenas saliências de colunas nas paredes laterais. Dos quatro espaços até aqui estudados, nesse capítulo, três foram desativados (Teatro Cláudio Barradas, Espaço Mariano e Teatro Bufo). Apenas, o Porão Cultural da Unipop mantém suas atividades cênicas de produção de espetáculos e formação de lideranças artísticas. Nos capítulos seguintes, deste estudo, serão investigados os novos espaços de porão, que sugiram na cidade de Belém, a partir de 2007, destinados ao fazer teatral.
37
A Escola de Teatro e Dança da UFPA, mudou de endereço e o prédio que ocupou de 1987 a 2004 - local onde estavam instalados os Teatros Cláudio Barradas e Mariano – abriga hoje a Escola de Música da UFPA. Atualmente o espaço está transformado. O que era o Mariano é hoje uma luteria e o Cláudio Barradas desapareceu. Seu espaço, em reforma, será utilizado como sala para pequenos concertos. Para o novo prédio da ETDUFPA, estão previstas as instalações de um teatro universitário com caráter experimental e de um anfiteatro.
b) O Jogo Cênico encravado de imagens
No início dessa prática teatral, a opção de construir um trabalho no porão da UNIPOP foi decorrente de duas questões básicas: a primeira pela total disponibilidade de uso do espaço como espaço cênico para a categoria teatral e a segunda, por ser esse porão, um espaço disponível a quaisquer transformações radicais, como por exemplo, pintura de chão, teto e paredes, utilização de estruturas opcionais para organização e/ou eliminação de palco e platéia, alterações na arquitetura etc.
Dama da Noite
Como toda encenação pode para ser construída a partir de qualquer indutor que sirva ao jogo cênico e uma das artes do teatro está exatamente no exercício do encenador, a proposta para a encenação de Dama da Noite estava livre para que a sua construção imagética fosse autoral, isto é, livre da submissão ao texto de natureza dramática - inclusive da adaptação do conto construída por Kil Abreu - como deve ser o trabalho do encenador Como cada encenador põe em cena o rizoma de imagens que deseja criar e não necessariamente precisa seguir uma narrativa pré-estabelecida, a encenação do espetáculo Dama da Noite foi pensada de modo a obter uma disposição espacial unitária como indução do jogo. Muitas propostas surgiram e entre elas, a de um bar, um hospital e de uma praça pública. Uma disposição em arena formada por cadeiras foi também experimentada, como uma proposta livre de um lugar determinado. Depois da realização de quatro ―ensaios abertos‖, chegou-se à disposição que pensamos ser a melhor opção como imagem cenográfica: um banheiro público, com latrinas, bancos de espera, infiltrações, paredes sujas e cheias de lodo, água e papel
higiênico no piso e muita umidade, intensificada graças ao giro ininterrupto da hélice de um enorme ventilador que funcionava ainda como elemento da sonoplastia. Como o espaço não tinha arquibancadas ou quaisquer outros espaços fixos para a platéia, os elementos cenográficos eram, basicamente, os lugares de assento dos espectadores (bidês, vasos sanitários, cadeiras-piniqueiras, bancos corridos e bancos de banheiro) e alguns objetos que sustentavam o desenvolvimento das cenas (pia, espelho, ventilador, torneira pingando, etc.).
Figura 21: O banheiro como imagem cenográfica para Dama da Noite
A relação, mais do que proximidade conseguida entre a personagem da Dama e a platéia, foi o grande feitiço do espetáculo. E, também, sua mola de tensão. A proposta era experimentar uma versão íntima para a peça, onde a personagem ficasse cara a cara com o público. O resultado foi surpreendentemente denso. O contracenar da personagem com o espectador-boy gerou uma ambiência sensorial de sedução, conflitos, medos e silêncios.
Figura 22: Relação ator / espectador em Dama da Noite
Hamlet
A encenação centrou sua concepção nos bastidores do ato teatral falando da condição de trabalho de um grupo de pessoas em torno de uma montagem. Utilizando o mote do príncipe Hamlet como o encenador do seu próprio destino, o espetáculo discutia a construção dos valores do teatro como conseqüência de um código moral instituído para todos os indivíduos. Peça dentro da peça (―meta-meta-meta‖). O jogo cênico retirava dos bastidores e punha em realce o conflito e a condição dos atores que se reúnem em torno de um texto e, conseqüentemente, geram uma montagem. Para orientar tanto atores quanto espectadores, o ―diretor-Hamlet‖ frequentemente informava acerca do estado em que se encontrava a montagem. O Hamlet da Unipop movia o público por todo o espaço do Porão Cultural. O espectador tinha a opção de assistir em qualquer uma das cinco zonas onde o espetáculo acontecia. Nessa montagem a vida do reino passava simultaneamente entre as oito salas e corredores onde
―passeavam‖ os espectadores. Nas cenas, vinganças eram tramadas por súditos, ódios eram destilados, cenas de sexo entre iguais podiam ser testemunhadas, coveiros arrastavam pás nos limites do espaço, músicos tocavam as dores do príncipe e tantas coisas mais. Eram pequenos espetáculos isolados, porém simultâneos, compondo o mundo de uma Dinamarca-porão, numa disposição espacial única. Porque todos nós (atores, técnicos e espectadores) estávamos no mesmo campo de ação, porém esta, extremamente fragmentada.
Figura 23: Em cada zona inscrições que orientavam o espectador
O Hamlet da UNIPOP foi nordestino, mamulengo infeliz em seu próprio brinquedo, festa. No reino subterrâneo dois letreiros indicativos diziam que ali era o território da Dinamarca, aonde o caos e a pobreza imperavam. Nesta encenação, determinadas cenas eram repetidas durante a apresentação. Eram cinco zonas: três zonas se repetiam 2 vezes, a das Ofélias, a de
Hamlet e a do Trono. Quanto às outras duas, a zona da Guarda se repetia 8 vezes e a zona do Mambembe, 7 vezes. A cena do Mambembe repetiria tantas vezes quanto o espectador se fizesse presente. Ele poderia voltar e assistir novamente porque ali estava a fórmula, a síntese de tudo. Cada compartimento daquele castelo-porão de sombras, em que se transformou aquele casarão, tecia fios de Ariadne no enredo do Hamlet da UNIPOP. Um tecido nervoso e áspero de fios que em nada evitavam as sensações labirínticas de um lugar sem saídas. Não havia como escapar a não ser colocando as asas do espectador imaginante que realiza seu próprio caminho.
Figura 24: As zonas de atuação / encenação em Hamlet
Mariano
O espetáculo Mariano foi como Hamlet, teatro falando de teatro, metateatro. Camarim no lugar do palco, exaltação do riso. Riso extraído/espremido do trágico. O texto sendo pretexto mesmo. O jogo, a brincadeira, como elementos de construção da cena, do cenário, do figurino etc. A farsa, o falso, alegria, alegorias. Elegia de rei, rainhas e anjos rasgados rasgando a lona invisível do circo. Durante uma hora os espectadores - de uma platéia de apenas 30 pessoas acompanhavam a angústia de um soberano fraco que se misturava com o nervosismo dos atores
se preparando para entrar em cena. Tudo acontecendo, claro, no nariz do espectador. Muito próximo, mas com uma disposição espacial repartida em dois grupos, e como diria Grotowski, em dois ensembles. Mariano me dava à sensação de estar recebendo as pessoas em minha própria casa, com o mínimo de formalidade social, pois os atores abrirem o espetáculo trocando de roupa na frente do público.
Figura 25: O Reino farsesco de Mariano
Havia particularidades operatórias fundamentais nos elementos cenográficos que enriqueciam este jogo cênico. Um espelho colocado estrategicamente no fundo da sala ampliava a visão do espectador, que tinha imagens desdobradas para escolher, provocando sensações de dúvida e risco nas escolhas do olhar. Na montagem, o próprio teatro é que era colocado na frente do espelho, de modo que o espetáculo acabava se transformando em uma grande farsa
acerca da arte dramática. Misturando universos, tempos de palco e bastidores, a encenação fez com que o camarim fosse trazido para dentro do palco.. Esse fazer teatral fala de tudo, mas fala primeiro, e principalmente, dele mesmo, da paixão pelo teatro.
Figura 26: Imagens espelhadas para o espectador
Do Que Brincam os Meninos Que Serão Poetas
No espetáculo Do Que Brincam os Meninos Que Serão Poetas o eixo principal foi novamente o lúdico, o faz-de-conta, a brincadeira, a dissimulação, sem perder a densidade dramática. A ilusão estava presente, mas era quebrada constantemente pela mágica do teatro, dos bastidores e da visibilidade de recursos técnicos muito simples. Havia um menino crucificado em uma escada, remetendo esta proposta de encenação à nossa tradição das Paixões de Cristo.
Remetia também à vida e morte do poeta Lorca, o seu assassinato; ao profissional de teatro que trabalha com escada, daí a crucificação ser feita numa escada, instrumento do nosso trabalho. E finalmente, o ser ―cristo‖ de todos os que trabalham com paixão. O espetáculo falava do medo, do medo da gente de criar, medo do risco. A salvação vinha pela realização do desejo que sempre era maior do que o medo.
Figura 27: A Ciranda do movimento das imagens cenográficas
Nos casos Mariano e Do Que Brincam os Meninos Que Serão Poetas, os resultados cênicos foram de disposições espaciais repartidas. Ao cartografar esta poética comecei a observar que o fato de existir escadas fixas em ambos os espaços acarretou, de certa maneira, uma acomodação em minha busca por espaços unitários. A realidade material das escadarias me direcionou a também fixar o espectador em uma potência mínima de atuação.
Maravilhosa Orlando
Em Maravilhosa Orlando toda a concepção do espetáculo foi inspirada na linguagem do teatro experimental, em dar luz aos cenários sociais de uma época. O visual era retrô como o texto. Este localizado nos idos dos anos 70 com todas as suas cores, sonhos, consumismo e romantismo. Os elementos cenográficos abusaram da estética da pop arte, brincando em deixar à mostra todos os elementos cenotécnicos como, praticáveis e spots de iluminação - recurso, aliás, bastante utilizado em outros espetáculos montados pela ETDUFPA como de um teatro didático. Para desenhar melhor o clima do espetáculo, o compositor Roberto Carlos foi escolhido como a fonte para embalar a concepção da sonoplastia do espetáculo, executada ao vivo. Apesar de a proposta ser de um besteirol, Maravilhosa discutia o tema-tabu do momento: a sexualidade humana, através do personagem Orlando Maria Hermes Afrodite.
Figura 28: Cenas de Maravilhosa Orlando
Nesta encenação, escadarias foram ocupadas por atores e não por espectadores. Estes estavam sentados em arquibancadas divididas por gêneros; mulheres de um lado e homens de outro. A participação dos espectadores na função cênica de auditório de programa de TV tornou
a disposição espacial mais unitária, então mais dramática. Como foi o segundo espetáculo que encenei neste Teatro Porão, a experimentação espacial foi se radicalizando, bem como, as potências de resignificar imagens e visões de mundo neste espaço, como por exemplo: somos um só corpo; em cama de filho, pai e mãe não deitam; só vivo para você; etc.
Circo Vitória
Nada muito diferente foi proposto na montagem de Circo Vitória quanto à questão da imagem cenográfica. Concebi um picadeiro de garrafas formando a arena de um circo. Um Circo-risco. Ao fundo duas estruturas reaproveitadas de outros contextos davam conta dos bastidores. As garrafas traziam notícias, no seu interior, de gente de circo de outro tempo ficcional. Todas elas continham desenhos em pastel dos personagens daquela história. Uma relação próxima, mas frontal com os espectadores, deixava o espetáculo ainda repartido em dois ensembles, centralizando a ação apenas no grupo de atores. Mesmo assim, penso que a utilização de elementos cenográficos mínimos, concedeu ao trabalho um sabor de poesia e proximidade emocional, gerando imagens de pequenos mundos e estreitas relações, algumas sufocadas e ocultas.
Figura 29: Poesia no picadeiro de vidro do Circo Vit贸ria
Figura 30: Elenco circense em risco no picadeiro de vidro
Duas Tábuas e uma Paixão
A estética contemporânea - caracterizada pela não-linearidade do roteiro e pela forma experimental de utilização do espaço - foi a roupagem do espetáculo Duas Tábuas e uma Paixão. Em cena, o espectador podia acompanhar os principais acontecimentos que contribuíram para a evolução da encenação teatral, passando pelo teatro épico, o naturalista e o experimental. Para tanto, a imagem cenográfica foi concebida como uma colagem entre três zonas, um rizoma – na primeira, uma caixa preta, um palco nu para o teatro épico. Na zona central uma caixa de areia para o teatro naturalista. O espectador estava dentro desta zona.
Figura 31: Uma caixa de areia na zona do teatro naturalista / Detalhe: a personagem A Criatura
Na última zona, em relação a entrada do público, ficava o palco do teatro experimental numa proposta multimídia (projeção de vídeos, slides e músicas sintetizadas) onde a captura das imagens dos palcos e da platéia era em tempo real sob uma sonorização operada ao vivo, como os shows das aparelhagens. A captura dessas imagens, em particular de imagens de cada um dos espectadores, tornou o espaço da platéia, um território de cena.
Figura 32: Atores e técnicos juntos em cena
Duas tábuas e Uma Paixão seguia em uma encenação saltitante, entre as zonas do palco/platéia, buscando mostrar as formas do fazer teatral de modo sintético, bem-humorado e explícito, tecnicamente. Sua operação era realizada os atores mesmo em funções geralmente
destinadas à equipe técnica. No cenário que fala do teatro experimental, a atriz Olinda Charone e o sonoplasta Fábio Cavalcante se dividiam entre interpretar, sonorizar e a iluminar o espetáculo. Uma cena foi construída com esses atores a partir da imagem de um liquidificador, triturando e liquidificando todas as informações que ―atolam‖ os artistas da cena. A cena transforma a sede de conhecimento, quando cega, no mero consumo de uma batida ―vitaminada‖ e indigesta.
Como Um beija-flor a Dois Metros do Chão
A relação da arte com a loucura e a do próprio homem com a sanidade, através da vida e obra de Arthur Bispo do Rosário, um homem pobre, negro e diagnosticado como esquizofrênico paranóico, era o mote de Como Um beija-flor a Dois Metros do Chão. A imagem cenográfica materializava algumas obras do artista criando, espacialmente, o universo interno e externo desse homem que viveu em confinamento. Quando o público entrava no Teatro Bufo, percebia o que significava confinamento, pois já era obrigado a atravessar, abaixado, o cenário para chegar a platéia. Essa travessia permitia a aproximação com os atores, mas principalmente o envolvimento emocional do espectador. Nesta concepção cenográfica, o personagem estava dentro da sua própria obra e o espectador, se quisesse, poderia tocá-lo.
Figura 33: A estrutura cenográfica partindo o teatro ao meio
O cenário do Beija-flor foi inspirado numa espécie de carro-dispensa-de-sucata construído por Bispo no período de sua internação. Neste carro, pendurava diversos sacos com os materiais que dispunha para a construção de suas obras. Uma plataforma de madeira encravada nas paredes do porão, a uma altura de 1,20 cortava o espaço em dois. Embaixo da estrutura ficava confinado, o ator Paulo Santana em seu DEVIR-Bispo. Acima, sobre sua cabeça, habitava o inconsciente do artista, um DEVIR da atriz Adriana Cruz. Apenas três buracospassagens permitíam a comunicação entre os dois atores. O inconsciente de Bispo era revelado através de três interlocutores: Altamiro (seu carcereiro), Rosângela (a sua Julieta) e Rosalina (seu espelho), todos, jogo da atriz Adriana Cruz.
Figura 34: Série de cenas mostrando as relações espaciais entre as personagens
Quando opto em fazer teatro num porão, tenho que saber que esta opção pode desagradar a um determinado público. Ele, o espectador, precisa abaixar-se, seguir os atores, senti-los. Mas, ao mesmo tempo, penso que o trabalho pode interessar muito a pessoas que queiram viver sensações outras que não as de seu cotidiano. Sensações possíveis em um espetáculo como este dentro de um porão, numa disposição espacial que os coloca a dois metros dos atores.
A-MOR-TE-MOR
A concepção cenográfica de A-MOR-TE-MOR também se estende à platéia, fazendo cada espectador uma parte integrante dos acontecimentos. A todos foi dado o direito de observar os detalhes que iam do piso feito com trechos das páginas de um livro sobre a memória da cidade de Belém até os ambientes íntimos, onde viviam os personagens da história. Não houve momentos em que atores e espectadores não estivessem todos juntos na casa dos Buendia. Atmosfera envelhecida disposta em um todo-lugar – território da multiplicidade - como se vivessem, atores e espectadores, um mesmo devaneio que não os fixa, devaneio de uma reterritorialização constante. Para tanto, o porão foi dividido em dois planos, utilizando andaimes como elementos cenográficos. Esses andaimes funcionavam como camarotes, quartos, esconderijos, quintais, laboratórios, vagões de trem etc. Nesse espaço, atores e espectadores contracenavam com suas memórias.
Figura 35: A imagem revelar as aproximaçþes radicais entre ator e espectador
As imagens antigas da cidade de Belém, fazendo às vezes da ficcional Macondo, foram coladas no piso e nas cadeiras do espectador, mostrando o quanto a cidade sofreu com os impactos da modernização. Nos ambientes de cada um dos personagens, havia objetos escolhidos e resignificados pelos próprios atores. Tudo foi reciclado, costurado, colado, num exercício de criação a mobilização da história de vida de todos os criadores. Tudo era portador de sentidos.
Figura 36: Uma atmosfera envelhecida atingia personagens e objetos
Devagarinho...Eu Deixo
A encenação do espetáculo Devagarinho...Eu Deixo falava do fazer rir, só que bem devagarinho, de forma que não só o público, mas o próprio elenco sentisse a intervenção do riso. Um espetáculo que compartilha com o público toda a magia do ―fazer teatro‖, desde o primeiro risco da maquiagem na face do ator, passando pela representação de seu papel, até o desmonte
total da personagem. Com esta proposta, a Escola de Bufões 38 transforma o palco em uma transparente coxia afim de explicitar todo o universo teatral e seus mecanismos técnicos aos seus jovens atores, trabalhando apenas com praticáveis como elemento cenográfico e a arena como imagem cenográfica que por si só, já coloca atores e espectadores numa disposição de opositores. Em cena, a história de um proprietário de teatro falido, o conflito entre o ator criador e a atriz canastrona, uma espectadora apaixonada e outra indignada, um cientista um tanto quanto ―diferente ―, uma atriz desempregada e uma estrela do teatro comercial e um apaixonado casal de velhinhos espectadores. Uma comédia de doces frases e de frases fortes, de grandes pormenores, de verdadeiras confissões. A encenação cumpria um desejo: que nossos risos fossem para o mundo!
Figura 37: O elenco de Devagarinho...
38
Programa de formação de atores da Dramática Companhia.
ÁGUA AR DENTE
A cena de ÁGUA AR DENTE propunha os atores em focos, mínimos e nebulosos, o tempo todo. O jogo cênico se realizava como se o espectador não estivesse presente, mesmo ele estando a apenas alguns centímetros de distância. O espectador provocado pelos sentidos, principalmente, o olfato, sentindo os cheiros de suor e de cachaça exalando no ar, ficava bem, mas desprovido de sua função de atuante. Tudo acontecia, para os atores, em um só ambiente dividido em três áreas de atuação: o balcão do bar (com o seu barmam), uma mesa no centro para dois estranhos fregueses e uma cadeira de engraxate na entrada, sempre vazia. O ambiente parecia extremamente fechado, em virtude da luz em penumbras.
Figura 38: O sarcasmo entre as personagens em ÀGUA AR DENTE
Esta prática teatral, concebida para pequenos espaços de dimensões tão mínimas, íntimas, apresenta-se com grandes potencialidades cênicas. Os porões transformaram-se em banheiro público, reinos e castelos, casa kit, circo, sanatório, camarins, cidade, bar e múltiplos espaços cenográficos. Com seus elementos cenográficos - escadas, carros de guardados, estruturas de ferro, praticáveis, cadeiras, bancos, vasos sanitários, garrafas, arquibancadas etc. flexibilizaram as relações entre palco e platéia. Mais que isso, colocou atores e espectadores, lado a lado, de uma forma íntima39.
4.3.1.3 Os intercessores humanos
Atores, técnicos de cena e espectadores são os meus intercessores. Para o ator, sei o quanto é uma coisa sempre difícil esse enfrentamento com a platéia. Em todos os acontecimentos teatrais realizados em porões, o preparo para a cena exigiu um trabalho específico em torno dessa relação ator/espectador, porque além do ator estar sempre no centro motor das sensações, estava extremamente próximo do espectador. Não pude em nenhum momento, perder este fato como o centro de minhas atenções. Foi tudo muito rigoroso e estimulante.
a) Os atores
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É possível encontrar um paralelo entre esta prática de teatro feita em porões com a Arte Minimalista. Esta também se funda na vivência íntima e imediata que o receptor experimenta na presença do trabalho artístico. Evita representar. Quer fugir do símbolo. Ser presente. Porém esta prática - diferentemente do teatro minimalista que pretende o tempo cênico como tempo real, onde não há elipses, o espaço é apenas palco e atos e objetos estão carregados de uma neutralidade arduamente construída – quer dar sentido a tudo o que faz e com o que faz a cena. Apenas não quer impor e acreditar que só os seus sentidos existiram na cena. Portanto não busca neutralidade alguma. O tempo e espaço são ficcionais e não reais. Fonte: http://www.cbj.g12.br/~borges/Antena/bghp0537.htm
A alguns centímetros do espectador... Essa sempre foi a medida, a posição dos atores em relação aos espectadores nos espetáculos realizados em porão. Eles respiravam, o público via; eles tremiam e o público sentia. Absolutamente tudo era perceptível, não aos olhos ouvidos ou narizes do público, mas ao seu corpo inteiro. Cláudio Barros intérprete da Dama da Noite, confessa seu ―meio susto‖ no desafio do trabalho em porão e na construção de um estado feminino com o espectador:
O público define o ritmo do espetáculo e o estado da personagem, me dá a primeira bola e a partir daí eu conduzo o jogo. É uma experiência diferente de tudo, que me deixa inseguro, pois nunca sei o que o público vai fazer: espero do afago à agressão. Entro sempre numa corda bamba, sem saber se vou me equilibrar ou não. (Cláudio Barros)
Muitos atores foram escolhidos por suas habilidades manuais. Este foi um critério para a escolha de toda a equipe que se dispôs e se dispõe a trabalhar nos porões da cidade, porque nós artistas da cena sabemos que será sempre necessária a habilidade de transformar o que é tão úmido em algo ou melhor, em u lugar quente de emoções, sejam elas quais forem. Alberto Silva Neto40, em uma carta pessoal, endereçada a mim, expõe sua visão de ator após assistir Maravilhosa Orlando, num dos porões da ETDUFPA.
Minha querida Wlad, as vezes, penso que a arte do ator tem uma incrível semelhança com a arte dos trapezistas de circo — mas aqueles que atuam sem rede de proteção. Acho que todo ator deveria subir no palco correndo o mesmo risco de vida de quem se pendura num trapézio, onde qualquer descuido é fatal. Isto exige disciplina e concentração incomuns. Digo isso porque acredito que um espetáculo que aborda a sexualidade humana é uma excelente oportunidade para o ator levar para o palco as questões muito íntimas da sua existência. (Alberto Silva Neto).
40
Alberto Silva Neto é ator e diretor teatral. Na pesquisa de mestrado, sobre dramaturgia pessoal do ator, foi o meu ator guia
b) A Equipe Técnica em cena
Na verdade, eu gosto de pensar que todos os técnicos de cena são criadores de cena (cenógrafos, iluminadores, sonoplastas, contra-regras, diretores; todos), principalmente nos espetáculos feitos em porões, porque neles, esses criadores aparecem e desaparecem o tempo todo, na frente do público, ou melhor, entre eles. Cabe a eles falar com atores e com os espectadores em cena aberta, numa provocação constante, como nos ensaios. Na cena de porão, todos os referencias estão expostos e dispostos ao uso desses criadores. O processo de criação desses artistas segue induções múltiplas que vão ramificando-se em diferentes direções. Num espetáculo há ―Batman‖ na cena de maior tensão de Hamlet - o duelo do príncipe com Laertes - e é pela ―Voz do Brasil‖, que é levada para os confins mais longínquos, a notícia da morte do príncipe. Em outro espetáculo, as roupas, cenários e acessórios remetem ao final dos anos 60, período da explosão da estética hippie, pop art e op-art. Karine Jansen, criadora do cenário de Maravilhosa Orlando, empregando uma caracterização psicodélica para o ambiente dos personagens, diz que trabalhar num porão e resignificar objetos para a construção de outro mundo, é como se ―às vezes, não precisássemos estar distantes fisicamente para nos sentimos exilados de uma sociedade‖.
Figura 39: Imagens cenográficas psicodélicas
Um exemplo é o trabalho dos iluminadores nesse tipo de espetáculos. Ronaldo Rosa trabalhou em ÁGUA AR DENTE com luzes industrializadas, focadas nas paredes e rebatidas sobre os atores criando uma atmosfera de indefinições e mistério. Já Patrícia Gondim, concebe sua iluminação com objetos artesanais, confeccionados com latas, vidros e velas.
Figura 40: Série de Imagens com as Propostas de Iluminação
Segundo Mestre Nato, idealizador dos figurinos de A-MOR-TE-MOR, a idéia principal do seu trabalho foi conseguir elaborar uma roupa que além de caracterizar as personagens, fosse a ramificação da figura centralizadora de Úrsula, a matriarca da família Buendía. Para tanto, buscou um material orgânico e perecível, como elemento condutor de sua criação:
Vejo a Úrsula como sendo a grande comandante dos Buendia, Num trecho do livro é dito que o primeiro homem da família Buendia está preso a um castanhedo e o último está sendo devorado pelas formigas. Na frente da minha casa tem uma castanheira. Fiquie observando aquela árvore e suas folhas. Então pensei na Úrsula. Quis representá-la como uma enorme e forte castanheira, suas folhas como seus filhos, netos e bisnetos. Esta escolha foi a representação visual da árvore genealógica da família dos Buendia. Utilizar os recortes de revistas, associados às folhas da grande mãe, foi a minha maneira de conseguir que os outros personagens tivessem certa individualidade.
Figura 41: Atores caracterizados como os ciganos de muitas Macondos
c) O público
Nesta prática, sempre precisei como espectador dos espetáculos, de alguém que se deixasse envolver pelo sentir, independente de ter lido ou não o texto, que se permitisse construir a história a partir das coisas que iam chegando a ele. O que sempre quis foi que o espectador se permitisse ir, não somente atrás da história, caminhar pela narração. Acho uma tarefa difícil para eles, porque foi um exercício difícil para mim. As propostas foram de colocar o espectador num lugar de onde ele pudesse de lá ouvir tudo, e saber que estavam acontecendo coisas que ele não estava vendo. Que ele poderia sair de onde estava e entrar em outro lugar. E que havia momentos em que tudo culminava para o coletivo, para uma cena em conjunto – um olhar dirigido por mim, como encenadora. O espectador deveria, ao assistir a esses espetáculos, no caso de Hamlet, por exemplo, sair com a convicção de que o príncipe dinamarquês estava lá em carne viva, que Gertrudes padecia a todo o momento a sua condição de vítima e algoz num reino de intrigas, que havia de fato, algo de podre no reino da Dinamarca. No caso deste espetáculo, eu acompanhei muito a reação dos espectadores, porque essa era a minha função como espectadora de profissão41. Trafegava pelos corredores e zonas no decorrer das apresentações. Acompanhava a reação do público e escutava os seus comentários: ―isto é muito louco‖, ―o que eu faço?‖, ―Eu posso ir para tal lugar?‖. Tudo isso foi muito bom para mim, como criadora. Isso é o teatro. E só isso basta, porque no fundo esse Hamlet não era mais simplesmente um Hamlet, já era um princípio de criação que estaria em outros momentos desta prática. E nesta prática, a função do público é ser testemunha. Nela, o público tem a opção de mergulhar nas
41
Conceito construído por Grotovski e desenvolvido no próximo capítulo deste estudo.
imagens cenográficas, em todas as dimensões ficcionais que o espaço-porão pode gerar, a fim de entender o significado da necessidade simbólica do homem representar a si mesmo. A Dama chegou ao grupo com várias possibilidades de encenação, mas nossa escolha foi dar a função em cena de segunda personagem – o garoto – ao espectador que muito bem entendeu o jogo, a convenção. Com esta Dama o espectador travava um áspero diálogo. Outro exemplo destes tantos papéis do espectador foi o caso de Duas Tábuas e uma Paixão. Neste espetáculo, o espectador estava representado em cena pelo personagem ―a criatura‖, uma espécie de alter-ego de quem estava na platéia. A criatura encontrava-se com a personagem ―Eu‖. O ―Eu‖ dominava a arte teatral e ajudava a Criatura a ler o teatro. Por isso enganou-se quem pensava que o espetáculo só poderia interessar a quem faz teatro. O constante registro da câmera de vídeo de Nando Lima, ao redor de tudo e todos, fez com que o espectador se sentisse interligado com o todo do cenário e sair com a sensação de que esteve, realmente, sobre as duas tábuas que formam o palco. Ao lado desses espectadores-testemunhas, andei por muitos lugares, sentei em arquibancadas, bancos, cadeiras, vasos sanitários. Pulei obstáculos, atravessei paredes, entrei por buracos e túneis. Dei a eles tantas e tão diferentes funções. Construí sensações e quis afetá-los com muitas outras. Mas confesso que não sei os seus nomes, suas opiniões, seus sentimentos por tudo aquilo que viveram. Não conversamos depois das apresentações, mal nos cumprimentamos. Mas sei que eles estiveram lá, nos porões da cidade de Belém, talvez de uma forma muito tímida, porém vital para a vida desta prática teatral. Vitalidade tão bem reconhecida que me fez, no processo das apresentações de Em Carne e Osso – analisado no sexto capítulo, querer saber seus nomes e suas sensações na experiência com esta prática teatral.
4.3.1 O Bloco de Sensações da Poética
Como o meu trabalho como pesquisadora, até aqui, foi agenciar-me com o conjunto de espetáculos que se manifestam neste estudo na forma de acontecimentos, o que cabe a mim, encenadora-pesquisadora, ainda capturar destes acontecimentos? Os blocos de sensações; capturar meus espetáculos como puros seres de sensação. Para continuar a minha fabulação poética em direção a este objetivo, tenho que arrancar tanto o percepto das percepções - que tenho agora, no presente, desses espetáculos - quanto o afecto das afecções vividas por mim durante as suas existências cênicas. Para a pesquisadora Almeida42, ―o percepto é esta visão hiper-dimensionada que excede a percepção (...) e o afecto é o que penetra nas transformações de sentimentos mais desconhecidas (...), fabulando, por fim, um afeto novo, como o tornar-segirassol de Van Gogh‖ (2001, p. 85). No livro Dramaturgia Pessoal do Ator eu me perguntei ―Como arrancar perceptos e afectos dos corpos – estas duas figuras estéticas que compõem a sensação -, com os quais os atores se agenciam e produzem acontecimentos?‖ Naquela obra eu respondi que o ator precisava inventar procedimentos. E que isso iria variar de criador para criador. Sem dúvida que cada artísta-pesquisador tem seus próprios métodos e técnicas, assim como, cada um dos processos de criação aqui investigados tiveram seus próprios métodos. Mas como revelar esses blocos de sensações nos trabalhos em que estive como encenadora? Que sensações posso identificar quando atravesso as obras em questão? Deleuze propôs caracterizar grandes tipos monumentais, ou, como ele chama, ―variedades de compostos de sensações‖. Segundo a sua proposta, há a vibração, que é aquela
42
Doutora em Lingüística (Unicamp) e professora-visitante da Universidade Federal Fluminense.
sensação simples, mas já é durável ou composta, porque sobe e desce, implicando uma diferença de nível constitutiva, seguindo uma corda invisível, esta, mais nervosa que cerebral. Há também o enlace ou corpo-a-corpo, que é quando duas sensações ressoam uma na outra esposando-se tão estreitamente, num corpo-a-corpo que, para o pensador, é puramente energético. E finalmente, o que ele chama de o recuo, a divisão, a distensão que é quando duas sensações se distanciam, mas para só serem reunidas pela luz, o ar ou o vazio que se inscrevem entre elas, ou nelas. (1992, p. 218-219). Para Deleuze, fabular é estabelecer relação com a sensação, seja por vibração, acoplamento e/ou fuga. Palavras de Deleuze: vibrar a sensação – acoplar a sensação – abrir ou fender, esvaziar a sensação. Eu me pergunto, agora: então devo fabular com as minhas lembranças? O que o autor diz é que a fabulação criadora não é lembrança, mesmo amplificada, como um percepto. Ele diz que o artista excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido.
Como contaria ele o que lhe aconteceu, ou o que imagina, já que é uma sombra? Ele viu na vida algo muito grande, demasiado intolerável também, e a luta da vida com o que a ameaça, de modo que o pedaço de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens, acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul, que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos. (DELEUZE; GUATTARI;1992, p. 222).
Neste meu novo agenciamento de investigação e construção do mapa dos acontecimentos-espetáculos que criei, ainda senti a limitadora necessidade de setorizar meu modo de olhar. Em princípio, tenho consciência que este modo de ver é atual, olhar o que foi feito no passado com o olhar do presente. Muitos anos se passaram e no presente, vejo-os como
um conjunto rizomático. Todos os acontecimentos teatrais estão conectados. Nenhum deles é considerado o núcleo central; o tronco que sustentaria os outros. Perceber que este meu olhar está carregando com o hoje, de criadora-pesquisadora, é assumir que as sensações que se revelam, são sensações de um exercício simbiótico entre a encenadora de muitos espetáculos já acontecidos, a pesquisadora de presente em reflexão e a que se quer criadora do futuro, de novos processos de criação de cena. Para realizar minha aproximação do todo dos acontecimentos, abri uma fresta para as minhas sensações de partida no olhar as obras e seus blocos de sensações, seus perceptos e afectos, que me tomam hoje. Organizo essas sensações de partida quanto à concepção, ao ator e ao espectador.
4.3.1.1 Sensações de partida
Quanto à concepção o que me chega da Dama da Noite é que ali o que foi construído foi um espaço de constrangimento entre o público e o privado, isto é, um ator-dama que diz ao espectador-garoto muitas coisas de sua vida. Uma mulher que está num banheiro público revelando o que há de mais íntimo, de seu corpo, sua vida, sua alma. O ator desse espetáculo sente o risco da cena. Ele arrisca uma intimidade com desconhecidos. Esta intimidade é risco. Ele sabe que pode sofrer as reações de suas investidas, para o bem e para o mal. Do espectador se espera tudo: que fique mudo, que chore, que levante e vá embora, que fale com a Dama, que a agrida, que grite, que faça tudo o que sentir vontade ou que não faça absolutamente nada. É a não previsibilidade na reação do espectador. Ao olhar Hamlet, vejo a concepção como uma escavação de um reino desaparecido. Ali tudo já tinha ocorrido e o reino já fora vencido. Estávamos escavando os restos. A minha
pergunta é: escavávamos o quê? Escavamos a nós mesmos. O ator trabalhou o tempo todo no processo com o objetivo de apropriação de si, seus medos, sentimentos, imagens. Ao espectador, o envolvimento pelo sentir. O sentir com o corpo todo, visto que a narrativa fora estraçalhada. De Mariano me vem a sensação de revelar os bastidores do teatro. Foi como se estivéssemos recebendo o espectador nos bastidores para assim dar-lhe outro ponto de vista. O espetáculo foi puro entretenimento e isso é muito bom. Nós criadores nos divertimos muito brincando de falsear tudo. A farsa como uma lente para o mundo. Brincar de faz-de-conta, princípio do fazer teatral foi o mote na concepção de Do Que Brincam os Meninos Que Serão Poetas. Nosso poeta-menino-Lorca brincava de teatro, com os duendes da sua Espanha amada. Os atores construíram um mundo de papel e de jogo, como fez Lorca. Mas esse brincar para o poeta teve um preço, pago com sua própria vida. Ao espectador foi dada a função de construtor de sentidos. O que estava ali encenado como brincadeira, cabia a ele, espectador, traduzir. Entreter, questionando, simulando jogos de disputa entre os gêneros; atravessar as sexualidades humanas com muito humor no coração; brincar de programa de auditório. Todas essas coisas estavam na concepção de Maravilhosa Orlando. O permissível foi a busca constante dos atores para o entretenimento crítico dos espectadores. A delicadeza de um circo de flores e vidro foi a concepção de Circo Vitória. Neste circo, o ator trabalhou o seu bufão interior. Não havia espaço para o medo do ridículo, preciso se manter no círculo da vida, porque o espectador precisava estar envolvido pela narração cênica e cair no mundo do faz-de-conta. Não querendo ser ―séria‖, ―dar uma aula‖ sobre a história do teatro, a concepção de Duas Tábuas e Uma Paixão mostrou em cena o teatro naturalista, o teatro épico e o teatro experimental. Uma apropriação da bagagem da cultura teatral dos atores e criadores de cena foi
solicitada no processo e nas apresentações. Minha bagagem cultural sou eu, faz parte de minha subjetividade construída. Então, houve aí uma apropriação de si. Mesmo com todas as informações sobre linguagem e sobre história cênica, apresentadas de forma tão objetivada, ainda assim, cabia ao espectador a construção dos sentidos da cena. Um Beija-flor a Dois Metros do Chão teve uma concepção delicada. A sensação que me vem é de um atelier do tempo, isto é, uma concepção que faz o tempo jorrar, diferentemente, do tempo que nos é solicitado no dia-a-dia. Havia na cena uma desaceleração do tempo cotidiano. Um tempo de criação do próprio tempo e que muitos denominam de loucura, pois quebra o mecanismo do sistema hegemônico, do mercado, do consumo. Passar pela loucura, este estado ou estados de silêncio, exigiu dos atores uma apropriação de si; encontrar seus bolsões de vácuo. É o espectador que dá o sentido da cena, do que vê. Se loucura ou não. O que é isto que estou vendo, em mim? Ao acreditar que nada está separado de nada, a concepção de A-MOR-TE-MOR criou a simbiose entre casa-corpo-cosmo. Marcondo sou eu, onde habito e tudo com o que me relaciono. Eu-mundo-Marcondo tenho inscrições do meu próprio corpo. Inscrições feitas com objetos, palavras, imagens, pessoas. Eu, ator dessa Macondo-Belém, precisei ser expropriado em cena. Os espectadores precisaram encontrar sua casa-corpo-cosmo que não eram, talvez, as que foram colocadas em cena, mas com toda certeza por elas disparadas. Devagarinho...Eu deixo teve uma concepção muito parecida com a do Circo Vitória. Penso que as sensações quanto ao ator e ao espectador, foram as mesmas: o ator trabalhando com o que lhe é ridículo, cômico, sem medo e o espectador envolvido pela comicidade, tendo que rir de si mesmo, envolto pela teatralidade da cena. Talvez a concepção que constrói o universo teatral não seja diferente da que constrói o universo de um circo de flores e vidro.
Um lugar de abate de animais é onde se centra a concepção de ÁGUA AR DENTE. Entre animais o eterno jogo de poder; briga por territórios. Os atores deste espetáculo foram estimulados a jogarem com o poder entre eles. Três homens que tentam impor suas visões de mundo, cada um contra todos. Ao espectador desse ringue, a sensação de estar sentado à mesa com estranhos. Próximos, mas radicalmente distantes. Um espectador não visto, intruso.
4.3.1.2 Perceptos
Independente de minhas percepções sobre esses espetáculos, o que me atravessa além delas e fica em mim, como uma visão hiper-dimensionada de cada um desses processos de criação? Essas visões ou perceptos como denomina Deleuze, independem, inclusive, de minha própria vivência como criadora. Eu criei as obras, mas os perceptos existem e estão lá, independentes do que eu construí, ou mesmo, desejei construir. Da Dama, sinto a sensação de usar o que já foi usado, o que é lixo para as outras pessoas. Uma espécie de resto do que um dia foi humano estava em cena; aqueles que são rejeitados, jogados fora para os guetos. Com Hamlet, vem a sensação de como se nos fosse possível ouvir o som do próprio enterro. Estou morto e não sei; assisto aos outros no meu enterro. Antes de o espetáculo começar, havia aqueles minutos de espera. As batidas de Móliere dizem bem sobre essa espera. Era dessa sensação que falava Mariano. Numa seqüência de processos de criação que tratam dos estados de riso, das brincadeiras e do jogo, estão Do Que Brincam os Meninos Que Serão Poetas, Maravilhosa Orlando e Circo Vitória. Deles, os perceptos que pulam são: eu como uma fábrica de brinquedos, eu rindo de mim mesma e eu ensinando a brincar.
Quando começo um processo de criação, só aparentemente começo do zero. Na realidade está em mim tudo o que leio, vejo, crio, escrevo etc. Penso isso tudo como se fosse uma mochila que carrego comigo sempre, e de onde vou tirando coisas, as idéias. Por isso, talvez, a visão de uma mochila nas costas é o que me chega de Duas Tábuas e Uma Paixão. O espetáculo se fez viagem pela história do teatro e pela minha própria história de vida como criadora. A minha e as de meus companheiros, nessa viagem. Perder-se para achar o caminho da criação é o percepto de Como Um beija-flor a Dois Metros do Chão. Porque é também dessa loucura que o espetáculo tratava. De outra loucuracriação veio um quarto-de-guardados. Minha ―Macondo‖ foi como um grande depósito de recordações, de encontros. Para ser mais exata, foi como uma grande estação onde fomos capazes de embarcar e desembarcar em muitos lugares. Como extremos diferentes de um mesmo ser estão os perceptos de Devagarinho...Eu Deixo e ÁGUA AR DENTE. Devagarinho me chega e eu deixo, a sensação de estar sempre em cena, sob as luzes do palco, em foco. Do espetáculo Devagarinho me salta esta visão. Não como um salto, mas sim como um assalto, sendo assim, para mim ainda hoje é como ÁGUA AR DENTE. Por isso, escolho como imagem a frase ―o desejo ou a vida!‖, parafraseando ―a bolsa ou a vida!‖. Na disputa de poder entre aqueles personagens, impor ao outro que deseje o mesmo que eu desejo, era a razão de tanta violência.
4.3.1.3 Afectos
Os afectos são os devires que eu agenciei para mim na construção desses espetáculos. Ao me agenciar com tantos universos fui-me desterritorializando e me reterritorializando em outros.
Tornei-me um entre. Um entre o eu e as forças minoritárias e um entre o eu e devires nãohumanos. Em quatro espetáculos fabulei Devires-criança: Mariano, Do Que Brincam os Meninos Que Serão Poetas, Circo Vitória e Devagarinho...Eu Deixo. Eles revelaram meus blocos de infância. Não as minhas lembranças de infância, mas sim, o meu DEVIR-criança. Um DEVIRcriança que não é me tornar criança, mas está nessa zona do meio, do entre. Não sou eu criança e nem tampouco, eu me tornando criança. É o meu DEVIR-criança. A Dama foi o lugar do meu DEVIR-mulher que é uma força minoritária de ação. Uma ação que corre subterrânea, anti-hegemônica. Não existe um DEVIR-homem. O homem é majoritário. Mas existe um DEVIR-mulher-bicha que eu vivi com Maravilhosa Orlando, porque acordo todo dia, repetido a mim mesma, de forma diferente. Em Hamlet fiz o meu DEVIR-máquina-de-guerra. É isto, o teatro é uma máquina-de-guerra e nele somos também uma máquina-de-guerra. Nosso fazer teatral é arma de sobrevivência, resistência, potência. Tive um DEVIR-ator-do-mundo em Duas Tábuas e Uma Paixão, discutindo a situação do fazer teatro em uma cidade como Belém. Fiz um DEVIR-anjo em Como Um Beija-flor a Dois Metros do Chão, revivendo a dor e o desamparo dos que ―corajosamente‖ se permitem surtar, pulando, para dentro e para fora, do surto psicótico. Vivi um DEVIR-casa-mundo soltando e saltando minhas estações, minhas paradas, meus portos – com o espetáculo A-MORTE-MOR. Para aprender que tendo ou não dentes, sei morder, provoquei meu DEVIR-animal com ÁGUA AR DENTE.
4.4
IMAGEM-SÍNTESE,
PRINCÍPIOS,
PROCEDIMENTOS,
RECORRÊNCIAS
E
CONEXÕES DESTA POÉTICA
Neste acontecimento-tese em processo já posso compreender que a minha poética ficou encravada nos porões onde foi construída. Encravada porque respirou cada parede, teto e chão tornando-os seu próprio corpo. Encravada porque sempre me foi impossível deslocar qualquer uma das obras de seu porão-útero. Não havia como separar a obra do próprio espaço onde fora gestado. Com a arquitetura incorporada, a obra-porão-útero recebia atores e espectadores em seu próprio interior. Envoltos, envolvidos, abraçados pela obra, eles remexiam suas entranhas. Ao assumir que engulo os espectadores - eles também mexidos pelas entranhas – faz-se necessário, após escavar as fabulações e os seus diversos corpos-porão, buscar por uma imagem-síntese, uma imagem certeira que extraia o ouro dessa poética, sua jóia. Encontro no tato, no contato, no toque, no abraço, no afeto, a aproximação com a imagem do afago. O teatro ao alcance do tato busca afagar o espectador. Quer a cena-afago. Não um afago qualquer, gratuito, sem razão, mas o afago que vem depois da sensação de perda, de dor, de renúncia, de assombro, de jogo, de risco, de morte... Procura afagos que não preenchem vazios, ao contrário, dilata-os.
4.4.1 Princípios
Esta poética está substanciada nos seguintes princípios: 1) A fisicalidade do espaço: escolher lugares que possibilitem a experimentação da fórmula espacial unitária, flexibilizando a relação ator/espectador. Trabalhar em dimensões íntimas, em espaços mínimos, como é o caso dos porões.
2) A imagem-força: buscar sempre a imagem-força que dispare o processo de criação. Partir de múltiplos indutores para a construção da cena, isto é, não partir apenas de um texto préescrito. 3) A imagem cenográfica: conceber a encenação a partir de uma imagem cenográfica objetivando a alteração dos corpos (ator e espectador), gerando elementos cenográficos que flexibilizem as relações cênicas. 4) A dramaturgia múltipla: todo texto, independente de seu estilo, origem, modo de construção é passível de utilização para a concepção dramatúrgica do espetáculo. 5) Apropriação de si: todo processo de criação deverá ser experenciado como a possibilidade de autoconhecimento por parte de seus criadores. 6) Espectador como construtor de sentidos: construir o itinerário da atenção do espectador, mas propor-lhe e provocar-lhe o exercício do livre arbítrio. 7) Cena-afago: construir para que atores e espectadores necessitem de afago, permitam o afago, realizem o afago.
4.4.2 Procedimentos
Algumas das ações aqui evidenciadas são abordadas como procedimentos de criação poética: • Reconhecer o espaço cênico, sua fisicalidade, induções físicas, emocionais, imaginárias, etc. •Trabalhar com os atores no sentido de apropriação de si - seu corpo, sua história de vida, seus objetos, seu cotidiano, seu corpo em relação com o espaço de criação. • Estabelecer novas e constantes parcerias com outros criadores de cena.
•Apropriar-me, em cena, de objetos retirados de outros contextos que aqui chamo de objetos machucados, impregnados de histórias de vida, sabidas ou não. • Encontrar a dramaturgia específica para o processo de criação • Possibilitar, com o cumprimento dos princípios anunciados, o diálogo com o espectador - em ensaios abertos e/ou apresentações – garantindo, assim, que ele exerça plenamente sua função de criador de sentidos, flexibilizando o itinerário da atenção do espectador construído pelo diretor.
4.4.3 Recorrências
Esta poética encravada em porões, totalizando até o momento um corpo de onze obras, apresentou recorrências de um espetáculo para o outro – repetições com diferença - tais como: • Encenações em espaços cada vez menores. • Encenações com características metalingüísticas. • Construção de imagens cenográficas que possibilitaram a integração física entre ator e espectador. • Flexibilidade entre palco/platéia - ator/espectador, espectador com função ativa dentro da cena, co-participação • Elementos cenográficos como um jogo de armar. • Imagens-forças como indutoras da criação. • Fragmentação das dramaturgias pré-escritas. • Técnica da colagem na construção dramatúrgica. • Histórias de vida dos atores presentes na preparação das cenas.
4.4.3 Conexões Acredito que o teatro feito em porões tem possibilidades de estabelecer conexões com diferentes áreas do conhecimento humano. Aqui gostaria de vislumbrar três grandes possibilidades: 1) Diálogo com os estudos do imaginário, em destaque às dimensões da intimidade existentes na imagem poética do porão construída por Gaston Bachelard. 2) Diálogo com a política, mas especificamente as biopolíticas; as chamadas políticas para a vida, defendidas por Deleuze, Guattari, Michel Foucault, André Gorz e tantos outros intelectuais da atualidade, como Antônio Negri, que estão na luta, apoiando com suas reflexões muitas das ações de resistência ao sistema artístico-cultural dominante - notadamente mercadológico - propondo novos princípios ético-estéticos para a arte e para a vida. 3) As conexões intrínsecas – no plural porque são múltiplas e variadas - com outras práticas teatrais em espaços alternativos e as poéticas consideradas como pós-dramáticas. A contemporaneidade cênica nos oferece um vastíssimo menu. Com o reconhecimento de minha poética realizado, desejo estar pronta para uma nova extração de afagos desejada para a fabulação de Em Carne e Osso, o experimento cênico revelado nos dois capítulos do próximo bloco, o bloco das extrações.
EXTRAÇÕES
A CASA DE MINHA CENA A CASA, casa-corpo-mundo-cosmos, abrigo e self, ao engendrar sua secreta arquitetura de pensamento, organiza a experiência sensível de um modo único para cada um. (...) Os processos de criação obra-pensamento demandam reconhecer e recuperar essa experiência, em seu lugar mais profundo e original. SÔNIA RANGEL
Meu corpo poético pedia uma morada. O meu novo espetáculo precisava de um lugar. Sem esse abrigo, vieram dúvidas e questões. Em que espaço-corpo eu poderia construir o novo trabalho a ponto de realmente poder deixar ―jorrar o tempo‖ que se faria necessário para experimentar os pensamentos compreendidos ao traçar um mapa dessa prática? Em que lugar eu poderia inventar, fabular sensações? Mas que lugar seria este? Existiria este lugar? Acredito que houve uma conspiração cósmica, apesar de não poder prová-la em tese. Encontrei uma casa, ou melhor, encontrei a casa de minha cena Neste encontro de encantamento e perdição, mergulhei em busca de mim, naquela casa, atenta as palavras de Sônia Rangel, como idéia-força para o percurso de construção do pensamento, que se iniciara com este estudo e agora pedia morada
5. O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO EXPERIMENTO CÊNICO
Deveriam existir ateliês de tempo, para loucos e não loucos, pouco importa, onde isso fosse possível. Peter Pal Pelbar.
Para a construção do experimento cênico que acompanha esta tese, havia a impossibilidade de utilização de qualquer um dos porões já vivenciados. O Porão Cultural da UNIPOP recebe toda a programação cultural e de formação da instituição, apresentando constantemente, a pauta de utilização do espaço, congestionada. O Teatro Cláudio Barradas e o Espaço Mariano, ambos da ETDUFPA, foram desativados devido à transferência daquela instituição para outro prédio, histórico, mas sem porão. O Teatro Bufo, não resistindo à falta de incentivo da política cultural local aos grupos de teatro da cidade, saiu de cena. Por tudo isso, eu precisava de uma casa com porão! Um porão passível de habitação, experimentação, convivência. Um lugar para um novo acontecimento teatral. Ao fazer um levantamento econômico, dispus-me a todo o tipo de endividamento e parcerias, para encontrar não uma casa, mas a CASA. Cheguei a Rua Riachuelo, mais conhecida como a ―Rua das Putas”, ao № 69, em plena Zona do Baixo Meretrício de Belém. Em princípio, nada disso foi levado em consideração para a futura construção espetacular - a questão do entorno, da vizinhança. O que importava era que este porão deveria ser passível de virar um Teatro-Porão, denominação que começara a vir a mim, bem lentamente, sem muitas certezas naquele momento. Assim começou o meu agenciamento com uma arquitetura da década de 30, de autoria de Otto Muller - um alemão radicado em Belém, e que aqui deixou, após sua partida, um conjunto de obras arquitetônicas que marcaram uma época, com traços estilísticos muito característicos,
próprios, de assinatura. Quero dizer com isso que é possível, ao olhar de fora, identificar as casas construídas por Otto Muller na cidade: traços arredondados, arquitetura densa, alta, geométrica, com os seus telhados ocultos e um corpo-casa que avança sobre a rua. Estas são algumas características deste construtor, reconhecíveis em todas elas, que o difere um pouco da arquitetura Art decor do período, entre 1925-1930. Estas características estão visivelmente apresentadas, logo abaixo, nesta foto da casa - que é hoje a minha casa, o meu teatro e a minha tese, em pedra e barro.
Figura 42: A CASA.Esta casa, na esquina da travessa Campos Sales com a Rua Riachuelo foi a escolhida, porque tinha um porão habitável, com muitos cômodos e muitos acessos para ao seu interior.
5. 1 O PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA CASA Quando se compreende a necessidade onírica de ter vivido em uma casa que brota da terra, que vive enraizada em sua terra negra, lê-se com sonhos infinitos (...). Gaston Bachelard
Logo ao início de março de 2006 a casa foi adquirida. No porão, foram iniciadas reformas necessárias, objetivando abrigar o maior número possível de atividades referentes ao preparo e construção - não apenas da encenação que acompanha esta tese – de muitas outras concepções e realizações cênicas futuras, constituindo-se, desse modo, a aquisição dessa casa, um projeto de vida e arte que ultrapassará esta escritura, este momento. Uma casa de criação permanente, onde a imaginação material43 deve ser acionada em todos os seus ambientes. Com as devidas apropriações e toda a imaginação material possível, o projeto de utilização dos espaços do porão ficou assim constituído: uma biblioteca, um ateliê de costura, um ateliê de desenho e construção de objetos, um jardim externo, um jardim interno e um camarim aberto como espaços de convivência, banheiro e dois espaços cênicos (uma caixinha preta e uma sala-laboratório).
4.2.1 A Biblioteca
A criação da biblioteca teve como objetivo, atender ao desenvolvimento de estudos e pesquisas para os processos de montagens. Seu acervo é de aproximadamente 5.000 títulos nas
43
Segundo Gaston Bachelard ―a imaginação material recupera o mundo como provocação concreta e como resistência, a solicitar a intervenção ativa e modificadora do homem: do homem – devindo, artesão, manipulador, criador, fenômeno técnico, obreiro – tanto na ciência quanto na arte‖. (PESANHA apud BACHELARD; 1994 p. XV).
áreas de teatro, dança, artes plásticas, literatura, música, cinema, pedagogia, filosofia, sociologia, história etc. Possui uma infra-estrutura de atendimento para grupos de até seis usuários.
Figura 43: A Biblioteca preparada para receber pesquisadores
4.2.2 Os Ateliês
Para dar apóio à etapa de preparação dos espetáculos, o porão abriga um ateliê de costura e outro de desenho e construção (de objetos, bonecos, etc.).
Figura 44: Série de Imagens dos dois ateliês
4.2.3 Espaços de convivência
O espaço, nas suas áreas de convivência e circulação, foi adequado para conseguir o seu aproveitamento máximo. Na área externa do porão, um grande quintal-jardim foi pensado e preparado como um espaço de relaxamento, não apenas para os criadores, mas também para o público. Um espaço de imbricação da casa-morada com a casa-teatro.
Figura 45: Quintal-jardim externo como espaço de convivência e relaxamento
Na área interna de convivência e circulação, estão instalados um pequeno jardim e o camarim. A idéia de projetar este camarim como um espaço aberto, não foi apenas em decorrência de um melhor aproveitamento de espaço, mas sim, de garantir nas experimentações e
montagens, o caráter metalingüístico que toda cena pode ter, isto é, o teatro falando do próprio teatro, à vista de seus espectadores.
Figura 45: O Camarim aberto na área de circulação
Figura 46: Jardim interno como espaço de convivência
4.2.4 Os Espaços Cênicos
O primeiro deles é um espaço cênico tipo caixa preta, caixa cênica, minúscula em seu tamanho - um palco de aproximadamente 10m² - que carinhosamente foi denominado de Teatro de Brinquedo (denominação dada aos palquinhos construídos dentro das casas, utilizados nas representações feitas pelas próprias famílias em suas festas). O espaço é adequado para pequenos espetáculos de teatro de animação, solos, leituras dramáticas, espetáculos com poucos atores e todos os etcetaras, que nele couberem. Nas fotos abaixo, podem observar que o espaço foi aproveitado na forma encontrada: a de uma pequena garage fechada.
Figura 47: Imagem dos primeiros momentos do Teatro Brinquedo
Figura 48: Imagem do Teatro Brinquedo em momento posterior com a vestimenta do palco formando a caixa preta.
Para completar o projeto de utilização desse porão - futura casa para criação - um espaço foi deixado vazio. Ele mede em torno de 20m². Dessa idéia de ―espaço vazio‖, nasce o Teatro Porão Puta Merda44. Eu o vejo como uma sala-laboratório destinada a experimentações cênicas de toda ordem; como se fosse ali, o lugar do meu teatro, do meu fazer teatral. O interessante, em espaços como esse, é que há a possibilidade de paredes, teto, piso, janela e portas serem produzidas, pintadas e retrabalhadas, de acordo com a montagem em processo.
44
O nome Puta Merda nasceu de uma expressão idiomática muito comum em nossa cidade, região. Essa expressão muda de sentido de acordo com a situação que for empregada. Ora designa uma desgraça, ira, raiva, ora designa felicidade, festejo, sorte. Adotamos este nome no sentido de Puta= grande e Merda=sorte; O Puta Merda = A grande sorte. O Teatro Porão Puta Merda é visto assim, como um lugar de grande sorte.
Figura 49: Série ângulos diversos da sala-laboratório Puta Merda
Vale perceber que a altura do porão é de 2m. Um aparelho de ar condicionado foi instalado, tornando-se talvez o único aparelho fixo, dentro dessa proposta de espaço em constante transformação. Com a reforma concluída, a inauguração do espaço aconteceu no dia 17 novembro de 2006, com a temporada do espetáculo Império de São Benedito45, direção de Karine Jansen. Em função de o Teatro Porão Puta Merda assinar a realização do espetáculo, a cidade e a mídia, adotaram, carinhosamente esta denominação, como o nome-identidade de todo o projeto da casa. 45
Império de São Benedito é o espetáculo-tese de doutoramento de Karine Jansen intitulada UM FOGO QUE SE DEITA NO MAR: Um estudo sobre a Marujada do Município de Quatipuru do Estado do Pará desenvolvida no PPGAC - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, sob a orientação da Profa. Dra. Antônia Pereira.
Figura 50: Cartaz do espetáculo Império de São Benedito
5. 2 PARA ENTENDER QUE CASA É CORPO É COSMO NO MEU FAZER TEATRAL
Seriam precisas longas páginas para expor, em todos os seus caracteres e com todos os seus planos de fundo, a consciência de se estar abrigado Gaston Bachelard
Reconheci no mapa de minhas fabulações poéticas que a casa-porão é a grande indutora de minhas imagens cênicas, meus perceptos e afectos. Uma nova casa precisa ser ocupada, vivida, sonhada, escrita por mim, em tese. Como eu desejo esta casa como casa-cena, ser o suporte físico de minha escritura como encenadora, foi preciso habitá-la enquanto matéria de criação. Minha primeira ocupação foi pensá-la na dimensão de imagem-força e como tal, minha investigação exigiu adentrar-me nos estudos dos imaginários de proteção e intimidade, poeticamente construídos por Gaston Bachelard. Segundo Bachelard a poética do espaço implica a poética da casa, enquanto instrumento de proteção para a alma humana. Este autor nos faz ver a necessidade de convocação dos valores da intimidade do espaço quando escreve que ―a casa é nosso canto no mundo‖ (1974, p. 358). Sei que a casa é meu ponto de referência no mundo e no universo de criação. Reconheço que há como um habitar entre nós duas; eu habito a casa e ela habita em mim. Sua imagem e sua presença comportam meu devaneio. No devaneio faço a comunhão entre todas as casas de minha cena - embaralhando memória e imaginação – e as minhas outras casas, onírica e da infância, que tanto trabalham em meus processos de criação. Todas querem participar desse estado de felicidade. A casa é vista, segundo Bachelard, como o grande berço, o aconchego e proteção, desde o nascimento do homem até seu último suspiro. Na vida, nossa imaginação trabalha com os
valores, de abrigo e segurança, da casa da infância. Na cena da criação artística, essas imagens são revividas, nos fazendo retornar à antiga casa protetora, a casa natal, que fisicamente está inscrita em nós, viva. São lugares que de fato se tornaram físicos, porque são partes da nossa vida íntima corporificada, é o nosso corpo. O autor revela esta sensação com as seguintes palavras:
O devaneio da segurança, despertado pela casa onírica e o ninho, reforça a imagem da casa-ninho enquanto possuidora do formato do corpo. A casa cola-se em nós, assumindo nossa forma, assumindo a função de abrigo e proteção, a imagem do nosso canto no mundo. A casa é, dessa forma, um ninho no mundo; um ninho que é o centro de um mundo (1974, p. 423).
Gosto de pensar que as sensações reveladas em minha cartografia poética são poemas. Porque para Bachelard ―Pelos poemas, talvez mais do que pelas lembranças, tocamos o fundo poético do espaço da casa [...]: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz‖ (1974, p. 359). Então me pergunto: que poemas me esperam dentro dessa nova casa? Esta casa-encontro é a imagem da casa sonhada, que, segundo Bachelard, foge do domínio da análise, para entrar no plano da psicologia dos projetos, dos sonhos. Assim, esta casa é casa do futuro, casa-cena por vir, só encontrada em DEVIR. Para os poetas, a casa do futuro é um misto de metáforas, sonhos e devaneios (1974, p. 397) de acordo com Bachelard. Para mim... Um mistério porque futuro, uma potência porque devaneio uma respiração porque sonho um palco porque corpo.
5. 3. O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO EM CARNE E OSSO
O vazio é força colorante. Portador de forças apenas vislumbradas. Gilles Deleuze.
Para cartografar o processo de construção do espetáculo Em carne e osso coloquei-me algumas questões: como posso conduzir a descrição do processo? Como procedimento de construção, me propus fazer esta descrição utilizando o que chamo de ―movimentos de criação‖, apresentados em ordem cronológica, isto é, na seqüência temporal dos acontecimentos. O que aqui denomino de ―movimentos de criação‖, são ações que realizei durante o processo de criação: ações indutoras, estimuladoras à concepção do espetáculo; ações concretas para a sua montagem46.
46
Em minha concepção da descrição dos ―movimentos de criação‖ me deixei influenciar pelos critérios de descrição verbal propostos por Patrice Pavis. Este autor, em seu livro A Análises do Espetáculo46, apresenta um inventário dos instrumentos que dispomos para o trabalho de ―reconstituição‖ e reflexão sobre a encenação. Segundo o autor, a escolha dos instrumentos deve adaptar-se à circunstância. A circunstância deste capítulo consiste em descrever todo o processo de construção do experimento cênico e não reconstituir a encenação propriamente dita. Dos instrumentos propostos por Pavis, o que nos interessa nessa circunstância é a DESCRIÇÃO VERBAL. É o falar sobre a construção do espetáculo. Esta descrição pode e segue algumas propriedades: as balizas temporais – ordem de desenvolvimento das ações; os organizadores espaciais – orientação frente à ação cênica; as unidades ou corpos de funções engajadas na encenação – cenografia, figurino, maquiagem, iluminação, sonoplastia, etc.; a aspectualidade – divisão e classificação dos elementos que compõem os objetos teatrais, a critério do leitor; e a orientação narrativa e avaliativa – a obra é sempre descrita para provar uma tese. Influenciei-me por esta forma de descrição porque ela apresenta uma ordem de desenvolvimento das ações - as balizas temporais; apresenta uma orientação frente à ação cênica - os organizadores espaciais; dá conta do surgimento dos elementos da encenação (cenografia, figurino, maquiagem, iluminação, sonoplastia etc.) - as unidades ou corpos de funções engajadas na encenação; atende aos meus critérios de leitora deste processo - a aspectualidade; e por fim, é uma descrição-tese, isto é, quer cumpri uma orientação narrativa e avaliativa. Outros instrumentos, apresentados na proposta desse autor, foram utilizados em momentos específicos desta pesquisa e poderão, mais adiante, ser revelados. São eles: a tomada de notas, os questionários, os documentos anexos (os programas, os cadernos de encenação, o material de divulgação, o paratexto publicitário, as fotografias, o vídeo etc.). No final de seu livro, após apresentar tantas e diferentes abordagens para a encenação, Pavis se pergunta ―de quais teorias temos realmente necessidade e para relatar quais encenações?‖. Segundo o autor, ―a encenação geral não existe, e é sempre preciso definir em que tipo de encenação se está interessado‖, o que facilitou o diálogo com o pensamento do autor na gestão dessa descrição.
5.3.1 O Movimento Criador
Outra questão foi perguntar se era possível utilizar o registro fotográfico do processo, tornando a minha descrição verbo-visual? Provavelmente isso seria possível, mas como fazê-lo? Como Grotowski, que escreveu com os seus desenhos, desejo que a minha escrita realize um entre com a foto-documentação do processo criativo. A partir daqui, meu texto é uma experimentação no sentido de responder a este desejo.
1º) Movimento de criação: a fisicalidade do espaço.
Para iniciar o processo de montagem do espetáculo, eu não tinha um texto. Não ter um texto pré-escrito não era problema, muito pelo contrário. Penso agora, após a construção da cartografia do capítulo anterior, que a diversidade de indutores de partida é um princípio que deve ser cultivado nesse novo fazer. O que eu tinha, como indutor de partida, era um espaço vazio. Talvez não tão vazio assim, visto que um dos princípios de minha poética em espaços de porão é o reconhecimento de sua fisicalidade. O que significa isso? Há um porão de 8 metros de comprimento, 2,70 de largura, 2 metros de altura, uma janela, uma porta, um vão aberto, um ar condicionado instalado, paredes, teto e chão. E foi por essa fisicalidade, por esse corpo físico, que começou a minha construção. Além é claro, de tudo que acompanha o porão de uma casa antiga, como espaço fecundo do imaginário. Obras de Gaston Bachelard sustentaram alguns devaneios neste sentido. Com tudo isto, minha tarefa naquele momento, era descobrir o que o desejo poderia construir, ali dentro.
2º) Movimento de criação: encontrar a imagem-força que habita o espaço.
Durante alguns dias permaneci nesse espaço vazio, de um vazio-colorante, como disse Deleuze. Uma imagem veio me visitar e não saiu mais: a imagem da Lúcia47, uma menina mudasurda que foi encontrada morta, de quatro, com a cabeça enterrada na lama da Vila da Barca 48. Na época que soube da morte dessa criança e que ela fora assassinada e violentada e seu corpo abandonado na lama, meu coração ficou mudo. Não consegui falar absolutamente nada e nada fazer. Dentro de mim - mesmo sem ter visto o corpo de Lúcia – nasceu a imagem de um corpo de criança, morto e de quatro. Agora, anos depois, a imagem que criei deste corpo de criança, veio habitar aquele lugar, representado por um boneco-de-plástico. O lugar não ficara agora nada vazio.
Figura 51: Boneco-lúcia-menina-surda-muda
47
Lúcia foi uma das muitas crianças, meninas e meninos, que participavam das oficinas de iniciação artística da Fundação Curro Velho, instituição ligada ao governo do Estado do Pará. Nesta instituição, exerci várias funções na área das Artes Cênicas no período de 1990 a 2006. 48 Vila da Barca, um dos bairros da cidade de Belém do Pará, construídos sobre palafitas, as margens da Baía do Guajará. A Vila é uma das comunidades vizinhas da Fundação Curro Velho. Um local de extrema pobreza.
3º) Movimento de criação: descobrir qual elemento cenográfico seria a base de criação da imagem cenográfica e da relação palco/platéia.
A criação - que já havia começado com o encontro com a CASA, trafegado em seus espaços e cantos, se alojado num espaço nada vazio atravessado por um corpo de quatro precisava agora, traduzir-se em um elemento cenográfico que designaria um ambiente para abrigar a obra, a cena, que eu ainda não sabia o que viria a ser. Decidi construir uma estiva, como as estivas que sustentam as casas da Vila da Barca. Naquele lugar, as estivas são as ruas; os palcos dos acontecimentos diários da Vila. Com essa construção eu tinha um esqueleto de madeira e caibro para sustentar o corpo da obra. Os elementos cenográficos em minha poética determinam muito da relação palco-platéia. É com esses elementos que posso projetar a densidade dessa relação e sua disposição espacial. Não havia dúvidas que a minha busca seria por um espaço único, onde atores e espectadores sofressem a ação posta em cena. Chegara a hora de articular um processo rizomático de criação de uma obra, que apresentasse uma disposição unitária e íntima; uma cena ao alcance do tato, tanto do ator quanto do espectador. Como ação de grafar aquele espaço poético, tornei a cortar o espaço em dois, na horizontal, estabelecendo assim dois planos. Por já haver experimentado este recurso anteriormente - nos espetáculos Como um beija-flor a dois metros do chão e A-MOR-TEMOR – a possibilidade de provocar a sensação de ampliação do espaço estava, praticamente, garantida. Além de experimentar, novamente, a verticalidade do olhar. Para melhor compreensão da proposta, vejamos o conjunto de imagens a seguir:
Figura 52: Conjunto de imagens do elemento cenogrĂĄfico construĂdo para determinar palco e platĂŠia
4º) Movimento de criação: um estudo do corpo nos vãos do espaço
Em virtude deste espetáculo ser um experimento cênico ligado a uma tese, comecei os trabalhos concebendo-o como espetáculo solo. Portanto, exercendo as funções de encenadora e atriz, simultaneamente. Esta atitude só foi pretendida no primeiro momento, devido a minha certeza que este trabalho estaria na dependência do cumprimento de um calendário acadêmico, o que me causava sobressaltos em relação ao envolvimento de outros atores. Por isto, ainda neste período do processo, meu movimento de criação foi basicamente colocar meu corpo em relação ao corpo-estiva. Desde as primeiras ações deste movimento, o foco de minha compreensão física estava em perceber as possíveis posições do meu corpo entre as paredes e o elemento cenográfico; perceber neste elemento as brechas, as passagens; conhecer seus mínimos lugares; medir as distâncias que meu corpo poderia estabelecer com os espectadores; reconhecer as relações, de ver e/ou ser visto, de interagir com o outro. Neste jogo, operar com todos os órgãos sensoriais. Vejo agora, que este foi o momento mais importante para o período posterior de concepção das cenas. Como ele foi desenvolvido de forma ―crua‖, isto é, não foram criadas imagens a partir de um texto ou situação dada, as cenas estavam livres de um pré-texto, podendo ser utilizadas em função das sensações provocadas no ator e passíveis de obter resultados semelhantes no espectador. Nenhum indutor fora convocado, além da relação do corpo com o espaço. Foi este movimento de criação que disparou novos rumos teórico-metodológicos para esta pesquisa, como descreverei mais adiante.
Figura 53: Série de imagens do Exercício de construção da relação Corpo / Espaço
Neste encontro-confronto, atriz/encenadora, minhas investigações cresciam na direção das relações humanas no uso do espaço físico. Como seriam os comportamentos, de ator e de espectador, numa relação física tão próxima? Como este espaço físico, muito pequeno, poderia determinar a concepção cênica? Que dramaturgia poderia ser ali inscrita? Quais sensações poderiam ser provocadas? Quais sensações poderiam ser disparadas sem um controle prévio? Nesta etapa do processo de criação do espetáculo reconheci que, tanto para a construção da cena quanto para a escrita deste texto, fazia-se necessário ampliar o horizonte teórico da tese, no sentido de atender a essas questões metodológicas emergentes e específicas para cada etapa. Esse fato levou-me aos estudos proxêmicos de Edward Hall49, mais especificamente no que concerne à conceituação das quatro zonas de envolvimento nas relações humanas, categorizadas por este autor – apresentadas na introdução deste estudo. Acredito que este estudo, que apresenta a reflexão teórico-prática de Jerzy Grotowski sobre a fórmula espacial unitária associando-a aos estudos proxêmicos de Hall sobre as zonas de envolvimento humano aplicada à cena, muito tem a oferecer ao desenvolvimento e produção de conhecimento das artes do teatro, principalmente, no que tange aos aspectos reflexivos/descritivos de processos de criação de cena. Com o embasamento teórico realizado, esta etapa da investigação foi enriquecida pela descoberta de um quadro constituído por um conjunto de fatores proxêmicos desenvolvidos por Hall. O acréscimo desta abordagem, sobre o processo de criação, favoreceu tanto a condução na construção do experimento, que recebeu posteriormente o título de Em Carne e Osso, quanto possibilitou experimentar e analisar, antecipadamente, possíveis chaves para a concepção da
49
Edward T. Hall, antropólogo, foi pioneiro na conceitualização e estudo do espaço no relacionamento interpessoal. Utilizou o termo proxêmica para descrever a teoria do uso humano do espaço na comunicação. A proxêmica estuda o significado social do espaço, ou seja, estuda como o homem estrutura inconscientemente o micro-espaço.
encenação. O conjunto envolve oito fatores e estes, nesta tese, foram adaptados ao exercício criativo de projetar a relação ator/espectador:
O conjunto dos fatores proxêmicos de Hall:
Fator 1: postura Este fator ajudou a projetar as posições básicas do ator em relação ao espectador (de pé, sentado, deitado).
Figura 54: Série de imagens da pesquisa do fator postura
Fator 2: eixo sociofugo / eixo sociopeto.
Neste fator, o eixo sociofugo demonstra o desencorajamento da interação, enquanto, o eixo sociopeto implica no inverso. Essa dimensão projeta o ângulo e a posição do ator em relação ao espectador (face-a-face, de costas um para o outro, ou qualquer outra angulação).
Figura 55: Série de imagens da pesquisa do fator eixo sociofugo / eixo sociopeto
Fator 3: sinestésico É o fator que provoca a proximidade entre ator e espectador. Projeta o contato físico a curta distância como o toque ou o roçar da pele e o posicionamento de partes do corpo.
Figura 56: Série de imagens da pesquisa do fator sinestésico
Fator 4: comportamento de contato. Este fator projeta as formas de relações táteis como acariciar, agarrar, apalpar, segurar demoradamente, apertar, tocar localizado, roçar acidental ou nenhum contato físico.
Figura 57: Série de imagens da pesquisa do fator comportamento de contato
Fator 5: código visual. Com este fator, verifica-se o modo de contato visual que ocorre nas interações como o olho-no-olho ou ausência de contato.
Figura 58: Série de imagens da pesquisa do fator código visual
Não seria razoável tentar descrever os próximos três últimos fatores proxêmicos utilizando fotos do processo ou mesmo do espetáculo. Estes fatores exigem uma verificação presencial de suas atuações.
Fator 6: código térmico Implica no calor percebido pelo ator e pelo espectador.
Fator 7: código olfativo Analisa as características e o grau de odores que podem ser percebidos tanto pelo ator quanto pelo espectador.
Fator 8: volume de voz Analisa a percepção, do ator e do espectador, em relação ao espaço interpessoal. Acredito que pela primeira vez me foi possível realizar uma articulação entre teoria e prática durante a construção de uma obra cênica. Ao mesmo tempo em que o meu corpo pensava, ele pensava com conhecimentos produzidos por outra pessoa - profissional de outra área do conhecimento humano – adquiridos de uma forma teórica, mas plenamente compreendidos pelo meu corpo, na prática da cena. Este movimento de criação que exigiu o diálogo corpo e espaço instaurou não só a relação atriz-espectadores como determinou a fabulação a ser inventada: uma personagem – criança-velho - em situação de risco – vida-morte – vive porque cria.
5º) Movimento de criação: a construção da dramaturgia ou, que textos cabem nesse porão?
Chego a um momento delicado do processo, porque ele instaura um estado de decisão. Escrever um texto novo ou rever textos de outros autores; encontrar texturas já vistas, lidas, visitadas. Como eu estava trabalhando sobre um espaço cênico que fora construído - e agora (re)conhecido com meu próprio corpo – para receber um espetáculo que, hipoteticamente, ainda
nem fora criado, optei pela revisão. Com a decisão tomada, me perguntava então: que textos poderiam ser ditos ali, naquele lugar, considerando que era um lugar que já abrigava a imagem de uma criança ferida e morta? Este momento foi delicado porque me exigiu reconsiderar, mais e mais, alguns dos princípios de minha cartografia poética, bem como algumas questões operacionais para atender a técnica de concepção dramatúrgica deste novo espetáculo, isto é, a colagem. Em primeiro lugar, a metalinguagem. O meu teatro gosta de falar do teatro. Isto é recorrente em minha prática, a repetição com diferença! Eu precisava encontrar textos que respondessem a este princípio. Queria de alguma forma falar da morte da Lúcia. Não da Lúcia, propriamente, mas das crianças violentadas sexualmente e que, de alguma maneira, estão sempre arriscadas a perder suas vidas, no e pelo ato. Quero trabalhar como atriz; quero um DEVIRcriança. Sou uma mulher de 46 anos, com 120 quilos. Isso tudo vai para o palco comigo. O texto precisava falar dos gordos, das crianças gordas. A minha história de vida deveria estar em cena. O ator apropriando-se de si mesmo. Com estas questões, caminhei na busca de textos que a elas correspondessem. A natureza desses textos poderia ser literária, dramática, filosófica, epistolar etc. Nesta busca, encontrei-me com os seguintes autores: Albert Innaurato, Valére Novarina, Antonin Artaud, Federico Garcia Lorca e Luís Otávio Barata. A partir desse momento, assumi o meu trabalho como uma colagem de roubos50 e eles, os autores roubados. Creio ser importante apresentar cada autor e alguns de seus fragmentos utilizados na colagem, garantindo assim a compreensão do movimento de criação aqui descrito. Deixarei a apresentação integral do texto-colagem, para os anexos deste estudo. 50
Segundo Deleuze, ―roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como; roubar um conceito é produzir um conceito novo‖ (Gallo apud Deleuze; 2003, pg 34). Para este processo, roubar um texto foi produzir um texto novo; um texto-colagem.
Albert Innaurato51
Albert Innaurato é um escritor americano, nascido em 1948. Internacionalmente conhecido como dramaturgo, diretor e observador cultural. Sua dramaturgia para o teatro incluem Gemimi, Passione, A transformação de Benno Blimpie, Magda e Callas entre outros. Além do conhecido Karamazov, realizado em colaboração com Christopher Durang. No Brasil, seu texto O gosto da própria carne foi montado por Roberto Lage, em 1985, com interpretação de Maria Alice Vergueiro
. Dois fragmentos do texto O gosto da própria carne de Albert Innaurato, apresentados a seguir e utilizados na colagem, dizem das sensações de uma criança gorda e ferida.
Eu estou frito. Um belo gordo assado no forno. Há uma porta de vidro no meu forno, e ele se aproxima, apontando e gargalhando. Gordo assado no forno é muito engraçado. Não posso me mover. Se eu me mover, queimo as minhas costas. Se eu me mover queimo a barriga. Se eu me virar queimo por todos os lados. Caí numa armadinha, vejam vocês. Primeiro eu pensei, espere até que você esteja mais velho, Sereno, espere mais um pouquinho. Então força; muita força para estourar através do vidro do forno e ganhar a direção do sol. Mas do outro lado tudo que há são fornos, com outras portas de vidro, onde as pessoas apontam pra mim e gargalham. Não há sol algum... Será que ele existe mesmo? Ainda estou aqui, sendo torrado, assado, esturricado! Mãe, mãe. Eu pensava que o meu pai metia barata no buraco dela, isso porque uma noite eu ouvi ela dando risinhos nervosos. Não havia porta entre o meu quarto e o deles, apenas uma cortina esburacada. Eu ouvia os risinhos dela e pensava que meu pai à noite juntava muitas baratas no porão e ficava jogando no buraco dela. Vocês sabem o que as baratas fazem nas bucetas? Elas dançam, fornicam, dão vida. E quando ela foi ao banheiro, vejam vocês, eu pensei que ela estivesse inundando o banheiro. Então, uma noite olhei através do buraco da cortina. E preferi as baratas.
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Os dados e a imagem, aqui apresentados, sobre este autor foram coletados em http://www.wikipedia.org/
Valére Novarina52
Valère Novarina, nascido em 1947 e também artista plástico, estreou seu mais recente espetáculo, chamado O Espaço Furioso, na tradicional e referencial Comédie Française. O Festival de Teatro de Avignon abrigou em 2007 uma das suas peças - a inédita La Comédie circulaire (A comédia circular)- no mais nobre de seus espaços - Cour d’Honneur do Palais des Papes . ―Ele é reconhecido como fenômeno‖, diz a tradutora e dramaturgista Angela Leite Lopes, que foi anfitriã do autor no Brasil há mais de dez anos, quando a sua Companhia L’Acte fez uma leitura. ―Ele responde à questão muito séria - como escrever depois de Beckett. Novarina foi além, sem cair no non-sense, no absurdo, sem cair na armadilha do mero rompimento. A questão aqui não é mais romper‖, reflete Angela. ―O grande acontecimento da criação aqui é a Palavra, que é espaço, corpo, sempre reiventada, dando uma chance de nos redescobrirmos nessa representação‖.
O texto a seguir é uma colagem de pequenos trechos de seu livro Cartas aos atores e para Louis de Funès53.
O teatro não é um lugar para se fazer de bonito, aparecer sobre duas patas, inteligente e bem domado. O teatro foi inventado para que aqui se queime à noite todas as figuras humanas. Pois a imagem do rosto humano, a que a gente pensa que tem, pensa que carrega, pede periodicamente para ser lavada, apagada. Eu gosto de pensar que o teatro é a captura do silêncio dos homens durante uma hora. (...) Aí está o ator! Ele entrou na solidão na frente de todos,
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Os dados do autor foram coletados em http://www.rioscope.com.br/website/article.php3?id_article=291
NOVARINA, Valère. Cartas aos atores e para Louis de Funès. Tradução Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, (Coleção Dramaturgias).
ele ultrapassou seus animais, queimou suas roupas corriqueiras e vestiu um hábito espalhafatoso. Mais um desesperado acaba de se jogar em cena. Se o ator não fosse o maior de todos os desesperados, ele não entraria; ele não conseguiria ultrapassar a passagem, a porta por onde se entra em cena – que é uma terrível fronteira emocional, não uma porta. Pois não há porta para entrar em cena. O ator passa antes por baixo de um muro, por seu aniquilamento completo. Dá pra ver logo de cara, quando um ator entrou, se ele entrou bem destruído, passado a vácuo ou não. Se ele passou ou não por cima do seu próprio corpo ao entrar. Dá pra ver pela luz que emana dele, que só aparece sobre os que estão bem aniquilados. Há uma glória em seu porte, que não vem das luzes dos refletores – isso é só uma gloriazinha pequenininha – mas de uma luz que transparece sobre seu rosto muito pálido, de uma forma suprema. Vá ator, entre, saia de meu coração, inflame meus ossos! Veja se me faz descriar tudo, ouvi-lo falar de outro lugar, onde só com a minha cabeça eu não iria.(...) Não há nada mais nu do que um ator. Não há outro estado no mundo mais nu. Ficou nu, quando deixou a humanidade e entrou na solidão na frente de todos. Quando ele deixou seu corpo morto nos bastidores, caído. O ator não habita seu corpo como uma casa de família, mas como uma caverna provisória e uma passagem obrigatória. Talvez seja por isso que os atores velhos são sublimes de uma forma mais leve: porque já começaram em seus corpos o trabalho de separação. É o corpo não visível, é o corpo não nomeado que representa, é o corpo do interior, é o corpo com órgãos. É o corpo feminino. Todos os grandes atores são mulheres. Pela consciência aguda que têm de seu corpo de dentro. Porque sabem que seu sexo está dentro. Os atores são corpos fortemente vaginados, vaginam com força, representam com o útero; com a vagina, não com o pau.
Antonin Artaud54
Antonin Artaud nasceu no dia 4 de setembro de 1896, em Marselha Escritor, ator, dramaturgo, poeta maldito e visionário, nos anos 30 concebeu um teatro onde não haveria nenhuma distância entre ator e platéia, todos seriam atores e todos fariam parte do processo, ao mesmo tempo. Queria devolver ao teatro a mágica e o poder do contágio. Queria que as pessoas despertassem para o fervor, para o êxtase. Sem diálogo, sem análise. O contágio estabelecido pelo estado de êxtase. Uma vez abolido o palco, o ritual ocuparia o centro da platéia. Artaud foi encontrado morto em 4 de março de 1948, em seu quarto do hospício de Ivry, bairro de Paris. Estava aos pés da cama com um sapato na mão. Depois da morte passou a ser festejado como o homem que fez explodir os limites da vanguarda ocidental e até hoje ninguém o superou em seus conceitos e em sua loucura. A mesma violência agressiva que o prejudicou e o afastou de seu tempo produziu o sucesso póstumo de suas idéias e sua atual influência no teatro contemporâneo.
O texto abaixo é epistolar. Artaud escreveu esta carta para a sua mãe.
Minha querida mamãe, Perdoa, perdoa, eu te suplico, a um filho culpado, a meu coração arrependido. Ò! Mamãe, eu te amo mais do que tudo no mundo, eu te amo e o remorso de minha culpa me tortura, eu sou louco, eu sou um monstro, mas perdoa. Que fúria me leva a cometer tais atos. Ò! Eu te amo e eu não cansarei de te repetir como é enorme meu corpo, mas como é igualmente grande a tua bondade para conseguir me olhar com carinho. Perdoa mamãe, eu te suplico. Diga-me que me perdoas e logo serei merecedor do teu beijo, tão esperado. Deus faça com que eu me corrija, porque mamãe é a coisa que mais amo no mundo
54
http://www.quattro.com.br/passage/artaud.htm
Federico Garcia Lorca55
Federico Garcia Lorca nasceu na região de Granada, na Espanha, em 05 de junho de 1898, e faleceu nos arredores de Granada no dia 19 de agosto de 1936, assassinado pelos "Nacionalistas". Nessa ocasião o general Franco dava início à guerra civil espanhola. Apesar de nunca ter sido comunista - apenas um socialista convicto que havia tomado posição a favor da República - Lorca, então com 38 anos, foi preso por um deputado católico direitista que justificou sua prisão sob a alegação de que ele era "mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver." Avesso à violência, o poeta, como homossexual que era, sabia muito bem o quanto era doloroso sentir-se ameaçado e perseguido. Nessa época, suas peças teatrais "A casa de Bernarda Alba", "Yerma", "Bodas de sangue", "Dona Rosita, a solteira" e outras, eram encenadas com sucesso. Sua execução, com um tiro na nuca, teve repercussão mundial.
O texto escolhido para o roteiro é um dos muitos fragmentos encontrados após a morte de Lorca.
Se eu me transformasse em nuvem? Eu me transformaria em arco-iris. Se eu me transformasse em merda? Eu me transformaria em mosca. Se eu me transformasse em doença? Eu me transformaria em beijo. Se eu me transformasse em ferida? Eu me transformaria no mais branco dos lençóis. Por quê? Diz, por quê? Por que me atormentas? Vem comigo, vem e deixa que te leve para onde o amor pode levar. Vem, e se é verdade que me amas, tu me transformarás na tua esperança, já que gostas das coisas distantes. E como não queres beijar-me, achando que sinto nojo - um nojo que não sinto – eu me transformarei em faca para te cortar, dia-adia, um naco da tua dor. Vem dançar, vem! A dança é uma das maneiras que tenho de amar-te. Quando rondas pela casa, pelos objetos e pelo leito das lembranças, eu te sigo, mas não te sigo quando, cheia de vitalidade, queres levar-me para 55
http://www.releituras.com/fglorca_menu.asp
lugares onde serei visto. Aí sim, neste momento, queria ser uma lâmina de uma justiça louca para retalhar-me por dentro e por fora e olhando no espelho de meu sangue ver se mentes para mim. Se eu me transformasse em formiga? Eu me transformaria em terra. E se eu me transformasse em terra? Eu me transformaria em água. Então, me leva para o rio e me afoga. Esta será, a única maneira de poderes me ver nua. Não tenho medo de sangue. Crês que não te conheço? Chega! Pega um machado e corta as minhas pernas. Não é assim que tu queres? Eu sei que isso te faria feliz, me ver devastado pelos insetos da ruína. Vai! Eu te desprezo e gostaria, juro, que afundasses até o fundo. Queres isso? Adeus. Estou tranqüila. Se eu despencar até o fundo das ruínas, irei encontrando amor e cada vez mais amor. Aonde vais? Aonde vais? Não disseste que era para eu ir? Não, não vai. E se eu me transformasse em medo? Eu me transformaria em chicote. E se eu me transformasse em indiferença? Eu me transformaria em outro chicote feito de coroas de espinho. Não me açoites! Um chicote feito com fios de vidro quebrado. Não, no ventre não, não aí não! Um chicote trançado com unhas de recém-nascidos. Acabarás me deixando cega! Cego, porque não és homem. Eu sim sou homem. Um homem, tão homem, que desmaia à simples idéia da lembrança da futura felicidade. Um homem, tão homem, que sinto uma dor nos dentes, aguda e latejante, quando alguém, para colher uma flor, quebra um galho, por menor que ele seja. Estou esperando a noite, para que sem a luz, e sem que tu me vejas, angustiada eu possa me arrastar a teus pés. Não, não! Por que dizes isso? És tu quem deve me obrigar a fazer isso. E se eu me transformasse em desejo? Tu não conseguirias. Tu serias a sombra do desejo. Serias um desejo magro sobre um corpo gordo. Mesmo assim um desejo.
Luís Otávio Castelo Branco Barata
Luis Otávio Castelo Branco Barata nasceu em Belém do Pará em 1939 e morreu em 2006, aos 67 anos, na cidade de São Paulo, onde morou seus últimos oito anos de vida. Trabalhou, em Belém, como encenador, roteirista, cenógrafo e figurinista durante as décadas de 70 e 80. Fundador do Grupo de teatro Cena Aberta, um dos mais importantes grupos da cidade. Sua trilogia cênica – Genet, o palhaço de Deus, Posição pela carne e Em nome do amor – atravessou a cena como uma poética erótica, ácida e de extrema beleza. Reconhecido pela comunidade teatral do Pará como o maior encenador contemporâneo, sua influência se faz visível da produção dos encenadores paraenses da atualidade.
Luis Otávio Barata fez a tradução do fragmento de Federico Garcia Lorca, apresentado nas páginas anteriores. Sem dúvida, sua tradução é de tão extrema sensibilidade que a considero como uma co-autoria. Para enriquecer esta descrição, apresento um pequeníssimo texto de sua autoria, que tomo como um toque cruel, mas profundamente humano, de sua influência na produção do roteiro-colagem de Em carne e osso.
Envelhecer é ficar, não com o que se escolheu, mas sim, com o que sobrou.
6º) Movimento de criação: compor a cena com outros parceiros
Como artista, reconheço que um espetáculo é um ser de sensação, coletivo e colaborativo. Como artista-pesquisadora esse reconhecimento não pôde desaparecer, mesmo com o receio de correr riscos que comprometessem a construção da tese. Esses riscos, intrínsecos ao fazer teatral, não poderiam simplesmente desaparecer. Então, há de se correr riscos para descobrir um DEVIR. Por isso, o processo de criação de Em carne e osso abriu-se à participação de outros criadores. Num primeiro momento, foram convidados para a cena mais dois atores, uma iluminadora e uma sonoplasta.
Olinda Charone – atriz
Cláudio Barros - ator
Patrícia Gondim – iluminadora
Oriana Bitar - sonoplasta
Durante os ensaios, Patrícia Gondim e Oriana Bitar, assumiram - além operação técnica de luz e som – atuações em cena, nos personagens da ―bailarina‖ e do ―amigo imaginário‖, respectivamente, sendo consideradas, portanto, atrizes no jogo cênico. Outros parceiros entraram no processo de criação, em diferentes etapas. Foram eles: Manoel Pacheco (cenotécnico), Janjo Proença (designer gráfico), Marcela Condurú (foto-divulgadora), Ronaldo Rosa (vídeomaker) e Zê Charone (produtora executiva).
Manoel
Janjo
Marcela
Ronaldo
Zê Charone
7º) Movimento de criação: desenhar figuras e escolher objetos para criar a atmosfera ficcional de Sereno.
O início dos ensaios foi caracterizado como uma apropriação do espaço físico. Antes de qualquer definição particular de cena e estruturação do corpo do trabalho, imperioso foi a criação, encontrar a imagem cenográfica do espetáculo. Para isso, a equipe de base conviveu no espaço durante vários dias, laborando a ambientação cênica, através dos desenhos e objetos convocados ao jogo.
Figura 59: Série Imagens da apropriação espacial e fabulação cenográfica
Na questão particular dos objetos, o princípio poético de utilização de objetos retirados de outros contextos e portadores de histórias de vida – conhecidos entre nós como objetos machucados - foi empregado na criação.
Figura 60: Série Imagens da apropriação de objetos para a cena
8º) Movimento de criação: montagem das cenas.
Alguns destaques devem ser feitos nesta descrição do período de montagem, como elementos de análise. Em primeiro lugar, nós já tínhamos a consciência que o tema do espetáculo já estava definido na atmosfera daquele ambiente: abuso sexual de crianças. No decorrer dos ensaios, Cláudio Barros desenvolveu uma pesquisa nos jornais diários da cidade. Absolutamente tudo que era publicado sobre violência sexual contra crianças e adolescentes foi lido e digerido por nós. Este material foi utilizado na construção de um painel informativo, na área de circulação do espaço, disponibilizando essas matérias jornalísticas ao espectador.
Figura 61: Série Imagens das trocas de pesquisa e experimentações entre os atores
Outro detalhe em destaque foi que no decorrer do processo, além da teoria proxêmica ter operado um estímulo consistente na construção das cenas, outras linguagens cênicas foram convocadas, como é o caso do trabalho técnico com o teatro de sombras e máscaras de luz.
Figura 62: Série Imagens da pesquisa e das experimentações de animações e sombras
É possível analisar agora que este movimento de criação exigiu adequações no tratamento do elemento cenográfico para melhor execução da concepção das cenas, com intervenções e ajustes nos modos de utilização e sustentação de peso para a total segurança de atores e espectadores.
Figura 63: Série Imagens das adequações cenográficas
Sem dúvida este foi um momento de experimentações ilimitadas. Maquiagens corporais e utilização de máscaras de tintas sobre os cabelos foram testadas. Vale destacar que maquiagem, cabelos, ambientação e figurinos foram elaborados e executados pelo próprio elenco. Esta atitude é um reflexo da prática teatral da cidade de Belém, que reconhecemos não ser exclusiva da cidade, mas sim da realidade do teatro brasileiro.
Figura 64: Série Imagens das experimentações de visualidade
Após todo esse movimento criador - experimentações que substanciaram a construção do espetáculo – tínhamos uma encenação definida para ser experenciada. Por isso, antes de iniciar o próximo capítulo que aborda o espetáculo propriamente dito, tratarei aqui sobre o que foram os ―ensaios abertos‖, antes da estréia oficial do espetáculo no dia 11 de abril de 2007, no Teatro Porão Puta Merda.
5.3.2 Os Ensaios Abertos
Com a proposta de estrutura das cenas pronta para ser experimentada, as portas dos ensaios foram abertas para um grupo de espectadores de profissão, isto é, companheiros de teatro de diversos grupos da cidade. Foram realizados, no período de dois meses (fevereiro e março de 2007), exatamente, dez ensaios abertos, atingindo uma média de 60 espectadores. Os ensaios eram apresentados sem interrupções para que o trabalho ganhasse qualidade no ritmo da apresentação. Cada ensaio-espetáculo era seguido de debate com os convidados. Esta prática de ―ensaios abertos‖ colaborou muito nas transformações ocorridas na concepção do trabalho, até a estréia oficial, no dia 11 de abril. Houve sempre a necessidade dos ensaios se fecharem para experimentar novas propostas e executar adaptações técnicas necessárias. As diferentes composições da platéia desses ensaios – jovens atores, estudantes de teatro, atores profissionais da cidade, cenógrafos, diretores e principalmente, profissionais das áreas do serviço social e da psicologia - em função da temática do espetáculo – foram significativas, como estratégia, para a obtenção do resultado cênico desejado. O sentido da prática de debater o fazer teatral que atravessa este estudo, poderá ser melhor compreendido na construção do capítulo seguinte que descreve o plano de composição
do espetáculo Em Carne e Osso, analisando o itinerário da atenção do espectador através dos seus próprios depoimentos de sensações.
Figura 65: Jovens atores do Grupo Infanto-juvenil da ETDUFPA abrem os ―ensaios abertos‖.
6 O ESPETÁCULO EM CARNE E OSSO LEVADO À PÚBLICO
Este capítulo descreve e analisa o espetáculo Em Carne e Osso, levado a público, como fora estabelecido nos objetivos deste estudo. A descrição da concepção das cenas, bem como, a seqüência de organização das mesmas – que criam ―o itinerário da atenção do espectador‖56 revelam o meu trabalho como encenadora neste experimento. Grotowski, que no texto O diretor como espectador de profissão discutiu esta função do encenador, é aqui novamente convocado como intercessor em minha poética:
Digo a vocês somente que o itinerário da atençãó do espectador pertence ao nosso ofício. Se é diretor e trabalha com os atores deve ter uma câmera invisível que filma sempre, dirige sempre a atenção do epectador em direção a algo. Em certos casos, como o prestidigitador, para desviar a atenção do espectador e em outro, para concentrá-la. Em um outro caso, o diretor direciona a atenção do espectador para fazê-la saltar. Em um ponto há uma ação muito precisa de dois atores. Em um outro, em um certo momento, se acende uma luz. A atenção salta para lá, em direção à luz. Imediatamente ela volta para cá, mas o espaço está vazio, ou acontece uma coisa completamente diversa, ou é a mesma ação mas trinta anos mais tarde... Esse é um dos modos da montagem que infelizmente é completamente desconhecido no trabalho do diretor: a montagem por meio do itinerário da atenção. Mas mesmo a montagem de seqüências à maneira do cinema, como falou Eisenstein, na realidade só pode ser vista no teatro se o diretor for competente. O princípio é este. Vocês elaboraram ações precisas com os atores e, em um certo momento, vocês cortam um pedaço da primeira ação e a colocam em conexão com o fragmento de uma outra ação. Assim obtêm uma montagem das seqüências, com todas as leis que nela agem segundo Eisenstein. (2007, p. 218-219).
Neste fragmento, Grotowski apresenta uma das muitas possibilidade de montagem de cenas. Para este pensador, esta maneira de montar é muito precisa e eficiente quando se trabalha com improvisações e se quer conseguir uma fusão entre elas. Grotowski fala-no ainda de uma 56
―O Itinerário da Atenção do Espectador‖, segundo Grotowski, é a grande função do diretor teatral. Para maior aprofundamento desta questão, ler o texto ―O Diretor como Espectador de Profissão‖, in FLASZEN, Ludwik e POLLASTRELLI, Carla. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo: Perspectiva: SESC: Pontedera, IT: Fondazione Pontedera Teatro, 2007, p. 212 a 225.
outra proposta de montagem – segundo ele, muito mais interessante ao fazer teatral, do que a proposta anterior que segue um raciocínio cinematográfico. Esta proposta de montagem, ao meu ver, interessa à esta prática teatral que realizo em espaços mínimos e tão próximos dos espectadores, como é o caso dos porões, principalmente por seu caráter artesanal, passando unicamente pelo itinerário da atenção do espectador:
Digamos por exemplo que alguém acende uma lamparina: basta isso. Há aquele fogo que tem uma força de atração. Olha-se a luz mesmo escutando ainda o diálogo que continua. Sim, reconhece- se que é simplesmente uma lamparina. Olha-se de novo para o outro lado, mas agora há dois velhos a terminar a mesma frase que já tinha sido dita pela metade quando aparecera a luz. É como nos contos populares. Uma menina saiu de casa e se perdeu no bosque, encontrou uma bruxa, foi levada de volta para casa. Entra e não há ninguém que a reconheça. Há outras pessoas, ela as interroga, pronuncia o nome de seu pai e de sua mãe mas ninguém sabe nada deles. Então fala de seu irmão, de sua irmã e, àqueles nomes, alguém diz: ―Ah, sim! Moravam aqui há cinqüenta anos atrás‖. Vejam, é assim; no breve momento em que o espectador distraiu a sua atenção, passaram-se quarenta anos na ação. Essa é a montagem número dois. Fazer a montagem por itinerário da atenção é maestria da cena. (2007, pág. 221).
Para apresentar o itinerário da atenção do espectador de Em Carne e Osso, recorro mais uma vez ao conceito de rizoma, mais especificamente, a sua propriedade de heterogeneidade – conexões entre elementos heterogênicos; de naturezas diferentes - na construção deste itinerário. Por isso, farei a análise de cada cena – conexões com rupturas - com uma pequena descrição dos acontecimentos, fotos da composição e mais fragmentos dos depoimentos dos espectadores, coletados tanto no decorrer dos debates quanto naqueles enviados, posteriormente e espontaneamente, pelos próprios espectadores. Esta análise pode parecer ―encontros entre corpos estranhos‖, mas está, na verdade, condizente com a abordagem teórico-metodológica escolhida: a cartografia rizomática.
6. 1 O ITINERÁRIO DA ATENÇÃO DO ESPECTADOR EM CARNE E OSSO
O acolhimento do espectador: primeiros contatos
Os espectadores são recebidos e devidamente instalados num determinado ambiente do porão57, mais precisamente, na platéia do Teatro Brinquedo – a caixa cênica do espaço. Cria-se com isto a sensação de que ali é o lugar do acontecimento teatral. Neste local, aos espectadores, é solicitado que preencham um questionário e tirem uma foto – ações referentes aos procedimentos de coleta de dados desta pesquisa de doutoramento. A foto é tirada em frente a um painel - onde é possível visualizar uma série de matérias jornalísticas noticiando casos de violência sexual contra crianças - disponibilizado para a leitura do espectador. Cada espectador que está no espaço acompanha todo este ritual, na chegada dos demais espectadores.
Figura 66: Série Imagens da Área de acolhimento.
57
Os nossos espectadores eram recebidos pela atriz-produtora Zê Charone, uma das realizadoras do Grupo Cuíra do Pará. Sua atuação – como a mulher que aparece e desaparece segundo este espectador – foi fundamental para o trabalho, que desde o acolhimento do espectador, propunha estabelecer o clima desejado para o espetáculo: troca de sensações entre nós, criadores e espectadores, como testemunha as palavras do espectador citado.
Gostaria de trazer ao corpo dessa escrita, fragmentos do texto Cenas EM CARNE E OSSO nas “alcovas” da Casa 69 – Riachuelo, de Luiz Carlos de Carvalho Dias, espectador da apresentação do dia 18 de maio de 2007 – seu texto enviado posteriormente -, para melhor revelar como era o ―acolhimento do espectador‖ nesse processo de criação:
Uma casa antiga te recebe com incensos. Uma luz fluorescente verde ilumina e realça um singelo jardim. Os aromas das plantas noturnas invadem os ares noturnos. Uma mulher te recebe e te (in) põe suavemente a tarefa de responder um questionário com algumas perguntas sobre teatro, sobre sim e não, sobre sensações. Aguarda-se numa sala simples, decorada com cadeiras antigas postas em circulo e recortes de jornal nas paredes que denunciam estupros e abusos sexuais de criança e adolescentes. Uma foto para registro do publico, e a mulher desaparece por uma escada interna, reaparecendo a cada tocar de campainha. Outro espectador é recebido com uma frase cordial: entre e fique a vontade. Como ficar a vontade em uma casa que parece ter alçapões que farão com que caiamos em espécies de armadilhas temáticas? Esse espaço e tempo de espera mostraram-se mais tarde; é uma ante-sala, uma sala de espera (...). Música infantil rolando, ouço agora. As Canções Curiosas de SANDRA PERES e PAULO TATIT soam como um encantamento, como uma isca para o espectador não fugir (...). A convite da mulher que aparece e desaparece, devemos subir uma escada de fora da sala. Essa noite tem chuviscos, a natureza parece espreitar a cena e quem sabe participar, parece querer atravessar comigo os labirintos da casa ...) Uma personagem convida para o espetáculo no corredor de uma sala de visita. Um texto convite dizendo que tudo aquilo é teatro. Tarde demais. Não consigo escutá-la. A curiosidade infantil me arrasta para outra escada com alguns degraus. Um ator nos oferece um texto curioso que parece falar e suscitar em sua fala a presença de alguma coisa inusitada, insólita – O ATOR.
Cena I: O teatro fala de si mesmo nas “três batidas de Molière”
O espectador é convidado, pela produtora, a iniciar o ritual de abertura do espetáculo. Todos os espectadores são conduzidos ao andar superior da casa. Lá, são recebidos por uma atriz que os conduz para um circuito pelo interior da casa. Os espectadores passam por vários cômodos em direção à escada que os reconduzirá ao porão, só que agora, para dentro do espaço
Puta Merda. Este percurso quer provocar no espectador a sensação de entrar em outro tempo e espaço. Provocar-lhes a sensação de entrada nos subterrâneos de um lugar, da cidade. Ao chegar novamente ao porão, outro ator abre, aos espectadores, o mundo de Sereno. Este ritual de apresentação é rompido com a entrada da última jogadora – intérprete do morador daquele lugar - que se diz atrasada para o jogo. Pede desculpas e licença para se juntar ao grupo. Aparentemente, com tudo no seu devido lugar, o jogo poderia correr, mas é sempre interrompido. Na realidade, todas as paradas do jogo são, na encenação, a proposta de um pacto com os espectadores: todas as interrupções devem ser consideradas como uma convenção deste espetáculo, a quebra da representação. Nesta convenção, atores podem comentar o próprio fazer atoral, conversar com os seus espectadores, assumir erros, expor suas dúvidas etc. É o teatro falando dele mesmo.
Figura 67: Série Imagens detalhes da cena I
Depoimento: Eu sou uma pessoa assim, magra. E eu coloco diversas dificuldades, pra minha expressão corporal, mesmo com a formação de expressão corporal que eu tenho. Fiz balé clássico, pago a minha vida, fiz muito trabalho de expressão corporal
enquanto atriz... E tudo mais, mas não confio em fazer isso, e me surpreende ver o teu corpo, que é um corpo diferente, um corpo que tem diversas limitações de agilidade, a (...) do personagem. O Sereno e a Wlad são completamente diferentes, principalmente eu que conheço um pouco da tua história. Assim, então, ver a agilidade, ver a velocidade desde o teu aquecimento ali, quando tu entras e invades o espaço [a cena] e dizes: ―porra, eu to atrasada e tal e tárálá‖. Isso é fantástico, é surpresa também; é uma surpresa pra mim também. Acho que o espetáculo tem principalmente do teu trabalho, muito desprendimento mesmo. Acho que é tua proposta de vida, assim, sempre que eu vejo as tuas coisas de teatro, são sempre com uma proposta de desprendimento. Tem uma coisa do texto, que o Cláudio fala que é assim: O corpo do ator é um corpo nu, é um corpo vazio, é um corpo que vai se preenchendo. Eu vi muito teu, conheço pouquíssimo da história do Cláudio, quase nada, conheço um pouco mais da Olinda, mas conheço um pouco mais ainda, do teu, em questão do contato aluna/ professora. Então eu vejo muito do depoimento da tua trajetória mesmo. Eu vou me despir fisicamente e emocionalmente, pra deixar me invadir, tudo o que tiver que me invadir. (espectadora do dia 02 de maio).
Cena II: O menino Sereno
Esta segunda cena é o início da história propriamente dita. Ela funciona como cena de apresentação do personagem Sereno. Revela o seu universo: desenhos, brincadeiras e solidão.
Figura 68: Série Imagens detalhes da cena II
Depoimento: Consegui respirar, porque eu estava numa tensão constante desde o início praticamente, porque eu acho que mexeu muito comigo, em coisas que eu já tinha enterrado, procurado enterrar, sei lá, (...) E eu me identifiquei muito, porque eu era uma criança, assim, que desenhava muito, muito, muito, era o meu momento de conversar comigo, eu não conversava comigo, eu era muito reprimida, muito fechada, muito... E quando eu tinha colegas - eram pouquíssimas, então eu me trancava, eu desenhava muito, eu era uma criança cheia de medos, tinha pesadelos constantemente, tanto dormindo, quanto acordada, era todo tempo uma prisão, uma angustia, assim; não era uma criança cativa na escola, não brincava, esquisitona. (espectadora do dia 16 de maio).
Cena III: O estupro
A cena começa com a entrada do padrasto de Sereno, brincando de locutor de futebol. Sereno assume o papel de goleiro no jogo. No princípio o espectador é levado a pensar que se trata de uma relação carinhosa entre pai e filho; uma brincadeira. No desenvolvimento das ações, a tensão começa a se fazer presente e o espectador toma consciência que se trata de um assédio sexual. A cena alcança seu ápice quando Sereno é conduzido por seu padrasto para a área de atuação que está por trás do espectador. A partir deste momento tudo acontece somente para os ouvidos do espectador. Todos sabem que ali está ocorrendo o estupro de uma criança; todos são testemunhas. O término da cena é uma ameaça ao menino, à vista de todos.
Figura 69: Série Imagens detalhes da cena III
Depoimento: Eu fiquei muito emocionada, porque aos meus doze anos eu fui abusada e violentada sexualmente dentro da minha própria família, no Estado da Paraíba, por um tio meu. E mesmo sendo moça pequena, assim, de uma família de classe média, eu passei por isso, eu fiquei ali e na hora que aconteceu aquilo ali [referindo-se ao espetáculo] que ela falava na questão das formigas, das cobras e tudo, eu passei por tudo isso e fiquei muito emocionada, eu me controlei para não chorar até porque está em grupo e eu não consigo mais chorar, porque eu já chorei muito, sabe? Eu já chorei muito, pelo preconceito, discriminação da sociedade toda contra a minha pessoa, como mulher, hoje como uma mulher idosa, madura, então o teatro tem me ajudado muito nesse sentido também, depois que eu fui pro Cuíra, mas eu acho que são nesses pequenos cantos, espaços que acontecem o abuso e a violência sexual das pessoas mais próximas, eu acho que cada um de nós é um amplificador (...) Eu trabalho com 80 jovens vítimas de abusos e violência sexual. Eu já não acho isso natural, porque eu nunca vou achar na minha vida, mas já estou conseguindo lidar com isso de
uma forma a passar uma mensagem pra sociedade que nós precisamos nesses pequenos grupos, nesses pequenos espaços, talvez nos pequenos porões que a gente possa imaginar e pensar como mudar esse quadro que está na sociedade, próximo da gente; as pessoas mais fortes da própria família. Mas as pessoas não falam disso. (espectadora do dia 18 de abril).
Cena IV: Os “bichos” que a mãe não quer ver
A mãe de Sereno entra em cena, trazendo em um prato um fígado bovino cru. Frente a esta imagem-objeto, Sereno tenta contar para a mãe o que aconteceu com ele. Fala dos machucados e dos ―bichos‖ que fizeram ―aquilo‖ com ele e insiste que eles ainda estavam lá. Mas a mãe não ouve; não quer saber nem ver. Ameaça o filho. Sereno promete que um dia ele vai matar aquela cobra com os próprios pés, quando for bem gordo.
Figura 70: Série Imagens detalhes da cena IV
Depoimentos: Eu estava ali no canto, quieto, aquilo parecia tão real, quando ela entrou [referindo a atriz Olinda Charone] dizendo ―que merda é essa? Aquilo assim subiu! A criança 'tava ali, tinha acabado de ser violentada, tinha acabado de acontecer mil coisas com ela e a mãe insensível, né? (espectador do dia 02 de junho)
Eu trabalhei num projeto chamado Propaz ano passado. Eu fiquei muito angustiada com um momento da cena. Da coisa ser tão...Da aproximação deste real, da coisa estar acontecendo e... Isso me remeteu a uma criança com quem aconteceu isso. Essa criança foi atendida por nós, e a própria mãe (...), foi muito forte. Essa mãe, ela dizia o seguinte: que ela não acreditava no que eu, no que a filha estava dizendo. Com outras entrevistas, a mãe resolve assumir que ela não poderia acreditar, porque ela perdera o marido. Então ela preferia acreditar neste marido do que acreditar na filha. Ela preferia bater, espancar a filha. Isso é muito forte, isso tudo que eu estou dizendo, essa coisa do espetáculo, acho tão real, tão próximo de nós, mesmo você dizendo: eu nunca vi, nunca vivi, mas (...) ver é forte (espectadora do dia 25 de abril)
Cena V: A Cena-afago entre a personagem e um espectador
Esta cena mostra Sereno como uma criança ferida e abandonada. É a cena que hiperflexibiliza a relação ator/espectador. A atriz conduz seu personagem a uma aproximação física com um espectador escolhido. Sereno pede colo, afago do espectador. É o teatro ao alcance do tato. Sereno compartilha com o espectador o seu caderno de desenhos. Compartilha com o público, seus desenhos espalhados pelas paredes e teto. Com a frase ―há um pacto entre a boca do sujeito que fala e o ouvido daquele que escuta‖ a atriz encerra a cena, já distanciada do personagem.
Figura 71: Série Imagens detalhes da cena V
Depoimento: Ela ficou do meu lado [referindo-se a atriz Wlad Lima] e aí, pensei: isso não é real! Eu, pra não chorar, fiquei imaginando o tempo todo, lembrando da minha infância... Eu fui muito feliz na minha infância. Agora que eu (...) ia chorar muito, eu sou muito chorona, quando eu percebi que ela 'tava chorando, aí eu comecei a dizer: não, isso não é real, isso não é real, isso não é real (Risadas) Eu fiquei o tempo todo: eu não vou chorar, eu não vou chorar. Aí lagrimei um pouquinho, ajeitei aqui, digo: não vou chorar, não vou chorar. Aí, quando vi, nem olhava pra ela. Aí eu me imaginei, te juro, fiz uma viagem! Eu subi na goiabeira, na mangueira, a mamãe gritando: desce daí, menina, desce daí, (...) eu virava a cabeça pra baixo, cabelo assim, olha! A mamãe conta, né? As minhas presepadas, que a gente fazia. Eu queria ser trapezista, aí subia na mangueira e na goiabeira, já tinha uns galhos sem folha, sem nada, porque a Lúcia subia ali, né? Se pendurava só com as pernas e virava o meu corpo pra baixo, eu ficava de cabeça pra baixo, pra lá e pra cá, brincando, brincando. Um dia, eu subi na goiabeira, tinha chovido, aí eu escorreguei, caí dentro do galinheiro. Agora, imagina, tudo isso pra não chorar...Pra não deixar...Pra não chorar, pra não chorar, eu olhando pra ela, mas meu pensamento 'tava...Eras! Como eu fui feliz brincando de panelinha com as minhas irmãs... (Risadas) Olha, fiz uma viagem, Wlad, pra não chorar. (espectadora do dia 02 de maio)
Cena VI: O casal
A cena revela os acordos do casal: mãe e padrasto de Sereno. A relação libidinosa que mantém a mãe a favor do marido e contra o filho. O espectador presencia, pelo discurso e gestos, a discriminação e o desprezo da mãe por Sereno, principalmente por ele ser gordo.
Figura 72: Série Imagens detalhes da cena VI
Depoimento: Eu acho que eles revelam isso, um sei lá entre os dois...E a própria questão da mãe. Que é uma figura que se omite às vezes, né? (Risadas) E quando a criança 'tava naquele desespero querendo a mãe, acho que é essa falta que cada um procura numa outra pessoa, independente de ser a mãe, né? Mas que cada ser humano, ele, ele precisa do outro, precisa do carinho, precisa do afeto, precisa... Da carne do outro, né? (...) contato, precisa se sentir amado, precisa se sentir protegido. E eu acho que...Em Carne e Osso, revela muito isso. (espectadora do dia 06 de junho).
Cena VII: Você viu Máscara, o que eu vi?
Sob tantas pressões, Sereno xinga, esperneia, defende-se. Preso nesta relação violenta, Sereno espreita quem o ameaça. Ele cria estratégias de sobrevivência. Faz alianças com o seu mundo imaginário.
Figura 73: Série Imagens detalhes da cena VII
Depoimento: Eu fiquei olhando e vi que tudo no espaço já está te dizendo: o caminho é por aí, é um indício, te aponta, te remete. Quando você começa a chorar, eu coloco aqui que isso me emociona muito, porque eu, eu lagrimei, eu não chorei, mas a minha vontade era de chorar, porque a sensação que me dá é do abandono. Não porque outra criança viveu isso, mas pela minha sensação que a gente sempre busca um pai, uma família. A gente busca esse carinho do pai, ao mesmo tempo a briga. Ela tá brincando, vem aquela coisa, algo que diz: ―olha, acabou a tua brincadeira, agora (...) além do que, tu vais sofrer. Mas ela volta pela brincadeira, ela brinca com a máscara, ela brinca com o imaginário. Ela se esconde, ela olha o que está acontecendo, é brincadeira, mas do sofrimento, que é pra abrandar um sofrimento. (espectador do dia 23 de maio)
Cena VIII: A cabana-lençol-esconderijo
Sozinho em cena, Sereno arma sua cabaninha de lençol. Sabe que precisa manter-se constantemente escondido, longe da vista dos ―bichos‖. Enquanto dorme, precisa manter-se protegido, atento. A cena expõe a fragilidade da criança, sua ingenuidade e vulnerabilidade.
Figura 74: Série Imagens detalhes da cena VIII
Depoimento: Eu penso que esse espetáculo, revela o quanto aquela criança está dentro de nós. Quando nós somos violados, qualquer sentido, e o quanto nós somos aquele pai. Nós violamos, nós temos a ação e a reação ao mesmo tempo. Eu acho que você recebe a ação dessa sociedade, dessa sociedade que te sufoca, que te cobra, dessa sociedade que proíbe, mas por trás existe toda uma podridão. Visualmente o espetáculo é muito bonito. A cena do fígado balançando é lindo. Era o fígado mesmo não era? Então aquela cena me fez sentir nojo, como se aquele fígado fosse um fígado humano. Ele limpou a mão na blusa, na camisa dele, ficou com o sangue do fígado, aí eu senti um certo nojo. No final, ele falou: olha, gente, peço licença pra eu não estar... Eu entendi ele falar: peço licença pra eu não dar esse fígado. Aí por isso que eu falei: graças a Deus...(Risadas) Algumas vezes eu fiquei me perguntando se era o personagem ou se eras tu chorando mesmo. O espetáculo me deixou meio confusa e uma sensação boa e não ruim de confusão, entendeu? Eu gostei. (espectadora do dia 06 de junho).
Cena IX: O sonho molhado
A cena coloca o espectador no escuro. Ele ouve os passos, a respiração, o desejo do padrasto. Ouve os seus sonhos. Mesmo na penumbra da cena, o espectador consegue ver aquele
homem babando por perto do menino. O espectador sabe que ele é um animal que está sempre por perto, pronto para dar um novo bote em sua presa.
Figura 75: Série Imagens detalhes da cena IX
Depoimento: A gente tem muito medo de tudo, não é? Eu nunca fui violentado, na verdade, mas eu tive um início disso na minha escola. Eu tinha um professor que era, eu tinha seis anos de idade quando ele era do jardim da infância, e eu tinha um professor quer era de educação física e... A gente fazia natação às sextas-feiras, de manhã. Eu lembro como se fosse hoje. (...), então a gente colocava a sunga de banho e fazia uma pose, as meninas e os meninos, ficávamos todos assim. E eu lembro uma vez que a gente foi se enxugar, se secar, aí o professor olhou pra todos os meninos e falou assim: as meninas troquem em outro lugar e os meninos troquem aqui. Aí o professor (...) do vestuário da escola falou: olha, os meninos todos tirem a roupa, tomem banho, que eu vou ajudar a secar. E eu tinha seis anos. Não entendia porque era aquilo, a mãe não me secava, meu pai dizia pra mim que abraçar homem era coisa de viado. Não, não pode abraçar, porque senão vai virar gay, não sei o quê, não pode beijar, tem que beijar sua mãe, eu não, porque eu sou homem.Eu não posso tocar em mãos (...), vai ser gay, eu não posso fazer isso porque, e aquilo (...) na minha cabeça, eu tinha seis anos, mas aquilo não entrava, eu dizia: mãe, eu não posso beijar meu pai por quê? Não, porque ele é assim mesmo, não sei o quê, não. Na verdade, eu não era filho dele, né? Ele me criou, mas na minha cabeça naquela época eu era
filho dele, que até então minha mãe não tinha me dito que eu não era filho dele, então eu achava que eu era filho dele. Então, ele já tinha essa coisa e não era só comigo, era com as minhas irmãs também, com o meu irmão, ele não tinha essa coisa de abraçar filho, de beijar, de levar não sei pra onde. Era aquela coisa bem tu lá, eu aqui, (...). A gente escolhe o que a gente quer da vida, (...) O meu pai sempre tão duro comigo e é até hoje, e eu sou assim na minha vida, independente do que ele me ensinou, porque eu escolhi. (Risadinhas) (espectador do dia 13 de junho).
Cena X: Um gordo assado de forno
Durante o sono de Sereno, há uma vigília da mãe. Mas é uma vigília angustiada e angustiante. A personagem fala de forno, de gordo assado de forno, da necessidade de romper a porta do forno, que sempre novos fornos vão aparecer. Ela diz, sobre o corpo do filho que dorme, que ele precisará de força, muita força, para romper tantas portas A cena não determina um sentido para as atitudes da personagem. Isto fica a critério do espectador. Ele deve perguntar-se: o que significa isso? O que essa mulher sente pelo filho? Ela seria capaz de protegê-lo contra este homem, ou não? A cena não responde estas e outras perguntas.
Figura 76: Série Imagens detalhes da cena X
Depoimento: Essa cena pra mim é a cena mais tocante. Eu que tenho um sobrinho de nove anos de idade e que fez por durante quase dois anos acompanhamento psicológico. Até hoje tem que tomar remédio controlado, tomar remédio, quando na verdade eu penso que ele precisa de carinho. Ele às vezes passa por menino gordinho, ele tá ficando gordo, e eu via meu sobrinho que tem um amigo imaginário, ele que não lembra das coisas que faz, mas consegue articular muito bem suas frases e pensamentos, conversas. E aí não sabe nessas horas o que fazer, o que fazer uma hora dessas? Sabe, pegar no colo, tu pegas o Sereno e embalas, ou vai pra cima do cara e dás umas porradas e ficas na tua calado, fazes justiça com a própria mão (espectador do dia 18 de abril).
Cena XI: O amigo e o segredo
A cena mostra a solidão de Sereno. Suas noites, sem sono, sozinho e com medo, fazem Sereno recorrer ao seu amigo imaginário. Esta cena revela o segredo de Sereno: ele escreve cartas de amor, culpa e arrependimento endereçadas à mãe. Esta cena substancia a relação filho/mãe, pelo olhar da criança. Além disso, apresenta ao espectador os desenhos que compõem a ambientação, guiado pelo próprio personagem do menino.
Figura 77: Série Imagens detalhes da cena XI
Depoimento: O tempo todo eu pensei (...) garota, menina (...) depois (...) eu senti que há duas pessoas diferentes, só no finalzinho que eu entendi (...). Mas (...) é que, quando você 'tava lendo a carta, 'cê se transformou em homem (...) e aí você entra e (...). Não sei por que, mas eu acho que foi (...) escrever uma carta, de amargura, as palavras (...) talvez foi crescendo (...) era homem, eu acho, no final da carta (...) memórias (...) É uma coisa, assim, tu tá num espaço psicológico e tá sendo julgado pelas pessoas (...), pessoas, é... (...) eles vão te confiar, confiando (...), a intenção era isso mesmo (...) de espancar um pouquinho o espectador, pra nascer com ele, mas eu fui espancada com certeza e não foi agradável, mas (...). (espectadora do dia 18 de abril).
Cena XII: O teatro corta a história e pede passagem
Uma cena de transição, de quebra do drama, de metalinguagem, de respiração do espectador. Marca o fim da infância de Sereno e a negociação com o espectador quanto ao salto temporal da história para a velhice do personagem. É mais uma cena que requer do espectador, a sua atenção sobre as convenções firmadas no início do espetáculo.
Figura 78: Detalhe do chão
Depoimento: Então a impressão que dá é que é verdade, que ele está te (...) que não deixou tu terminares de contar a história e o final de tudo é que é mais interessante, que falta uma história, a criança até ali, a criança comum, igual as outras crianças (...), que desenham, que sentem que têm ao nosso redor, e essa criança cresce, se transforma em adulto, mas não perdeu aquela violência, aquilo que ficou (...), ficou preso (...), aquela coisa de se esconder, porque a mãe disse pra ele que ele era um gordo horroroso, que ele não era criado com amor, porque ele era isso, era aquilo, e ele morreu pensando isso, (...) ele morreu pensando que ele era um horror, um monstro, alguém que ninguém podia se aproximar que ele iria fazer mal. É isso aí, eu falo muito. (espectador do dia 20 de junho).
Cena XIII: De porta fechada
Nesta cena, é a figura da atriz – que apresenta Sereno - quem assume a narrativa. Seu trabalho é conduzir o espectador para o lugar que a imagem cenográfica de fato representa: um quarto no porão de uma casa antiga, na barulhenta Rua Riachuelo, em plena zona do baixo meretrício. A partir deste momento o espectador deve ter a certeza que está no hoje, no agora, no aqui deste lugar. Toda a movimentação da cena é a preparação da cena posterior, onde Sereno será revelado como um corpo amante.
Figura 79: Detalhe da escada
Depoimento: Experimentar teatro de porão eu gostei desde o início. Desde a entrada a gente já vai. Espectador entra em cena junto desde a entrada, desde quando abre a porta, a gente já vê que é uma coisa totalmente diferente de um teatro normal. A gente, os objetos, tudo é feito, acho, da maneira possível pro espectador, pra que o espectador entre em cena. Gostei dessa coisa minimalista também, da aproximação do ator com o espectador, porque, assim, a gente acaba absorvendo muito mais algumas emoções que num teatro normal podem passar em branco. Eu acho que a gente acaba tanto nas cores quanto no jogo de cenas dos atores, nas cores (...) A gente ta completamente diferente e acho que, acho legal porque acaba envolvendo muito mais o espectador nas emoções que não só os atores tão passando, como o ambiente inteiro. Gostei disso, é a primeira vez que eu participo de um espetáculo de porão. (espectador do dia 16 de maio)
Cena XIV: A sombra da bailarina
Uma cena muito delicada. O espectador é conduzido, emocionalmente, por luzes e sombras para viver a história de amor de Sereno, agora, um homem de quase cinqüenta anos. Cabe ao espectador a construção do sentido da cena. Sereno realmente viveu este amor ou foi tudo imaginação sua? Quem seria esta mulher-bailarina-de-arame? O devir-corpo-amante é possível para Sereno mesmo sendo ele um ser ferido?
Figura 80: Detalhes da cena de sombras
Depoimento: Bem, tecnicamente eu não posso falar muita coisa, mas pra mim foi um show de produção, tudo muito artesanal e pra mim foi a luz perfeita, eu tenho..., eu sonho em trabalhar com isso assim. Então, você percebe como as coisas que você joga no lixo, como o arame, aquela boneca no final se transforma numa boneca e ver ali uma pessoa, é fantástico, porque tu te envolves de uma forma com o arame que tá ali naquela luz, e, assim, uma sensação, é... tu tás vendo ali uma mulher e não é, é o arame, e essa questão de vocês utilizarem esses materiais recicláveis. É fantástico ver a transformação de um arame. Ali, em relação a história do Sereno é, assim, tocante, porque envolve, acho que todo mundo deve ter se visto na pele do Sereno. (espectador do dia 02 de maio).
Cena XV: Sob os olhos de minh’alma
A cena das possibilidades: no jogo das palavras, da teatralidade, Sereno poderia ter sido amado, poderia ter morrido roído por ratos de porão. O espectador é convidado a assistir um dos possíveis ―finais‖ para o personagem, mas é avisado de que poderia haver outros. No final escolhido pela encenação, o menino-velho se torna a cada segundo mais velho e morre.
Figura 81: Série de Imagens da morte de Sereno/velho
Depoimentos: Coisa que mexeu comigo novamente foi a questão da velhice. Perdi meu pai... Tu ficaste numa posição que a minha mãe fica, sabe? Ela fica assim às vezes, sentada, ela se embrulha assim. Eu não consegui te olhar por muito tempo porque eu (...) e eu não conseguia, assim, sabe? Assim, mexe como uma coisa, quanta memória (...), histórias, sabe? (...) foi tudo o que você falou, né? Põe tudo pra fora. (espectadora do dia 30 de maio) Eu achei o espetáculo, assim, muito diferente de tudo que eu já assisti. espetáculo de porão é a primeira vez que eu assisto, na verdade. Mas, assim, a questão do texto, eu gostei do texto, sabe? Aquela cena do menino, do monstro, como ele mesmo se autodenominou, eu fiquei muito emocionada e muito triste, (...) [apesar de] não ter vivido nada semelhante na minha vida, mas aquilo me fez reportar a um depoimento de uma pessoa muito importante que eu conheço. Ele falou que o pai dele o estuprava na infância e eu falei pra ele por mera curiosidade, mas porque ele era uma pessoa travada, nunca desabafava nada com ninguém, eu disse: como foi, conta os detalhes. Ele falou assim mesmo pra mim: pô, tu ainda quer saber os detalhes? Chega! Cala a boca! E nunca mais a gente falou no assunto. Então eu imaginei isso e ao mesmo tempo eu me reportei aquela fase do naturalismo na literatura brasileira, do século XIX, que ele estudava os homens com suas mazelas, com as suas patologias sociais. Ele estudava aquelas mazelas como as taras sexuais, a cleptomania, o egoísmo, o ódio, tudo que é mau, que existe em nós mesmos. Eles estudavam e colocavam isso nas suas obras literárias. Eu gostei muito desse espetáculo porque ele prende a atenção do espectador. Então, eu fiquei o tempo todo presa, tensa. Gostei dessa questão da quarta parede, quando vocês saem do personagem, passam a ser atores, gostei dessa questão da metalingüística do espetáculo, entendeu? Achei interessante tudo isso que a gente vai construindo, um texto metafórico muito rico. A questão da máscara. Aquilo ali tem uma simbologia bela por trás, linda, da infância, mas ao mesmo tempo o lado da criança que tem a infância destruída, que se ferra porque não deixaram ela viver a infância dela. É um espetáculo, eu penso que deveria ser apresentado, tudo bem que é aqui nesse espaço maravilhoso, mas poderias levar depois pra uma platéia maior. Bom, eu não posso agora tomar a palavra e falar meia hora. Nota dez. Parabéns, eu gostei muito. (espectadora do dia 06 de junho).
Fim do Itinerário da Atenção do Espectador. Para concluir, gostaria de inserir nesta escrita, outro material, recebido após a última apresentação da temporada. Trata-se de um e-mail pessoal, que de forma gratificante revela muito bem as sensações de Daniel Tonacci - espectador da sessão extra realizada no dia 10 de julho de 2007, para o registro vídeográfico do espetáculo no jogo desta cena:
Wlad, não sei se você se lembra de mim? Assisti a sua peça no começo do mês de julho (...) Saí de sua peça com muitas impressões e queria te escrever. (...) Ver seu corpo pela primeira vez na peça foi muito forte. Tive a impressão de assistí-lo em câmera lenta, como assistimos aos documentários sobre vida animal nos canais tipo National Geographic. Achei-o também ancestral. Há muito a visão de um corpo não me permitia realmente perceber o que é um corpo de verdade. Suas partes, seus movimentos, seu equilíbrio. Por acaso ao chegar em São Paulo fui à exposição do corpo humano no museu do Ibirapuera, talvez por influência de sua peça. Mas o fato é que seu corpo não me trouxe a idéia de homem ou mulher (como me trazem as estátuas clássicas), mas trouxe algo próximo a essência do ser humano. Talvez por que você transborde amor. Sua imagem é amorosa, seus gestos, suas expressões e sua voz. (no budismo a deidade que representa a característica mais essencial humana é Avalokteshivara – não sei se é assim que se escreve - que é a deidade da compaixão. Ela possui mil braços para abraçar todo o mundo. Seu rosto moldase em formas tão simples e primárias (no sentido de puras) de expressão que representam claramente estados e sensações pelas quais a maioria de nós já passou na infância. (...) Agradeço muito a oportunidade que tive de assistir sua peça e espero que ainda mantenhamos contato e quem sabe algum dia trocar mais figurinhas sobre nossos trabalhos. Um grande beijo e um abraço de Daniel Tonacci.
Figura 82: Imagem noturna da casa na saída do público
6. 2 O MAPA DA FABULAÇÃO POÉTICA DO EM CARNE E OSSO
6. 3 ANÁLISE DO MAPA DA FABULAÇÃO POÉTICA DO EM CARNE E OSSO
O texto-colagem de Em carne e osso se apresenta como multiplicidade. Seu corpo foi composto por escrituras de diferentes naturezas, exigindo tanto da encenação quanto do trabalho atoral, quebras constantes na sua estrutura. Essa dramaturgia não comporta seqüências lineares de ação e reação, próprias da dramaturgia rigorosa. Os diferentes contextos sócio-históricos dos autores - Albert Innaurato, Valére Novarina, Antonin Artaud, Federico Garcia Lorca e Luís Otávio Barata - bem como a singularidade de suas escrituras, garantiram ao novo texto engendrado uma qualidade cênica contemporânea importante em relação às dimensões íntimas do espaço físico da montagem: uma obra aberta a múltiplos significados e constantes ações recombinantes. Colagem na feitura do texto, colagem na montagem e apresentação do espetáculo. O Teatro Porão Puta Merda, sendo o menor dentre os porões apresentados neste estudo – aproximadamente 20m² - teve como imagem cenográfica, nesta montagem, a jaula-de-menino. Uma citação em dimensões ampliadas do quadrado-de-bebê, utensílio muito utilizado na atualidade. O resultado cênico da escolha pode ser melhor compreendido com a foto a seguir:
Figura 83: Detalhes da Imagem cenográfica da jaula
O elemento cenográfico que determinou a relação palco/platéia foi uma estivaarquibancada-brinquedo-de-playgrand-em-madeira. Esta heterogênese construída com palavras é a representação da heterogênese que se formou com o emprego de múltiplas imagens que induziram à concepção deste elemento. Sua instalação e utilização como gerador de imagens e relações corporificadas no espaço físico deu a este esqueleto de caibros e ripas a qualidade de provocador de sensações, tanto nos atores quanto nos espectadores.
Figura 84: Detalhes da Estrutura cenográfica
Os princípios de criação condutores do trabalho, tanto para o elenco quanto para a equipe técnica, foram, fundamentalmente, a apropriação de si e a apropriação da fisicalidade exigida no encontro entre o elemento cenográfico e as dimensões íntimas do porão. A disponibilidade de manter o trabalho aberto às constantes sugestões e críticas trocadas com os espectadores, tanto dos ensaios abertos quanto dos espetáculos da temporada, possibilitou um constante estado de descobertas cênicas em todos os aspectos da linguagem teatral. Houve experimentações constantes ao longo de todo o processo no que se refere à construção do texto, ao uso de objetos,
na seleção dos figurinos, na concepção e utilização de objetos de luz, no design do som, na movimentação cênica etc. A questão do espectador neste processo - diferente dos dados numéricos apresentados na cartografia do primeiro capítulo – ganha outra dimensão no desenvolvimento desta pesquisa. Além de apresentar o número de espectadores convidados durante a temporada – oito (08) por sessão, no total de cento e onze (111) espectadores – é possível apresentá-los como parceiros no processo. É possível dar-lhes os nomes, impressões, opiniões, mas principalmente sensações compartilhadas entre nós, nos debates, ao final das apresentações. Sobre esta questão abrirei mais adiante um novo subitem, neste mesmo capítulo. Para encerrar esta análise do mapa da fabulação poética de Em carne e osso, chegamos aos dados correspondentes ao bloco de sensações. As sensações de partida clarificam o trabalho de encenação. A concepção do espetáculo, do que se queria contar, nasce da mudez frente a imagem de um corpo morto de uma criança violentada. Esta sensação conectou-se com tantas outras, como o rabisco de parede, o caderno de desenho, o amigo imaginário, as máscaras, etc. Foram essas as imagens que, como intérprete no trabalho, que me desenharam criança. Meu DEVIR-criança, que partiu de uma criança ferida, virou DEVIR-animal. Minha criança virou presa de bichos, virou bicho-toca, virou roedor. Como escreveu Deleuze, um corpo em devir em intensidade tem o poder de afetar e de ser afetado, isto é, tem a ―Vontade de Potência‖ (DELEUZE, 1993, p.164). O meu devir-criançaanimal se compôs com estas sensações, conexões. Meu afecto novo afetou os espectadores. Conseguir afetar o espectador exigiu um percepto híbrido e paradoxal: devaneio enjaulado. Trabalhar com a matéria-sensação de que essa criança - menino Sereno - mesmo enjaulada, devaneava, afeta o espectador, obrigando-o a ser o construtor de sentidos. O paradoxo só é possível se o leitor da obra, o espectador, aceitar sua existência dando-lhe sentidos outros.
6. 4 O ESPECTADOR
Por acreditar que as imagens fotográficas convocadas, neste estudo, têm apresentado um espaço de fala considerável, penso expor fotos e dados dos espectadores - coletados por meio de questionário58 e apresentado em forma de quadro acompanhado com sua respectiva análise – com o objetivo de tornar esta escrita um documento da relação ator/espectador, dentro e fora da cena.
6. 4. 1 Uma amostragem dos espectadores (sessão do dia 02/maio/2007)
O quadro apresentado a seguir, foi construído com o subsídio do questionário aplicado com todos os espectadores da temporada oficial do espetáculo. Selecionei uma das sessões do conjunto da temporada – o dia 02 de maio de 2007 - de forma aleatória, mais para revelar a riqueza de dados que podem ser produzidos no contato direto com o espectador, do que dar conta de uma questão formulada especificamente frente a eles. Foram cento e onze (111) espectadores a responder as questões propostas, mas não nos interessa a utilização dessa totalidade, no corpo desse estudo, ficando reservados, estes dados, para uma utilização posterior, como desdobramento da pesquisa. Como o espetáculo Em carne e osso está inserido em um projeto maior que é a implantação e sustentabilidade do Teatro Porão Puta Merda, todos os dados coletados poderão fornecer desdobramentos de ações, nesta direção.
58
Modelo do questionário empregado nesta investigação encontra-se nos anexos desta tese.
6. 4. 2 O quadro
Já assistiu Teatro em Porão?
Assistiu aos Como ensaios do soube do espetáculo espetáculo?
NÃO
SIM (Teatro U. Porão59)
NÃO
Família
SIM
NÃO
NÃO
Grupo Cuíra
Umarizal
NÃO
NÃO
NÃO
Amigo
Batista Campos
SIM
NÃO
NÃO
Grupo Cuíra Jornais
Bairro onde mora
Trabalha com teatro?
Jurunas
Murinin, em Benfica, município de
FOTO E NOME
Do Vale Maria B.
Ananindeua
Edilene do Nascimento
Maramélia Duarte Lopes
Renato da O. Rodrigues
59
Referências sobre o Teatro U. Porão serão dadas no próximo capítulo desta tese.
e
Reduto
NÃO
SIM (Teatro Bufo)
NÃO
Amigos
Pedreira
SIM
SIM
NÃO
Internet
Rogério Nishizawa
Thiane Neves
Jurunas
NÃO
Eurico Guilherme
São Brás
Débora Xavier
NÃO
SIM (Teatro U. Porão, NÃO Teatro Cláudio Barradas, UNIPOP e Teatro Bufo)
SIM (Teatro Porão Puta Merda)
NÃO
Jornais
Jornais e amigos
6. 4. 3 Uma análise do quadro dos espectadores do dia 02/maio/2007
É possível iniciarmos a análise fazendo observações quanto aos deslocamentos dos espectadores. Dos oito espectadores desta amostragem, nenhum é morador da Campina, bairro onde se localiza o Teatro Porão Puta Merda. Tivemos dois espectadores do bairro do Jurunas, uma do Umarizal, uma da Pedreira, uma de São Brás, um da Batista Campos, um do Reduto e por último uma espectadora do bairro do Mirinin da cidade de Benfica, município de Ananindeua, arredores de Belém. Podemos supor que os veículos de divulgação do espetáculo e do espaço estão atingindo uma esfera municipal e intermunicipal. Dos oitos espectadores dessa sessão, apenas três fazem teatro, os outros cinco não. Do todo, três nunca assistiram espetáculos feitos em porão. Entre os Teatros-Porão citados, temos: o Porão Cultural da UNIPOP, o Teatro U. Porão, o Teatro Cláudio Barradas, o Teatro Bufo e o próprio Puta Merda, quando da inauguração do espaço com as apresentações do Império de São Benedito. Nenhum dos espectadores desse conjunto assistiu aos ensaios abertos do Em carne e osso. Os meios de informação que esses espectadores tiveram para saber do espetáculo foram: amigos, jornais da cidade, divulgação do Espaço Cuíra e a internet. Apenas uma das espectadoras era da família de um dos criadores envolvidos no processo. O questionário, aplicado a todo público participante, trouxe para a relação espectadores/ espetáculo, outro grupo de dados, todos de caráter subjetivo. As questões subjetivas levantadas antes do espetáculo foram: o que você achou do entorno (vizinhança) da casa, quando chegou? No seu imaginário, o que existe num porão? Quais as sensações que o espaço de porão provoca em você? O que sente quando alguém tem emoções fortes muito perto de você? Após os espetáculos, as questões eram: fale sobre suas sensações no espetáculo, faça a sua análise sobre o espetáculo e o que você achou desta casa-porão-teatro?
6. 5 O SENTIDO DO DEBATE
Experenciei a prática de realizar debates após as apresentações, na década de 80, durante as mostras de teatro organizadas pela FESAT60, no Teatro Experimental do Pará Waldemar Henrique61. Nesta prática do debate, iniciada no contexto destas duas instituições, o pensamento reflexivo sobre o fazer teatral teve, por muitas vezes, o seu grande espaço de desenvolvimento. Por isso, para alguns criadores de cena, este exercício das argüições públicas, foi verdadeiramente, o único espaço formativo. Contaminada por esta forma de exercitar coletivamente o pensamento e pela necessidade de conhecer meus espectadores, garanti assim que eles estivessem de fato, em carne e osso neste estudo, optei em empreender esta prática do debate, neste meu experimento cênico - nos seus ensaios abertos e em suas apresentações – com o objetivo de perceber a construção das sensações desses intercessores na obra. Mas o fato é que estes debates representaram muito mais que isso. Os depoimentos dos espectadores interferiram tanto na construção do espetáculo durante todo o período da temporada quanto dessa tese. Com estes depoimentos, construí leitor, o seu itinerário da atenção.
60
Federação Estadual de Atores, Autores e Técnicos de Teatro, fundada em janeiro de 1979. Atualmente é uma das entidades representativas da categoria teatral, já citada na apresentação da tese. 61 Este teatro está sob a administração do Estado. É um edifício teatral com caráter experimental, já citado na apresentação da tese.
7 ASPECTOS CONCLUSIVOS Resta tudo, mas sob uma nova luz, com novos sons e novos gestos. Gilles Deleuze
Para os aspectos conclusivos desta tese organizei a minha escrita em dois ―aparentes‖ platôs. Insinuo que são ―aparentes‖ porque um platô é um corpo fechado em si; aquilo que se completa em si mesmo, não depende de outros corpos. No caso do teatro, entendo que posicionamentos estéticos impliquem em posicionamentos éticos. Portanto, os dois platôs são ético/estéticos. São multiplicidades de um corpo; formam o corpo biopolítico desta pesquisadora da cena. Estes platôs foram compostos para a valoração desta prática – que a partir de agora denomino de teatro de porão - condensando dados para as proposições enunciadas em minha tese62, embora, deseje que o processo de construção destas considerações se faça, permitindo quaisquer rupturas na confirmação desta tese. O corpo do primeiro platô é mais uma significante amostragem da intensa participação do espectador em nosso experimento. Os trechos selecionados para esta conclusão destacam o papel de alguns convidados especiais - nesta investigação, considerados espectadores-debatedores – revelando a contribuição de suas críticas na consistência da pesquisa63. Estes espectadores estavam concentrados nas duas últimas apresentações da temporada. O corpo do segundo platô expõe mais um dos diálogos de minha prática teatral com a filosofia Deleuze-Guattariana. Conecto os conceitos de biopolítica, consciência minoritária e teatro menor, propondo-me a olhar esta prática teatral, como prática política a favor da potência da vida, não a biológica, mas a vida manifesta, criativa, estetizada.
62
Proposições baseadas na hipótese da prática de realizar espetáculos em porões haver tornado-se, em Belém, uma estética teatral específica, particular e local. 63 Esta ação reforça a atitude de realizar o debate como um acontecimento que deverá sempre acompanhar este espetáculo, concedendo a este, seu real sentido de experimento cênico.
7. 1 PRIMEIRO PLATÔ: A ESTÉTICA DA PROXIMIDADE
Minhas argüições começam com fragmentos dos debates dos dias 25 e 27 de junho de 2007, gravados e transcritos, como registro do processo de construção desta tese. Eles foram incorporados nesta trama como citações teóricas, legitimamente reconhecidas, tanto pela importância das trocas que ocorreram entre criadores e espectadores nos debates deste processo quanto pelo reconhecimento e valoração artística dos autores destes depoimentos. O primeiro deles, presente no dia 25 de junho, foi o Prof. Dr. João de Jesus Paes Loureiro. Ele é poeta e pesquisador da área cultural, especificamente da cultura amazônica e seu imaginário. Sua fala versou sobre o que ele chama de ―estética da proximidade‖. Encantado pelo funcionamento cênico da proximidade, o espectador-debatedor discorre sobre a possibilidade de existência de uma estética própria no teatro feito em porão.
Paes Loureiro: É a primeira vez que eu vejo espetáculo de porão. Eu até não tenho muita antipatia por porão. Quando a gente morava numa época de isolamento, tinha as casas com porões, não é? Você entrava na casa, era uma escuridão, tinha um pavor que apagasse a luz. Aí não sabia por onde sair. Então eu vim pra cá com uma expectativa. Eu me deixei disponível, tanto que eu... Eu, me deixei tão disponível no espetáculo. Não tenho uma boa, digamos assim, uma visão de tudo, mas eu acho que nesse tipo de espetáculo, essa intimidade é fundamental. Eu vi você ali junto de mim e ele também, e eu sentia como o personagem, está entendendo? Eu não sentia a coisa ficar distanciada; é quando o espectador se sente integrado no espetáculo, porque também você faz o jogo... Wlad Lima: Jogar junto, com o outro, não é? Paes Loureiro: Aquela coisa de olhar as coisas atrás, no meio; aquele equilíbrio que o espetáculo tem que eu achei que é entre o sarcástico e o lírico; são estas duas coisas ao mesmo tempo. Ele não tem aquela coisa: de repente cai para o lirismo, que é de uma ternura e aí em outra coisa, como as lágrimas, não é? De repente corta tudo e volta. Pra mim essa coisa não funciona apenas como um corte, não. Eu entendo que isso é a estrutura do espetáculo, eu acompanho isso com naturalidade e não fico na expectativa dos cortes. Pra mim faz parte do espetáculo, é um distanciamento que, na verdade, é um distanciamento tão integrador no espetáculo, que ele faz parte. É ele que dá grandeza que consegue quebrar esse posicionamento entre o sarcástico e o lírico, entre a crueldade de
algumas situações com a ternura de outras. E isso acontece também na própria cenografia, a delicadeza de certas coisas em contraste com a crueldade de outras não é? De flagelação e tudo, de repente a ternura daquela fisionomia. A estética da proximidade é de um efeito mais maravilhoso, do que se fosse à distância. Em um teatro convencional, eu não sei como seria. Então eu acho que me encantou, foi isto, o funcionamento cênico da proximidade, o que faz com que o teatro de porão, eu suponho que deva ter uma estética própria, o teatro de porão deve ter um traço, não é? Esse tem uma atmosfera que é própria. Ele [referindose a fala de outro espectador/debatedor, o Prof. Aldrin Figueiredo] lembrou bem essa questão do Bachelard, porque é uma poética de espaço pra mim. Você se sente mergulhado. O espectador se sente mergulhado em algo, em algo profundo, porque porão não é de trivialidade, Eu gostei dessa leveza assim, contrastando com uma aparente dureza, assim, que dá uma fluidez ao espetáculo. Pra mim, o encanto da proximidade, essa proximidade poética das coisas, em que você tem que saber o que é o quê. Que são as pessoas que você conhece, mas que não são elas também, sem trivializar nenhum momento. Isso pra mim foi uma coisa muito emocionante.
Figura 85: Prof. Dr. Paes Loureiro ao lado da Profa. Dra. Sônia Rangel, orientadora desta pesquisa.
O próximo fragmento se reporta ao depoimento de Kil Abreu. Ele é dramaturgo e crítico teatral. Trabalhou no jornal Folha de São Paulo e colaborou com várias revistas especializadas em artes, entre elas a revista Bravo. Atualmente, é professor na Escola Livre de Santo André,
Grande São Paulo. Ele esteve presente no espetáculo do dia 27 de junho. Suas palavras sobre o espetáculo foram as seguintes:
Kil Abreu: Essa questão do espaço, ela é definidora de muitos, praticamente, de todos os aspectos do espetáculo. Assim, é um espaço que exige certa dramaturgia. Acho que não é, não seria de fato qualquer dramaturgia. Aqui dentro tu mesmo tens uma tonalidade mais íntima. Há uma relação necessária com o espectador, que não é qualquer uma, é uma relação necessária do espaço, não é? Também é um espaço íntimo que determina... Wlad Lima: Sim, acredito que determine aspectos da encenação. Kil Abreu: Determina um pouco isso: uma modalidade também de atuação. Porque, você está ali, frente a frente, não é? Pede quase que uma ética na relação entre o ator e o espectador. Porque tem mesmo, a gente sente. É de certa maneira uma relação desamparada; uma relação não usual, não é? Então tu tens, também, que ter certo cuidado. Como é que se cuida disso? Eu fiquei um pouco com medo, porque eu tenho pavor de peça interativa. (Risadas) Não, eu sei que não é interativa. Wlad Lima – Interativa...Não, não é. Kil Abreu: Tudo bem, tudo isso, parece coisa besta, mas não, não é. Isso institui o fenômeno teatral. Como tu falaste, isso tudo institui uma poética, então... Eu achei muito curioso.
Figura 86: Kil Abreu sentado a esquerda da pesquisadora
As considerações feitas tanto por Paes Loureiro quanto Kil Abreu são pertinentes às conclusões deste estudo. Ambos consideram o aspecto físico do porão - mínimo e intimo - como o elemento mais fundante no plano de composição do espetáculo. Se este teatro-porão exige certa dramaturgia, uma tonalidade mais íntima na relação com o espectador, uma modalidade de atuação, como argumenta Kil Abreu, posso concluir que o teatro-porão é o espaço para a estética da proximidade proposta por Paes Loureiro. E esta proximidade, ator/espectador, implica em questões éticas. O funcionamento cênico pela proximidade determina as sensações construídas para afetar a todos que participam do jogo, da cena íntima entre atores e espectadores. É o teatro ao alcance do tato.
7.2 SEGUNDO PLATÔ: UM TEATRO MENOR
Félix Guattari, intercessor de Gilles Deleuze, propôs uma analítica das formações do desejo, que ele chamou de micropolíticas:
A questão micropolítica – ou seja, a questão de uma analítica das formações do desejo no campo social – diz respeito ao modo como se cruza o nível das diferenças sociais mais amplas (que chamei de ―molar‖), com aquele de chamei de ―molecular‖. Entre esses dois níveis não há uma oposição distintiva, que dependa de um princípio lógico de contradição. (Guattari, 1987: 127).
Segundo este pensador, estas formações podem ser identificadas como molares e moleculares. Estes dois conceitos estão inseridos no movimento de formação da consciência minoritária; consciência do desejo.
A formação molar diz respeito ao reconhecimento de um padrão, de uma maioria ―em relação a qual, outras quantidades, quaisquer que sejam, serão ditas menores‖, a um modelo de poder no qual ―de um pensamento se faz uma doutrina, de uma maneira de viver se faz uma cultura, de um acontecimento se faz a História‖ (DELEUZE; BENE, 1990, p. 97). Esta analítica poderia ser aplicada sobre o teatro? Ou melhor, o teatro pode ser visto como micropolítica? Vejo o teatro, tanto para o ator quanto para o espectador, como uma das formações do desejo. Estes conceitos – molar e molecular – podem ser aplicados no âmbito desta prática teatral? Tornar-se-ia este fazer teatral um padrão, com regras e modos? No entanto, como artista que cria neste fazer, independente da quantidade, quero que este esteja excluído de tornar-se um padrão majoritário. É evidente que há sempre riscos de uma minoria recair na maioria, ao refazer o padrão de poder, ao querer ser reconhecida como uma categoria específica; ao normalizar-se. O teatro de porão se quer minoritário, molecular, não deseja institui-se. Prefere ser reconhecido como um teatro ―menor‖. Segundo Deleuze, ser um teatro menor é agir pelo procedimento de subtração como foi o caso do teatro de Carmelo Bene64. Este criador – que trabalhou muito a partir da literatura dramática - retirava de cada peça um elemento, um personagem65. O que este diretor procurava subtrair? Subtraí os elementos que são marcadores de poder do sistema da representação, neste caso, o poder que é representado e o poder do próprio teatro. A peça afetada pela subtração movimenta-se, e uma nova peça surge em decorrência desse procedimento. Para Deleuze, o teatro de Bene é crítico porque é um teatro constituinte. Bene como diretor era um operador. E como operador, realizava o movimento de subtração, que se fazia 64
Carmelo Bene, ator e diretor italiano. Produziu diversos textos de reflexão sobre o fazer teatral, inclusive junto com Gilles Deleuze. 65 No texto Romeu e Julieta de Shakespeare, ―amputação de Romeu e desenvolvimento gigantesco de Mercuccio, um no outro‖ (Deleuze, 1979:89).
acompanhar da criação de um novo elemento. Essa subtração é o que desencadeava uma nova peça, na qual se observava o desenvolvimento de uma nova matéria e de uma nova forma teatral. O procedimento de subtração, que desencadeia um processo de variação contínua, é responsável por essa potência de transbordar o limiar representativo do padrão majoritário. Para concluir este estudo, o apoio de Deleuze - que observou o teatro de Carmelo Bene e dele extraiu os elementos que constituem o procedimento de criação aplicáveis ao teatro para que ele seja um teatro menor (Deleuze, 1990, pág.106), – é fundamental na verificação do tratamento de minha poética. Ovídio de Abreu, no artigo intitulado O procedimento da imanência em Deleuze66 fala sobre as conseqüências deste procedimento:
Desse tratamento imposto a um texto (obra ou poética) advirão segundo Deleuze, a subordinação da forma ao movimento e a subordinação do sujeito à intensidade dos afetos; tal tratamento também evitará a representação de conflitos — que aprisionaria o devir na contradição — sobre a cena. Assim se define uma função anti-representativa cujo sentido seria a criação de uma consciência minoritária. (http://publique.rdc.pucrio.br/revistaalceu/media/alceu_n9_abreu.pdf. Último acesso em 24/03/08)
7.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em busca da consciência minoritária de meu fazer teatral, argumento: 1) quando o teatro de porão tem por princípio, escolher lugares que possibilitem a experimentação da fórmula espacial unitária, flexibilizando a relação ator/espectador, já apresenta nesta questão,
66
Este artigo retoma um aspecto do problema exposto no primeiro capítulo, ―O combate e o procedimento‖, de sua tese de doutorado, O combate ao julgamento no empirismo transcendental de Deleuze, orientada pelo professor Roberto Machado e defendida, em outubro de 2003, no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ovídio Abreu é professor da UFF.
desestabilizados, dois elementos: a dualidade palco/platéia, isto é, o lugar para ser visto e o lugar de onde se ver e a dualidade ator/espectador, isto é, aquele que faz para ser visto e aquele que vê; 2) que outro elemento estável é extraído no teatro de porão: texto dramatúrgico como o único indutor da cena, porque múltiplos são os indutores para a construção da cena do teatro de porão; 3) que é importante considerar, como princípio deste fazer, que a encenação é concebida a partir de uma imagem cenográfica, objetivando a alteração dos corpos (ator e espectador), gerando elementos cenográficos que flexibilizem as relações cênicas; 4) que outra extração desestabilizadora é não pensar dramaturgia igual a literatura dramática, mas sim, pensá-la como múltipla, isto é, considerar todo e qualquer texto - independente de seu estilo, origem, modo de construção - passível de apropriação na construção da dramaturgia do espetáculo; 5 ) que é preciso extrair da narrativa a mensagem, da temática a idéia única, dando livre arbítrio aos espectadores; 6) que o teatro de porão tem como princípio que todo processo de criação deverá ser experenciado como a possibilidade de autoconhecimento por parte de seus criadores, mais que isso, que o processo de criação do ator é apropriação de si, afirmando que ―interpretar‖ não compreende ―ser outro‖, muito pelo contrário, o ator fabula o seu trabalho não como a construção de um personagem, mas sim, com sua própria história de vida e mais ampla e profundamente, com seus DEVIRES; 6) por fim, que a cena-afago provoca sensações impossíveis de serem fixadas, porém possíveis de serem profundamente desejadas. Praticamente, todas as encenações apresentadas conseguiram em suas construções operar com a distância íntima, na relação ator/espectador. Minha ação final na investigação foi compreender quais elementos estáveis do fazer teatral foram extraídos, nesta prática, pondo tudo em variação contínua, transpondo tudo em termos de ―menor‖, isto é, com consciência minoritária, de desejo. Compreendo que o que mais
singulariza esta prática teatral, a ponto de reconhecê-la como teatro menor – teatro de porão - é a presença de todas essas extrações, observáveis, em uma mesma obra cênica. A consciência de que as minhas escolhas estéticas implicaram em escolhas éticas, a concepção e existência do Teatro Porão Puta Merda67 como resultado dessa tese é para mim uma atitude biopolítica, pois política e amorosa, com a minha cidade. Desejo compartilhá-la, incluindo este teatro na Cartografia do Teatro em Porões da cidade de Belém do Pará, aumentando de 06 (seis) para 07 (sete) o número de teatros-porão e de 49 (quarenta e nove) para 52 (cinqüenta e dois) o número de espetáculos, até a presente data, maio de 200868. Li, em um dicionário da língua portuguesa, que categorizar é acusar publicamente. Desejo acusar publicamente a minha poética encravada nos porões da cidade de Belém do Pará de ser uma estética específica, particular e local; de ser uma micropolítica; de ser uma formação de desejo molecular, minoritária, menor. De ser Teatro de Porão.
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Fundado em 17 de novembro de 2006 e situado na Rua Riachuelo № 69, no bairro da Campina, zona do baixo meretrício da cidade de Belém do Pará. A concepção desse espaço e seu primeiro plano de administração foi de autoria de Wladilene de Sousa Lima. 68
No período de novembro de 2006 a maio de 2008 o Teatro Porão Puta Merda foi palco das seguintes montagens teatrais: Império de São Benedito, criação e direção de Karine Jansen - O espetáculo foi concebido no atelierresidência de Karine Jansen, também um porão. Fez algumas incursões por outros espaços não convencionais da cidade, em ensaios abertos, mas teve a sua estréia oficial na inauguração do Teatro Porão Puta Merda -, Em Carne e Osso, criação e direção de Wlad Lima – experimento cênico desse estudo – e A Deixa que nunca vem, criação e direção de Marluce Oliveira e assistência de criação de Wlad Lima – concebido paralelamente ao processo de criação do Em Carne e Osso e apresentado, nas terças-feiras dos meses de maio e junho de 2007, na caixa preta desse teatro.
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ANEXOS
ANEXO 1: ROTEIRO DO EM CARNE E OSSO.
EM CARNE E OSSO UMA COLAGEM DE ROUBOS DE WLAD LIMA69
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Autores roubados: Albert Innavrato Valére Novarina Antonin Artaud Federico Garcia Lorca Luís Otávio Castelo Branco Barata
UMA CENA FORA DO ESPAÇO
MULHER: Eu queria que se apagasse a luz do teatro agora e que todos os que sabem que pensam saber, entrassem pro teatro no escuro, não para olhar algumas vezes, mas para levar uma lição de obscuridade, beber penumbra, sofrer pelo mundo e urrar de tanto rir. Sofrer pelo metro, pelo tempo, os números, as quatro dimensões. Entrar na música. Venham, sabemos que vocês que não são daqui, mas entrem. Entrem, crianças que sabem nascidos da escuridão, venham! Vamos assistir juntos ao levantar do buraco. Pois este teatro só é mesmo em cena a representação de um buraco. É essa a idéia que devemos cavar.
MULHER BATE NA PORTA E HOMEM ABRE O TEATRO E CONVIDA O PÚBLICO A ENTRAR
HOMEM: Depressa, depressa. Aproveitemos que ele não está. Vamos, vamos. Cada um encontre o seu lugar nesta história. Aqui, ali ou acolá. Aquietem-se!
MULHER: Sereno cresceu pensando que talento e sensibilidade eram coisas para as pessoas levarem a sério. Pelo menos, as pessoas importantes para ele. Sereno cresceu pensando que aparência e sexo não eram importantes. Que o desenho, a pintura, as artes satisfariam qualquer buraco que ele tivesse. E quando esse buraco tornar-se-ia insuportável, um empurrãozinho com a mão seria a solução. Nós vamos assistir o quanto o desejo de Sereno ficou em pé sozinho. Ainda esta noite vamos ouvir Sereno dizer que nada abranda o gosto da própria carne. Silêncio, ele chega.
ENTRA SERENO PELA MESMA PORTA QUE O PÚBLICO COM MUITA DIFICULDADE DEVIDO O SEU ENORME TAMANHO SERENO: Vocês já começaram sem mim!? MULHER: Aí está o ator! Ele entrou na solidão na frente de todos, ele ultrapassou seus animais, queimou suas roupas corriqueiras e vestiu um hábito espalhafatoso. SERENO: Eu ainda não estou pronto! MULHER: Mais um desesperado acaba de se jogar em cena. Se o ator não fosse o maior de todos os desesperados, ele não entraria; ele não conseguiria ultrapassar a passagem, a porta por onde se entra em cena – que é uma terrível fronteira emocional, não uma porta. Pois não há porta para entrar em cena. O ator passa antes por baixo de um muro, por seu aniquilamento completo. Dá pra ver logo de cara, quando um ator entrou, se ele entrou bem destruído, passado a vácuo ou não. Se ele passou ou não por cima do seu próprio corpo ao entrar. Dá pra ver pela luz que emana dele, que só aparece sobre os que estão bem aniquilados. Há uma glória em seu porte, que não vem das luzes dos refletores – isso é só uma gloriazinha pequenininha – mas de uma luz que transparece sobre seu rosto muito pálido, de uma forma suprema. Vá ator, entre, saia de meu coração, inflame meus ossos! Veja se me faz descriar tudo, ouvi-lo falar de outro lugar, onde só com a minha cabeça eu não iria. SERENO: Eu realmente não compreendo o que estão dizendo. Eu já fiz alguma cagada, posso entrar? HOMEM: O teatro não é um lugar para se fazer de bonito, aparecer sobre duas patas, inteligente e bem domado. O teatro foi inventado para que aqui se queime à noite todas as figuras humanas. Pois a imagem do rosto humano, a que a gente pensa que tem, pensa que carrega, pede periodicamente para ser lavada, apagada.
SERENO: Gosto de pensar que o teatro é a captura do silêncio dos homens durante uma hora. Vocês não estão falando demais. (começa a despir-se) TEMPO LONGAMENTE SENTIDO MULHER: Que maldição! É apenas um despido que fala conosco. Que alguém o cubra com um manto! Não há nada mais nu do que um ator. Não há outro estado no mundo mais nu. Ficou nu, quando deixou a humanidade e entrou na solidão na frente de todos. Quando ele deixou seu corpo morto nos bastidores, caído. O ator não habita seu corpo como uma casa de família, mas como uma caverna provisória e uma passagem obrigatória. Talvez seja por isso que os atores velhos são sublimes de uma forma mais leve: porque já começaram em seus corpos o trabalho de separação. SERENO DESAPROVA TUDO O QUE É DITO HOMEM: É o corpo não visível, é o corpo não nomeado que representa, é o corpo do interior, é o corpo com órgãos. É o corpo feminino. Todos os grandes atores são mulheres. Pela consciência aguda que têm de seu corpo de dentro. Porque sabem que seu sexo está dentro. Os atores são corpos fortemente vaginados, vaginam com força, representam com o útero; com a vagina, não com o pau. Representam com todos os buracos, com todo o interior do corpo esburacado, não com seu troço teso. Não falam com a ponta dos lábios, toda a sua fala lhes sai pelo buraco do corpo. Todos os atores sabem disso. E querem impedi-los disso. De serem mulheres e de vaginarem. Querem que indiquem, mostrem uma coisa depois da outra, fálus com sentido, membros másculos tesos que designam, flechas bem adestradas que apontam o sentido, indicadores e executores. No sentido, no bom sentido, para que tudo se mantenha dentro da ordem normal.
(SERENO NO CHÃO SÓ COBERTO POR UM MANTO) SERENO: Antes de ser este homem eu sou uma mulher. HOMEM: Foi o que acabei de anunciar aos nossos espectadores. SERENO: A posição elevada do espectador na cena nos engana. Na realidade ele está sempre embaixo, muito mais abaixo, mais abaixo do que a terra, no fosso, com os bichos, com os de baixo. Vejo-o montado bem mais abaixo que os outros, e a cena como o pico de um fundo, o cume de um buraco, de onde ele imporia as mãos aos animais-atores, a música dos gestos, as línguas e as figuras. Por isso, o ator não é de forma alguma um bicho largado, um endiabrado, mas ao contrário, um encadeador que triunfa pela doçura. Hoje nós começaremos por onde? HOMEM: Pela infância do personagem. SERENO: Pela infância? Sempre pelo mais difícil. HOMEM: Eu adoro crianças. SERENO: Que seja. Preciso encontrar a tal voz. (improvisa com a atriz que viverá a mãe) SERENO: É esta!
ALGO OUTRO
OUTRA CENA
HOMEM: E agora um drible no zagueiro, outro no lateral, bola no meio das pernas para o ponta, que desce à linha de fundo, cruza alto para a área e eu de cabeça pulo mais alto que todo mundo... o goleiro sai, e é gooooooooollllll. Eu não poderia marcar sem este garoto. Dá aqui um abraço. Do que você está brincando? SERENO: De andar descalço.
HOMEM: Idiota, assim você corta o pé. SERENO: Eu quero. HOMEM: Aí tem cobra e ratos. Eles comem garotinhas, começam pelos pés. Engolem elas todinhas. Cuidado. SERENO: Não sou nenhuma garotinha. E eu quero ficar aqui. HOMEM: Você quer cortar o pé? SERENO: Num sei. HOMEM: Talvez venha um homem e segure no seu pé. Dê um beijinho e chore sobre ele. Os homens se escondem lá. Debaixo das grandes madeiras. Eles se escondem, ta me ouvindo? E esperam... Esperam pelas garotinhas que passam descalças. As meninas não sabem lutar. As garotinhas, elas sim, têm os pés macios. Eles esperam com uma corda para amarrar bem forte. Pegue as suas meias e os sapatos. SERENO: O quê? Pra quê? HOMEM: Eu quero. Vamos. Ande comigo. Lá embaixo, perto dos paus. OS DOIS ENTRAM PARA BAIXO DA ESTRUTURA MULHER APARECE E OUVE TUDO MULHER: Boca, ânus. Esfíncter. Músculos redondos que fecham nosso tubo. A abertura e o fecho da palavra. Ataque certeiro (dos dentes, dos lábios, da boca musculosa), final certeiro (ar cortado). Parada certeira. Mastigar e comer o texto. O espectador cego deve ouvir a mordida e a deglutição, se perguntar o que está sendo comido ali, no palco. Quê que eles comem? Eles se comem. MULHER OUVE BARULHOS E SE ESCONDE MINUTOS DEPOIS SERENO SAI DE LÁ NERVOSO HOMEM ATRÁS
HOMEM: Ah, merda Sereno, estava apenas brincando. Às vezes é brincadeira. Então, cala a boca garoto! Sua mãe vai me xingar. Por que você não vai se cuidar, heim? Tirar essa coisa do seu pé. HOMEM SAI SERENO: Havia bichos, lesmas e insetos. Havia formigas negras e formigas vermelhas, formigas gigantes e lesmas. Havia vermes, aranhas e cobras. Um dia eu esmaguei mil e dezoito cobras com meus pés descalços. Naquela época eu era muito gordo. Foi depois de uma chuva muito forte. Corri pela grama, e tirei os sapatos e as meias. As cobras moviam-se devagar e eu esmaguei cada umas delas e fiquei olhando horas e horas. Havia sangue de cobra por todo o meu pé. MULHER APARECE MULHER: Quê merda é essa? SERENO: Vinho de cobra. MULHER: Você não tem nada no pé, não é? SERENO RESPONDE PARA O PÚBLICO SERENO: Há um pacto entre a boca do sujeito que fala e a orelha daquele que escuta. SERENO SAI CORRENDO PARA OS SEUS DESENHOS MULHER FALANDO PARA SERENO OUVIR MULHER: Eu lembro do Antônio Lisboa na esquina da velha rua. Nós crescemos juntos. Ele era mais gordo que você. Um dia ele deu de cara comigo e com minha irmã no beco, aí ele tirou pra fora e deixou ele grande, dizendo... Deus abençoe os gordos. Eu dei as costas e fui embora. Mas tinha que casar com aquele filho da puta do seu pai. Lisboa era boa pinta, mesmo gordo. Melhor que você, Deus sabe! Mesmo com aquelas espinhas na cara, ele nunca ficou por baixo, nem por dez minutos. Bom... Talvez Deus te dê um dos bons, mas diabos, eu duvido.
MULHER SAI SERENO: Mãe. Eu pensava que o meu pai metia barata no buraco dela, isso porque uma noite eu ouvi ela dando risinhos nervosos. Não havia porta entre o meu quarto e o deles, apenas uma cortina esburacada. Eu ouvia os risinhos dela e pensava que meu pai à noite juntava muitas baratas no porão e ficava jogando no buraco dela. Muita dança nos seus tubos, sufocando, fornicando, dando vida, vocês sabem tudo o que as baratas fazem nas bucetas. E quando ela foi ao banheiro, vejam vocês, eu pensei que ela estivesse inundando o banheiro. Então, uma noite olhei através do buraco da cortina. E preferi as baratas.
OUTRA CENA
HOMEM: A noite passada sonhei que estava comendo uma perna de galinha frita. Comecei lambendo ela. Minha língua estava toda molhada e eu lambi toda ela, pra cima, pra baixo, toda ela. Então com meu dente da frente cortei a ponta. Era um pedaço de pele amarela. Enrolei a pele debaixo da língua e suguei todo o líquido. Então, cuspi. E de repente, finquei todos os meus dentes no meio da perna e deixei ele se dissolver na minha boca. Sem morder, sem mastigar, apenas deixando ele se dissolver. Bom, então sonhei que tinha mordido a boca. Justo nessa hora, acordei com o grito do menino. Ele dormia na cama, ao meu lado. Suas roupas debaixo estavam cobertas de suor. Ele teve um sonho molhado. (Dá muitos risinhos). Ele não sabe o que era. Eu não sei de nada. Nem contei o ocorrido pra mãe dele. Quando ele começou a chorar, pensando que ia morrer, deixei que pensasse isso mesmo. Afinal, tudo pode acontecer no sono. Estou com fome. Espero que a mãe dele sirva galinha, hoje. HOMEM SAI ALGO OUTRO
SERENO: Eu estou frito. Um belo gordo assado no forno. Há uma porta de vidro no meu forno, e ele se aproxima, apontando e gargalhando. Gordo assado no forno é muito engraçado. Não posso me mover. Se eu me mover, queimo as minhas costas. Se eu me mover queimo a barriga. Se eu me virar queimo por todos os lados. Caí numa armadinha, vejam vocês. Primeiro eu pensei, espere até que você esteja mais velho, Sereno, espere mais um pouquinho. Então força; muita força para estourar através do vidro do forno e ganhar a direção do sol. Mas do outro lado tudo que há são fornos, com outras portas de vidro, onde as pessoas apontam pra mim e gargalham. Não há sol algum... Será que ele existe mesmo? Ainda estou aqui, sendo torrado, assado, esturricado!
OUTRA CENA
SERENO: À minha vontade abjeta de ser amado, substituirei uma potência de amar; não uma vontade absurda de amar qualquer um, qualquer coisa, não se identificar com o universo, mas extrair o puro acontecimento que me une àqueles que amo, e não me esperam mais do que eu a eles, já que só o acontecimento nos espera.
Minha querida mamãe, Perdoa, perdoa, eu te suplico, a um filho culpado, a meu coração arrependido. Ò! Mamãe, eu te amo mais do que tudo no mundo, eu te amo e o remorso de minha culpa me tortura, eu sou louco, eu sou um monstro, mas perdoa. Que fúria me leva a cometer tais atos. Ò! Eu te amo e eu não cansarei de te repetir como é enorme meu corpo, mas como é igualmente grande a tua bondade para conseguir me olhar com carinho.
Perdoa mamãe, eu te suplico. Diga-me que me perdoas e logo serei merecedor do teu beijo, tão esperado. Deus faça com que eu me corrija, porque mamãe é a coisa que mais amo no mundo
OUTRA CENA
HOMEM: O tempo passou. Para o seu próprio bem, Sereno eliminou as cenas que seria melhor não lembrar. Ele já reconheceu que é culpado por essa simplificação. Há coisas importantes: a aparência e o sexo. Isso era tudo o que importava. Sereno sabe que aqueles que negam isso estão participando de uma grande comédia. Sereno aprendeu a lição. Quando existe a solidão, o vazio e a indiferença, nada mais, aliviam-nos a dor – os desenhos vejam vocês, não foram suficientes. Tudo isso é nada, nada, nada. SERENO: Cale a boca e saia de cena. Eu mesmo quero contar esta história e me salvar. HOMEM SE ESCONDE SERENO: Sereno voltou ao bairro de sua infância, assim que completou 50 anos. E alugou um quarto no porão de uma casa antiga, na barulhenta rua Riachuelo, zona do baixo meretrício. Sereno trancou sua única janela. Mesmo nos dias mais quentes, ele só respirava o ar condicionado de um velho aparelho. Aquilo tudo cheirava a sua própria carne. Sereno não esta só, como vocês podem pensar. Ele ouve ruídos horríveis que vêm da rua. Ouve pequenos monstros gritarem. Mas também descobre o seu corpo de outra maneira; seu próprio corpo como um outro. COMEÇA UM TRABALHO DE SOMBRAS NO CHÃO E PAREDES. SERENO: Um dia, à uma da tarde, ele viu a uma sombra. Ele viu um círculo vermelho-vivo que atravessava a rua. Com o olhar fixo no círculo, ele ia tentar... bobagem. Ia tentar, estava
hipnotizado e ia tentar uma vez mais... Ele quis ver quem movia aquele círculo. Ficou estático, olhando através da sujeira compacta dos vidros da janela. Era uma garota. Uma linda garota. Ah, sim, Sereno entende de beleza. Sabe o que fala. Primeiro, viu uma coisa muito bonita, que brilhava e atravessava seus olhos como uma faca em brasa. E ele olhava, até que seus olhos começaram a doer de amor. ALGO OUTRO ACONTECE QUE COMOVE SERENO (SUGESTÃO: CENA DO LORCA – TRADUÇÃO DO LULA) PARA DEPOIS DESTRUÍ-LO. TRABALHO EM SOMBRAS SOMBRA: Se eu me transformasse em nuvem? SERENO: Eu me transformaria em arco-iris. SOMBRA: Se eu me transformasse em merda? SERENO: Eu me transformaria em mosca. SOMBRA: Se eu me transformasse em doença? SERENO: Eu me transformaria em beijo. SOMBRA: Se eu me transformasse em ferida? SERENO: Eu me transformaria no mais branco dos lençóis. SOMBRA: Por quê? Diz, por quê? Por que me atormentas? Vem comigo, vem e deixa que te leve para onde o amor pode levar. Vem, e se é verdade que me amas, tu me transformarás na tua esperança, já que gostas das coisas distantes. E como não queres beijar-me, achando que sinto nojo - um nojo que não sinto – eu me transformarei em faca para te cortar, dia-a-dia, um naco da tua dor. Vem dançar, vem! A dança é uma das maneiras que tenho de amar-te. SERENO: Quando rondas pela casa, pelos objetos e pelo leito das lembranças, eu te sigo, mas não te sigo quando, cheia de vitalidade, queres levar-me para lugares onde serei visto. Aí sim,
neste momento, queria ser uma lâmina de uma justiça louca para retalhar-me por dentro e por fora e olhando no espelho de meu sangue ver se mentes para mim. SOMBRA: Se eu me transformasse em formiga? SERENO: Eu me transformaria em terra. SOMBRA: E se eu me transformasse em terra? SERENO: Eu me transformaria em água. SOMBRA: Então, me leva para u rio e me afoga. Está será, a única maneira de poderes me ver nua. Não tenho medo de sangue. Crês que não te conheço? SERENO: Chega! Pega um machado e corta as minhas pernas. Não é assim que tu queres? Eu sei que isso te faria feliz, me ver devastado pelos insetos da ruína. Vai! Eu te desprezo e gostaria, juro, que afundasses até o fundo. SOMBRA: Queres isso? Adeus. Estou tranqüila. Se eu despencar até o fundo da ruínas, irei encontrando amor e cada vez mais amor. SERENO: Aonde vais? Onde vais? SOMBRA: Não disseste que era para eu ir? SERENO: Não, não vai. SOMBRA: E se eu me transformasse em medo? SERENO: Eu me transformaria em chicote. SOMBRA: E se eu me transformasse em indiferença? SERENO: Eu me transformaria em outro chicote feito de coroas de espinho. SOMBRA: Não me açoites! SERENO: Um chicote feito com fios de vidro quebrado. SOMBRA: Não, no ventre não, não aí não! SERENO: Um chicote trançado com unhas de recém-nascidos.
SOMBRA: Acabarás me deixando cega! SERENO: Cego, porque não és homem. Eu sim sou homem. Um homem, tão homem, que desmaia a simples idéia da lembrança da futura felicidade. Um homem, tão homem, que sinto uma dor nos dentes, aguda e latejante, quando alguém, para colher um flor, quebra um galho, por menos que ele seja. SOMBRA: Estou esperando a noite, para que sem a luz, e sem que tu me veja, angustiada eu possa me arrastar a teus pés. SERENO: Não, não! Por que dizes isso? És tu quem deves me obrigar a fazer isso. SOMBRA: E se eu me transformasse em desejo? SERENO: Tu não conseguirias. Tu serias a sombra do desejo. Serias um desejo magro para um corpo gordo. SOMBRA: Mesmo assim um desejo. SERENO CORTA O JOGO SERENO: Acendam as luzes. Ela me deu tudo o que podia me dar. SERENO SE RECOLHE EM UM LONGO SILÊNCIO
OUTRA CENA
HOMEM: Posso eu continuar a contar a tua história? Quero que isso logo, chegue ao fim. SERENO: Agora...Só diante dos olhos de minh‘alma. HOMEM: A partir daí nem sequer permitia que vissem a sua sombra. Sereno decidiu: não ia mais olhar a rua. Sereno passou a se trancafiar no seu minúsculo quarto. Saía apenas de dois em dois dias para comprar comida. Ele não fazia nada. Comia continuamente desde a hora que acordava até a hora de dormir. Não tinha nada que valesse a pena recordar. Então ficou tão gordo
que não entrava mais na roupa e mesmo nu me movia com dificuldade. Ele queria arrancar a porta trancada, apagar o fogo de seus olhos com as unhas e mordê-lo até morrer. No meio desse buraco fétido do porão de uma casa barulhenta, morava uma montanha de carne flácida. Havia ratos nesse quarto. Ele os via resvalar pelas paredes. Eles o comeriam. Esses ratos iriam encontrar Sereno. Estavam esperando por ele. Sereno seria seu objeto sexual. Iriam devorar seu corpo numa arte erótica. Iriam roer as cavidades de sua face, de seu ventre... e nessas cavidades eles fornicariam...e então apodreceriam dentro dele. Antes, quando ele já se sabia pronto para morrer, Sereno havia engolido uma enorme porção de veneno. Ao comer Sereno, os ratos estariam comendo carne envenenada. O veneno atingiria o órgão vital dos ratos – o estômago, que se dilataria e contrairia queimando mesmo que eles estivessem fazendo amor... e assim Sereno teria sido amado, postumamente. DURANTE ESTA FALA A MULHER SERVE FATIAS DE UM DOCE À PLATÉIA. SERENO ENVELHECE SENTADO BEM DEVAGAR, JÁ SEM DENTES.
ANEXO 2: QUESTIONÁRIO APLICADO JUNTO AOS ESPECTADORES
EM CARNE E OSSO DATA:
/
FICHA №
/
O ESPECTADOR
NOME: ............................................................................................................................... CONTATOS (e-mail):................................................................................................ (fones): ............................................................................................... BAIRRO ONDE MORA:............................................................................................. VOCÊ TRABALHA COM TEATRO: ( ) SIM
( ) NÃO
VOCÊ JÁ ASSISTIU TEATRO DE PORÃO: ( ) SIM
( ) NÃO
QUAIS ESPETÁCULOS?................................................................................................ VOCÊ ASSISTIU ALGUM ENSAIO DESTE ESPETÁCULO: ( ) SIM
( ) NÃO
COMO VOCÊ FICOU SABENDO DESTE ESPETÁCULO?........................................... ............................... O. QUE ACHOU DO ENTORNO (vizinhança) DA CASA, QUANDO CHEGOU? ...........................................................................................................................................
.............................................................................................................................. ..............................................................................................................................
1) NO SEU IMAGINÁRIO, O QUE EXISTE NUM PORÃO? .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. ..............................................................................................................................
2) QUAIS AS SENSAÇÕES QUE O ESPAÇO DE PORÃO PROVOCA EM VOCÊ? .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................
3) O QUE SENTE QUANDO ALGUÉM TEM EMOÇÕES FORTES MUITO PERTO DE VOCÊ? .......................................................................................................................... ........................................................................................................................... .......................................................................................................................... .......................................................................................................................... ..........................................................................................................................
ESCREVA SOBRE SUAS SENSAÇÕES NO ESPETÁCULO: .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. FAÇA A SUA ANÁLISE SOBRE O ESPETÁCULO? .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. O QUE VOCÊ ACHA DESTA CASA-PORÃO-TEATRO? .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. .............................................................................................................................. ASSINE SE VOCÊ QUISER. ..........................................................................
ANEXO 3: TERMO DE CIÊNCIA DO ESPECTADOR SOBRE A PESQUISA
EM CARNE E OSSO LISTA DOS ESPECTADORES PARA O DIA: 27/JUNHO/2007 (quarta-feira) №
NOME
CONTATOS
LEU O ACORDO?
1 2 3 4 5 6 7 8 ESPECTADORES EM RESERVA 1 2
ASSINATURA
ACORDO VOCÊ É NOSSO CONVIDADO PARA TESTEMUNHAR A REALIZAÇÃO DE UMA OBRA TEATRAL.
Mas precisamos que você cumpra o seguinte acordo: • Chegar no horário marcado: entre 19h30min / 19: 50min. (até 10 minutos antes do início do espetáculo que é às 20h, sem possibilidade de entrada de espectadores após este horário) • Permitir ser fotografado • Preencher um formulário que o identifica como espectador deste trabalho • Participar do debate que será gravado em áudio após o término do espetáculo (debate com duração máxima de uma hora). • Ter ciência de sua contribuição em trabalho acadêmico: tese de doutoramento • Confirmar por telefone (9987-7819 Zê Charone) a sua presença no espetáculo na terça-feira que antecede a data prevista acordada por vc até as 20h. Caso isso não ocorra você será substituído por um espectador da lista reserva. ESTE ESPETÁCULO É UMA REALIZAÇÃO DO GRUPO CUÍRA DO PARÁ
EM CARTAZ NO TEATRO PORÃO PUTA MERDA Rua Riachuelo n. 69 esquina da tv. Campos Sales. (casa verde arredondada, portão lateral) EM CARNE E OSSO CONCEPÇÃO/ENCENAÇÃO WLAD LIMA
ATORES-CRIADORES CLAUDIO BARROS OLINDA CHARONE ORIANA BITAR PATRÍCIA GONDIM WLAD LIMA
PRODUÇÃO ZÊ CHARONE
ANEXO 4: ROTEIRO ENCENADORES
DE
ENTREVISTA
APLICADO
JUNTO
AOS
TEATRO DE PORÃO: POÉTICAS CÊNICAS ENCRAVADAS NOS PORÕES DA CIDADE DE BELÉM
O corpo da tese é composto por cinco capítulos assim construídos: o capítulo introdutório que revela os conceitos filosóficos e estéticos que geraram a tese; seu segundo capítulo é uma cartografia poética de um teatro construído e apresentado em porões, onde analisa um conjunto de onze espetáculos dirigidos por Wlad Lima e montados nesses espaços da cidade; seu terceiro capítulo descreve e analisa a construção do espetáculo Em Carne e Osso - com seus princípios e processo; no quarto capítulo, esta tese encontra o seu ápice quando reflete sobre a produção cênica de outros encenadores, em espaços desta natureza, argüindo sobre a existência, na cidade de Belém, de uma prática teatral específica, particular e local - passível de ser reconhecida ou não, como uma categoria teatral; alguns aspectos conclusivos encerram o último capítulo desta tese.
ENTREVISTAS COM ENCENADORES
Você é um dos encenadores, reconhecidamente importante, na construção desta prática teatral. Você está convidado a participar da construção do terceiro capítulo desta tese. O objetivo destas entrevistas é contextualizar as motivações na recorrência desta prática também exercida por outros encenadores, através da escuta sensível de suas reflexões teórico-práticas, seus etnométodos (seu jeito próprio de fazer) - no mesmo período, na mesma cidade - contribuindo para o registro da história recente do teatro em Belém do Pará.
ROTEIRO DE ENTREVISTA
1) Nome completo e o ano de início de suas atividades teatrais?
2) Local de trabalho e sua função atual?
3) Você é um(a) encenador(a) que trabalha em ―teatro feito em porão‖ como eu, Wlad Lima, trabalho. Eu realizei os seguintes espetáculos: no Porão Cultural da Unipop, A Dama da Noite montagem do Grupo de Teatro Cuíra e Hamlet do Grupo de Teatro da UNIPOP; no Espaço Mariano da ETDUFPA, Mariano montagem do Curso de Formação de Ator; no Teatro Cláudio Barradas, também da ETDUFPA foram montados Do que brincam os meninos que serão poetas, Maravilhosa Orlando, Circo Vitória e A-MOR-TE-MOR, todos realizados pelo Curso de Formação de Ator da ETDUFPA; no Teatro Bufo, Duas Tábuas e Uma Paixão e Um Beija-flor a dois metros do chão, montagens da Dramática Companhia, Água Ar Dente do Grupo de Teatro Cuíra e Devagarinho eu deixo, montagem da Escola de Bufões. Em todos esses processos, eu estive presente na função de encenadora - num trabalho colaborativo com outros diretores e criadores de cena. Provavelmente, você esteve presente em um ou mais desses trabalhos, mas eu acredito que você realizou encenações que não estão aqui. Portanto, cite os espetáculos que você montou desta lista, mas principalmente, os que não estão aqui, especificando os seus respectivos porões e a data da montagem de cada trabalho?
4) Agora com sua lista pronta vamos precisar trabalhar sobre cada uma de suas criações. Em primeiro lugar, selecione de cada trabalho, fotos, materiais de jornal e material de divulgação como programa, folder, cartaz, banner digital, etc. Guiado pelo conteúdo das questões formuladas abaixo e respondidas por espetáculo – se você construiu dez trabalhos, responderá cada questão dez vezes - vc poderá selecionar a foto que melhor expressa o que vc quer dizer, em determinada questão.
Observação: A partir dessa linha você vai precisar COPIAR E COLAR as questões abaixo, quantas vezes forem necessárias, isto é, pelo números de espetáculos que você realizou em porões.
_________________________________________________________________________
Questões:
a) Nome do espetáculo e grupo realizador:
b) Sua função ou funções no trabalho?
c) Qual o seu indutor de partida? Um texto dramático pré-escrito, um texto literário ou o que? Outra natureza de indução, como uma imagem, uma música? Fale sobre isso.
d) Se você pariu de um texto, quero saber se vc montou este texto na integra, se fez adaptações, se fragmentou o texto, se realizou colagem entre os pedaços do texto, ou com outros textos? Quem é o autor ou autores desse texto(s). Fale sobre isso.
e) Descreva o porão onde vc realizou o trabalho. Tamanho, se tem colunas, se tem escada ou qualquer outra coisa fixa? Fale, livremente, da arquitetura do espaço. Essa arquitetura que vc encontrou.
f) Dentro desse espaço vc construiu uma imagem cenográfica, qual foi essa imagem? Por exemplo, na Dama da Noite, a imagem cenográfica era de um banheiro público, no Beija-flor um carro de sucatas, no ÁGUA AR DENTE, um bar, no A-MOR-TE-MOR a imagem era múltipla, podendo ser lida como uma estação de trem, um túnel abandonado, o esqueleto de um casa, etc. Qual a imagem cenográfica desse seu espetáculo? Comente.
g) Ao conceber sua imagem cenográfica, automaticamente, vc determinou a relação palco/platéia. Como ficou essa relação neste espetáculo que vc está descrevendo? A platéia é sentada, frontal? Está na lateral? A platéia é dividida em dois, três, quatro blocos? A platéia está dentro do palco? Não existe separação? O espectador está próximo ou distante do ator? A quantos metros? Na verdade o espectador é como mais um ator em cena? Como foi a sua proposta?
h) Na concretizar a sua proposta vc construiu que elemento(s) cenográfico(s)? Por exemplo, no Bispo eu construí uma estrutura de madeira de dois andares com uma passagem no centro; no Maravilhosa Orlando tivemos escada, dois palcos montados com praticáveis; no Circo Vitória
um picadeiro de garrafas com desenhos em pastel dentro, como mensagens jogadas ao mar. O que vc construiu para este espetáculo?
I) Quantos atores trabalharam com vc neste espetáculo? Cite-os e fale sobre o traço de condução que vc adotou neste trabalho com os atores. Por exemplo, na maioria dos meus trabalhos eu opero com as histórias de vida, com a apropriação de si para os atores, etc. E vc?
j) Quem foram os técnicos criadores do trabalho? Fale um pouco sobre eles e com eles trabalharam.
l) Quantos espectadores cabiam em cada sessão? Existia alguma função específica para eles, como, por exemplo, eles serem os construtores de sentido da cena? Diga o que vc pensou para eles.
m) Pensando sobre este espetáculo, vc seria capaz de me dizer quais as sensações de partida que vc teve ao iniciar este espetáculo? E quais foram as suas sensações do espetáculo durante as apresentações. E hoje, o que vc sente; que sensações lhe chegam sobre esta obra?
Aqui se encerra este bloco de questões relacionadas a cada espetáculo. Obrigado por sua persistência.
Vamos encerrar este Roteiro de Entrevista com os Encenadores com algumas perguntas mais gerais.
5) O que te levou a realizar espetáculos em porões?
6) Que diferenças há, entre o que vc monta em porão e o que vc monta em um espaço convencional?
7) O que você pensa sobre Teatro de Porão?
8) O que vc pensa sobre uma pesquisa que estuda espetáculos feitos em porões tendo como hipótese que Teatro de Porão é uma categoria teatral, uma prática cênica particular, local e específica da cidade de Belém?
9) Se vc souber de práticas similares a nossa em outro estado ou país, por favor, cite aqui e se puder, informe os contatos.
10) Acrescente aqui questões que você vê com relevantes e que ainda não foram aqui mencionada. Faça sugestões a vontade.
Agradeço muito a sua participação na construção desta tese e com a publicação da mesma, sua participação na construção da História do Teatro no Pará.
Wlad Lima.
ANEXO 5: MATÉRIA JORNALÍSTICA SOBRE A PESQUISA PUBLICADA EM 17/11/2007